Capítulo 14


Não havia outro som na imensidão da floresta que não o da respiração ofegante de Vikary e os chiados fracos dos espectros arbóreos.

Dirk se aproximou de Janacek e o virou. Pedaços de musgo estavam presos ao corpo, sugando o sangue como esponjas. Os espectros arbóreos haviam despedaçado sua garganta, então a cabeça de Garse pendeu de forma quase obscena quando Dirk o moveu. Suas roupas grossas não forneceram proteção; os animais o morderam por todos os lados, transformando o tecido-camaleão em farrapos encharcados de vermelho. As pernas de Janacek, ainda unidas pela inútil plataforma de metal do aeropatinete, foram quebradas na queda; fragmentos de ossos afiados saíam pelas duas panturrilhas, em fraturas quase idênticas. O rosto, totalmente roído, era o pior. Seu olho direito desaparecera. O sangue que escorria da órbita vazia caía lentamente pela bochecha até o chão.

Não havia nada a ser feito. Dirk ficou olhando, impotente. Deslizou discretamente a mão pelo bolso da jaqueta de Janacek e envolveu a pedrardente na mão, depois se levantou para encarar Vikary.

- Você disse...

- Que nunca atiraria nele. - Vikary completou. - Sei o que disse, Dirk t'Larien. E sei o que fiz. - Falou muito lentamente, cada palavra saindo de seus lábios como se fosse chumbo. - Não queria isso. Nunca. Pretendia apenas pará-lo, derrubá-lo do aeropatinete. Ele caiu em um ninho de espectros arbóreos. Um ninho de espectros arbóreos.

A mão de Dirk apertava com força a pedrardente. Não disse nada.

Vikary estremeceu; sua voz ficou mais agitada, e havia um toque desesperado em seu tom.

- Ele estava me caçando. Arkin Ruark me avisou quando falei com ele rapidamente pelo visor em Larteyn. Ele disse que Garse se unira ao Braiths, que jurara me abater. Não acreditei. - Tremeu. - Eu não acreditei! Mesmo assim, era verdade. Ele veio atrás de mim, me caçando com eles, exatamente como Ruark dissera. Ruark... Ruark não está comigo... nós nunca... os Braiths vieram no lugar dele. Não sei se ele... Ruark... talvez eles o tenham matado. Não sei.

- Parecia confuso e cansado. - Eu tinha que deter Garse, t'Larien. Ele conhecia a caverna. E tenho que pensar em Gwen também. Ruark disse que Garse, em sua loucura, prometera entregá-la para Lorimaar, e eu o chamei de mentiroso, até que vislumbrei Garse atrás de mim. Gwen é minha betheyn, e você é korariel. São minha responsabilidade. Eu tinha que viver. Você entende? Nunca pretendi fazer isso. Fui atrás dele, abrindo caminho com o laser... Os filhotes no ninho estavam todos sobre ele, aquelas coisas brancas, e os adultos também... queimei todos eles, queimei e o tirei de lá.

- O corpo de Vikarry sacudiu com soluços secos, mas nenhuma lágrima surgiu; ele não permitiria isso. - Olhe. Ele estava usando ferro vazio. Veio me caçar. Eu o amava e ele veio me caçar!

A pedrardente era uma dura pepita de indecisão na mão de Dirk. Olhou novamente para Garse Janacek, cuja roupa estava tingida de sangue velho e musgo podre, e então para Jaan Vikary, tão perto de ter um ataque de nervos, parado, pálido, com os grandes ombros trêmulos. Dê um nome a uma coisa, Dirk pensou; e agora precisava dar um nome para Jaantony Alto-Jadeferro.

Deslizou a mão para dentro do bolso de sua jaqueta.

- Você teve que fazer isso - mentiu. - Ele teria matado você, e depois teria ido atrás de Gwen. Ele disse isso. Estou feliz que Arkin tenha conseguido avisá-lo.

As palavras pareceram serenar Vikary. Ele assentiu sem dizer nada.

- Eu vim atrás de você - Dirk prosseguiu - quando você não retornou a tempo. Gwen estava preocupada. Vim para ajudar você. Garse me pegou, me desarmou e me entregou para Lorimaar e Pyr. Disse que eu era um presente de sangue.

- Um presente de sangue - Vikary repetiu. - Ele estava insano, t'Larien. É verdade. Garse Jadeferro Janecek não era assim; ele não era um Braith, não dava presentes de sangue. Você precisa acreditar nisso.

- Sim - Dirk concordou. - Ele estava demente. Você está certo. Dava para perceber na forma que ele falava. Sim. - Sentia-se à beira das lágrimas, e se perguntava se isso era evidente. Era como se pegasse todo o temor e angústia de Jaan para si; o Jadeferro parecia mais forte e mais resoluto a cada segundo, enquanto o pesar invadia os olhos de Dirk.

Vikary olhou para baixo, até o corpo inerte estendido entre as árvores.

- Eu lamentaria por ele, pelas coisas que foi e por tudo o que tivemos, mas não há tempo. Os caçadores estão atrás de nós com os cães. Temos que nos apressar. - Ajoelhou-se diante do cadáver de Janacek por um instante e segurou sua mão por um instante. Então beijou os lábios do morto desfigurado e, com a mão livre, acariciou seus cabelos desgrenhados.

Mas quando se levantou, segurava o bracelete de ferro negro, e Dirk viu que o braço de Janacek estava nu e sentiu uma pontada de dor. Vikary guardou o bracelete no bolso. Dirk segurou as lágrimas e a língua e não fez comentários.

- Temos de ir.

- Vamos deixá-lo aqui? - Dirk perguntou.

- Deixá-lo? - Vikary franziu o cenho. - Ah, entendo. Os kavalarianos não enterram seus mortos, t'Larien. Nós os abandonamos à intempérie, tradicionalmente, e se os animais devoram o que deixamos, não sentimos vergonha. A vida deve nutrir a vida. Não é preferível que a carne vigorosa de Garse dê forças a um predador ágil e limpo em vez de ser devorada por um monte de vermes em uma tumba?

Então o deixaram onde Vikary soltara o corpo, em uma pequena clareira entre o interminável emaranhado amarelo-acastanhado, e seguiram pela penumbra em direção a Kryne Lamiya. Dirk carregava o aeropatinete e lutava para acompanhar os passos rápidos de Vikary. Depois de um curto trajeto, se depararam com uma encosta de rocha negra e escarpada.

Quando Dirk chegou à barreira, Jaan já estava a meio caminho do topo. O sangue de Janacek secara nas roupas de Jaan, e Dirk podia ver as manchas claramente. De outro modo, as roupas do kavalariano teriam parecido negras. Jaan escalou sem dificuldade, com o rifle preso nas costas, movendo com firmeza as mãos fortes de um apoio até o seguinte.

Dirk colocou a plataforma prateada no aeropatinete e voou pela crista até o cume.

Acabara de alcançar a altura da copa dos estranguladores quando ouviu o grito do banshee, não muito longe. Escrutou o bosque, buscando o grande predador. A pequena clareira onde deixaram Janacek era facilmente visível dali, um retalho de crepúsculo ao alcance da mão. Mas Dirk não podia ver o cadáver; o centro da clareira era uma massa viva de corpos amarelos que disputavam a presa. Enquanto observava, outras pequenas formas apareceram das árvores ali perto para se juntar ao banquete.

O banshee chegou de surpresa e flutuou imóvel sobre a batalha, dando seu terrível grito, mas os espectros-arbóreos continuaram lutando entre si freneticamente, sem prestar atenção ao barulho, resmungando e arranhando uns aos outros. O banshee mergulhou. Sua sombra os cobriu, as grandes asas ondularam, abrindo e fechando, e então ele estava sozinho, tanto os espectros quanto o cadáver desaparecidos dentro daquele abraço voraz. Dirk sentiu-se estranhamente consolado.

Mas foi apenas por um instante. Enquanto o banshee jazia inerte, ouviu-se um chiado rouco e repentino, e Dirk viu um rápido dardo embaçado caindo sobre o animal. Outro o seguiu. E mais um. E uma dúzia, pelo menos. Em um abrir e fechar de olhos parecia que os espectros arbóreos haviam duplicado. O banshee abriu suas imensas asas triangulares, batendo-as levemente, mas não se elevou. As pequenas criaturas estavam por todos os lados, mordendo-o, arranhando-o, segurando-o ao solo e rasgando sua carne. Preso ao solo, o banshee não conseguia nem dar seu grito angustiante. Morreu silenciosamente, em cima da presa que acabara de pegar.

Quando Dirk desceu do aeropatinete, no topo da encosta, a clareira era uma massa de formas amarelas novamente, da mesma forma que estivera na primeira vez que olhara, e não havia sinal do banshee. A floresta estava muito silenciosa. Esperou que Jaan Vikary o alcançasse. Juntos, retomaram sua marcha silenciosa.

A caverna era fria, escura e infinitamente quieta. As horas transcorriam sob a terra, enquanto Dirk seguia a pequena luz trêmula da lanterna de mão de Jaan Vikary. A luz o levou por tortuosas galerias subterrâneas, através de câmaras espaçosas onde a escuridão parecia não ter fim, por pequenas passagens claustrofóbicas pelas quais tinham que avançar engatinhando. A luz da lanterna era seu universo, e Dirk perdeu toda a noção de tempo e espaço. Não tinham nada a dizer um ao outro, ele e Jaan, então não falavam nada; os únicos sons eram o roçar de suas botas na pedra empoeirada e os ecos que retumbavam ocasionalmente. Vikary conhecia bem a caverna. Nunca titubeava nem perdia o rumo enquanto mancavam e rastejavam pela alma secreta de Worlorn.

Emergiram em uma ladeira ondulada coberta de estranguladores, em uma noite cheia de fogo e música. Kryne Lamiya estava queimando. As torres ósseas gritavam uma canção aniquilada de angústia.

As chamas varriam todos os cantos da pálida necrópolis, como brilhantes sentinelas vagando pelas ruas de cima a baixo. A cidade cintilava como uma miragem em ondas de calor e luz; parecia um espectro insubstancial laranja. Enquanto observavam, uma das pontes levadiças ruiu e despencou; seu centro enegrecido caiu primeiro, bem no meio das chamas, e o resto foi em seguida. O fogo consumia e se elevava, crepitando e uivando, insaciável. Um edifício próximo implodiu, espalhando uma grande nuvem de fumaça e chamas.

A trezentos metros da colina na qual estavam, erguendo-se sobre os estranguladores, uma das torres brancas como giz permanecia intacta. Mas, perfilada contra esse terrível esplendor, parecia mover-se como se estivesse viva, contorcendo-se de dor. Por cima do bramido do fogo, Dirk podia ouvir a música suave de Lamiya-Bailis. A sinfonia de Escuralba estava entrecortada e transformada; as torres haviam sumido, as notas estavam perdidas, então a música era repleta de misteriosos silêncios, e o crepitar das chamas dava um pungente contraponto para os gemidos, sibilos e lamentos. Os ventos dos escuralbinos que sopravam sem fim das montanhas, fazendo a Cidade Sereia cantar, aqueles mesmos ventos alimentavam as grandes chamas que devoravam Kryne Lamiya, enegrecendo a máscara mortuária com cinzas antes de finalmente calá-la.

Jaan Vikary empunhou o rifle laser. Seu rosto estava inexpressivo e estranho, banhado pelos reflexos do incêndio.

- Como...?

- O carro-lobo - Gwen falou.

Estava parada a alguns metros de distância, mais abaixo da ladeira. Olharam para ela sem assombro. Atrás de Gwen, sob a sombra de um viúvo azul tombado na base na colina, Dirk vislumbrou o pequeno aeromóvel amarelo de Ruark.

- Bretan Braith - Vikary falou.

Gwen se juntou a eles perto da entrada da caverna e assentiu.

- Sim. O carro sobrevoou a cidade várias vezes, disparando os lasers.

- Chell está morto - Vikary disse.

- Mas você está vivo - Gwen replicou. - Estava começando a me preocupar.

- Estamos vivos - admitiu Jaan. Deixou o rifle escorregar por entre os dedos. - Gwen, matei meu teyn.

- Garse? - ela exclamou, perplexa. Franziu o cenho.

- Ele me entregou aos Braiths - Dirk acrescentou rapidamente. Seus olhos se encontraram com os de Gwen. - E ele estava caçando Jaan, juntamente com Lorimaar. Teve de ser feito.

Ela se voltou novamente para Jaan.

- Isso é verdade? Arkin me disse algo do tipo. Não acreditei nele.

- É verdade - Vikary falou.

- Arkin está aqui? - Dirk perguntou.

Gwen assentiu.

- Dentro do aeromóvel. Ele fugiu de Larteyn. Você deve ter falado para ele onde eu estava. Tentou me contar outras mentiras. Eu o nocauteei. Está indefeso agora.

- Gwen - Dirk falou -, nós julgamos Arkin muito mal. - E o fundo de sua garganta parecia se encher de bile. - Não entende, Gwen? Arkin avisou Jaan que Garse ia traí-lo. Sem esse aviso, Jaan nunca saberia. Teria confiado em Janacek, e talvez não tivesse disparado nele. E teria sido capturado, morto. - A voz dele estava rouca e imperativa. - Você não entende? Arkin...

O fogo refletia nos olhos de Gwen enquanto ela observava Dirk.

- Entendo - disse com uma voz sufocada e trêmula. Voltou-se para Vikary. - Oh, Jaan - exclamou e abriu os braços para ele.

Ele se aproximou e apoiou a cabeça no ombro dela, e a envolveu apertado em seus braços. E então começou a chorar.

Dirk os deixou sozinhos e foi até o aeromóvel.

Arkin Ruark estava amarrado em um dos assentos. Estava vestido com pesadas roupas de campo e mantinha a cabeça baixa, com o queixo encostado no peito. Quando Dirk entrou, olhou para cima com esforço. Todo o lado direito de seu rosto era um inchado hematoma púrpura.

- Dirk - murmurou.

Dirk tirou a pesada mochila das costas e a colocou no chão. Reclinou-se contra o painel de instrumentos.

- Arkin - disse inexpressivamente.

- Ajude-me - Ruark pediu.

- Janacek está morto - Dirk lhe contou. - Jaan atirou nele e o derrubou em um ninho de espectros arbóreos.

- Garsinho - Ruark falou, com alguma dificuldade. Seus lábios estavam inchados e ensangüentados, e sua voz tremia. - Ele teria matado todos vocês. Essa é a verdade completa. Eu avisei Jaan, avisei, avisei, sim. Acredite em mim, Dirk.

- Eu acredito em você - Dirk respondeu, assentindo.

- Tentei ajudar, sim. Gwen, ela ficou louca. Eu disse que os Braiths pegaram Jaan, eu ia me juntar a ele, mas eles chegaram primeiro. Estava com medo por ela, estava. Vim ajudar. Ela me bateu, disse que eu era um mentiroso, me amarrou e voamos para cá. Ela está louca, Dirk, amigo Dirk, completamente louca, uma louca kavalariana. Quase como Garse, não mais como a doce Gwen. Acho que pretende me matar. Você também, talvez, não sei. Ela vai voltar para Jaan, sei disso. Ajude-me, você tem que me ajudar. Detenha-a - choramingou.

- Ela não vai matar ninguém - Dirk afirmou. - Jaan está aqui agora, e eu também. Você está a salvo, Arkin, não se preocupe. Vamos acertar as coisas. Temos muito o que agradecer a você, não é? Especialmente Jaan. Sem seus avisos, ninguém sabe o que teria acontecido.

- Sim - Ruark concordou. Sorriu. - Sim, verdade, completa verdade.

Gwen apareceu repentinamente, no marco da porta.

- Dirk - falou, ignorando Ruark.

Ele se virou para ela.

-Sim?

- Fiz Jaan se deitar um pouco. Ele está muito cansado. Venha aqui fora, onde podemos falar.

- Espere - Ruark pediu. - Solte-me primeiro, hein? Por favor. Meus braços, Dirk, meus braços...

Dirk saiu. Jaan estava deitado ali perto, com a cabeça apoiada em uma árvore, encarando o incêndio sem vê-lo. Afastaram-se dele, até a escuridão dos estranguladores. Finalmente Gwen parou e se virou para encará-lo.

- Jaan nunca deve saber - disse, e afastou uma mecha do cabelo negro para trás, com a mão direita.

Dirk a encarou.

- Seu braço - disse. Ao redor de seu antebraço direito, Gwen usava ferro, negro e vazio.

- Sim - confirmou. - As pedrardentes virão depois.

- Entendo - Dirk falou. - Tanto teyn quanto betheyn.

Gwen assentiu. Estendeu o braço e pegou as mãos de Dirk entre as suas. A pele dela estava fria e seca.

- Fique feliz por mim, Dirk - disse, em uma voz apagada e triste. - Por favor.

Ele apertou as mãos dela, tentando ser compreensivo.

- Estou feliz - disse, sem muita convicção. Um longo e amargo silêncio se impôs entre eles.

- Você está acabado - Gwen falou finalmente, forçando um pequeno sorriso. - Arranhado por todo lado. O jeito que está seu braço. O jeito que caminha. Você está bem?

Ele deu de ombros.

- Os Braiths não são jogadores gentis - disse. - Sobreviverei. - Soltou uma das mãos para colocá-la no bolso. - Gwen, tenho uma coisa para você.

Dentro de seu punho: duas gemas. A pedrardente redonda e rudemente facetada, com um leve brilho interior, palpitando na palma de sua mão. E a jóia-sussurrante, menor, mais escura; morta e fria.

Gwen as pegou em silêncio. Rodou-as na mão por um momento, franzindo o cenho. Então guardou a pedrardente e devolveu a jóia-sussurrante para Dirk. Ele a aceitou.

- O único que tenho de Jenny - disse, enquanto sua mão se fechava ao redor da lágrima de gelo e desaparecia novamente no bolso.

- Eu sei - ela respondeu. - Obrigada por me oferecer. Mas, verdade seja dita, ela não fala mais comigo. Acho que mudei demais. Não ouço um sussurro há anos.

- Sim - ele falou. - Suspeitei disso. Mas tinha que oferecê-la para você... e a promessa também. Apromessa ainda é sua, Gwen, se algum dia precisar dela. Chame isso de meu ferro-e-fogo. Você não quer me transformar em um quase-homem, quer?

- Não - ela respondeu. - A outra...

- Garse a guardou, quando teve de jogar as outras fora. Pensei que talvez você quisesse colocá-la novamente no bracelete, com as novas. Jaan nunca verá a diferença.

Gwen suspirou.

- Tudo bem - disse. - Descobri que sinto muito sobre Garse, no final das contas. Não é curioso? Todos os anos que passamos juntos, mal passou um dia em que não quiséssemos pular um na garganta do outro, com o pobre Jaan preso no meio, amando a nós dois. Algumas vezes tive quase certeza de que a única coisa que estava entre mim e a felicidade era Garse Jadeferro Janacek. Só que agora ele se foi, e é muito duro acreditar nisso. Fico esperando que apareça em seu aeromóvel, armado até os dentes e sorrindo, pronto para acabar comigo e me colocar no meu lugar. Acho que quando realmente me convencer de que é verdade, então talvez eu chore. Não é curioso?

- Não - Dirk falou. - Não.

- Quase podia chorar por Arkin também - ela prosseguiu. - Sabe o que ele disse? Quando foi me procurar em Kryne Lamiya? Depois que eu o chamei de mentiroso, bati nele e o derrubei, sabe o que ele disse?

Dirk negou com a cabeça, esperando.

- Disse que me amava - Gwen continuou, sorrindo amargamente. - Disse que sempre me amou, desde o momento em que nos conhecemos em Ávalon. Não posso jurar que estivesse dizendo a verdade. Garse sempre disse que os manipuladores eram espertos, e Arkin não precisava ser um gênio para ver como essa revelação me afetava. Eu quase o libertei quando me disse isso. Ele parecia tão pequeno e digno de pena, e estava soluçando. Em vez disso... viu o rosto dele? - Ela hesitou.

- Vi - Dirk falou. - Feio.

- Em vez de soltá-lo, fiz aquilo - Gwen confessou. - Mas acho que acredito nele agora. De uma maneira doentia, ele me amava.

E via o que eu estava fazendo comigo mesma; e sabia que, deixada aos meus próprios meios, eu nunca deixaria Jaan. Então decidiu usar você, usar todas as coisas que eu lhe contara, por confiar nele, para me afastar de Jaan. Suponho que tenha imaginado que você e eu nos separaríamos quando estivéssemos novamente em Ávalon, e eu me voltaria para ele. Ou talvez não. Não sei. Ele afirmou que estava apenas pensando em mim, na minha felicidade, que não podia me ver usando jade-e-prata. Que não pensava em si mesmo. Disse que é meu amigo - ela suspirou, consternada. - Meu amigo - repetiu.

- Não se sinta mal por ele, Gwen. - Dirk advertiu. - Ele teria me enviado para a morte, e Jaan também, sem um momento de hesitação. Garse Janacek está morto, assim como vários dos Braiths e emerelianos inocentes em Desafio... e tudo isso pelo amigo Arkin. Ou não?

- Agora é você quem fala como Garse - ela disse. - O que você me disse? Que eu tinha olhos de jade? Olhe para você mesmo, Dirk! Bem, suponho que esteja certo.

- O que faremos com ele agora?

- Vamos libertá-lo - ela respondeu. - Pelo menos por enquanto. Jaan não deve suspeitar do que aconteceu de verdade. Isso o destruiria, Dirk. Então Arkin Ruark será nosso amigo novamente. De acordo?

- Sim - ele concordou. O rugido do fogo se transformara em um estalar suave, Dirk percebeu; estava quase em silêncio. Olhando de relance na direção do aeromóvel, viu que o inferno estava se apagando. Alguns focos de incêndio dispersos tremulavam fracamente entre as ruínas, jogando uma luz imprecisa sobre a cidade desfeita e fumegante. A maior parte das torres havia caído, e as que permaneceram estavam completamente em silêncio. O vento era somente vento.

- O amanhecer chegará logo - Gwen observou. - Precisamos partir.

- Partir?

- De volta a Larteyn, se Bretan não a destruiu também.

- Ele tem um jeito violento de lamentar - Dirk concordou. - Mas Larteyn é seguro?

- E hora de acabar com o esconde-esconde - Gwen falou. - Não sou inconsciente agora, e não sou uma betheyn indefesa que precisa ser protegida - ergueu o braço direito; os distantes fogos iluminaram o ferro opaco. - Sou teyn de Jaan Vikary, batizada em sangue, e tenho minha arma. E você... você mudou também, Dirk. Você não é mais korariel, sabe disso. Você é um keth. Estamos juntos neste momento. Somos jovens e fortes, e sabemos quem são nossos inimigos e como encontrá-los. E nenhum de nós pode ser Jadeferro novamente... sou uma mulher, Jaan é um renegado e você é um quase-homem. Garse era o último Jadeferro. Garse está morto. Os acertos e erros de Alto Kavalaan e do grupo Jadeferro morreram com ele, creio, pelo menos neste mundo. Não há códigos em Worlorn, lembra? Nem Braiths ou Jadeferros, apenas animais tentando matar uns aos outros.

- O que está dizendo? - Dirk perguntou, embora a entendesse.

- Estou dizendo que estou cansada de ser caçada, perseguida e ameaçada - Gwen explicou. Seu rosto sombrio era ferro negro; seus olhos queimavam ardentes e ferozes. - Estou dizendo que é hora de nós sermos os caçadores!

Dirk a contemplou em silêncio por um longo tempo. Ela estava muito bonita, ele pensou, bonita do mesmo jeito que Garse Janacek fora bonito. Estava um pouco como o banshee... e lamentou secretamente por sua Jenny, sua Guinevere que nunca existiu.

- Você está certa - disse lentamente.

Ela se aproximou e o envolveu com os braços antes que ele pudesse reagir. Abraçou-o com toda sua força. As mãos dele se ergueram lentamente para abraçá-la também, e ficaram assim por uns bons dez minutos, esmagados um contra o outro, o suave rosto dela contra a barba por fazer dele. Quando Gwen finalmente se afastou, levantou o rosto, esperando que ele a beijasse, então ele a beijou. Fechou os olhos; os lábios dela eram secos e duros.

A Fortaleza de Fogo estava fria ao amanhecer. O vento rodopiava em violentas rajadas; o céu estava cinza e nebuloso.

No telhado do edifício deles encontraram um cadáver.

Jaan Vikary desceu cuidadosamente, de rifle na mão, enquanto Gwen e Dirk davam cobertura da relativa segurança do aeromóvel. Ruark ficou sentado em silêncio no assento de trás, aterrorizado. Eles o haviam libertado antes de deixar as cercanias de Kryne Lamiya, e todo o caminho de volta estivera ora emburrado, ora exultante, sem saber o que pensar.

Vikary inspecionou o corpo, que jazia em frente aos elevadores, e voltou ao veículo.

- Roseph Alto-Braith Kelcek - informou.

- Alto-Larteyn - Dirk lhe recordou.

- É verdade - ele concordou, franzindo o cenho.

- Alto-Larteyn. Está morto há várias horas, pelo que percebi. Quase metade de seu peito foi arrebentada por um projétil. Sua própria pistola está embainhada.

- Um projétil? - Dirk perguntou.

Vikary assentiu.

- Bretan Braith Lantry é conhecido por usar armas assim em duelo. É um notável duelista, mas acho que escolheu a pistola de projétil apenas duas vezes, nas raras vezes em que não bastava apenas ferir o adversário. Um laser de duelo é um instrumento limpo e preciso. Essa arma de Bretan Braith, não. Uma arma dessas é concebida para matar, mesmo que o alvo não seja perfeitamente atingido. É uma coisa descomunal e malfeita, para duelos curtos e mortais.

Gwen olhava fixamente para onde Roseph jazia como uma pilha de trapos. Suas roupas tinham a cor empoeirada do telhado, e agitavam-se erraticamente ao vento.

- Isso não foi um duelo - ela falou.

- Não - Vikary concordou.

- Mas, por quê? - Dirk questionou. - Roseph não era ameaça para Bretan Braith, era? Além disso, o código de honra... Bretan ainda é um Braith, não é? Então ele ainda é sujeito ao código, certo?

- Bretan sem dúvida é um Braith, e esse é o motivo que você busca, Dirk t'Larien - Vikary disse. - Isso não é duelo. Isso é alta-guerra, Braith contra Larteyn. Há poucas regras na alta-guerra; qualquer adulto do sexo masculino do grupo inimigo é uma presa justa, até que a paz venha.

- Uma Cruzada - Gwen comparou, rindo. - Isso não se parece muito com Bretan, Jaan.

- Mas é muito típico do velho Chell - Vikary replicou. - Suspeito que seu teyn jurou fazer isso, enquanto o velho morria. Se for verdade, Bretan mata sob juramento, não simplesmente pela dor. E terá pouca misericórdia.

No assento de trás, Arkin Ruark inclinou-se para a frente com avidez.

- Mas isso é magnífico! - exclamou. - Sim, escutem-me, isso é ótimo. Gwen, Dirk, Jaan, meu amigo, escutem. Bretan matará todos eles para nós, não é? Matará um após o outro, sim. Ele é inimigo dos nossos inimigos, tivemos muita sorte, completa verdade.

- Seu provérbio kimdissiano não se aplica neste caso - Vikary explicou. - A alta-guerra entre Bretan Braith e os Larteyns não o torna nosso amigo, exceto por acidente. Sangue e alto agravo não são esquecidos com tanta facilidade, Arkin.

- Sim - Gwen concordou. - Não era Lorimaar que ele suspeitava estar escondido em Kryne Lamiya, você sabe. Ele queimou aquela cidade no esforço de nos capturar.

- Um palpite, um mero palpite - Ruark resmungou. - Talvez tivesse outros motivos, razões próprias, quem sabe? Talvez estivesse louco, enfurecido de dor, sim.

- Vou lhe propor uma coisa, Arkin - Dirk falou. - Deixaremos você em campo aberto, e se Bretan aparecer, você perguntará para ele.

O kimdissiano recostou-se e olhou para ele com estranheza.

- Não - disse. - Não. É mais seguro ficar com vocês, meus amigos, vocês me protegerão.

- Nós o protegeremos - Jaan Vikary confirmou. - Você fez muito por nós.

Dirk e Gwen trocaram olhares.

Viraky colocou o aeromóvel em súbito movimento. Levantaram vôo e se afastaram do telhado, sobre as ruas opacas de Larteyn.

- Onde...? - Dirk perguntou.

- Roseph está morto - Vikary falou. - Mas ele não era o único caçador. Faremos um censo, meus amigos, faremos um censo.

O edifício que Roseph Alto-Braith Kelcek partilhava com seu teyn não ficava muito longe da residência dos Jadeferros, e era muito próximo aos elevadores subterrâneos. Era uma grande estrutura quadrada com um telhado abobadado metálico e um pórtico suportado por colunas de ferro negro. Aterrissaram nas proximidades e se aproximaram sigilosamente.

Dois cães Braiths estavam acorrentados às colunas, na frente da casa. Ambos mortos. Vikary examinou-os.

- Suas gargantas foram queimadas com um laser de caça disparado a alguma distância - informou. - Uma morte segura e silenciosa.

Manteve-se do lado de fora, empunhando o rifle laser, alerta, montando guarda. Ruark permaneceu ao seu lado. Gwen e Dirk foram enviados para fazer uma busca no edifício.

Encontraram numerosas câmaras vazias, e uma pequena sala de troféus com quatro cabeças; três delas eram antigas e secas, com a pele esticada como couro, as feições quase animalescas. A quarta, Gwen afirmou, era um filho da lesma vinhonegrino, recém-caçado, pela aparência. Dirk tocou o couro que cobria alguns móveis com suspeita, mas Gwen sacudiu a cabeça negativamente.

Outro aposento, ali perto, estava cheio de miniaturas: banshees e matilhas de lobos, soldados lutando com espadas e facas, homens enfrentando monstros grotescos em estranhos combates. Todas as cenas eram detalhadamente representadas em ferro, cobre e bronze.

- Trabalho de Roseph - Gwen disse com indiferença quando Dirk parou e pegou uma das figuras para examinar mais de perto. Ela fez sinal para que seguissem em frente.

O teyn de Roseph estivera comendo. Encontraram seu cadáver na sala de jantar. Sua refeição - um grosso ensopado de carne e vegetais em um caldo sanguinolento e pedaços de pão preto ao lado - estava fria e consumida só pela metade. Uma caneca de estanho cheia de cerveja escura repousava ao lado na comprida mesa de madeira. O corpo do kavalariano estava a quase um metro de distância, ainda na cadeira. Mas a cadeira estava tombada para trás, e havia uma mancha escura na parede atrás dela. O homem não tinha mais rosto.

Gwen parou sobre ele, franzindo o cenho, o rifle pendurado casualmente embaixo de um braço, apontando para o chão. Pegou a cerveja e tomou um gole antes de passar a caneca para Dirk. A bebida estava tépida e rançosa, há tempos sem espuma.

- Lorimaar e Saanel? - Gwen perguntou quando estavam novamente do lado de fora, sob as colunas de ferro.

- Duvido que já tenham retornado da floresta - Vikary comentou. - Talvez Bretan Braith esteja em algum lugar de Larteyn esperando por eles. Sem dúvida, viu Roseph e Chaalyn chegando ontem. Talvez esteja à espreita aqui por perto, esperando apanhar seu inimigos um a um, conforme retornam para a cidade. Mas acho que não.

- Por quê? - quis saber Dirk.

- Lembre-se, t'Larien, nós chegamos ao amanhecer, e em um carro sem blindagem. Ele não nos atacou. Ou estava dormindo, ou não está mais por aqui.

- Onde você acha que ele está?

- No bosque, caçando os caçadores - Vikary respondeu. - Apenas dois Larteyns permanecem vivos para encará-lo, mas Bretan Braith não tem como saber isso. Até onde ele sabe, Pyr, Arris e até mesmo o velho Raymaar Uma-Mão estão vivos, e serão contados como inimigos. Meu palpite é que ele pretende atacá-los de surpresa, talvez temendo que, de outro modo, possam voltar à cidade em grupo e, ao descobrir seus kethi assassinados, se dar conta de suas intenções.

- Então devíamos fugir, sim, antes que ele volte - afirmou Arkin Ruark. - Ir para algum lugar seguro, longe dessa loucura kavalariana. Décimo-Segundo Sonho, sim! Para Décimo-Segundo Sonho! Ou para Musquel, ou Desafio, qualquer lugar. Chegará uma nave em breve, e então estaremos a salvo. O que me dizem?

- Digo que não - Dirk discordou. - Bretan nos encontrará. Lembra da maneira quase sobrenatural que encontrou Gwen e eu em Desafio? - olhou fixo para o kimdissiano, que empalideceu visivelmente.

- Ficaremos em Larteyn - Vikary decidiu com firmeza. - Bretan Braith Lantry é um único homem. Somos quatro, e três de nós, armados. Se ficarmos juntos, estaremos a salvo. Montaremos guarda. Estaremos prontos.

Gwen assentiu, tomando Jaan pelo braço.

- Concordo - disse. - Bretan pode não sobreviver a Lorimaar.

- Não - o kavalariano discordou. - Não, Gwen. Acho que está errada. Bretan Braith sobreviverá a Lorimaar. Disso tenho certeza.

Por insistência de Vikary, fizeram uma busca pela grande garagem subterrânea antes de deixar os arredores da residência de Roseph. Sua aposta valeu a pena. Com seu próprio aeromóvel roubado em Desafio, e logo depois destruído, Roseph e seu teyn haviam tomado emprestado o veículo de Pyr para retornar da floresta; o carro estava estacionado ali embaixo. Jaan o pegou. Não chegava nem perto da maciça relíquia de guerra verde-oliva de Janacek, mas ainda era muito mais formidável do que o carrinho de Ruark.

Depois buscaram abrigo. Ao longo das muralhas da cidade de Larteyn, sobre a empinada parede rochosa que descia até a distante Comuna, havia uma série de torres de vigilância com postos de guarda na parte de cima e alojamentos na parte de baixo, dentro das próprias muralhas. As torres, cada uma com uma grande gárgula de pedra empoleirada no topo, eram estritamente ornamentais, um adorno que dava um ar de autenticidade à cidade kavalariana do Festival. Mas eram facilmente defensáveis e davam uma excelente visão de Larteyn. Gwen escolheu uma aleatoriamente e foram para lá, passando antes no antigo apartamento em busca de objetos pessoais, comida e da documentação quase esquecida (pelo menos por Dirk) sobre as pesquisas ecológicas que ela e Ruark conduziram nos bosques de Worlorn. Uma vez em segurança, se dispuseram a esperar.

Dirk percebeu mais tarde que aquilo foi a pior coisa que podiam ter feito. Sob a pressão da inatividade, todas as fissuras começaram a aparecer.

Organizaram um sistema de turnos, de modo que duas pessoas estavam sempre de guarda na torre, armadas com lasers e com os binóculos de campo de Gwen. Larteyn estava cinzenta, vazia e desolada. Havia pouco para os observadores fazerem, exceto estudar o lento fluir das luzes nas ruas de pedrardente, e conversar. Em geral, conversavam.

Arkin Ruark compartilhava os turnos de guarda com os outros, e aceitara o rifle laser que Vikary lhe empurrara, ainda que com certa relutância. Mais de uma vez argumentou que a violência o repugnava, que nunca poderia disparar o laser, não importava a circunstância. Mas concordou em ficar com a arma, sob o pedido de Jaan Vikary. Suas relações com todos mudara radicalmente. Permanecia perto de Jaan o mais que podia, reconhecendo que o kavalariano era seu real protetor agora. Era cordial com Gwen. Ela lhe pedira perdão pelo que acontecera em Kryne Lamiya, afirmando que o medo e a dor a levaram temporariamente à paranóia. Mas não era mais a "doce Gwen" para Ruark; a cada dia a amargura entre eles vinha mais à tona. Em relação a Dirk, o kimdissiano mantinha uma atitude inquieta e suspeita, alternadamente afogando-o em companheirismo e depois recuando à normalidade quando ficava claro que Dirk se mostrava reticente. Os comentários de Ruark durante a primeira guarda que fizeram juntos indicaram para Dirk que o ecologista esperava desesperadamente pela nave da Orla, Teric neDahlir, que chegaria na semana seguinte. Parecia não querer outra coisa além de permanecer em segurança e escondido e fugir do planeta assim que possível.

Gwen Delvano esperava por algo completamente diferente, Dirk pensou. Enquanto Ruark perscrutava o horizonte com apreensão, Gwen estava tensa de tanta ansiedade. Ele se lembrava das palavras que ela havia dito quando conversaram nas sombras da Kryne Lamiya destruída pelo fogo. "É hora de nós nos tornarmos os caçadores", afirmara. Ainda pretendia isso. Quando ela e Dirk partilhavam a vigia, Gwen fazia todo o trabalho. Sentava-se ao lado da estreita janela do posto de vigilância com uma paciência quase infinita, os binóculos pendurados entre os seios, os braços descansando no peitoril, jade-e-prata perto de ferro vazio. Conversava com Dirk sem olhar para ele; toda sua atenção estava direcionada para o lado de fora. Exceto quando tinha de ir ao banheiro, Gwen se recusava a sair da janela. De tempos em tempos, pegava os binóculos e estudava algum edifício distante onde vislumbrara movimento, e com menos freqüência pedia uma escova para Dirk e começava a alisar o longo cabelo negro, que estava constantemente emaranhado pelo vento.

- Espero que Jaan esteja errado - disse certa vez, enquanto escovava o cabelo. - Eu prefiro encarar Lorimaar e seu teyn, em vez de Bretan.

Dirk murmurou alguma coisa concordando, pois Lorimaar, muito mais velho e ferido, seria bem menos perigoso do que o duelista de um olho que o caçava. Mas quando disse isso, Gwen apenas abaixou a escova e o encarou com curiosidade.

- Não - ela falou. - Não, não é por isso, em absoluto.

Mas o mais afetado pela espera era Jaantony Riv Lobo Alto-Jadeferro Vikary. Enquanto estivera em ação e a situação exigia dele, permanecera o velho Jaan Vikary - forte, decidido, um líder. No ócio, era um homem diferente. Não tinha função a cumprir; em vez disso, tinha tempo ilimitado para cismar. Isso não era bom. Embora Garse Janacek fosse mencionado raramente naqueles dias, era claro que Jaan era assombrado pelo espectro de seu teyn de barba ruiva, pois estava sempre sério, e começou a cair em silêncios obstinados que podiam durar por horas.

No princípio, Jaan havia insistido para que todos permanecessem do lado de dentro da torre o tempo todo; depois, ele mesmo começara a dar longas caminhadas ao amanhecer e ao pôr do sol, quando não estava de vigia. Durante suas horas na torre de vigilância, a maior parte de suas conversas era preenchida com divagações de sua infância na fortaleza do grupo Jadeferro e relatos históricos de heróis martirizados, como Vikor Alto-Açorrubro e Aryn Alto-Pedrardente. Nunca falava sobre o futuro, e apenas raramente sobre as circunstâncias presentes. Observando-o, Dirk quase podia entrever o tumulto interior do homem. Em questão de dias, Jaan Vikary perdera tudo: seu teyn, seu planeta natal e seu povo, até mesmo o código pelo qual vivera. Estava lutando contra tudo isso - já adotara Gwen como teyn, aceitando-a com uma dependência plena que nunca demonstrara antes em relação a ela ou mesmo a Garse. Parecia a Dirk que Jaan estava tentando manter seu código, agarrando-se desesperadamente a qualquer parte da honra kavalariana que lhe fora deixada. Era Gwen, não Jaan, quem falava de caçar os caçadores, de animais matando uns aos outros depois que todos os códigos haviam se perdido. Parecia falar por seu teyn e por si mesma, mas Dirk não achava que isso fosse compartilhado por Vikary, que quando falava das lutas iminentes, sempre deixava implícito que duelaria com Bretan Braith. Em suas longas caminhadas pela cidade levava tanto o rifle quanto a pistola.

- Se encontrar Bretan, preciso estar pronto - tinha dito e, como um autômato, praticava diariamente, em geral à vista da torre, preparando-se para cada um dos modos de duelo kavalariano. Um dia, praticava o quadrado da morte e o tiro de dez passos, acertando antagonistas imaginários. No dia seguinte era estilo livre e andar na linha, e então tiro único e quadrado da morte novamente. Os que estavam de guarda davam cobertura para ele, e rezavam para que nenhum inimigo visse os insistentes pulsos de luz. Dirk tinha medo. Jaan era a força do grupo, e estava perdido nessa ilusão marcial, na presunção de que Bretan Braith retornaria e lhe garantiria a cortesia do código, apesar de tudo. Mesmo com toda a destreza de Vikary em duelos, apesar de seu ritual diário de treino, parecia para Dirk cada vez mais improvável que o Jadeferro pudesse triunfar sobre Bretan no combate singular.

Até mesmo o sono de Dirk era atormentado por pesadelos recorrentes do rosto desforme do Braith: Bretan, com sua voz estranha, o olho brilhante e seu tique grotesco; Bretan delgado, de rosto suave e inocente; Bretan, o destruidor de cidades. Dirk despertava desses sonhos suado e exausto, enrascado nas roupas de cama, lembrando-se dos gritos de Gwen, lamentos ásperos e agudos como as torres de Kryne Lamiya, e do jeito que Bretan olhava para ele. Para banir essas visões, contava apenas com Jaan, e Jaan era vítima de um exausto fatalismo, ainda que conservasse uma certa força.

Era a morte de Janacek, Dirk disse para si mesmo - e, mais do que isso, as circunstâncias da morte. Se Garse tivesse morrido de maneira mais normal, Vikary seria um vingador mais feroz, mais implacável e mais invencível do que Myrik e Bretan combinados. Mas, pelo contrário, Jaan estava convencido de que seu teyn o traíra, que o caçara como a um animal ou um quase- -homem, e a convicção o estava destruindo. Mais do que uma vez, sentado com o Jadeferro na pequena sala de vigia, Dirk sentiu vontade de lhe dizer a verdade, de pular sobre ele e gritar: Não, não! Garse era inocente, Garse amava você, Garse teria morrido por você! Ainda assim, não disse nada. Se Vikary estava morrendo daquela maneira, consumido por sua melancolia, pelo sentimento de traição e pela perda definitiva da fé, dizer a verdade o teria matado imediatamente.

Então os dias passavam e as fissuras aumentavam, e Dirk observava seus três companheiros com apreensão crescente. Enquanto Ruark esperava a fuga; Gwen, a vingança; e Jaan Vikary, a morte.

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