Capítulo 2


Dirk descansou muito pouco naquela noite. Cada vez que começava a dormir, seus sonhos o despertavam: visões incertas misturadas com veneno, das quais recordava vagamente quando acordava vez após outra durante a noite. Finalmente desistiu. Em vez de dormir, começou a remexer em seus pertences até encontrar a joia envolta em prata e veludo e sentou-se com ela na escuridão para beber suas frias promessas.

As horas se passaram. Então Dirk se levantou e se vestiu, guardou a jóia no bolso e saiu sozinho para ver a Roda despontar. Ruark estava profundamente adormecido, mas havia dado o código da porta para Dirk, então não era um problema entrar ou sair. Tomou o elevador de volta ao telhado e esperou nas últimas borras da noite, sentado na fria asa de metal do aeromóvel cinzento.

Era um amanhecer estranho, opaco e ameaçador, e o dia nascia sombrio. No princípio, apenas um fulgor vago e nebuloso se insinuou no horizonte, uma mancha vermelho-negra que refletiu fracamente nas pedrardentes da cidade. Então o primeiro sol nasceu: uma pequena bola amarela que Dirk observou a olho nu. Minutos mais tarde, uma segunda esfera apareceu, um pouco maior e mais brilhante, em outra parte do horizonte. Mas as duas juntas, embora reconhecidamente mais fortes do que estrelas, ainda forneciam menos luz do que a lua cheia de Braque.

Pouco tempo depois, o Cubo começou a se erguer sobre a Comuna. No início, era uma linha opaca vermelha, perdida entre a luz ordinária do amanhecer, mas foi ficando cada vez mais brilhante, até que finalmente Dirk viu que não era um reflexo, mas a coroa de um vasto sol vermelho. O mundo tornava-se carmesim enquanto ele se elevava.

Dirk olhou para as ruas abaixo. As pedras de Larteyn estavam todas opacas agora; apenas onde as sombras caíam o brilho ainda era visto, ainda que desvanecido. A melancolia se abateu sobre a cidade como um manto cinzento ligeiramente tingido com um vermelho desbotado. Na luz fria e pálida, todos os reflexos noturnos haviam desaparecido, e as ruas silenciosas ecoavam morte e desolação.

O dia de Worlorn. Mas ainda era crepúsculo.

- Era mais claro no passado - disse uma voz atrás dele. - Agora, cada dia é mais escuro, mais frio. Das seis estrelas da Coroa do Inferno, duas estão escondidas, agora, atrás do Satã Gordo e não têm nenhum uso para nós. As outras ficam cada vez menores e mais distantes. O próprio Satã ainda olha para Worlorn, mas sua luz é muito vermelha e cada vez mais tênue. Então, Worlorn vive um lento entardecer. Alguns anos mais e os sete sóis vão encolher até se tornarem sete estrelas, e o gelo virá novamente.

Seu interlocutor permaneceu muito quieto enquanto contemplava o amanhecer, as botas ligeiramente separadas e as mãos nos quadris. Era um homem alto, magro e musculoso, com o torso nu mesmo no frio da manhã. Sua pele acobreada ficava ainda mais vermelha sob a luz do Satã Gordo. Tinha pômulos altos e angulosos, queixo pesado e quadrado, e um cabelo ralo na altura do ombro tão negro quanto o de Gwen. E, nos antebraços - antebraços escuros recobertos de finos pelos negros -, usava dois braceletes, igualmente maciços. Jade e prata no braço esquerdo, ferro negro e pedrardente no direito.

Dirk não se moveu da asa da arraia voadora. O homem o encarou.

- Você é Dirk t'Larien e, certa vez, foi amante de Gwen.

- E você é Jaan.

- Jaan Vikary, do grupo Jadeferro - o outro respondeu. Deu um passo adiante e ergueu as mãos, com as palmas para fora e abertas.

Dirk conhecia o gesto de algum lugar. Levantou-se e pressionou as palmas de suas próprias mãos contra as do kavalariano. Quando fez isso, notou algo mais. Jaan usava um cinto de metal negro lustroso, e uma pistola de laser pendia ao do lado de seu corpo.

Vikary notou seu olhar e sorriu.

- Todos os kavalarianos andam armados. É um costume... um que valorizamos. Espero que você não fique tão chocado e impressionado quanto o amigo de Gwen, o kimdissiano. Se ficar, é sua culpa, não nossa. Larteyn é parte de Alto Kavalaan, e não esperamos que nossa cultura se adapte à sua.

Dirk sentou-se novamente.

- Não. Talvez eu devesse esperar por isso, pelo que ouvi noite passada. Mas acho estranho. Há guerra em algum lugar?

Vikary deu um sorriso muito tênue, um quase deliberado mostrar de dentes.

- Sempre há guerra em algum lugar, t'Larien. A vida em si é uma guerra. - Fez uma pausa. - Seu nome: t'Larien. Incomum. Nunca tinha ouvido antes, nem meu teyn, Garse. Qual é seu mundo natal?

- Baldur. Muito longe daqui, do outro lado da Antiga Terra. Mas eu mal me lembro dele. Meus pais foram para Ávalon quando eu era muito jovem.

Vikary assentiu.

- E você tem viajado, Gwen me contou. Que mundos viu?

Dirk deu de ombros.

- Prometeus, Rhiannon, Estarrocha, Mundo de Jamison, entre outros. Ávalon, é claro. Uma dúzia no total, a maioria lugares mais primitivos do que Ávalon, onde meu conhecimento é necessário. Normalmente é fácil encontrar trabalho se você esteve no Instituto, mesmo para quem não é especialmente habilidoso ou talentoso. Bom para mim. Gosto de viajar.

- Mesmo assim, nunca esteve além do Véu do Tentador até agora. Apenas nos devascados, e nunca nos mundos exteriores. Encontrará coisas diferentes aqui, t'Larien.

Dirk franziu o cenho.

- Qual a palavra que você usou? Devascados?

- Os devascados - Vikary repetiu. - Ah, gíria lupina. Os mundos devascados, os mundos devastados, como você preferir. Uma expressão que peguei dos vários lupinos que estavam entre meus amigos durante meus estudos em Ávalon. Refere-se à esfera estelar entre os mundos exteriores e a primeira e segunda gerações de colônias próximas da Antiga Terra. Foi nos devascados que os hranganos saturaram as estrelas, governaram seus mundos- -escravos e lutaram contra os Imperiais da Terra. A maioria dos planetas que você nomeou era conhecida, então, e foi duramente afetada pela antiga guerra e devastada até o colapso. A própria Ávalon é uma colônia de segunda geração, antigamente a capital do setor. Há alguma distinção, você crê, para um mundo tão distante nestes séculos destruídos após o interregno?

Dirk acenou com a cabeça em concordância.

- Sim. Conheço a história, um pouco dela. Você parece conhecer bastante.

- Sou historiador. - Vikary respondeu. - A maior parte do meu trabalho foi devotada a separar a história dos mitos em meu próprio mundo, Alto Kavalaan. Jadeferro me mandou para Ávalon com grande custo para pesquisar os bancos de dados dos antigos computadores com esse exato propósito. Mesmo tendo passado dois anos de estudos lá, tinha muito tempo livre e desenvolvi um interesse na história mais ampla do homem.

Dirk não falou nada, mas olhou novamente para o amanhecer. O disco vermelho do Satã Gordo estava meio erguido agora, e uma terceira estrela amarela podia ser vista. Estava um pouco mais ao norte do que as demais e era apenas uma estrela.

- A estrela vermelha é uma supergigante - Dirk murmurou -, mas daqui parece apenas um pouco maior do que o sol de Ávalon. Deve estar muito longe. Devia estar mais frio, o gelo devia estar aqui agora. Mas está apenas fresco.

- Isso é feito nosso - Vikary lhe contou com algum orgulho. - Não de Alto Kavalaan, na verdade, mas trabalho do mundo exterior mesmo assim. Os toberianos preservaram muito da tecnologia do escudo de força dos Imperiais da Terra, perdida durante o Colapso, e a incrementaram ao longo dos séculos. Sem o escudo deles, nenhum Festival poderia ter sido feito. No perié- lio, o calor da Coroa do Inferno e do Satã Gordo teria queimado a atmosfera de Worlorn e fervido o mar, mas o escudo de Tober bloqueou essa fúria e tivemos um longo e brilhante verão. Agora, da mesma maneira, ele ajuda a manter o calor. Mesmo assim, tem seus limites, como tudo mais. O frio virá.

- Não pensei que fôssemos nos conhecer assim. - Dirk comentou. - Por que veio aqui em cima?

- Uma possibilidade. Há muitos anos, Gwen me contou que você gostava de assistir ao amanhecer. E outras coisas também, Dirk t'Larien. Sei mais sobre você do que você sobre mim.

Dirk riu.

- Bem, isso é verdade. Não sabia da sua existência até a noite passada.

O rosto de Jaan Vikary estava duro e sério.

- Mas eu existo. Lembre-se disso, e poderemos ser amigos. Esperava encontrá-lo sozinho e conversar com você antes que os demais acordassem. Aqui não é Ávalon, t'Larien, e hoje não é ontem. Este é um mundo agonizante, um mundo sem códigos, então cada um de nós deve se segurar firmemente a qualquer que seja o código que tenha consigo. Não teste o meu. Desde meus anos em Ávalon, tentei pensar em mim mesmo como Jaan Vikary, mas ainda sou um kavalariano. Não me obrigue a ser Jaantony Riv Lobo Alto-Jadeferro Vikary.

Dirk se levantou.

- Não estou certo sobre o que você quer dizer - falou. - Mas acho que posso ser cordial o suficiente. Certamente não tenho nada contra você, Jaan.

Aquilo pareceu satisfazer Vikary Ele assentiu lentamente e colocou a mão no bolso da calça.

- Um emblema da minha amizade e apreço por você - disse. Em sua mão estava um broche de metal negro, uma pequena arraia. - Usará enquanto estiver aqui?

Dirk pegou o presente de sua mão.

- Se é o que deseja - disse, sorrindo para o outro formalmente. Colocou o broche no colarinho.

- O amanhecer é triste aqui - Vikary comentou -, e o dia não é muito melhor. Vamos descer até nossos aposentos. Despertarei os outros e poderemos comer.

O apartamento que Gwen dividia com os dois kavalarianos era imenso. A sala de estar de pé direito alto era dominada por uma lareira de dois metros de altura e duas vezes esse comprimento, e acima havia uma cornija de ardósia onde furiosas gárgulas empoleiradas vigiavam as cinzas. Vikary fez Dirk passar por elas, cruzando um extenso tapete negro, até uma sala de jantar que era quase tão grande quanto a anterior. Dirk sentou-se em uma cadeira de madeira de espaldar alto, uma entre doze que estavam ao redor da grande mesa, enquanto seu anfitrião foi buscar comida e companhia.

Voltou em pouco tempo, trazendo uma travessa de carne fatiada em tiras finas e uma cesta de biscoitos frios. Colocou-as diante de Dirk, virou-se e partiu novamente.

Nem bem ele se foi, outra porta se abriu, e Gwen entrou sorrindo sonolentamente. Ela vestia uma velha tiara, calças desbotadas e uma blusa verde folgada com amplas mangas. Ele podia ver o brilho de seu pesado bracelete jade-e-prata, apertado em seu braço esquerdo. Com ela, um passo atrás, vinha outro homem, quase tão alto quanto Vikary, mas muitos anos mais jovem e muito mais esbelto, vestido com um macacão de mangas curtas de tecido-camaleão marrom-avermelhado. Ele olhou para Dirk com intensos olhos azuis, os olhos mais azuis que Dirk já vira, incrustados em um rosto delgado e de traços finos sob uma abundante barba ruiva.

Gwen se sentou. O barba ruiva parou na frente da cadeira de Dirk.

- Sou Garse Jadeferro Janacek - disse. Ofereceu suas palmas. Dirk levantou-se para pressioná-las.

Garse Jadeferro Janacek, Dirk reparou, usava uma pistola laser na cintura, pendurada em um coldre de couro em um cinto de malha de aço prateado. Ao redor de seu antebraço direito estava um bracelete negro, gêmeo do de ferro de Vikary, e que parecia ser pedrardente.

- Você provavelmente sabe quem sou - Dirk falou.

- Realmente - Janacek respondeu. Tinha um sorriso malicioso. Ambos se sentaram.

Gwen já estava mastigando um biscoito. Quando Dirk retornou ao seu assento, ela se esticou por cima da mesa e tocou o pequeno broche de arraia no colarinho dele, sorrindo com ar divertido.

- Vejo que você e Jaan já se encontraram - comentou.

- Mais ou menos - Dirk respondeu, e nesse momento Vikary retornou, a mão direita segurando desajeitadamente as asas de quatro canecas de estanho, e a mão esquerda segurando um jarro de cerveja escura. Colocou tudo no centro da mesa, então fez uma última viagem à cozinha para buscar pratos, talheres e uma jarra esmaltada com uma calda doce e amarela que disse para Dirk colocar sobre os biscoitos.

Quando Vikary saiu, Janacek empurrou as canecas pela mesa para Gwen.

- Sirva - disse para ela, em um tom bastante peremptório, antes de voltar sua atenção novamente para Dirk. - Me contaram que você foi o primeiro homem que ela conheceu - disse, enquanto Gwen estava servindo. - Você a deixou com um grande número de hábitos vis - disse, sorrindo friamente. - Estou tentado a tomar isso como ofensa e tomar satisfações.

Dirk o encarou, perplexo.

Gwen havia enchido três das quatro canecas com cerveja e espuma. Colocou uma diante do lugar de Vikary a segunda para Dirk e tomou um longo gole da terceira. Então limpou os lábios com as costas da mão, sorriu para Janacek e lhe passou a caneca vazia.

- Se vai ameaçar o pobre Dirk por causa dos meus hábitos - disse-lhe -, então suponho que devo desafiar Jaan por todos os anos que venho sofrendo com os seus.

Janacek virou a caneca de cerveja vazia em suas mãos e fez uma careta.

- Cadela betheyn - disse em um tom de voz natural. Serviu sua própria cerveja.

Vikary estava de volta no instante seguinte. Sentou-se, tomou um gole de sua caneca e começaram a comer. Dirk descobriu bem rápido que gostava de cerveja no desjejum. Os biscoitos, untados com uma grossa camada da calda doce, também eram excelentes. A carne estava um pouco seca.

Janacek e Vikary o interrogaram durante a refeição, enquanto Gwen recostada na cadeira, falava pouco e parecia se divertir. Os dois kavalarianos eram um exemplo de contrastes. Jaan Vikary inclinava-se para a frente quando falava (ainda estava com o torso desnudo e, de vez em quando, bocejava e se coçava com ar ausente) e mantinha o tom de amigável interesse geral, sorrindo com freqüência, parecendo muito mais tranqüilo do que estivera no telhado. Mesmo assim, Dirk notou certa deliberação, de um homem tenso que estava fazendo um esforço consciente para se soltar; mesmo suas informalidades - os sorrisos, as coçadas - pareciam estudadas e formais. Garse Janacek, por sua vez, sentava-se mais ereto do que Vikary, nunca se coçava e tinha todos os maneirismos formais do discurso kavalariano. Mesmo assim, parecia mais genuinamente relaxado, como um homem que apreciava as restrições que sua sociedade lhe impunha e nunca pensaria em se livrar delas. Seu discurso era animado e abrasivo; disparava um insulto atrás do outro, a maioria deles direcionada a Gwen. Ela rebatia alguns, mas debilmente; Janacek era muito melhor no jogo do que ela. Muitos dos ataques pareciam casuais, afetuosos, mas muitas vezes Dirk pensou ter captado uma ponta de hostilidade verdadeira. Vikary tendia a franzir o cenho a cada afrontamento.

Quando Dirk mencionou seu ano em Prometeus, Janacek não desperdiçou a oportunidade.

- Diga-me, t'Larien - falou -, você considera humanos os Homens Alterados?

- É claro - Dirk respondeu. - Eles são. Estabelecidos pelos Imperiais da Terra durante a guerra. Os modernos prometenses são apenas descendentes do antigo Comando da Guerra Ecológica.

- É verdade. - Janacek replicou. - Mesmo assim, devo discordar de sua conclusão. Seus genes foram manipulados em tal grau que eles perderam totalmente o direito de serem chamados humanos, na minha opinião. Homens-libélula, homens-submarino, homens que respiram veneno, homens que podem ver na escuridão como hruuns, homens com quatro braços, hermafroditas, soldados sem estômago, porcas de reprodução sem senciência... essas criaturas não são humanas. São não humanas, mais precisamente.

- Não - Dirk falou. - Já ouvi o termo não humano. É uma terminologia comum em vários mundos, mas significa estoque humano que sofreu tanta mutação que não pode mais cruzar com o básico. Os prometenses tiveram o cuidado de evitar isso. Os líderes são bastante normais, tiveram apenas alterações mínimas de longevidade e bem-estar. Bem, os líderes fazem incursões regulares a Rhiannon e Estarrocha, você sabe. Em busca de humanos terrestres normais...

- Mas mesmo a Terra é menos terrestre normal passados estes poucos séculos. - Janacek interrompeu. Então deu de ombros. - Eu não deveria interrompê-lo, não é? A Antiga Terra está muito longe, em todo caso. Apenas ouvimos rumores seculares. Continue.

- Já dei minha opinião - Dirk falou, - Os Homens Alterados ainda são humanos. Mesmo nas castas mais baixas, os mais grotescos, os experimentos falhados e descartados pelos cirurgiões... todos eles podem cruzar. É por isso que são esterilizados, eles têm medo da prole.

Janacek tomou um gole de cerveja e o presenteou com seus intensos olhos azuis.

- Eles podem cruzar, então? - sorriu. - Diga-me, t'Larien, durante seu ano naquele mundo você teve ocasião de testar isso pessoalmente?

Dirk enrubesceu e se pegou olhando de soslaio para Gwen, como se de algum modo fosse tudo culpa dela.

- Não fiquei no celibato estes sete anos, se é isso que quer dizer - rebateu.

Janacek recompensou sua resposta com um sorriso irônico e olhou para Gwen.

- Interessante - disse para ela. - O homem passa vários anos em sua cama e então imediatamente se volta para a bestialidade.

A raiva cruzou o rosto dela; Dirk ainda a conhecia bem o bastante para reconhecer aquilo. Jaan Vikary não pareceu satisfeito tampouco.

- Garse - disse em advertência.

Janacek mudou o tom.

- Minhas desculpas, Gwen - disse. - Não pretendia insultá-la. Certamente t'Larien pegou gosto por sereias e mulheres-inseto independentemente de você.

- Vai percorrer os bosques de Worlorn, t'Larien? - Vikary perguntou em voz alta, deliberadamente intervindo na conversa do outro kavalariano.

- Não sei - Dirk respondeu, saboreando sua cerveja. - Deveria?

- Eu nunca me perdoaria se você não fizesse isso - Gwen disse, sorrindo.

- Então irei. O que tem de tão interessante?

- O ecossistema. Está se formando e morrendo, tudo ao mesmo tempo. A ecologia foi uma ciência esquecida na Orla durante muito tempo. Mesmo agora, os habitantes dos mundos exteriores possuem menos de uma dúzia de engenheiros ambientais treinados entre eles. Quando o Festival começou, Worlorn foi semeado com formas de vida de catorze mundos distintos, com quase nenhum planejamento sobre a interação entre elas. Na verdade, mais do que catorze mundos estiveram envolvidos, se contar múltiplos transplantes: animais trazidos da Terra para Nova Holme, para Ávalon, para Tocadolobo, e desses lugares para Worlorn, esse tipo de coisa, O que Arkin e eu estamos fazendo é um estudo de como essas coisas se desenvolveram. Já estamos nisso há alguns anos, e há trabalho suficiente ainda para nos manter ocupados por mais uma década. Os resultados podem ter um interesse particular para fazendeiros em todos os mundos exteriores. Eles saberão quais espécies da flora e da fauna da Orla podem introduzir com segurança em seus planetas natais e sob quais condições, e quais são danosos para um ecossistema.

- Os animais de Kimdiss estão se mostrando particularmente danosos. - Janacek rosnou. - Tanto quanto aqueles que os trouxeram.

Gwen sorriu para ele com sarcasmo.

- Garse está aborrecido porque parece que o banshee negro está à beira da extinção - disse para Dirk. - E uma vergonha, realmente. Em Alto Kavalaan, eles foram caçados até o ponto em que a espécie ficou claramente em perigo, e esperava-se que os espécimes soltos aqui há vinte anos pudessem se estabelecer e se multiplicar, então poderiam ser recapturados e levados de volta para Alto Kavalaan antes que o frio viesse. Não funcionou desse jeito. O banshee é um predador temível, mas em sua terra natal não pode competir com os homens, e, em Worlorn, sua reserva foi infestada por espectros arbóreos de Kimdiss.

- A maioria dos kavalarianos pensa nos banshees apenas como uma praga e uma ameaça. - Jaan Vikary explicou. - Em seu habitat, é um freqüente matador de homens, e os caçadores de Braith, Açorrubro e do grupo Shanagate pensam na caça ao banshee como a última palavra em competição, com uma única exceção. Jadeferro sempre foi diferente. Há um mito antigo, do tempo em que Kay Ferro-Ferreiro e seu teyn Roland Lobo-Jade lutavam sozinhos contra um exército de demônios das Colinas de Lameraan. Kay havia caído, e Roland, de pé ao seu lado, estava se enfraquecendo, quando os banshees vieram por sobre as colinas, muitos deles voando juntos, negros e numerosos o suficiente para bloquear o sol. Lançaram-se avidamente sobre o exército de demônios e devoraram todos eles, um por um, deixando Kay e Roland vivos. Mais tarde, quando aquele teyn-e-teyn encontrou sua cova de mulheres e estabeleceu o primeiro grupo Jadeferro, o banshee tornou-se sua besta-irmã e emblema. Nenhum Jadeferro jamais matou um banshee, e as lendas dizem que sempre que um homem do grupo está correndo perigo de vida, um banshee aparecerá para guiá-lo e protegê-lo.

- Uma bela história - Dirk falou.

- É mais do que uma história - Janacek disse. - Há um laço entre Jadeferro e os banshees, t'Larien. Talvez seja psiônico, talvez as coisas sejam sencientes, talvez seja puro instinto. Não pretendo saber. Mesmo assim, o laço existe.

- Superstição - comentou Gwen. - Você realmente não deve pensar tão mal de Garse. Não é culpa dele que não teve muita educação.

Dirk espalhou calda sobre um biscoito e olhou para Janacek.

- Jaan mencionou que era historiador, e eu sei o que Gwen faz - disse. - E você? O que você faz?

Os olhos azuis o encararam friamente. Janacek não disse nada.

- Tenho a impressão - Dirk falou, continuando - de que você não é um ecologista.

Gwen riu.

- Essa impressão é assustadoramente correta, t'Larien - Janacek respondeu.

- O que está fazendo em Worlorn, então? E, falando nisso - voltou seu olhar para Jaan Vikary -, o que um historiador pode encontrar em um lugar como este?

Vikary envolveu sua caneca de cerveja com as grandes mãos e bebeu pensativamente.

- Isso é bastante simples - disse. - Sou um alto-senhor kavalariano do grupo Jadeferro, ligado a Gwen Delvano por jade-e-prata. Minha betheyn foi mandada para Worlorn pelo voto do conselho dos altos-senhores, então é natural que eu esteja aqui também, e meu teyn. Entende?

- Acho que sim. Vocês fazem companhia para Gwen, então?

Janacek aparentou muita hostilidade.

- Nós protegemos Gwen - disse friamente. - Normalmente, das próprias tolices. Ela não devia estar aqui, mesmo assim está, então devemos ficar aqui também. Quanto à sua questão anterior, t'Larien, sou um Jadeferro, teyn de Jaantony Alto-Jadeferro. Posso fazer qualquer coisa que meu grupo exija de mim: caçar, plantar, duelar, guerrear contra nossos inimigos, fazer bebês na barriga de nossas eyn-kethi. É isso o que eu faço. O que eu sou você já sabe. Eu lhe disse meu nome.

Vikary o olhou de soslaio e o fez se calar com um curto movimento de sua mão direita.

- Pense em nós como turistas atrasados. - falou para Dirk. - Estudamos e andamos por aí, percorremos os bosques e as cidades mortas, nos divertimos. Podíamos engaiolar banshees para mandá-los de volta a Alto Kavalaan, mas ainda não fomos capazes de encontrar nenhum. - Ergueu-se e terminou de tomar sua cerveja. - O dia passa e continuamos sentados - disse, depois de colocar a caneca na mesa. - Se vocês querem ir para os bosques, devem sair logo. Leva tempo cruzar as montanhas, mesmo no aeromóvel, e não é sábio permanecer por lá depois que escurece.

- Não? - Dirk terminou sua cerveja e limpou a boca com as costas da mão. Guardanapos não pareciam fazer parte do serviço de mesa de um kavalariano.

- Os banshees nunca foram os únicos predadores em Worlorn - Vikary contou. - Há animais assassinos e assediadores de catorze mundos nos bosques, e eles são o menor perigo. Os piores são os humanos. Worlorn é um mundo fácil e vazio hoje, e suas sombras e desertos estão cheios de estranhezas.

- Seria melhor se estivessem armados - Janacek falou. - Ou, melhor ainda, Jaan e eu podemos ir com vocês, para o bem da sua segurança.

Mas Vikary sacudiu a cabeça.

- Não, Garse. Eles devem ir sozinhos e conversar. É melhor desse jeito, entende? É meu desejo. - Então pegou alguns pratos e caminhou em direção à cozinha. Mas, perto da porta, parou e olhou sobre os ombros, e seus olhos encontraram rapidamente os de Dirk.

E Dirk lembrou-se de suas palavras, lá fora, no teto, ao amanhecer. Eu existo, Jaan dissera. Lembre-se disso.

- Há quanto tempo você não voa em um aeropatinete? - Gwen lhe perguntou pouco tempo depois, quando se encontraram no telhado. Ela vestira um macacão de tecido-camaleão, uma vestimenta cinturada que a cobria de um escuro vermelho-acinzentado das botas ao pescoço. A tiara que mantinha seus cabelos negros no lugar era do mesmo tecido.

- Não ando nisso desde que era criança, em Ávalon - Dirk respondeu. Sua própria roupa era gêmea da dela; Gwen lhe dera para que pudessem se camuflar na floresta. - Mas tenho vontade de tentar. Eu costumava ser muito bom.

- Vamos nessa, então - Gwen falou. - Não seremos capazes de ir muito longe ou muito rápido, mas isso não importa. - Ela abriu o baú de carga do aeromóvel cinza em formato de arraia e tirou dois pequenos pacotes prateados e dois pares de botas.

Dirk sentou-se na asa do aeromóvel novamente, enquanto colocava as novas botas e amarrava-as. Gwen desdobrou os patinetes, duas pequenas plataformas metálicas brandas e finas, largas o suficiente para apoiar os pés. Quando colocou as plataformas no chão, Dirk pôde seguir com a vista os cabos entrecruzados dos controles de gravidade localizados na parte inferior. Subiu em um deles, posicionou os pés cuidadosamente, e as solas de metal de suas botas se travaram firmemente no lugar, enquanto a plataforma ficava rígida. Gwen lhe deu o dispositivo de controle, e ele o prendeu à cintura, de modo que ficasse ao alcance da palma da mão.

- Arkin e eu usamos os patinetes para andar pelos bosques. - Gwen lhe contou enquanto se agachava para prender as próprias botas. - Um aeromóvel tem uma velocidade dez vezes maior, é claro, mas nem sempre é fácil encontrar uma clareira grande o suficiente para pousar. Os patinetes são bons para trabalhos que exigem aproximação maior, desde que não tentemos levar muito equipamento nem tenhamos muita pressa. Garse diz que são brinquedos, mas... - Ela se levantou, subiu na plataforma e sorriu. - Pronto?

- Pode apostar - Dirk respondeu, e seu dedo roçou no disco prateado na palma de sua mão direita com um pouco mais de força do que deveria. O patinete saiu disparado para cima, arrastando-o pelos pés e balançando-o de um lado para o outro de cabeça para baixo, quando o resto de seu corpo ficou para trás. Ele mal conseguiu evitar de bater a cabeça no telhado enquanto virava e subia para o céu pendurado sob sua plataforma, rindo descontroladamente.

Gwen veio atrás dele, permanecendo na própria plataforma e subindo pelo vento do crepúsculo com a habilidade adquirida de longa prática, como um gênio montado em um tapete prateado. Quando alcançou Dirk, ele havia brincado com os controles tempo suficiente para endireitar-se, embora ainda estivesse bamboleando para trás e para a frente, em um esforço feroz para manter o equilíbrio. Ao contrário de aeromóveis, aeropatinetes não tinham giroscópio.

- Eeeeeee - ele gritou quando ela se aproximou. Rindo, Gwen foi para trás dele e lhe deu um vigoroso tapa nas costas. Era tudo o que precisava para girar novamente, e ele começou a rodopiar pelos céus de Larteyn em um louco carrossel.

Gwen estava atrás dele, gritando alguma coisa. Dirk piscou e notou que estava prestes a se chocar contra a lateral de uma alta torre de ébano. Mexeu nos controles e se elevou bruscamente, ainda lutando para se estabilizar.

Estava bem acima da cidade e em pé sobre a plataforma quando ela o alcançou.

- Fique longe - avisou-a com um sorriso, sentindo-se estúpido, desajeitado e brincalhão. - Me golpeie assim novamente e eu vou até o tanque voador e apago você dos céus com o laser, mulher! - Inclinou-se de lado e, para compensar e manter o equilíbrio, balançou para o lado oposto.

- Você está bêbado. - Gwen gritou para ele através do vento cortante. - Cerveja demais no desjejum. - Ela estava acima dele, agora, braços cruzados no peito, observando seus esforços com desaprovação zombeteira.

- Estas coisas parecem muito mais estáveis quando você está de cabeça para baixo - Dirk falou. Finalmente conseguira um aparente equilíbrio, embora pelo jeito que estendia os braços para os dois lados ficava claro que estava na dúvida de ser capaz de manter-se assim.

Gwen desceu ao mesmo nível que ele e ficou ao seu lado, bem estável e confiante, seus cabelos escuros agitando-se atrás dela como um negro estandarte selvagem.

- Como está indo? - ela gritou, enquanto voavam lado a lado.

- Acho que consegui - Dirk anunciou. Ainda estava em pé.

- Bom. Olhe para baixo!

Ele fez o que ela mandou, para além da escassa segurança da plataforma sob seus pés. Larteyn, com suas torres escuras e ruas de pedrardente apagadas, não estava mais embaixo deles. Em vez disso, havia uma longa, longa queda através do vazio céu crepuscular até a Comuna bem abaixo. Ele vislumbrou um rio ali, um fio de águas escuras serpenteando no verde pouco iluminado. Então sua cabeça rodou vertiginosamente, suas mãos se apertaram, e ele virou de novo.

Dessa vez, Gwen mergulhou embaixo dele quando Dirk ficou de cabeça para baixo. Cruzou os braços novamente e sorriu para ele.

- Você é incorrigível, t'Larien - disse-lhe. - Por que não voa de cabeça para cima?

Ele rosnou para ela, ou tentou rosnar, mas o vento tirou seu fôlego e só conseguiu fazer uma careta. Então virou-se novamente. Suas pernas estavam ficando doloridas com tudo isso.

- Ali! - ele gritou e olhou para baixo desafiadoramente para provar que a altura não o afetaria pela segunda vez.

Gwen estava ao seu lado outra vez. Olhava para ele e balançava a cabeça.

- Você é a desgraça das crianças de Ávalon e dos aeropatina- dores de todos os lugares - disse. - Mas provavelmente sobreviverá. Agora, quer ver o bosque?

- Leve-me até lá, Jenny!

- Então se vire. Está indo para o lado errado. Temos que cruzar as montanhas. - Ela estendeu a mão livre, tomou a de Dirk, e viraram juntos em uma larga espiral, para cima e para trás, de frente para Larteyn e a cadeia montanhosa. A cidade parecia cinza e desbotada a distância, com orgulhosas pedrardentes opacas pelo sol. As montanhas eram uma escuridão iminente.

Voaram juntos em direção a elas, ganhando altitude paulatinamente até que ficaram bem acima da Fortaleza de Fogo, alto o suficiente para atravessar os picos. Era quase a altitude máxima para os aeropatinetes; um aeromóvel, é claro, poderia subir muito mais. Mas era alto o suficiente para Dirk. Os macacões de tecido-camaleão que vestiam tinham ficado totalmente cinza e branco, e ele era grato pelo calor das roupas; o vento estava frio e o indeciso dia de Worlorn não era muito mais quente do que a noite.

De mãos dadas e gritando comentários ocasionais, voando por aqui e por ali ao vento, Gwen e Dirk passaram sobre a montanha e logo depois desceram a encosta até um vale sombrio e rochoso. Então voaram para cima e para baixo novamente, e ainda mais uma vez, passando por afloramentos de rocha verde e negra afiados como punhais, por altas e estreitas cachoeiras e por precipícios ainda mais altos. Em certo ponto, Gwen o desafiou a uma corrida, e ele gritou aceitando, então dispararam adiante tão rápido quanto os patinetes e suas habilidades permitiam, até que finalmente Gwen ficou com pena dele e voltou para segurar sua mão outra vez.

A cadeia descia tão repentinamente a oeste como se erguia no leste, formando uma barreira alta para proteger o bosque da luz da Roda, que ainda se erguia.

- Para baixo - Gwen falou, e ele assentiu, e então começaram uma lenta descida em direção às folhagens escuras misturadas abaixo. Fazia mais de uma hora que estavam voando; Dirk estava meio entorpecido pelo forte vento de Worlorn, e a maior parte de seu corpo protestava desse maltrato.

Pousaram bem dentro da floresta, ao lado de um lago que haviam visto enquanto desciam. Gwen aterrissou, traçando graciosamente uma curva suave que a deixou parada em uma praia musgosa ao lado da água. Dirk, com medo de se estatelar no chão e quebrar uma perna, desligou o controle um pouco cedo demais e despencou o último metro.

Gwen o ajudou a soltar suas botas do aeropatinete, e, juntos, sacudiram a areia e o musgo das roupas e dos cabelos. Então sentou-se ao lado dele e sorriu. Ele retribuiu o sorriso e a beijou.

Ou tentou. Quando se aproximou para colocar o braço ao redor dela, Gwen se afastou. Ele compreendeu e deixou as mãos caírem, e sombras cruzaram seu rosto.

- Sinto muito - ele murmurou. Desviou o rosto e olhou para o lago. A água era de um verde lustroso, e ilhas de fungos pontilhavam a superfície parada. O único movimento era dos enxames de insetos agitando-se nas águas rasas próximas. A floresta era ainda mais escura do que a cidade, pois as montanhas ocultavam a maior parte do disco do Satã Gordo.

Gwen esticou a mão e o tocou no ombro.

- Não - ela disse suavemente. - Eu sinto muito. Esqueci também. Era quase como em Ávalon.

Ele olhou para ela e forçou um sorriso lânguido, sentindo-se perdido.

- Sim. Quase. Senti sua falta, Gwen, apesar de tudo. Ou não deveria dizer isso?

- Provavelmente, não - ela respondeu. Seus olhos evitaram os dele novamente e vagaram para o outro lado do lago.

A margem oposta estava perdida na neblina. Ela contemplou a distância por um longo tempo, sem se mover, exceto uma vez, quando tremeu de frio. Dirk observou a própria roupa adquirir lentamente um tom manchado de branco e cinza, para combinar com a cor da terra sobre a qual se sentara.

Finalmente ele estendeu a mão para tocá-la, ainda inseguro. Ela se afastou.

- Não - falou.

Dirk suspirou e apanhou um punhado de areia fria, deixando escorrer entre os dedos enquanto pensava.

- Gwen. - Hesitou. - Jenny, não sei...

Ela olhou de relance para ele e franziu o cenho.

- Esse não é meu nome, Dirk. Nunca foi. Ninguém jamais me chamou assim, exceto você.

Ele estremeceu, consternado.

- Mas por que...

- Porque não sou eu!

- E ninguém mais - ele disse. - Simplesmente me ocorreu, em Ávalon, que combinava com você, e eu a chamei assim. Achei que gostasse.

Ela abanou a cabeça.

- Antigamente. Você não entende. Você nunca entendeu. Chegou a significar mais para mim do que a princípio, Dirk. Mais e mais e mais, e as coisas que esse nome representa para mim não são coisas boas. Tentei falar para você, até mesmo naquela época. Mas foi há muito tempo. Eu era mais jovem, uma criança. Não tinha as palavras adequadas para explicar.

- E agora? - A voz dele estava crispada de irritação. - Você tem as palavras agora, Gwen?

- Sim. Por você, Dirk. Mais palavras do que posso usar. - Ela sorriu de alguma piada secreta e sacudiu a cabeça, então seu cabelo se espalhou ao vento. - Ouça, nomes privados são bons. Podem ser algo especial para se compartilhar. Com Jaan é assim. Os altos-senhores têm longos nomes porque cumprem muitas funções. Ele pode ser Jaan Vikary para um amigo lupino em Ávalon, e Alto-Jadeferro nos conselhos do grupo, e ainda Riv no culto, Lobo na alta-guerra, ou mesmo ter outro nome na cama, um nome privado. E isso está certo, porque todos esses nomes são ele. Eu reconheço isso. Gosto de algumas partes mais do que de outras, gosto de Jaan mais do que do Lobo ou do Alto-Jadeferro, mas esses nomes são todos verdadeiros para ele. Os kavalarianos têm um ditado, que um homem é a soma de todos os seus nomes. Nomes são muito importantes em Alto Kavalaan. Nomes são muito importantes em todos os lugares, mas os kavalarianos conhecem essa verdade melhor do que a maioria. Uma coisa sem nome não tem substância. Se algo existe, tem um nome. E, da mesma forma, se você der uma nome para alguma coisa, de algum modo, em algum nível, a coisa nomeada ainda existe, chegará a ser. Esse é outro ditado kavalariano. Você entende, Dirk?

- Não.

Ela riu.

- Você é tão confuso quanto sempre. Ouça, quando Jaan foi para Ávalon, ele era Jaantony Jadeferro Vikary. Esse era seu nome, seu nome inteiro. As duas primeiras palavras eram a parte mais importante dele: Jaantony, seu nome verdadeiro, seu nome de nascimento, e Jadeferro é seu grupo e sua aliança. Vikary é um nome inventado que ele assumiu na puberdade. Todos os kavalarianos usam esses nomes, em geral nomes de altos-senhores que admiram, ou figuras míticas, ou heróis pessoais. Vários sobrenomes da Antiga Terra sobreviveram desse jeito. A idéia é que, ao tomar o nome de um herói, o garoto adquirirá algumas das qualidades do homem. Em Alto Kavalaan, isso realmente parece funcionar. O nome que Jaan escolheu, Vikary, é um pouco incomum em vários aspectos. Soa como um clichê da Antiga Terra, mas não é. Pelo que se conta, Jaan era um menino estranho e sonhador, muito melancólico e introspectivo demais. Quando era muito pequeno, gostava de ouvir canções das eyn-kethi e de contar histórias, o que não é bom para um garoto kavalariano. As eyn-kethi são as mulheres para reprodução, as mães perpétuas dos grupos, e uma criança normal não deve ficar com elas mais do que o necessário. Quando Jaan ficou mais velho, passava o tempo sozinho, explorando cavernas e minas abandonadas nas montanhas. Mantinha uma distância segura de seus irmãos de grupo. Não o culpo. Era sempre atormentado pelos demais e praticamente não tivera amigos, até que conheceu Garse. Que é muito mais jovem, mas ainda assim acabou como protetor de Jaan nas etapas posteriores de sua infância. Eventualmente, tudo isso mudou. Quando Jaan se aproximou da idade em que deveria se sujeitar ao código de honra, voltou sua atenção para as armas e as dominou muito rapidamente. Ele fez realmente um estudo fantástico: hoje é terrivelmente rápido, e o consideram letal, melhor ainda do que Garse, cuja habilidade é em grande parte instintiva. Não foi sempre assim, no entanto. De qualquer forma, quando chegou a hora de Jaantony escolher um nome, ele tinha dois grandes heróis, mas não se atrevia a mencionar nenhum deles para os altos-senhores. Nenhum deles era Jadeferro, e, pior, ambos eram quase párias, vilões da história kavalariana, líderes carismáticos cujas causas foram perdidas e que haviam sido sujeitados a gerações de difamações. Então Jaan meio que juntou seus nomes e manipulou os sons até que o produto parecesse um antigo nome familiar importado da Terra. Os altos-senhores aceitaram sem pestanejar. Era apenas seu nome escolhido, a parte menos importante de sua identidade. É a parte que vem no final, depois de tudo.

Ela franziu o cenho e prosseguiu:

- Esse é o ponto central de toda a história. Jaantony Jadeferro Vikary foi para Ávalon, e era, em grande parte, Jaantony Jadeferro. Só que Ávalon é um mundo muito sensível aos sobrenomes, e lá ele descobriu que era em grande parte Vikary. A Academia o registrou com esse nome, seus instrutores o chamavam de Vikary, e esse foi o nome com o qual viveu por dois anos. Logo se transformou em Jaan Vikary, além de ser Jaantony Jadeferro. Acho que gostava disso. Desde essa época, tentou ser sempre Jaan Vikary, embora não tenha sido fácil depois que voltou para Alto Kavalaan. Para os kavalarianos, ele sempre será Jaantony.

- Onde ele conseguiu todos os outros nomes? - Dirk pegou-se perguntando, a despeito de si mesmo. A história o fascinava e parecia jogar novas luzes sobre o que Jaan Vikary lhe dissera no telhado.

- Quando nos casamos, ele me levou para Jadeferro e tornou- -se um alto-senhor, automaticamente um membro do conselho dos altos-senhores - ela explicou. - Aquilo colocou um "alto" no nome dele, e lhe deu o direito de ter propriedades privadas, independentemente do grupo, de fazer sacrifícios religiosos e de liderar seu kethi, seus irmãos de grupo, na guerra. Então ele ganhou um nome de guerra, uma espécie de grau, e um nome religioso. Antigamente, esses tipos de nome eram muito importantes. Não tanto hoje em dia, mas o costume permanece.

- Entendo - disse Dirk, embora não entendesse, não completamente. Os kavalarianos pareciam dar uma relevância excepcional ao casamento. - E isso tem algo a ver conosco?

- Muito - Gwen falou, ficando muito séria novamente. - Quando Jaan chegou a Ávalon e as pessoas começaram a chamá-lo de Vikary, ele mudou. Tornou-se Vikary, um híbrido de seus próprios ídolos iconoclásticos. É isso o que os nomes podem fazer, Dirk. É o que foi nossa ruína. Eu amava você, sim. Muito. Eu amava você, e você amava Jenny.

- Você era Jenny!

- Sim e não. Sua Jenny, sua Guinevere. Você dizia isso, uma vez, outra e mais outra. Você me chamava desses nomes com tanta freqüência quanto me chamava de Gwen, mas você estava certo. Esses eram seus nomes. Sim, eu gostava disso. O que eu sabia de nomes ou de nomear algo? Jenny é muito bonito, e Guinevere tem o brilho da lenda. O que eu sabia? Mas aprendi, mesmo que nunca tenha tido as palavras para explicar. O problema era que você amava Jenny... só que eu não era Jenny. Ela era baseada em mim, talvez, mas em grande parte era um fantasma, um desejo, um sonho que você desenhou todo para si. Você a fixou em mim e amou nós duas, e, com o tempo, me surpreendi me transformando em Jenny. Dê um nome para uma coisa e ela, de algum modo, passará a existir. Toda a verdade está nos nomes, e todas as mentiras também, pois nada distorce tanto quanto um nome falso, um nome falso que muda a realidade assim como as aparências. Eu queria que você me amasse, não a ela. Eu era Gwen Delvano, e queria ser a melhor Gwen Delvano que pudesse ser, mas ainda eu mesma. Lutei para ser Jenny, e você lutou para mantê-la e nunca entendeu. E foi por isso que deixei você. - Terminou em uma voz fria, o rosto uma máscara, e desviou o olhar dele novamente.

E ele entendeu, finalmente. Por sete anos nunca fora capaz de compreender, mas agora, de maneira fugaz, pôde vislumbrar. Então foi por isso, ele pensou, foi por isso que ela enviou a jóia-sussurrante. Não para chamá-lo de volta, não, não por isso. Mas para dizer-lhe, finalmente, porque o mandara embora. E havia sentido nisso. Sua raiva desapareceu repentinamente em uma cansada melancolia. A areia corria fria e despercebida entre os dedos dele.

Ela viu o rosto dele, e a voz dela ficou mais suave.

- Sinto muito, Dirk - falou. - Mas você me chamou de Jenny novamente. E eu tinha que lhe contar a verdade. Nunca esqueci, e não posso imaginar que você tenha esquecido, e pensei nisso por todos estes anos. Foi tão bom, quando era bom, eu ficava pensando. Como pôde dar errado? Isso me assustava, Dirk. Isso realmente me assustava. Eu pensava, "se nós demos errado, Dirk e eu, então nada é certo, nada pode ter consistência". O medo me aleijou por dois anos. Mas finalmente, com Jaan, eu entendi. E agora veio à tona, a resposta que encontrei. Sinto se é uma resposta muito dolorosa para você. Mas você tinha que saber.

- Eu esperava...

- Não - ela avisou. - Não comece, Dirk. Não novamente. Nem mesmo tente. O nosso relacionamento terminou. Reconheça isso. Mataríamos a nós mesmos se tentássemos.

Ele suspirou, totalmente desarmado. Durante toda a longa conversa, não a tocara nenhuma vez. Sentia-se impotente.

- Devo supor que Jaan não a chama de Jenny? - ele perguntou finalmente, com um sorriso amargo.

- Não - Gwen respondeu, sorrindo. - Como kavalariana, tenho um nome secreto, e ele me chama por esse nome. Mas eu escolhi o nome, então não tem problema. É o meu nome.

Ele apenas deu de ombros.

- Você está feliz, então?

Gwen se levantou e sacudiu a areia das pernas.

- Jaan e eu... bem, há muita coisa que é difícil explicar. Você foi meu amigo antigamente, Dirk, e talvez tenha sido meu melhor amigo. Mas esteve longe por um longo tempo. Não pressione demais. Neste exato momento preciso de um amigo. Falo com Arkin, e ele ouve e tenta compreender, mas não pode ajudar muito. Está muito envolvido, muito cego sobre os kavalarianos e a cultura deles. Jaan, Garse e eu temos problemas, sim, se é o que está perguntando. Mas é difícil falar sobre eles. Me dê um tempo. Espere, se puder, e seja meu amigo novamente.

O lago estava muito quieto no perpétuo pôr do sol vermelho- acinzentado. Ele observou a água, espessa com as crostas de fungos espalhadas, e lembrou-se novamente do canal em Braque. Então ela precisava dele, pensou. Talvez não como ele esperava, mas ainda havia algo que podia lhe dar. Agarrou-se a isso com força: ele queria dar, tinha que dar.

- Como seja - disse, enquanto se levantava. - Há muita coisa que não entendo, Gwen. Muita coisa. Fico pensando que metade da conversa de ontem foi incompreensível para mim, e não sei as perguntas certas que devem ser feitas. Mas posso tentar. Devo isso a você, acho. Devo isso, de um modo ou de outro.

- Você esperará?

- E ouvirei, quando a hora chegar.

- Então estou feliz que tenha vindo - ela disse. - Preciso de alguém, de alguém de fora. Você chegou bem a tempo, Dirk. Uma sorte.

Que estranho, ele pensou, mandar buscar a sorte. Mas não disse nada.

-E agora?

- Agora me mostre o bosque. Viemos para isso, no fim das contas.

Pegaram os aeropatinetes e se afastaram do lago silencioso, em direção da espessa floresta. Não havia trilha a ser seguida, mas o mato não era fechado e a caminhada era fácil, com muitos caminhos a serem escolhidos. Dirk estava quieto, estudando as árvores ao redor, com os ombros caídos e as mãos enfiadas no fundo dos bolsos. Gwen falou o pouco que havia para ser falado. Quando falava, sua voz era baixa e reverente como o sussurro de uma criança em uma grande catedral. Mas, na maior parte das vezes, ela simplesmente apontava e o deixava olhar.

As árvores ao redor do lago eram todas velhas conhecidas que Dirk vira milhares de vezes antes. Por isso era chamada de floresta de casa, as árvores que os homens carregaram consigo de sol em sol e plantaram em todos os mundos em que chegavam. A floresta de casa tinha suas raízes na Antiga Terra, mas não era totalmente da Terra. Em cada novo planeta, a humanidade encontrava novas favoritas, plantas e árvores que logo eram tão parte da linhagem quanto aquelas que vieram da Terra no início. E quando as naves espaciais partiam, mudas daqueles mundos seguiam com as duas vezes desenraizadas netas da Terra, e então a floresta de casa crescia.

Dirk e Gwen passearam por aquela floresta lentamente, como outros caminharam pela mesma floresta em uma dúzia de outros mundos. E conheciam as árvores. Bordos doces, bordos ardentes, pseudocarvalho e carvalhos verdadeiros, árvores-prata, pinheiros venenosos e ásters. Os habitantes dos mundos exteriores trouxeram essas plantas até ali como seus ancestrais as levaram para a Orla, para adicionar um toque do lar, onde quer que o lar pudesse estar.

Mas, ali, as árvores pareciam diferentes.

Era a luz, Dirk percebeu depois de um tempo. A luz fraca que vazava tão escassa do céu, o brilho vermelho pálido que passava pelo dia de Worlorn. Essa era uma floresta crepuscular. Na lentidão do tempo - em um outono muito estendido -, estava morrendo.

Olhou mais de perto e viu que os bordos doces estavam todos nus, as folhas caídas aos seus pés. Não ficariam verdes novamente. Os carvalhos estavam secos também. Parou e puxou uma folha de um bordo ardente, e viu que as finas veias vermelhas haviam se tornado negras. E as árvores-prata estavam, na verdade, de um cinza empoeirado.

A podridão viria em breve.

Em partes da floresta, a podridão já chegara. Em um vale desolado, onde o húmus estava mais grosso e mais negro do que em qualquer outro lugar, Dirk notou o odor. Olhou para Gwen, perguntando. Ela se agachou e levou um punhado de matéria negra ao nariz dele. Dirk virou o rosto.

- Era uma cama de musgo - contou para ele, melancólica. - Trouxeram de Eshellin. Um ano atrás estava verde e escarlate, viva, com florzinhas. O negro se espalhou rapidamente.

Adentraram ainda mais na floresta, mais distantes do lago e da cadeia montanhosa. Os sóis estavam quase a pino agora; o Satã Gordo, opaco e borrado como uma lua ensangüentada, com uma aurora irregular de quatro pequenos sóis-estrelas. Worlorn havia retrocedido demais e na direção errada: os efeitos da Roda estavam perdidos.

Estavam caminhando há mais de uma hora, quando a característica da vegetação ao redor deles começou a mudar. Lentamente, sutilmente, a mudança se acentuou de modo tão gradual que Dirk quase não notou. Mas Gwen lhe mostrou. O aroma familiar da floresta de casa estava sumindo, rendendo-se para algo mais estranho, algo único, algo mais selvagem. Esbeltas árvores negras com folhas cinzentas, altas muralhas de urze de pontas vermelhas, musgos pendurados de um azul-claro fosforescente, grandes formas bulbosas infestadas com escuras manchas lascadas; para cada uma delas Gwen apontava e dava um nome. Um tipo tornava-se mais e mais comum: um arbusto amarelado e alto do qual brotavam ramos intrincados de toda a superfície do tronco céreo, e galhos ainda menores desses ramos, e ainda menores desses últimos, até transformar-se em um sólido labirinto de madeira.

- Estranguladores - Gwen chamou a planta, e Dirk logo soube o motivo. Ali, nas profundezas do bosque, um dos estranguladores crescera ao lado de uma esbelta árvore-prata, e seus ramos sinuosos e amarelados se misturaram aos outros, retos, cinzentos e espigados, enterrando raízes sobre e ao redor da outra árvore, asfixiando a rival em um abraço cada vez mais apertado. E agora a árvore-prata mal podia ser vista: uma estaca alta e morta, perdida entre galhos e raízes do estrangulador.

- Os estranguladores são nativos de Tober - contou Gwen. - Estão tomando a floresta aqui, exatamente como fizeram lá. Poderíamos ter dito a eles que isso aconteceria, mas não teriam se importado. As florestas estão todas condenadas, de qualquer maneira, e antes mesmo de terem sido plantadas. Mesmo os estranguladores morrerão, mesmo sendo os últimos a desaparecer.

Seguiram caminhando, e os estranguladores ficaram cada vez mais freqüentes, até que logo dominaram toda a floresta. Aqui a mata era mais densa, mais escura; a passagem era mais difícil. Raízes semienterradas faziam-nos tropeçar, enquanto ramos emaranhados se interligavam sobre eles como os braços estendidos de lutadores gigantes. Onde dois, três ou mais estranguladores cresciam próximos, eles pareciam se misturar em um único nó retorcido, e Gwen e Dirk eram forçados a desviar. Outras plantas vivas eram escassas, exceto leitos de cogumelos negros e roxos próximos aos pés das árvores amarelas, e cipós parasitas.

Mas havia animais.

Dirk via-os se moverem através das escuras sinuosidades dos estranguladores e ouvia seus chamados agudos e trêmulos. Finalmente viu um. Parado bem acima de suas cabeças em um inchado galho amarelo, olhando para baixo: do tamanho de um punho, imóvel como um morto e, de algum modo, transparente.

Dirk tocou o ombro de Gwen e acenou com a cabeça para cima. Mas ela apenas sorriu para ele e depois riu levemente. Então estendeu o braço até onde a pequena criatura estava e a triturou entre os dedos. Quando abriu a mão diante de Dirk, sua palma tinha apenas pó e tecido morto.

- Há um ninho de espectros arbóreos aqui perto - ela explicou. - Eles trocam de pele quatro ou cinco vezes antes da maturidade e deixam a casca como guardiões, para espantar outros predadores. - Ela apontou. - Ali há um vivo, se estiver interessado.

Dirk olhou e teve um vislumbre fugaz de uma pequena coisa amarela saltitante, com dentes afiados e enormes olhos castanhos.

- Eles voam também - contou Gwen. - Têm uma membrana que vai do braço até a perna e permite que pairem entre as árvores. Predadores, você sabe. Caçam em grupos, podem capturar criaturas centenas de vezes seu tamanho. Mas geralmente não atacam humanos, a menos que seja para defender seu ninho.

O espectro arbóreo havia partido agora, perdido entre o labirinto de galhos do estrangulador, mas Dirk achou ter visto outro brevemente, com o canto do olho. Estudou as árvores ao seu redor. As cascas de pele transparente estavam por todos os lados, vigiando o crepúsculo com ar feroz, todos pequenos e carrancu- dos fantasmas.

- São essas coisas que deixam Janacek tão aborrecido, não são? - perguntou.

Gwen assentiu.

- Os espectros são uma peste em Kimdiss, mas aqui eles realmente encontraram seu elemento. Combinam perfeitamente com os estranguladores, e podem se mover entre os emaranhados mais rápido do que qualquer outra coisa que eu tenha visto. Nós os estudamos muito bem. Estão devastando as florestas. Com o tempo, matariam todas as espécies e morreriam de fome, mas não terão tempo para isso. O escudo falhará antes, e o frio virá. - Encolheu os ombros um pouco cansada e apoiou o antebraço em um ramo baixo e arqueado. Os macacões de ambos há muito haviam se tornado da mesma cor amarela suja que as árvores ao redor deles, mas a manga dela deslizou para cima quando encostou no ramo, e Dirk viu o brilho fosco do jade-e-prata brilhando contra o estrangulador.

- Ainda há muita vida animal?

- Bastante - ela disse. A clara luz vermelha dava à prata um brilho estranho. - Não tanta quanto costumava haver, é claro. A maioria da vida selvagem abandonou a floresta de casa. As árvores estão morrendo, e os animais sabem isso. Mas as árvores dos mundos exteriores são mais resistentes, de algum modo. Onde florestas da Orla foram plantadas, você encontrará vida, ainda forte, ainda sobrevivendo. Os estranguladores, as árvores-fantasma, os viúvos azuis... florescerão até o fim. E terão seus inquilinos, velhos e novos, até que o frio venha.

Gwen movia o braço à toa, para este lado e para aquele, e o bracelete piscava para ele, gritava para ele. Um vínculo, uma lembrança e uma negação, tudo de uma vez, amor jurado em jade-e-prata. E ele tinha apenas uma pequena jóia-sussurrante no formato de uma lágrima, repleta de memórias que se desvaneciam.

Levantou os olhos, passando por um intrincado cruzamento de ramos amarelos dos estranguladores, até onde o Olho do Inferno estava parado em uma fatia do céu escuro, parecendo mais cansado do que infernal, mais compassivo do que satânico. E estremeceu.

- Vamos voltar - pediu para Gwen. - Este lugar me deprime.

Ela não se opôs. Encontraram uma clareira a uma certa distância dos estranguladores que os cercavam, um lugar para estender as plataformas metálicas de seus patinetes. Então subiram juntos para começar o longo voo de volta a Larteyn.


Capítulo 3


Ao voarem de volta por cima das montanhas, Dirk se saiu melhor do que da primeira vez, perdendo por menos do que antes. Mas o progresso não melhorou seu humor. Na maior parte da cansativa viagem, voaram em silêncio, separados, com Gwen alguns metros à frente dele. Seguiram de costas para a quebrada e muda Roda de Fogo, e a silhueta de Gwen parecia a de uma bruxa vagamente delineada contra o céu e sempre fora de alcance. A melancolia das florestas moribundas de Worlorn tinha penetrado na carne dele, e ele via Gwen com um olhar contaminado, a figura de uma boneca em uma roupa tão desbotada quanto o desespero, seu cabelo negro lustroso sob a luz vermelha. Os pensamentos vinham em um caos colorido, enquanto o vento passava por ele, e um deles era mais freqüente do que os demais. Ela não era sua Jenny, e nunca havia sido.

Duas vezes durante o voo, Dirk viu - ou pensou ter visto - o jade-e-prata brilhando, atormentando-o, como acontecera na floresta. Desviou os olhos ambas as vezes e observou as nuvens negras, longas e finas deslizarem pelo céu vazio e estéril.

O aeromóvel cinza em forma de arraia e a máquina de guerra verde-oliva não estavam no telhado quando o casal chegou a Larteyn. Apenas o carro amarelo de Ruark, em formato de lágrima, estava estacionado. Aterrissaram perto - o pouso de Dirk foi outro tropeço desajeitado, agora estranhamente sem graça, apenas estúpido - e deixaram os aeropatinetes e as botas de voo no telhado, no lugar em que as tiraram. Perto dos elevadores, conversaram brevemente, mas Dirk esqueceu as palavras assim que as disse. Então Gwen se despediu.

Em seus aposentos na base da torre, Arkin Ruark esperava pacientemente. Dirk encontrou um divã entre as paredes tom pastel, as esculturas e os vasos de plantas kimdissianas. Recostou-se nele, esperando apenas descansar e não pensar, mas Ruark estava ali, rindo e sacudindo a cabeça, fazendo os cabelos loiros platinados dançarem, empurrando uma taça verde alta em suas mãos. Dirk pegou e sentou-se novamente. A taça era de cristal fino e elegante, liso e sem adornos, exceto por uma pequena crosta de gelo derretido. Ele bebeu, e o vinho era muito verde e frio, e um sabor de incenso e canela desceu por sua garganta.

- Você parece muito cansado - falou o kimdissiano, depois de pegar uma bebida para si e largar-se em uma rede sob a sombra de uma planta negra inclinada. As folhas em formato de lança lançavam faixas de sombras em seu rosto gorducho e sorridente. Ele tomou um gole, sugando o líquido ruidosamente, e, por um breve instante, Dirk o desprezou.

- Um longo dia - comentou, vagamente.

- Verdade. - Ruark concordou. - Um dia com kavalarianos, né? É sempre longo. A doce Gwen, Jaantony e, por fim, Garsinho... o suficiente para fazer um dia durar uma eternidade. O que me diz?

Dirk não disse nada.

- Mas agora - Ruark continuou, sorrindo - você já viu. De minha parte, eu queria isso, que você visse. Antes que eu lhe contasse. Mas eu havia jurado contar para você, um juramento para mim mesmo. Gwen tem conversado comigo. A gente conversa, você sabe, como amigos, e eu a conheço e a Jaan desde Ávalon. Mas aqui nos aproximamos. Ela não consegue falar sobre isso facilmente, mas fala comigo, ou falava, e eu posso lhe contar. Nenhuma violação de confiança. Você é quem deve saber, creio.

A bebida tocou seu peito com dedos gelados, e Dirk sentiu o cansaço se dissipar. Era como se tivesse estado adormecido, como se Ruark estivesse falando por um longo tempo e ele tivesse perdido tudo.

- Sobre o que você está falando? - ele perguntou. - O que eu deveria saber?

- Por que Gwen precisa de você - respondeu Ruark. - Por que ela mandou... a coisa. A lágrima vermelha. Você sabe. Eu sei. Ela me contou.

Repentinamente Dirk estava bastante alerta, interessado e intrigado.

- Ela contou para você - ele começou, e então parou. Gwen lhe pedira para esperar, e havia muito tempo ele fizera uma promessa... mas se encaixava. Talvez tivesse que escutar, talvez fosse difícil demais para ela lhe dizer. Ruark saberia. Era amigo dela, Gwen dissera na floresta, o único com quem podia falar. - O que ela lhe contou?

- Você tem que ajudá-la, Dirk t'Larien, de algum modo. Só não sei como.

- Ajudá-la a fazer o quê?

- A ser livre. A escapar.

Dirk colocou a bebida na mesa e coçou a cabeça.

- De quem?

- Dos kavalarianos.

Ele franziu o cenho.

- De Jaan, quer dizer? Eu o conheci esta manhã, ele e Janacek. Ela ama Jaan. Eu não entendo. - Ruark riu, tomou sua bebida e riu novamente. O kimdissiano estava vestido com um traje de três peças com quadros alternados marrons e verdes, como a roupa de um bobo da corte, e estava sentado disparando coisas sem sentido. Dirk se perguntou se o pequeno ecologista era realmente um tolo.

- Amá-lo, sim, ela disse isso? - Ruark perguntou. - Você está seguro disso, não está? Então?

Dirk hesitou, tentando lembrar as palavras da conversa que haviam tido no lago verde e parado.

- Não tenho certeza - admitiu. - Mas falou algo nesse sentido. Ela é... O que ela é dele?

- Betheyn? - Ruark sugeriu.

Dirk assentiu.

- Sim, betheyn, esposa.

Ruark gargalhou.

- Não, totalmente errado. No carro, eu ouvi. Gwen disse errado. Bem, não realmente, mas você ficou com a impressão errada. Betheyn não é esposa. A parte verdadeira da maior mentira de todas, lembra? O que você acha que é um teyn?

A palavra o fez refletir. Teyn. Ouvira-a uma centena de vezes em Worlorn.

- Amigo? - sugeriu, sem saber o significado.

- Betheyn está mais próximo de esposa do que teyn de amigo - Ruark falou. - Conheça melhor os mundos exteriores, Dirk. Não. Betheyn é, em antigo kavalariano, uma "mulher de um homem", uma esposa ligada por jade-e-prata. Agora, pode haver muita afeição no jade-e-prata, muito amor, sim. Embora, você sabe, a palavra usada para isso, a palavra-padrão terrestre, não tenha equivalente no antigo kavalariano. Interessante, né? Eles podem amar sem uma palavra para isso, amigo t'Larien?

Dirk não respondeu. Ruark deu de ombros, tomou um gole e continuou.

- Bem, não importa, mas pense nisso. Eu falei em jade-e-prata, e, sim, freqüentemente os kavalarianos têm amor nesse laço, amor de betheyn para o alto-senhor, e algumas vezes do alto-senhor para betheyn. Ou afeição, se não amor. Mas nem sempre, e não necessariamente! Entende?

Dirk acenou com a cabeça.

- Laços kavalarianos são baseados em costumes e obrigações - Ruark disse, inclinando-se para a frente dramaticamente -, e o amor vem depois, como um acidente. Povo violento, eu disse para você. Leia a história, leia as lendas. Gwen conheceu Jaan em Ávalon, você sabe, e ela não tinha lido. Não o suficiente. Ele era Jaan Vikary de Alto Kavalaan, e o que era isso, algum planeta? Ela nunca soube. Verdade. Então o afeto entre eles cresceu. Chame isso de amor, talvez. O sexo aconteceu, e ele ofereceu para ela o jade-e-prata forjado com o emblema dele. E repentinamente ela era betheyn dele, mesmo sem saber muito bem. Presa.

- Presa? Presa como?

- Leia a história! A violência em Alto Kavalaan é antiga, a cultura não mudou. Gwen é betheyn de Jaan Vikary, esposa cativa betheyn, mulher dele, sim, além de amante, e mais. Propriedade e escrava, ela é isso também, e um presente. Ela é um presente para o grupo Jadeferro e carrega os sobrenomes dele, sim. Deve ter filhos se ele ordenar, quer ela queira, quer não. Deve tomar Garse como amante também, quer queira, quer não. Se Jaan morrer em um duelo com um homem de outro grupo que não o Jadeferro, um Braith ou um Açorrubro, Gwen passa a ser deste homem, como uma bagagem, uma propriedade... torna-se betheyn dele, ou uma mera eyn-kethi, se o vitorioso já usar jade-e-prata. Se Jaan morrer de causas naturais, ou em um duelo com outro Jadeferro, Gwen fica para Garse. O desejo dela não entra em questão. Quem se importa se ela o odiar? Não os kavalarianos. E quando Garsinho morrer, heim? Bem, quando isso acontecer, ela se torna uma eyn-kethi, uma parideira do grupo, degradada para sempre, livre para ser usada por qualquer kethi. Kethi significa "irmãos do grupo", mais ou menos, os homens da família. O grupo Jadeferro é uma imensa família, milhares e milhares de famílias, e qualquer um poderia tê-la. Do que ela chama Jaan? Esposo? Não. Carcereiro. É isso o que ele é, ele e Garse, carcereiros que a amam, talvez, se você pensar que isso pode se conciliar com nossa idéia de amor. Jaantony honra nossa Gwen, e deve, pois ele é Alto-Jadeferro agora, ela é sua presente-betheyn, e se ela morrer ou deixá-lo, ele será um Fre-Jadeferro, um velho, zombado, sem armas, sem voz no conselho. Mas ele a escraviza, não a ama, e ela está a anos de Ávalon, agora, está mais velha e mais sábia, e agora ela sabe. - Ruark pronunciou as últimas palavras com uma fúria entrecortada, com os lábios apertados.

Dirk hesitou.

- Ele não a ama, então?

- Como você ama sua propriedade, assim é entre um alto-senhor e sua betheyn. É um laço apertado, jade-e-prata, para nunca ser quebrado, mas é um laço de obrigação e possessão. Não amor. Amor está em outro lugar, se é que os kavalarianos têm isso, e é encontrado no irmão escolhido, o gêmeo que é escudo, alma gêmea, amante e guerreiro, o sempre leal provedor de prazer, tomador de golpes e aguentador de dores, o vínculo por toda a vida.

- Teyn - Dirk falou, um pouco aturdido, a mente correndo adiante.

- Teyn! - Ruark assentiu. - Os kavalarianos, tão violentos como são, têm uma grande poesia. Muitas celebram o teyn, o laço de ferro-e-pedrardente, nenhuma fala do jade-e-prata.

As coisas pareciam se encaixar sem esforço.

- Você está dizendo - Dirk começou - que ela e Jaan não se amam, que Gwen não é mais do que uma escrava. Mesmo assim, ela não parte?

O rosto gorducho de Ruark ficou corado.

- Partir? Um total absurdo! Eles a trariam de volta. Um alto-senhor precisa manter e proteger sua betheyn. E matar todos aqueles que tentarem roubá-la.

- E ela me mandou a joia...

- Gwen conversa comigo, eu sei. Que outra esperança ela tinha? Os kavalarianos? Jaantony já matou três vezes em duelo. Nenhum kavalariano tocaria nela, e que bem faria se tocasse? Eu? Eu por acaso sou uma esperança? - Suas mãos suaves escorregaram pelo próprio corpo, e ele se descartou com desprezo. - Você, t'Larien, você é a esperança de Gwen. Você, que deve algo a ela. Você, que a amou certa vez.

Dirk ouviu a própria voz, como se estivesse distante.

- Ainda a amo - disse.

- Bom. Eu acho, você sabe, que Gwen... embora ela nunca tenha dito isso, mesmo assim, eu acho... que ela ainda sente. O mesmo que sentia. O que jamais chegou a sentir por Jaantony Riv Lobo Alto-Jadeferro Vikary.

A bebida, o estranho vinho verde, o tocara mais do que ele poderia imaginar. Apenas uma taça, uma simples taça alta, e o curioso aposento começou a rodar em torno dele. Dirk se ergueu com esforço, ouvira coisas impossíveis, e começou a divagar. O que Ruark dizia não fazia sentido, pensou, mas, na verdade, fazia sentido. Isso explicava tudo, realmente, e era tudo tão brilhantemente claro, assim como era claro o que Dirk deveria fazer. Era mesmo? A sala ondulava, ficava mais escura e depois mais clara novamente, escura e clara, e Dirk estava seguro em um segundo e totalmente inseguro no segundo seguinte. O que devia fazer? Alguma coisa, alguma coisa por Gwen. Tinha que descobrir a verdade das coisas, e então...

Levou a mão à testa. Sob as mechas de cabelo castanho-cinzento, tinha o rosto coberto de suor. Ruark levantou-se repentinamente, com uma expressão de alarme.

- Oh! - o kimdissiano exclamou - o vinho fez mal para você! Que tremendo tolo sou! E minha culpa. Vinho do mundo exterior e um estômago de Ávalon, é isso o que dá. Comida o ajudará, você sabe. Comida. - Saiu correndo, esbarrando nos vasos de planta, deixando as lanças negras agitando-se e dançando atrás de si.

Dirk sentou-se bem ereto. Bem ao longe, ouviu um bater de pratos e travessas, mas não prestou atenção. Ainda suando, sua testa estava enrugada pelos pensamentos, mas era estranhamente difícil pensar. A lógica parecia fugir dele, e as coisas mais claras se desvaneciam quando tentava se aferrar a elas. Tremeu, enquanto sonhos mortos despertavam para uma nova vida, enquanto bosques de estranguladores murchavam em sua mente, e a Roda ardia inclemente sobre os recém-floridos bosques de meio-dia de Worlorn. Ele podia fazer acontecer, forçar isso, despertar isso, colocar um fim no longo pôr do sol, e ter Jenny, sua Guinevere, para sempre ao seu lado. Sim. Sim!

Quando Ruark voltou com garfos e tigelas de queijo suave, tubérculos vermelhos e carne quente, Dirk estava mais calmo, tranqüilo novamente. Pegou uma tigela e comeu, em uma espécie de transe, enquanto seu anfitrião tagarelava. Amanhã, prometeu a si mesmo. Ele os veria no desjejum, falaria com eles, descobriria a verdade que pudesse. Então poderia agir. Amanhã.

- ... não pretendo insultá-lo - Vikary dizia na manhã seguinte. - Você não é tolo, Lorimaar, mas nisso acho que você age tolamente.

Dirk parou na porta de entrada, a pesada porta de madeira que abrira sem pensar oscilando diante dele. Todos viraram para olhá-lo, quatro pares de olhos, Vikary por último, e não até que terminasse o que estava dizendo. Gwen lhe havia dito que viesse para o desjejum quando se separaram na noite anterior (ele somente, já que Ruark e os kavalarianos preferiam se evitar sempre que possível), e esta era a hora apropriada, um pouco depois do amanhecer. Mas a cena não era a que esperava ao entrar.

Havia quatro pessoas na cavernosa sala de estar. Gwen, des- penteada e com os olhos sonolentos, estava sentada na ponta de um sofá baixo de madeira e couro que ficava diante da lareira e das gárgulas. Garse Janacek estava parado bem ao lado dela, com os braços cruzados e o cenho franzido, enquanto Vikary e um estranho estavam cara a cara perto da cornija. Os três homens estavam vestidos formalmente e armados. Janacek usava calça e camisa de um suave cinza-carvão, com colarinho alto e fileiras duplas de botões de ferro negro correndo pelo peito. A manga direita da camisa fora cortada para mostrar o pesado bracelete de ferro e pedrardentes vagamente em chamas. Vikary também estava de cinza, mas sem a fileira de botões; na frente de sua camisa havia um V cujo vértice quase chegava ao seu cinturão e, contra o pelo escuro de seu peito, um medalhão de jade pendurado em uma corrente de ferro.

O visitante, o estranho, foi o primeiro a se dirigir a Dirk. Estava de costas para a porta, mas virou-se quando os outros olharam naquela direção e franziu o cenho. Uma cabeça mais alto do que Vikary e Janacek, o homem era muito maior do que Dirk, mesmo a vários metros de distância. Sua pele era castanho-escura, contrastando com o traje branco-leite que vestia sob as pregas de uma capa violeta curta. Cabelos grisalhos, já mais para brancos, caíam por seus ombros largos, e seus olhos - pedras de obsidiana incrustadas em um rosto marrom com uma centena de linhas e rugas - não eram amigáveis. Nem sua voz. Olhou rapidamente para Dirk, então disse, simplesmente:

- Vá embora.

- O quê? - Nenhuma resposta podia ser mais estúpida do que esta, Dirk pensou assim que falou, mas nada mais lhe veio à mente.

- Eu disse para ir embora. - O gigante de branco repetiu. Como Vikary, os dois antebraços dele estavam nus para mostrar os braceletes, os quase-gêmeos de jade-e-prata no braço esquerdo e ferro-e-fogo no direito. Mas os padrões e desenhos dos braceletes do estranho eram muito diferentes. A única coisa que era igual, exatamente igual, era a arma em sua cintura.

Vikary cruzou os braços, exatamente como Janacek fizera.

- Esta é minha casa, Lorimaar Alto-Braith. Você não tem o direito de ser rude com aqueles que vêm até aqui a meu convite.

- Um convite que você mesmo não tem, Braith. - Janacek completou, com um sorrisinho insidioso.

Vikary olhou para seu teyn por cima do ombro e balançou a cabeça energeticamente. Não. Mas para quê? Dirk se perguntou.

- Venho até você em alto agravo, Jaantony Alto-Jadeferro, para uma conversa séria - o kavalariano vestido de branco retumbou. - Devemos tratar diante de um forasteiro? - Olhou de relance para Dirk novamente, ainda de cenho franzido. - Um quase-homem, por tudo o que sei.

A voz de Vikary era serena, mas firme, quando respondeu.

- Terminamos nossa conversa, amigo. Já lhe dei minha resposta. Minha betheyn tem minha proteção, e o kimdissiano e este homem também - indicou Dirk com um aceno de mão, então cruzou os braços novamente -, e se levar qualquer um deles, então se prepare para me levar também.

Janacek sorriu.

-Além do mais, ele não é um quase-homem - o esbelto kavalariano de barba ruiva disse. - Este é Dirk t'Larien, korariel de Jadeferro, quer você goste ou não. - Janacek virou-se ligeiramente na direção de Dirk e apontou para o estranho de branco. - t'Larien, este é Lorimaar Reln Raposadeinverno Alto-Braith Arkellor.

- Um vizinho nosso - Gwen disse do sofá, falando pela primeira vez. - Ele vive em Larteyn também.

- Longe de vocês, Jadeferros - o outro kavalariano disse. Não estava feliz. A prega em sua testa estava bem funda, e seus olhos negros moviam-se de um para outro, cheios de fria raiva, antes de encararem Vikary. - Você é mais jovem do que eu, Jaantony Alto-Jadeferro, e seu teyn é mais jovem ainda, e eu não estaria disposto a encarar você e os seus em duelo. Mas o código tem suas exigências, como você e eu sabemos, e nenhum de nós deve forçar as coisas. Vocês, jovens altos-senhores, costumam forçar os limites com freqüência, sinto, e os altos-senhores de Jadeferro mais do que todos, e...

- ... e eu mais do que todos os altos-senhores de Jadeferro - Vikary disse, interrompendo o outro.

Arkellor balançou a cabeça.

- Antigamente, quando eu não era mais do que uma criança desmamada no grupo de Braith, acabava em duelo se um interrompesse o outro, como você fez comigo agora. Na verdade, os velhos tempos já se foram. Os homens de Alto Kavalaan ficaram moles demais para meu gosto.

- Acha que sou mole? - Vikary perguntou sem se alterar.

- Sim e não, Alto-Jadeferro. Você é um estranho. Tem uma dureza que ninguém pode negar, e isso é bom, mas Ávalon colocou o fedor de quase-homem em você, tocando-o com a fraqueza e a tolice. Não gosto de sua cadela betheyn e não gosto de seus "amigos". Eu gostaria de ser mais jovem. Viria até você com fúria e o ensinaria novamente a antiga sabedoria dos grupos, as coisas que você esqueceu tão facilmente.

- Está nos chamando para um duelo? - Janacek perguntou. - Suas palavras são fortes.

Vikary descruzou os braços e acenou casualmente com a mão.

- Não, Garse. Lorimaar Alto-Braith não está nos chamando para um duelo. Está, amigo alto-senhor?

Arkellor esperou vários segundos antes de dar a resposta.

- Não - disse. - Não, Jaantony Alto-Jadeferro, não desejo insultá-lo.

- Nem tomarei suas palavras como insulto - Vikary disse, sorrindo.

O alto-senhor Braith não sorriu.

- Boa sorte - disse a contragosto. Dirigiu-se para a porta em passos largos, parando apenas o tempo necessário para Dirk sair do caminho apressadamente, então continuou para fora em direção à escada do telhado. A porta fechou-se atrás dele.

Dirk caminhou na direção dos outros, mas a cena já se dissolvia. Janacek, com a testa franzida e um aceno de mão, virou-se e saiu rapidamente para o outro cômodo. Gwen levantou-se, pálida e trêmula, e Vikary deu um passo na direção de Dirk.

- Não foi uma coisa boa para você presenciar - o kavalariano disse. - Mas talvez isso aclare as coisas para você. Ainda assim, lamento sua presença. Não gostaria que você pensasse sobre Alto Kavalaan da mesma maneira que o kimdissiano pensa.

- Não entendi nada - Dirk confessou. Vikary colocou um braço ao redor de seu ombro e o levou em direção à sala de jantar, com Gwen atrás deles. - Sobre o que ele estava falando?

- Ah, de muitas coisas. Eu explicarei. Mas devo dizer que há uma segunda coisa pela qual lamento: o desjejum que prometemos a você não está pronto. - Sorriu.

- Posso esperar. - Foram para a sala de jantar e se sentaram. Gwen ainda estava silenciosa e preocupada. - Do que Garse me chamou? - Dirk perguntou. - Kora-alguma coisa, o que significa?

Vikary pareceu hesitar.

- A palavra é korariel. É uma palavra em antigo kavalariano. O significado tem mudado ao longo dos séculos. Hoje, aqui neste lugar, quando usado por Garse ou por mim, significa protegido. Protegido por nós, protegido por Jadeferro.

- Isso é o que você gostaria que significasse, Jaan - Gwen disse, sua voz crispada e furiosa. - Conte a ele o real significado!

Dirk esperou. Vikary cruzou os braços e seus olhos passaram de um para o outro.

- Muito bem, Gwen, se é o que você quer. - Virou-se para Dirk. - O significado completo, mais antigo, é propriedade sob proteção. Só posso esperar que não considere isso um insulto. Não é nossa intenção. Korariel é uma palavra para pessoas que não fazem parte do grupo, mas mesmo assim são guardadas e valiosas.

Dirk lembrou-se das coisas que Ruark lhe contara na noite anterior, as palavras vagamente percebidas através de uma névoa do vinho verde. Sentiu a raiva subindo como uma maré vermelha por seu pescoço, e lutou para reprimi-la.

- Não estou acostumado a ser propriedade de ninguém - disse, amargamente -, não importa de quão alto valor. E contra quem se supõe que vocês estão me protegendo?

- Lorimaar e seu teyn, Saanel - Vikary respondeu. Inclinou-se por sobre a mesa e pegou o braço de Dirk apertado. - Garse pode ter usado a palavra de maneira apressada, t'Larien. Mesmo assim, para ele, sem dúvida pareceu correta naquele momento, uma palavra antiga para um conceito antigo. Errada, sim, eu reconheço o erro. Errada porque você é um humano, uma pessoa, não a propriedade de alguém. Mesmo assim, foi a palavra adequada para usar com alguém como Lorimaar Alto-Braith, que entende essas coisas e pouco além disso. Se isso o incomoda tanto, como sei que o conceito incomoda Gwen, então realmente sinto muito que meu teyn a tenha usado.

- Bem - Dirk ponderou, tentando ser razoável. - Agradeço pelas desculpas, mas não é o suficiente. Ainda não sei o que está acontecendo. Quem é Lorimaar? O que ele queria? E por que tenho que ser protegido contra ele?

Vikary suspirou e soltou o braço de Dirk.

- Não é tão simples responder a essas questões. Teria que lhe contar a história do meu povo, o pouco que sei e o muito que conjecturei. - Virou-se para Gwen. - Podemos comer enquanto conversamos, se ninguém faz objeção a isso. Você pode nos trazer a comida?

Ela assentiu e partiu, retornando alguns minutos depois, carregando uma grande bandeja com pilhas altas de pão preto, três tipos de queijo e ovos cozidos em brilhantes cascas azuis. E cerveja, é claro. Vikary inclinou-se para a frente e descansou os cotovelos na mesa. Começou a falar enquanto os outros comiam.

- Alto Kavalaan tem sido um mundo violento - disse. - E o mais antigo dos mundos exteriores, com exceção da Colônia Esquecida, e todas as suas longas histórias falam sobre batalhas. Infelizmente, essas histórias são também em grande parte invenções ou lendas, repletas de mentiras etnocêntricas. Mesmo assim, esses contos foram considerados verdadeiros até o momento em que as naves estelares regressaram, depois do interregno. Nas famílias do grupo Jadeferro, por exemplo, ensinam aos meninos que o universo tem apenas trinta estrelas, e Alto Kavalaan está no centro delas. A humanidade se originou ali, quando Kay Ferro-Ferreiro e seu teyn Roland Lobo-Jade nasceram da cópula entre um vulcão e uma tempestade. Saíram fumegantes dos lábios do vulcão, para um mundo cheio de demônios e monstros, e, por muitos anos, vagaram de um lado a outro, protagonizando várias aventuras. Finalmente se depararam com uma profunda caverna ao pé de uma montanha e dentro dela encontraram uma dúzia de mulheres, as primeiras mulheres do mundo. As mulheres tinham medo dos demônios e não queriam sair. Então Kay e Roland ficaram, tomaram as mulheres à força e fizeram delas suas eyn-kethi. A caverna tornou-se sua fortaleza, as mulheres deram à luz muitos filhos, e assim começou a civilização kavalariana. O caminho para fora da caverna não era fácil, dizem as histórias. Os meninos nascidos das eyn-kethi eram todos da semente de Kay e Roland, fogosos, perigosos e autoritários. Havia muitas brigas. Um filho, o astuto e maligno John Carvão- -Negro, costumava matar seus kethi, seus irmãos de grupo, por inveja, porque não caçava tão bem quanto eles. Então, esperando conseguir alguma de suas habilidades e força, começou a comer o corpo dos mortos. Certo dia, Roland o encontrou em meio a um desses banquetes, e perseguiu o filho através das montanhas, batendo nele com um grande mangual. Depois disso, John não voltou para Jadeferro, mas começou seu próprio grupo em uma mina de carvão e tomou um demônio como teyn. Essa foi a origem dos altos-senhores canibais das Moradas do Carvão Profundo. Outros grupos foram fundados da mesma maneira, embora as histórias Jadeferro simpatizem muito mais com outros rebeldes do que com John Negro. Roland e Kay eram mestres severos, não era fácil viver com eles. Shan, o Espadachim, por exemplo, era um garoto bom e forte que partiu com seu teyn e com sua betheyn depois de uma violenta luta com Kay, que não respeitou sua jade-e-prata. Shan foi o fundador do grupo Shanagate. Jadeferro reconhece sua linhagem como totalmente humana, e sempre foi assim. Da mesma maneira com a maioria dos grandes grupos. Aqueles que desapareceram, como a Morada do Carvão Profundo, não se saíram tão bem nas lendas. Essas lendas são muito extensas, e muitas são esclarecedoras. Há um conto do kethi desobediente, por exemplo. O primeiro Jadeferro soube que o único lar adequado para um homem era nas profundezas da rocha, na solidez da pedra, em uma caverna ou mina. Mesmo assim, aqueles que vieram depois não acreditaram; as planícies pareciam abertas e convidativas aos seus olhos ingênuos. Então saíram, com suas eyn-kethi e filhos, e erigiram altas cidades. Foi uma insensatez. Fogos caíram do céu e os destruíram, derretendo e retorcendo as torres que haviam levantado, queimando as cidades dos homens, mandando os sobreviventes correndo de volta ao subsolo, aterrorizados, para onde as chamas não podiam alcançá-los. E então as eyn-kethi deram à luz, e as crianças eram demônios, nenhum era humano. Algumas vezes comiam seu caminho para fora do útero.

Vikary fez uma pausa e tomou um gole de sua caneca. Dirk, quase no fim de seu desjejum, empurrou alguns pedaços de queijo em seu prato e franziu o cenho.

- Tudo isso é fascinante - disse -, mas temo que não vejo a relevância.

Vikary bebeu novamente e mordiscou um pedaço de queijo.

- Tenha paciência - disse.

- Dirk - Gwen disse secamente -, as histórias dos quatro grupos-coalizão sobreviventes diferem em vários aspectos, mas há dois grandes eventos com os quais todos concordam. São os embasamentos dos mitos kavalarianos. Todos eles têm uma versão desta última história: a queima das cidades. É chamado Tempo do Fogo e dos Demônios. Uma história mais tardia, a Praga Dolorosa, também é repetida praticamente palavra por palavra em cada grupo.

- É verdade - Vikary concordou. - Mas essas histórias são os únicos relatos dos dias antigos que me foram dados para trabalhar. Na época do meu nascimento, nenhum kavalariano em sã consciência acreditava nelas. - Gwen tossiu polidamente. Vikary olhou de relance para ela e sorriu. - Sim, Gwen me corrige - disse. - Poucos kavalarianos em sã consciência acreditavam nisso. - Prosseguiu. - Mesmo assim, os que duvidavam não tinham nada mais em que acreditar, nenhuma verdade alternativa para professar. A maioria deles não estava particularmente interessada nisso. Quando as viagens estelares recomeçaram, e os lupinos, os toberianos e, mais tarde, os kimdissianos foram para Alto Kavalaan, encontraram-nos ávidos em aprender as artes perdidas da tecnologia, e foi isso que nos ensinaram em troca de nossas pedras preciosas e metais pesados. Em pouco tempo tínhamos naves espaciais, mas ainda não tínhamos história. - Sorriu. - Encontrei as verdades que temos agora durante meus estudos em Ávalon. Era bem pouco, mas suficiente. Escondidos nos grandes bancos de dados da Academia, achei os registros da colonização original de Alto Kavalaan. Foi quase no final da Guerra Dupla. Um grupo de colonos partiu de Tara para um mundo além do Véu do Tentador, onde esperavam ficar seguros dos ataques dos hranganos e das raças-escravas dos hranganos. Os computadores indicam que por um tempo conseguiram seu objetivo. Descobriram um planeta inóspito e estranho, mas rico. Rapidamente construíram uma colônia de alto nível, baseada na mineração. Há registros de comércio entre Tara e a colônia por quase vinte anos, então o planeta além do Véu abruptamente desapareceu da história humana. Tara quase nem notou. Esses eram os anos mais cruéis da guerra.

- E você acha que esse planeta era Alto Kavalaan? - Dirk perguntou.

- É sabido por um fato - Vikary respondeu. - As coordenadas combinam, e outros fascinantes fragmentos de dados também. A colônia chamava-se Cavanaugh, por exemplo. Talvez até mesmo mais intrigante, a líder da primeira expedição era uma capitã de nave estelar chamada Kay Ferreiro. Uma mulher.

Gwen sorriu ao ouvir aquilo.

- Tem mais uma coisa que descobri, também - Vikary continuou -, quase por acaso. Você deve se lembrar que a maioria dos mundos exteriores nunca esteve envolvida na Guerra Dupla. As civilizações da Orla são filhas do Colapso, ou ainda do Pós-Colapso. Nenhum kavalariano jamais tinha visto um hrangano, muito menos uma de suas várias raças-escravas. Eu não tinha, até ir para Ávalon e me interessar pelos aspectos amplos da história humana. Então, em um relato do conflito nas devascadas, vi ilustrações dos vários escravos semissencientes que os hranganos usavam como tropa de choque nos mundos que não julgavam dignos de sua própria atenção imediata. Sem dúvida, sendo um humano nas devascadas, você conhece essas raças estranhas, Dirk. Os noturnos hruuns, guerreiros de alta gravidade e imensa força e selvageria, que enxergam bem no infravermelho. Dactiloides alados, cujo nome veio de alguma semelhança com uma besta da pré-história humana. E, os piores de todos, os githyanki, os sugadores de alma, com seus terríveis poderes psiônicos.

Dirk estava assentindo.

- Já vi um ou dois hruuns durante minhas viagens. Essas outras raças estão há muito extintas, não estão?

- Talvez - Vikary disse. - Olhei para as ilustrações que encontrei por muito tempo e voltei a elas várias e várias vezes. Havia alguma coisa nelas que me perturbava. Finalmente, desvendei a verdade. Os hruuns, os dactiloides, os githyanki... cada um deles tinha uma vaga semelhança com as gárgulas que se sentam nas portas de toda fortaleza kavalariana. Eles eram os demônios dos nossos ciclos míticos, Dirk! - Vikary levantou-se e começou a andar lentamente para um lado e para o outro da sala, ainda falando, sua voz ainda controlada, sua excitação demonstrada somente pelo ato de caminhar. - Quando Gwen e eu voltamos para Jadeferro, expus minha teoria, baseado nas velhas lendas, no ciclo de Canções do Demônio, do grande poeta aventureiro Jamis-Leão Taal, e nos bancos de dados da Academia. Considere a verdade: a colônia Cavanaugh se estabelece, com suas cidades nos planaltos e suas escavações nas minas. Os hranganos sobrevoam a cidade com um bombardeio nuclear. Sobreviventes vivem apenas nos abrigos das profundezas e nas minas do deserto. Para tomar o planeta, os hranganos também enviam para terra firme um contingente de suas raças-escravas. Então partem e não retornam por um século. As minas se tornam as primeiras fortalezas dos grupos, outras são construídas mais tarde, escavadas profundamente na pedra. Suas cidades desaparecem, e os mineiros retornam a um nível mais primitivo de tecnologia, e logo estabelecem uma rígida cultura voltada para a sobrevivência. Ao mesmo tempo, sob as ruínas radioativas das cidades, mutações humanas começam a surgir...

Dessa vez foi Dirk quem se levantou.

- Jaan - disse.

Vikary parou de caminhar, virou-se e franziu o cenho.

- Tenho sido bastante paciente - Dirk falou. - Entendo que tudo isso tem grande importância para você. E seu trabalho. Mas quero algumas respostas, e quero agora. - Levantou a mão e começou a contar as perguntas nos dedos. - Quem é Lorimaar? O que ele quer? E por que preciso ser protegido contra ele?

Gwen se levantou também.

- Dirk - disse -, Jaan está apenas lhe dando o pano de fundo que você precisa para entender. Não seja tão...

- Não! - Vikary a calou com um movimento da mão. - Não, t'Larien está correto, eu fico muito entusiasmado quando falo sobre esses assuntos. - Para Dirk, disse: - Eu lhe darei uma resposta direta, então. Lorimaar é um kavalariano muito tradicional, tão tradicional que está fora de lugar até mesmo em Alto Kavalaan. É uma criatura de outra era. Você se lembra que, ontem de manhã, quando lhe dei meu broche para usar, Garse e eu expressamos preocupações sobre sua segurança depois que escurecesse?

Dirk assentiu. Ergueu a mão e tocou o pequeno broche cuidadosamente preso em seu colarinho.

- Sim.

- Lorimaar Alto-Braith e outros como ele são a causa de nossa preocupação, t'Larien. As razões não são fáceis de explicar.

- Permita-me - Gwen falou. - Dirk, ouça. Os altos-senhores kavalarianos, o povo dos grupos, sempre respeitaram uns aos outros ao longo dos séculos... Oh, eles lutaram e guerrearam tanto que mais de vinte antigos grupos e coalizões foram completamente destruídos, deixando apenas os quatro grandes grupos sobreviventes dos tempos modernos. Ainda assim, eles reconhecem uns aos outros como humanos, sujeitos às regras da alta-guerra e ao código de honra kavalariano. Mas havia outros, veja você, pessoas solitárias nas montanhas, pessoas que moravam sob as cidades arruinadas, fazendeiros. São apenas suposições, minhas e de Jaan, mas o ponto é que tais pessoas existiram, sobreviventes do lado de fora dos acampamentos nas minas que se tornaram as fortalezas dos grupos. Os altos- -senhores não reconhecem esses sobreviventes como homens e mulheres. Jaan omitiu certos detalhes da história, como pode ver... Oh, não se incomode assim. Sei que era uma longa história, mas era importante. Você se lembra que as raças-escravas dos hranganos correspondiam aos três demônios do mito kavalariano? Bem, o único problema é que há três raças-escravas, mas quatro tipos de demônios. O pior e o mais maligno de todos os demônios eram os quase-homens.

Dirk franziu o cenho.

- Quase-homens. Lorimaar me chamou de quase-homem. Pensei que era algo como não humano, mais ou menos.

- Não - Gwen respondeu. - Não humano é um termo comum, quase-homem existe apenas em Alto Kavalaan. Multimorfos, a lenda diz, marginais e mentirosos. Podem assumir qualquer forma, mas com mais freqüência a de humanos, e querem se infiltrar nos grupos. Uma vez dentro, disfarçados como humanos, podem secretamente atacar e matar. Esses outros sobreviventes, os fazendeiros, as famílias das montanhas, os mutantes e os desafortunados, os outros humanos de Cavanaugh, esses são os quase-homens, o povo marginal. Não lhes era permitido se render, as regras da alta-guerra não se aplicavam a eles. Os kavalarianos os exterminavam, sem nunca acreditar que alguns deles eram humanos. Eram animais alienígenas. Depois de séculos, os que sobraram eram caçados por esporte. Os homens dos grupos sempre caçaram em duplas, teyn-e-teyn, para que cada um pudesse jurar sobre a humanidade do outro quando retornassem.

Dirk olhou horrorizado.

- Isso ainda continua?

Gwen deu de ombros.

- Raramente. Os kavalarianos modernos admitem os pecados de sua história. Depois que as naves espaciais vieram, os grupos Jadeferro e Açorrubro, as coalizões mais progressistas, proibiram a captura dos quase-homens. Os caçadores tinham um costume. Quando não queriam matar um quase-homem imediatamente, por qualquer que fosse a razão, mas queriam mantê-lo como uma presa pessoal para mais tarde, podiam nomeá-lo korariel, e ninguém tocaria nele, sob pena de duelo. Os kethi Jadeferro e Açorrubro saíram e capturaram todos os quase-homens que conseguiram, colocaram-nos em vilas e tentaram trazê-los para a civilização, tirando-os da selvageria na qual haviam caído. E seus cativos foram nomeados korariel. Houve uma breve guerra por causa disso, entre Jadeferro e Shanagate. Jadeferro venceu, e korariel ganhou um novo significado, propriedade sob proteção.

- E Lorimaar? - Dirk exigiu saber. - Como ele se encaixa nisso?

Ela sorriu maliciosamente por um segundo, fazendo Dirk se

lembrar de Janacek.

- Em qualquer cultura, alguns teimosos restam, crentes sinceros e fundamentalistas. Braith é a coalizão mais conservadora, e quase um décimo deles, segundo estimativa de Jaan, ainda acredita nos quase-homens. A maioria é de caçadores, que querem acreditar, e quase todos eles de Braith. Lorimaar, seu teyn e um punhado de seus kethi estão aqui para caçar. A disputa é mais variada do que em Alto Kavalaan, e ninguém impõe regras restritivas. De fato, não há leis. Os pactos do Festival terminaram há muito tempo. Lorimaar pode matar qualquer coisa que quiser.

- Incluindo humanos. - Dirk comentou.

- Se os encontrar - ela disse. - Larteyn tem vinte habitantes, creio. Vinte e um com você. Nós, um poeta chamado Kirak Açorrubro Cavis, que vive em uma antiga torre de observação, e um par de legítimos caçadores de Shanagate. Os demais são Braiths. Caçando quase-homens e qualquer outra coisa que quiserem quando não encontram quase-homens. Uma geração mais velha do que Jaan, principalmente, e bastante sedentos de sangue. Sem contar as histórias que ouviram em seus grupos, e talvez por uma ou outra caçada humana ilícita nas colinas de Lameraan, eles não sabem nada das antigas caçadas, exceto as lendas. Todos estão estourando de tradição e frustração. - Ela sorriu.

- E isso continua? Ninguém faz nada?

Jaan Vikary cruzou os braços.

- Tenho uma confissão a fazer, t'Larien - disse gravemente. - Mentimos para você ontem, Garse e eu, quando perguntou o motivo de estarmos aqui. Na verdade, fui eu quem mentiu. Garse disse ao menos a verdade parcial: devemos proteger Gwen. Ela pertence a outro mundo, não é kavalariana, e os Braiths a matariam alegremente como uma quase-homem, sem o escudo de Jadeferro. O mesmo vale para Arkin Ruark, que não sabe nada sobre isso, nem mesmo que está sob nossa proteção. Mesmo assim, ele está. Ele também é korariel de Jadeferro. Nossas razões para estar aqui vão além disso, no entanto. Era vital que eu deixasse Alto Kavalaan na época que saí. Quando assumi meus altos-nomes e publiquei minhas teorias, tornei-me imediatamente muito poderoso e celebrado no conselho dos altos-senhores, e muito odiado. Muitos homens religiosos tomaram como insulto pessoal minha tese de que Kay Ferro-Ferreiro era uma mulher. Fui desafiado seis vezes apenas por causa dessa história. No último duelo, Garse matou um homem, enquanto eu feri seu teyn tão gravemente que ele nunca andará novamente. Não quis continuar naquela situação. Worlorn estava vazio de inimigos, parecia. Ao meu pedido, o conselho Jadeferro enviou Gwen em seu projeto ecológico. Ao mesmo tempo, fiquei sabendo das atividades de Lorimaar por aqui. Ele já conseguira seu primeiro troféu, e a notícia alcançou Braith e chegou até nós. Garse e eu discutimos o assunto e resolvemos acabar com isso. A situação é explosiva ao extremo. Se os kimdissianos soubessem que os kavalarianos estão caçando quase-homens novamente, a notícia se espalharia rapidamente por todos os mundos exteriores. Resta pouco amor entre Kimdiss e Alto Kavalaan, como você deve saber. Não tememos os kimdissianos em si, que professam uma religião e uma filosofia de não violência como os emerelianos. Mas outros mundos da Orla são mais perigosos. Os lupinos são sempre voláteis e erráticos; os toberianos podem encerrar seus acordos comerciais se souberem que kavalarianos estão caçando seus turistas atrasados. Talvez até mesmo Ávalon se voltasse contra nós, se as notícias chegassem além do Véu, e seríamos expulsos da Academia. Esses riscos não podem ser corridos. Lorimaar e seus companheiros não se importam, e o conselho dos grupos não pode fazer nada. Não tem autoridade aqui, e apenas os Jadeferros têm a mínima preocupação com acontecimentos a anos-luz de distância, em um mundo moribundo. De modo que Garse e eu agimos contra os caçadores Braith sozinhos. Até agora, não tivemos conflitos abertos. Viajamos o mais longe que podemos, visitando cada uma das cidades, procurando por aqueles que permaneceram em Worlorn. Qualquer um que encontramos, transformamos em korariel. Encontramos apenas uns poucos: uma criança selvagem perdida durante o Festival, uns poucos lupinos que permaneceram na cidade de Haapala, um caçador cornoferro de Tara. Para cada um deles eu dei um símbolo da minha estima - sorriu - um pequeno broche de ferro negro com o formato de um banshee. E um farol de proximidade, para avisar um caçador que chegue perto demais. Se tocarem em qualquer um usando esse broche, qualquer korariel meu, isso seria uma ofensa de duelo. Lorimaar pode grunhir e protestar, mas não duelará conosco. Isso seria a morte para ele.

- Entendo - disse Dirk. Alcançou seu colarinho, tirou o pequeno broche de ferro e o jogou na mesa entre os restos do desjejum. - Bem, isso é adorável, mas você pode ficar com seu brochinho. Não sou propriedade de ninguém. Venho tomando conta de mim mesmo por um longo tempo, e posso continuar fazendo isso sozinho.

Vikary franziu o cenho.

- Gwen - disse -, você pode convencê-lo de que é mais seguro se...

- Não - ela disse asperamente. - Aprecio o que você está tentando fazer, Jaan, sabe disso. Mas entendo os sentimentos de Dirk. Não gosto de ser protegida tampouco e me recuso a ser propriedade. - A voz dela era brusca, resoluta.

Vikary olhou para os dois, impotente.

- Muito bem - cedeu. Pegou o broche que Dirk descartou. - Devo lhe dizer uma coisa, t'Larien. Temos mais sorte em encontrar pessoas do que os Braiths, simplesmente porque procuramos nas cidades, enquanto eles caçam nas florestas, lamentavelmente escravizados por velhos costumes. Eles raramente encontram alguém nos bosques. Até agora não tinham idéia do que Garse e eu estivemos fazendo. Mas, nesta manhã, Lorimaar Alto-Braith veio a mim em agravo porque, no dia anterior, havia topado com uma presa, quando saiu para caçar com seu teyn, e algo o impediu de persegui-la. A presa que ele perseguia era um homem em um aeropatinete, voando sozinho sobre as montanhas. - Ele segurou o broche com formato de banshee. - Sem isso - disse -, ele teria obrigado você a descer ou o teria atingido no céu com o laser, depois teria perseguido você mata adentro e finalmente o teria matado. - Colocou o broche no bolso, encarou Dirk significativamente por um minuto, e então saiu da sala.

Загрузка...