Capítulo 4
- Foi um azar que você tenha tropeçado em Lorimaar hoje de manhã - Gwen disse, depois que Jaan saiu da sala. - Não havia razão para envolver você nisso, e eu tinha esperanças de poupá-lo desses detalhes sórdidos. Espero que mantenha esta história confidencial quando deixar Worlorn. Deixe Jaan e Garse tomarem conta dos Braiths. Ninguém mais fará nada, de qualquer maneira, exceto comentar sobre o assunto e difamar inocentes de Alto Kavalaan. Sobretudo, não diga nada a Arkin! Ele despreza os kavalarianos e partiria para Kimdiss no mesmo instante. - Ela se levantou. - Neste momento, sugiro que falemos de coisas mais agradáveis. Temos pouco tempo juntos; eu só posso ser sua guia enquanto não tiver que voltar ao trabalho. Não há razão para deixar esses açougueiros Braiths estragarem os poucos dias que temos.
- Como quiser - Dirk respondeu, ansioso para agradar, mas ainda chocado por toda a história de Lorimaar e seus quase-homens. - Você tem algo planejado?
- Eu poderia levá-lo novamente à floresta - Gwen lhe disse. - Ela segue ininterruptamente, e há centenas de coisas fascinantes para se ver nos bosques: lagos cheios de peixes maiores do que nós dois, montes de terra mais altos do que este edifício, feitos por insetos menores do que a unha do seu dedo, um incrível sistema de cavernas que Jaan descobriu além da cadeia de montanhas... Jaan nasceu em uma caverna. Mesmo assim, hoje acho que devemos agir com segurança. Não queremos colocar muito sal na ferida de Lorimaar, ou ele e seu gordo teyn poderiam nos caçar, e Jaan estaria condenado. Hoje, mostrarei as cidades para você. Elas também são fascinantes, e têm um tipo macabro de beleza. Como Jaan disse, Lorimaar ainda não pensa em caçar lá.
- Tudo bem - Dirk concordou, com pouco entusiasmo.
Gwen vestiu-se rapidamente e levou-o para o telhado. Os aeropatinetes ainda estavam no mesmo lugar em que tinham sido deixados no dia anterior. Dirk agachou-se para pegá-los, mas Gwen tirou as plataformas da mão dele e atirou-as na traseira do aeromóvel cinzento em formato de arraia. Depois pegou as botas de vôo e os controles e os guardou também.
- Não usaremos os patinetes hoje - disse. - Cobriremos muito terreno.
Dirk assentiu, e os dois subiram por sobre as asas do carro até os assentos dianteiros. O céu de Worlorn o fazia sentir-se como se estivesse voltando de uma expedição, em vez de se preparando para partir.
O vento gritava ao redor do carro selvagemente, e por um breve tempo Dirk pegou o controle para que Gwen pudesse prender seus longos cabelos negros. Seu próprio cabelo castanho-acinzentado chicoteava em loucas convulsões enquanto percorriam o céu, mas estava abstraído demais para notar, muito menos para se incomodar com isso.
Gwen os manteve bem alto sobre a cadeia de montanhas e na direção sul. A plácida Comuna, com suas gentis colinas cobertas de relva e rios sinuosos, prolongava-se para a direita deles, até a linha do horizonte. Na distante esquerda, onde as montanhas terminavam, podiam ver a extremidade dos bosques. As áreas infestadas de estranguladores eram óbvias mesmo dessa altitude: cânceres amarelos brotando entre o verde-escuro.
Por quase uma hora voaram em silêncio, Dirk perdido em seus pensamentos, tentando ligar uma coisa à outra, e falhando. Até que finamente Gwen olhou para ele com um sorriso.
- Gosto de voar em aeromóveis - disse. - Mesmo neste. Faz com que me sinta livre e limpa, livre de todos os problemas. Sabe o que quero dizer?
Dirk assentiu.
- Sim. Você não é a primeira a dizer isso. Várias pessoas se sentem assim. Eu incluído.
- Sim - ela concordou. - Eu costumava levá-lo para voar, lembra? Em Ávalon? Voávamos por horas e horas, do amanhecer até o pôr do sol, e você ficava sentado com um braço para fora da janela, encarando a distância com esse olhar sonhador no rosto. - Sorriu novamente.
Ele se lembrava. Aquelas viagens tinham sido muito especiais. Eles nunca falavam muito, só olhavam um para o outro de tempos em tempos e, sempre que seus olhos se encontravam, sorriam. Era inevitável; não importava o quanto ele lutasse contra, aquele sorriso sempre vinha. Mas agora parecia terrivelmente longe e perdido.
- O que a fez pensar nisso? - ele perguntou.
- Você - ela respondeu, e fez um gesto. - Sentado aí, largado, com uma mão pendurada do lado. Ah, Dirk. Você é um trapaceiro, sabia? Acho que fez isso deliberadamente, para me fazer lembrar de Ávalon e sorrir, e querer abraçá-lo de novo. Bah.
E riram juntos.
E Dirk, quase sem pensar, deslizou em seu assento e colocou o braço ao redor dela. Ela olhou rapidamente para o rosto dele, então deu um ligeiro encolher de ombros, seu cenho franzido se desfez em um suspiro de resignação e, finalmente, em um sorriso relutante. E não se afastou dele.
Foram ver as cidades.
A cidade da manhã era uma tênue visão pastel incrustada em um amplo vale verde. Gwen aterrissou o aeromóvel no centro de uma de suas praças quadradas, e passearam por suas grandes avenidas por quase uma hora. Era uma cidade graciosa, esculpida em um delicado mármore rosado e pedra clara. As ruas eram largas e tinham curvas sinuosas, as construções baixas e de estruturas aparentemente frágeis de madeira polida e vidro tingido. Por todos os lados encontravam pequenos parques e grandes centros comerciais, e todo tipo de arte: esculturas, pinturas, murais nas calçadas e nas laterais das construções, jardins de pedra e árvores que eram esculturas vivas.
Mas agora os parques estavam desolados e encobertos, a grama azul-esverdeada crescia descontrolada. Trepadeiras negras serpenteavam pelas calçadas, os rodapés laterais estavam vazios, as esculturas arbóreas mais resistentes haviam adquirido formas grotescas com as quais seus criadores jamais sonharam.
Um rio azul que se movia lentamente dividia e subdividia a cidade, serpenteando de um lado para o outro em um curso tão sinuoso e tortuoso quanto as ruas que o margeavam. Gwen e Dirk sentaram-se perto da água por um momento, sob a sombra de uma passarela de madeira ornamentada, e observaram o reflexo do Satã Gordo flutuando vermelho e preguiçoso na água. E enquanto ficaram ali, ela contou para ele como a cidade fora um dia, na época do Festival, antes que qualquer um deles tivesse ido para Worlorn. O povo de Kimdiss construíra aquele lugar, ela disse, e o chamaram de Décimo-Segundo Sonho.
Talvez a cidade estivesse sonhando agora. Se fosse assim, este era seu último sono. Os salões abobadados ecoavam vazios, os jardins eram selvas lúgubres, próximas de se tornarem tumbas. Onde o riso certa vez enchera as ruas, agora só restava o sussurro farfalhante das folhas mortas sopradas pelo vento. Se Larteyn era uma cidade moribunda, Dirk refletiu enquanto estava sentado sob a passarela, então Décimo-Segundo Sonho era uma cidade morta.
- Era aqui que Arkin queria estabelecer nossa base de operações - Gwen contou. - Nós o vetamos, no entanto. Se ele e eu íamos trabalhar juntos, era nitidamente melhor que vivêssemos na mesma cidade, e Arkin queria que fosse em Décimo-Segundo Sonho. Eu me neguei, e não sei se ele já me perdoou. Se os kavalarianos construíram Larteyn como uma fortaleza, os kimdissianos fizeram sua cidade como uma obra de arte. Já foi mais bonita nos tempos antigos, entendo. Eles desmancharam as melhores construções e levaram as mais belas esculturas das praças quando o Festival acabou.
- Você votou por Larteyn? - Dirk perguntou. - Para viver lá?
Ela balançou a cabeça. Seu cabelo, solto agora, ondulou suavemente. Deu um sorriso para ele.
- Não - respondeu. - Jaan queria isso, e Garse. Eu... bem, eu não votaria por Décimo-Segundo Sonho tampouco, temo. Eu nunca poderia viver aqui. O aroma de decadência é muito forte. Concordo com Keats, você sabe. Nada é tão melancólico quanto a morte da beleza. Há mais beleza aqui do que em Larteyn, embora Jaan rosnasse se me ouvisse dizer isso. Então este é um lugar mais triste. Além disso, em Larteyn temos alguma companhia, ao menos, ainda que seja Lorimaar e os seus. Aqui não há ninguém além de fantasmas.
Dirk contemplou a água, onde o grande sol vermelho, esgotado e capturado, balançava assustadoramente para cima e para baixo no lento deslizar das ondas. E quase pôde ver os fantasmas dos quais ela falava, espectros que se apinhavam nas duas margens do rio e cantavam lamentos por coisas havia muito perdidas. E outro também, este um fantasma único: um barqueiro de Braque, avançando rio abaixo, empurrando um longo remo negro. Aquele barqueiro estava vindo por Dirk, se aproximando cada vez mais. E o barco negro que ele navegava estava baixo na água, repleto de vazio.
Então Dirk se levantou e puxou Gwen consigo, dizendo apenas que queria caminhar. E correram dos fantasmas, de volta à praça onde o aeromóvel cinzento aguardava.
Então partiram novamente, para um segundo interlúdio de vento, céu e silêncio pensativo. Gwen voou mais longe para o sul, e então para leste, e Dirk observava, meditava e permanecia quieto, e em intervalos ela olhava para ele e, sem nunca se dar conta, sorria.
Finalmente chegaram ao mar.
A cidade da tarde era construída ao longo da costa de uma baía recortada, onde as ondas verde-escuras rompiam contra um cais em decomposição. Antigamente era chamada de Musquel-Junto-ao-Mar, Gwen contou enquanto circundavam o local, em espirais lentas e contínuas. Embora tivesse sido erguida com as outras cidades de Worlorn, havia um ar mais antigo aqui. As ruas de Musquel eram serpentes com a espinha quebrada, ruas estreitas de paralelepípedos que se contorciam entre torres inclinadas de tijolos multicoloridos. Era uma cidade de tijolos. Tijolos azuis, tijolos vermelhos, amarelos, verdes, cor de laranja, tijolos pintados, listrados e malhados, tijolos unidos com uma argamassa negra como obsidiana, ou vermelha como o Satã sobre eles, unidos em loucos padrões conflitantes. Ainda mais vistosos eram os toldos de lona tingida nas bancas dos mercadores, que ainda se alinhavam nas ruas tortuosas e permaneciam tão abandonados quanto os píeres de madeira nos quais se encontravam.
Pousaram no píer que pareceu mais forte do que a maioria, escutando as ondas por um momento, e então entraram na cidade. Totalmente vazia e empoeirada. As ruas eram varridas pelo vento, as cúpulas e as torres esféricas estavam desertas; a poeira estava por todos os lados, multicolorida e sufocante. Musquel não era uma cidade de construção sólida, e agora estava tão morta quanto Décimo-Segundo Sonho.
- É primitiva - comentou Dirk, entre as ruínas. Estavam parados no cruzamento de duas ruas estreitas, onde um poço profundo havia sido cavado e cercado com pedra. Água negra brotava embaixo. - A sensação é pré-espacial, e os sinais dizem o mesmo sobre a cultura. Braque é assim, mas não neste grau. Eles têm um pouco de tecnologia antiga, pedaços aqui e outros ali que não são proibidos pela religião. Musquel dá a impressão de que nem isso teve.
Ela assentiu, passando a mão suavemente pela boca do poço, fazendo um monte de pó e pedregulhos despencar na escuridão. O jade-e-prata brilhou vermelho opaco em seu braço esquerdo, capturando o olhar de Dirk e fazendo-o estremecer e se questionar mais uma vez. O que era aquilo? Uma marca de escravo, ou um símbolo de amor, o quê? Mas colocou o pensamento de lado, relutante em considerá-lo.
- As pessoas que construíram Musquel tinham muito pouco conhecimento - ela estava dizendo. - Vieram da Colônia Esquecida, que algumas vezes é chamada de Cidade Esquecida pelos habitantes dos mundos exteriores, e sempre foi chamada de Terra por seu próprio povo. Em Alto Kavalaan, essas pessoas são chamadas de Povo Perdido. Quem são eles, como chegaram ao seu mundo, de onde vieram... - ela sorriu e deu de ombros. - Ninguém sabe. Sem dúvida, estavam aqui antes dos kavalarianos, e possivelmente antes do Mao Tse-tung, que, segundo a história, foi a primeira nave estelar humana a romper o Véu do Tentador. Os kavalarianos tradicionais certamente acreditam que todos do Povo Perdido são quase-homens e demônios hranganos, mas eles provaram que podem cruzar com outras espécies humanas de mundos mais conhecidos. Mas a Colônia Esquecida é, em grande parte, um globo solitário, sem muito interesse para o resto do espaço. Têm uma cultura da Idade do Bronze, pescadores em grande parte, que cuidam de si mesmos.
- Estou surpreso de que tenham vindo até aqui - Dirk falou -, ou se incomodado em construir uma cidade.
- Ah - ela respondeu, sorrindo e empurrando mais alguns pedregulhos soltos para dentro do poço em pequenos salpicos de água. - Mas todo mundo teve que construir uma cidade, todas as catorze culturas do mundo exterior. Essa era a idéia. Tocadolobo encontrou a Colônia Esquecida há alguns séculos, então Tocadolobo e Tober arrastaram algumas pessoas do Povo Perdido para cá. Eles nem tinham naves estelares próprias. Eram pescadores em seu planeta natal, então se tornaram pescadores aqui. Novamente foi Tocadolobo, com o Mundo do Oceano Vinhonegro, quem reservou os mares para eles. Pescavam com redes em pequenas embarcações, pequenos homens e mulheres negros, nus da cintura para cima, e fritavam os peixes em fossas abertas para os visitantes. Tinham bardos e cantores de rua para trazer alegria aos seus becos. Todos paravam em Musquel durante o Festival para ouvir seus estranhos mitos, comer peixe frito e alugar barcos. Mas não acho que o Povo Esquecido gostava muito da cidade. Menos de um mês após o término do Festival, e todos haviam partido. Nem mesmo desarmaram os toldos, e ainda é possível encontrar facas de peixe, roupas e um ou outro osso se você vasculhar nas construções.
- Você já encontrou algo?
- Não. Mas ouvi histórias. Kirak Açorrubro Cavis, o poeta que vive em Larteyn, ficou aqui uma vez, vagou pela cidade e escreveu algumas canções.
Dirk olhou ao seu redor, mas não havia nada para ver. Tijolos desbotados e ruas vazias, janelas sem vidro como as órbitas de milhares de olhos cegos, toldos pintados que batiam ruidosamente com o vento. Nada.
- Outra cidade de fantasmas - ele comentou.
- Não - Gwen discordou. - Não, eu não acho. O Povo Perdido nunca deu sua alma para Musquel, ou para Worlorn. Seus fantasmas foram para casa com eles.
Dirk estremeceu, e a cidade repentinamente pareceu mais vazia do que no momento anterior. Mais vazia do que vazia. Era uma idéia estranha.
- Larteyn é a única cidade que ainda é habitada? - perguntou.
- Não - ela respondeu, afastando-se do poço. Andaram juntos por uma rua estreita, em direção à costa. - Não, eu lhe mostrarei vida agora, se você quiser. Vamos.
De volta ao ar, seguiram em direção à penumbra crescente. Haviam consumido a maior parte da tarde para chegar a Musquel e andar por lá; o Satã Gordo estava baixo no horizonte ocidental, e um de seus quatro assistentes amarelos já tinha mergulhado fora da vista. Era crepúsculo novamente, de fato tanto quando em aparência.
Muito inquieto, Dirk assumiu os controles dessa vez, enquanto Gwen permaneceu sentada ao seu lado, com o braço repousando suavemente sobre o dele, dando orientações breves. A maior parte do dia já se fora, e ele tinha tanto a dizer, tanto a perguntar, tantas coisas para decidir. Mesmo assim, não fizera nada disso. Em breve, no entanto, prometeu a si mesmo enquanto voavam. Em breve.
O aeromóvel ronronava suavemente, quase inaudível, sob seu toque gentil. O solo ficava mais escuro embaixo deles, e os quilômetros passavam velozes. Vida, Gwen lhe dissera, seria encontrada adiante, a oeste, muito a oeste, na direção do pôr do sol.
A cidade do entardecer era uma única construção prateada, com a base fincada nas colinas muito abaixo deles, e o topo nas nuvens dois quilômetros acima. Era uma cidade de luz, com flancos metálicos, sem janelas e que irradiava um brilho branco com tons rubros. Cintilando, piscando, a luz escalava a parede curva em ondas, começando bem lá embaixo, onde a cidade estava profundamente ancorada na rocha primordial, então subia e ganhava resplendor e intensidade ao mesmo tempo em que a cidade se erguia e se estreitava, como uma imensa agulha. Mais rápida e mais alta, a onda de luz ascendia por toda aquela incrível altura, até alcançar o topo prateado coberto de nuvens e um estalido de glória ofuscante. E, então, três ondas atrasadas já começavam a fazer o mesmo percurso.
- Desafio - Gwen nomeou a cidade enquanto se aproximavam. Seu nome e sua intenção. Fora construída por todos os urbanistas de di-Emerel, cujas cidades natais eram torres de aço negro fincadas em planícies ondulantes. Cada cidade emereliana era uma nação-estado, cada uma delas em uma única torre, e a maioria dos emerelianos nunca deixava o prédio em que havia nascido (embora aqueles que o fizessem, disse Gwen, freqüentemente se tornassem os maiores andarilhos de todo o espaço). Desafio era todas aquelas torres emerelianas em uma só, branco-prateada, em vez de negra, duas vezes mais altiva e três vezes mais alta, a filosofia arcológica de di-Emerel encarnada em metal e plástico, movida à fusão nuclear, automática, computadorizada e autorreparadora. Os emerilianos se vangloriavam de que a cidade era imortal, a prova final de que as glórias da tecnologia da Orla (ou da tecnologia emereliana, em todo caso) brilhavam com não menos fulgor do que as de Nova Holme, de Ávalon, ou mesmo da própria Antiga Terra.
Havia escuras ranhuras horizontais no corpo da cidade - pistas de aterrissagem, separadas por dez níveis de distância umas das outras. Dirk se dirigiu para uma delas, e, quando se aproximou, a ranhura negra se iluminou. A abertura estava facilmente localizada a dez metros de altura; ele não teve problemas para pousar na espaçosa pista do centésimo nível.
Quando desceram do aeromóvel, uma voz profunda e suave falou de lugar algum.
- Bem-vindos - disse. - Sou a Voz do Desafio. Posso ajudar vocês?
Dirk olhou de relance por sobre o ombro, e Gwen riu para ele.
- O cérebro da cidade - ela explicou. - Um supercomputador. Eu lhe disse que esta cidade ainda vivia.
- Posso ajudar vocês? - a Voz repetiu. Vinha das paredes.
- Talvez - Dirk se aventurou. - Acho que estamos provavelmente com fome. Pode nos alimentar?
A Voz não respondeu, mas um painel deslizou em uma parede a vários metros e um silencioso veículo acolchoado saiu pela abertura e parou diante deles. Eles entraram no veículo, que se moveu em direção a outra prestativa parede.
Foram levados em suaves pneus-balão através de uma sucessão de imaculados corredores brancos, passando por incontáveis fileiras de portas numeradas, enquanto uma música tocava serenamente em volta deles. Dirk notou rapidamente que as luzes brancas faziam um brusco contraste com o opaco céu crepuscular de Worlorn, e instantaneamente os corredores se tornaram de um azul suave e calmo.
O carro de gordos pneus os deixou em um restaurante, e um robô-garçom que soava muito parecido à Voz lhes ofereceu os cardápios e as cartas de vinho. As duas seleções eram extensas, não limitadas à culinária de di-Emerel ou mesmo dos mundos exteriores, mas incluía famosos pratos e vinhos antigos de todos os mundos devastados do reino humano, até mesmo alguns que Dirk nunca ouvira falar. No menu, cada prato tinha seu mundo de origem impresso em letras pequenas. Refletiram sobre a seleção por um longo tempo. Finalmente, Dirk escolheu dragão de areia fervido em manteiga, do Mundo de Jamison, e Gwen pediu ovas azuis com queijo, da Antiga Posseidon.
O vinho que escolheram era límpido e branco. O robô o trouxe congelado em um cubo de gelo, então quebrou a pedra diante deles e, de alguma forma, a bebida já estava líquida e ainda bem gelada. É assim que deve ser servido, a Voz insistiu. O jantar veio em pratos quentes de prata e ossos. Dirk puxou uma perna com garras de sua entrada, tirou a casca, e provou a carne branca e tenra.
- Está incrível - disse, acenando com a cabeça em direção ao prato. - Vivi no Mundo de Jamison por um tempo, e aqueles jamisianos realmente amam seus dragões de areia recém-fervidos, e este está tão bom quanto qualquer um de lá. Congelado? Congelado e trazido para cá? Diabos, os emerelianos devem ter precisado de uma frota para trazer toda a comida que necessitavam para este lugar.
- Não é congelada - veio a resposta. Não era Gwen, embora ela o encarasse com um sorriso divertido. A Voz respondeu para ele. - Antes do Festival, o navio mercantil Placa Azul, de di-Emerel, visitou todos os mundos que conseguiu alcançar, coletando e preservando amostras de seus alimentos mais finos. A viagem, longamente planejada, levou quarenta e três anos-padrão, comandada por quatro capitães e a mesma quantidade de tripulações. Finalmente, o navio veio para Worlorn, e nas cozinhas e biotanques do Desafio as amostras coletadas foram clonadas e reclonadas para alimentar as multidões. Assim, os peixes e os pães foram multiplicados, não por um falso profeta, mas pelos cientistas de di-Emerel.
- Soa muito convencido. - Gwen comentou com uma risadinha.
- Soa como um discurso padrão - Dirk respondeu. Então deu de ombros e voltou para seu jantar, assim como Gwen. Os dois estavam sozinhos, exceto pelo robô-garçom e pela Voz, no centro do restaurante construído para comportar centenas de pessoas. Tudo ao redor deles estava vazio mas imaculado, outras mesas esperando com toalhas vermelho-escuras e jogos de jantar de prata brilhante. Os clientes haviam partido havia décadas; mas a Voz e a cidade tinham uma paciência infinita.
Depois, enquanto tomavam café (negro e grosso, com creme e especiarias, uma mistura de Ávalon e memórias agradáveis), Dirk sentiu-se tranqüilo e relaxado, talvez mais confortável do que estivera desde que chegara a Worlorn. Jaan Vikary e o jade-e-prata - que brilhava escuro e belo sob as luzes tênues do restaurante, primorosamente trabalhado, mas estranhamente drenado de sua ameaça e significado - haviam diminuído de importância agora que estava novamente com Gwen. Diante dele, enquanto bebia de uma xícara de porcelana branca e sorria com uma expressão sonhadora e distante, ela parecia muito acessível, muito com a Jenny que ele conhecera e amara certa vez, a dama de sua joia-sussurrante.
- Agradável - ele comentou, com um aceno de cabeça que indicava tudo ao redor deles.
E Gwen acenou de volta para ele.
- Agradável - concordou, sorrindo.
Dirk a desejava, a Guinevere dos grandes olhos verdes e do cabelo negro sem-fim, aquela que havia amado, sua alma-gêmea perdida.
Ele se inclinou para a frente e encarou sua xícara. Não havia presságios no café. Tinha que falar com ela.
- Está sendo uma noite agradável - disse. - Como em Ávalon. - Quando ela murmurou, concordando novamente, ele continuou. - Sobrou alguma coisa, Gwen?
Ela o olhou fixamente e tomou um gole do café.
- Não é uma pergunta justa, Dirk, você sabe. Sempre sobra alguma coisa. Se o que você teve era real, para começar. Se não, bem, então não importa. Mas, se era real, então resta alguma coisa, um pouco de amor, uma taça de ódio, desespero, ressentimento, luxúria. O que quer que seja. Mas alguma coisa.
- Não sei - Dirk t'Larien disse, suspirando. Baixou o olhar, introspectivo. - Talvez você seja a única realidade que tive, então.
- Triste - ela disse.
- Sim - respondeu. - Acho que sim. - Ergueu os olhos. - Para mim sobrou muita coisa, Gwen. Amor, ódio, ressentimento, tudo isso. Como você disse. Luxúria. - Deu uma risada.
Gwen apenas sorriu.
- Triste - ela disse novamente.
Ele não estava disposto a deixar para lá.
- E você? Alguma coisa, Gwen?
- Sim. Não posso negar isso. Alguma coisa. E tem aumentado.
- Amor?
- Você está me pressionando - ela disse gentilmente, abaixando sua xícara. O robô-garçom ao seu lado encheu-a novamente com café, sempre cremoso e com especiarias. - Pedi para não fazer isso.
- Tenho que fazer - ele disse. - Já é difícil o suficiente ficar tão perto de você e falar sobre Worlorn ou sobre os costumes kavalarianos ou mesmo sobre caçadores. Não é sobre isso que quero falar!
- Eu sei. Dois antigos amantes juntos, conversando. É uma situação comum e uma tensão comum. Ambos assustados, sem saber se devem tentar abrir velhos portões novamente, sem saber se o outro quer despertar esses sentimentos adormecidos ou se prefere deixar para lá. Cada vez que lembro de alguma coisa de Ávalon e estou prestes a fazer algum comentário sobre isso, eu me pergunto, ele quer que eu fale sobre isso, ou está rezando para que eu não faça?
- Imagino que depende do que você vai dizer. Uma vez tentei começar tudo de novo. Você se lembra? Logo depois que terminamos. Enviei minha jóia-sussurrante para você. Você nunca respondeu, nunca veio. - Sua voz era equilibrada, com um leve toque de reprovação e arrependimento, mas sem raiva. De alguma forma, sua raiva havia se dissipado nesse exato momento.
- Você já imaginou por quê? - Gwen falou. - Eu recebi a joia e chorei. Ainda estava sozinha naquela época, não tinha conhecido Jaan, e queria alguém desesperadamente. Eu teria voltado para você se me chamasse.
- Eu chamei você. E você não veio.
Um sorriso triste.
- Ah, Dirk. A jóia-sussurrante veio em uma caixinha, e junto dela havia um bilhete. "Por favor", o bilhete dizia, "volte para mim agora. Preciso de você, Jenny". Era isso que estava escrito. Eu chorei e chorei. Se você estivesse escrito "Gwen", se você apenas amasse Gwen, a mim. Mas não, era sempre Jenny, mesmo depois de tudo, mesmo então.
Dirk se lembrou e fez uma careta.
- Sim - admitiu depois de um curto silêncio. - Acho que escrevi isso. Sinto muito. Nunca entendi. Mas agora entendo. É tarde demais?
- Eu disse isso. No bosque. É tarde demais, Dirk, está tudo morto. Você nos machucará se pressionar.
- Tudo morto? Você disse que restou algo e que está crescendo. Disse isso agora mesmo. Decida, Gwen. Não quero ferir você ou eu. Mas quero...
- Eu sei o que você quer. Não pode ser. Acabou.
- Por quê? - ele perguntou. Apontou através da mesa, para o bracelete dela. - Por causa disso? Jade-e-prata por todo o sempre, é isso?
- Talvez - ela disse. Sua voz vacilou, insegura. - Não sei. Nós... isso é, eu...
Dirk se lembrou de todas as coisas que Ruark lhe contara.
- Sei que não é fácil falar sobre isso - ele falou cuidadosa e gentilmente. - E eu prometi esperar. Mas algumas coisas não podem esperar. Você diz que Jaan é seu marido, certo? O que é Garse? O que betheyn significa?
- Esposa-escrava - ela disse. - Mas você não entende. Jaan é diferente dos outros kavalarianos, mais forte, mais sábio e mais decente. Ele está mudando as coisas, sozinho. Os velhos vínculos, de betheyn com o alto-senhor, nossos vínculos não são assim. Jaan não acredita nisso, não mais do que acredita em caçar quase-homens.
- Ele acredita em Alto Kavalaan - Dirk lembrou - e no código de honra. Talvez ele seja atípico, mas ainda é um kavalariano.
Foi a coisa errada para se dizer. Gwen apenas sorriu para ele se recompôs.
- Nossa - ela disse. - Agora você falou como Arkin.
- Falei? Talvez Arkin esteja certo, no entanto. Uma outra coisa. Você diz que Jaan não acredita em vários dos antigos costumes, certo?
Gwen assentiu.
- Muito bem. E quanto a Garse, então? Não tive muita chance de falar com ele. Devo supor que Garse é igualmente esclarecido?
Aquilo a fez parar.
- Garse... - começou. Então parou e balançou a cabeça em dúvida. - Bem, Garse é mais conservador.
- Sim - disse Dirk. Repentinamente pareceu compreender tudo. - Sim, acho que é, e essa é grande parte do seu problema, não é? Em Alto Kavalaan, não é homem e mulher. Não, é homem e homem, e talvez mulher, mas mesmo então ela não é tão terrivelmente importante. Você ama Jaan, mas não se importa o mesmo tanto com Garse Janacek, se importa?
- Tenho muita afeição por...
- Tem?
O rosto de Gwen endureceu.
- Pare - ela disse.
A voz dela o assustou. Ele recuou, repentina e doentiamente consciente da maneira que estava inclinado sobre a mesa, pressionando, empurrando, apontando, atacando e insultando-a, ele que viera para cuidar dela e ajudá-la.
- Sinto muito - murmurou.
Silêncio. Ela o olhava fixamente, o lábio inferior tremendo, enquanto se recompunha e recuperava as forças.
- Você está certo - ela finalmente falou. - Em parte, ao menos. Eu não... bem... não estou inteiramente feliz com meu grupo. - Forçou uma gargalhada irônica. - Acho que me engano muito. Uma má idéia, enganar a si mesmo. Todo mundo faz isso, no entanto, todo mundo. Eu visto o jade-e-prata e digo para mim mesma que sou mais do que uma esposa-escrava, mais do que outra mulher kavalariana. Por quê? Só por que Jaan me diz isso? Jaan Vikary é um bom homem, Dirk, ele realmente é, de muitas maneiras é o melhor homem que já conheci. Eu o amava, talvez ainda o ame. Não sei. Estou muito confusa agora. Mas, amando-o ou não, eu devo a ele. Dívidas e obrigações, esses são os laços kavalarianos. Amor é apenas algum que Jaan conheceu em Ávalon, e não estou certa se já aprendeu a dominar bem esse sentimento. Eu teria sido seu teyn, se pudesse. Mas ele já tinha um teyn. Além disso, nem mesmo Jaan iria tão longe contra os costumes de seu mundo. Você ouviu o que ele disse sobre os duelos, e tudo porque ele fez uma pesquisa em alguns bancos de dados de computadores antigos e descobriu que um dos heróis populares kavalarianos tinha tetas. - Sorriu sombriamente. - Imagine o que teria acontecido se ele me tomasse como teyn! Ele teria perdido tudo, absolutamente tudo. Jadeferro é relativamente tolerante, sim, mas ainda serão necessários séculos até que o grupo esteja pronto para isso. Nenhuma mulher jamais usou ferro-e-pedrardente.
- Por quê? - Dirk falou. - Não entendo. Todos vocês ficam fazendo esses comentários... sobre mulheres parideiras, esposas- -escravas e mulheres escondidas nas cavernas com medo de sair para fora, toda essa coisa. E eu continuo sem acreditar nelas. Como Alto Kavalaan pode estar tão distorcido? O que eles têm contra as mulheres? Por que é tão crítico que a fundadora de Jadeferro seja uma mulher?
Gwen lhe deu um sorriso amarelo e esfregou as têmporas gentilmente com as pontas dos dedos, como se tivesse uma dor de cabeça que quisesse espantar.
- Você devia ter deixado Jaan terminar a história - ela respondeu. - Então saberia tanto quanto nós. Ele estava apenas se aquecendo. Nem chegou até a Praga Dolorosa - suspirou. - É tudo uma história muito longa, Dirk, e neste momento não tenho a maldita energia para isso. Espere até voltarmos para Larteyn. Eu encontrarei uma cópia da tese de Jaan e você poderá lê-la com seus próprios olhos.
- Tudo bem - Dirk concordou. - Mas há algumas coisas que não serei capaz de ler em nenhuma tese. Há alguns minutos você disse que não tinha certeza se ainda amava Jaan. Você certamente não ama Alto Kavalaan. Acho que odeia Garse. Então, por que está fazendo tudo isso consigo mesma?
- Você leva jeito para fazer perguntas desagradáveis - ela disse amargamente. - Mas antes de lhe responder, deixe-me corrigi-lo em alguns pontos. Posso odiar Garse, como você diz. Algumas vezes tenho quase certeza de que odeio Garse, embora creia que Jaan morreria se me ouvisse dizer isso. Em outras vezes, contudo... eu não estava mentindo antes, quando disse para você que tenho uma considerável afeição por ele. Assim que cheguei a Alto Kavalaan, era totalmente cega, inocente e vulnerável. Jaan havia me explicado tudo de antemão, é claro, muito pacientemente, muito minuciosamente, e eu havia aceitado. Eu era de Ávalon, afinal de contas, e ninguém pode ser mais sofisticado do que em Ávalon, pode? Não, a menos que você seja um terráqueo. Eu estudara todas as estranhas culturas que a humanidade espalhara entre as estrelas e sabia que qualquer um que entrava em uma nave espacial devia estar preparado para se adaptar a sistemas sociais e moralidades completamente diferentes dos seus. Eu sabia que costumes sexuais-familiares variam e que Ávalon não é necessariamente mais sábio do que Alto Kavalaan nesta área. Eu era muito esperta, pensava. Mas não estava pronta para os kavalarianos, oh, não. Por mais que viva, jamais me esquecerei por um segundo do medo e do trauma do meu primeiro dia e da minha primeira noite nas fortalezas de Jadeferro, como betheyn de Jaan Vikary. Especialmente a primeira noite. - Ela riu. - Jaan tinha me avisado, é claro, e... que inferno, eu não estava pronta para ser partilhada. O que posso dizer? Foi ruim, mas sobrevivi. Garse me ajudou. Ele estava honestamente preocupado comigo, e muito mais com Jaan. Seria possível dizer que foi terno. Confiei nele; ele escutou e foi cuidadoso. E, na manhã seguinte, o abuso verbal começou. Eu fiquei assustada e machucada; Jaan ficou desconcertado e incrivelmente zangado. Mandou Garse com um empurrão para o outro lado da sala da primeira vez que ele me chamou de cadela betheyn. Garse ficou quieto por um tempo depois disso. Ele me dá trégua com freqüência, mas nunca para. Ele é verdadeiramente notável, de certa forma. Teria desafiado e matado qualquer kavalariano que me insultasse a metade do que ele faz. Sabe que suas piadas irritam Jaan e provocam terríveis brigas... ou pelo menos provocavam. A essa altura, Jaan se tornou indiferente a tudo isso. Mesmo assim, Garse persiste. Talvez não possa evitar, ou talvez me deteste realmente, ou talvez simplesmente goste de provocar dor. Se for isso, não lhe dei muitas alegrias nos últimos anos. Uma das primeiras coisas que decidi foi que não o deixaria me fazer chorar novamente. E não deixei. Mesmo quando ele chega e diz alguma coisa que me faz querer arrancar sua cabeça com um machado, eu apenas sorrio, mostrando os dentes, e tento pensar em algo desagradável para responder para ele. Uma ou duas vezes consegui tirá-lo dos trilhos. Normalmente, fico me sentindo como um inseto esmagado. Mesmo assim, a despeito de tudo isso, há outros momentos também. Tréguas, pequenos cessar-fogo em nossa guerra sem-fim, momentos de assombroso calor e compaixão. Muitos deles à noite. Esses momentos sempre me surpreendem quando acontecem. São muito intensos. Uma vez, acredite ou não, disse a Garse que o amava. Ele riu de mim. Ele não me amava, disse em voz alta, eu simplesmente era sua cro-betheyn e ele me tratava como era obrigado a tratar pelos laços que existiam entre nós. Essa foi a última vez que quase chorei. Lutei, lutei e venci. Não chorei. Apenas gritei alguma coisa para ele e saí correndo pelo corredor. Vivemos no subsolo, você sabe. Todo mundo vive no subsolo em Alto Kavalaan. Não estava vestindo muita coisa além do meu bracelete, e corri como louca, e finalmente um homem tentou me parar... um bêbado, um idiota, um cego que não pôde ver o jade-e-prata, não sei. Eu estava tão furiosa que puxei sua arma do coldre e esmaguei seu rosto com um golpe, era a primeira vez que batia em outro ser humano com raiva, e bem quando Jaan e Garse chegaram. Jaan parecia calmo, mas estava muito transtornado. Garse estava quase feliz, e pedindo por uma briga. Como se o homem que eu havia derrotado não tivesse sido insultado o suficiente, Garse ainda me disse para pegar todos os dentes que eu arrancara para devolvê-los, pois eu já tinha dentes suficientes. Tiveram sorte de que esse comentário não deu origem a um duelo.
- Como inferno você se envolveu em uma situação dessas, Gwen? - Dirk quis saber. Estava se esforçando para que sua voz não se quebrasse. Estava zangado com ela, ferido por ela e, mesmo assim, estranhamente (ou talvez não tão estranhamente) exultante. Era tudo verdade, tudo o que Ruark lhe dissera. O kimdissiano era um bom amigo dela e seu confidente; apesar disso, ela tinha buscado por ele. Sua vida era uma miséria, ela era uma escrava, e ele podia consertá-la, ele. - Você devia ter uma idéia de como seria.
Ela deu de ombros.
- Menti para mim mesma - disse - e deixei Jaan mentir para mim, embora acho que ele honestamente acredita em todas as falsidades amorosas que me diz. Se pudesse começar de novo... mas não posso. Eu estava pronta para ele, Dirk, precisava dele e o amei. Ele não tinha ferro-e-pedrardente para me dar. Isso ele já dera para outra pessoa, então me deu jade-e-prata, e eu aceitei só para ficar perto dele, com apenas uma vaga noção do que isso significava. Eu perdera você havia não muito tempo. Não queria que Jaan se fosse também. Então coloquei o belo braceletinho e disse em voz bem alta: "sou mais do que uma betheyn", como se fizesse diferença. Dê um nome a uma coisa e de algum modo ela se transformará naquilo. Para Garse, sou betheyn de Jaan e sua cro-betheyn, e isso é tudo. Os nomes definem os laços e as obrigações. O que mais poderia haver? Para qualquer outro kavalariano é a mesma coisa. Quando tento sair disso, ultrapassar esse nome, Garse está ali, zangado, gritando betheyn! Para mim. Jaan é diferente, apenas Jaan, e algumas vezes não posso evitar e começo a me perguntar como ele realmente se sente. - Colocou as mãos sobre a toalha da mesa e fechou os punhos, lado a lado. - A mesma maldita coisa, Dirk. Você queria me transformar em Jenny, e eu me salvei rejeitando o nome. Mas, como uma tola, aceitei o jade-e-prata, e agora sou esposa-escrava e nenhuma das minhas negações pode mudar isso. A mesma maldita coisa! - A voz dela estava estridente, seus punhos fechados com tanta força que as juntas dos dedos estavam ficando brancas.
- Podemos mudar isso - Dirk disse rapidamente. - Volte comigo. - Ele soou vazio, sem esperança, desesperado, triunfante, preocupado; seu tom era tudo isso ao mesmo tempo.
No início, Gwen não respondeu. Dedo por dedo, muito lentamente, ela abriu as mãos, e encarou-as solenemente, respirando profundamente, virando as mãos uma vez e outra, como se fossem algum estranho artefato colocado diante dela para inspeção. Então as espalmou na mesa e empurrou, ficando em pé.
- Por quê? - perguntou, e o calmo controle retornara à sua voz. - Por quê, Dirk? Para que você possa me transformar em Jenny novamente? É por isso? Porque que eu o amei uma vez, porque algo pode ter ficado?
- Sim! Não, quero dizer. Você me confunde. - Ele também se levantou.
Ela sorriu.
- Ah, mas eu também amei Jaan certa vez, mais recentemente do que você. E com ele, agora, há outros laços, todas as obrigações de jade-e-prata. Com você, bem, apenas lembranças, Dirk.
Quando ele não respondeu - ficou parado, esperando -, Gwen se dirigiu para a porta. Ele a seguiu.
O robô-garçom os interceptou e bloqueou o caminho deles, com seu rosto de metal ovoide e sem expressão.
- A conta - ele disse. - Preciso do número de suas contas do Festival.
Gwen franziu o cenho.
- Conta Larteyn, Jadeferro 797-742-677 - replicou. - Registre as duas refeições neste número.
- Registrado - o robô disse, enquanto saía do caminho.
Atrás deles, o restaurante ficou escuro.
A Voz deixara o carro esperando por eles. Gwen lhe disse para levá-los de volta à pista de aterrissagem, e o veículo começou a se mover por corredores que repentinamente se inundaram de cores vivas e música alegre.
- O maldito computador registrou a tensão em nossa voz - ela disse, um pouco zangada. - Agora está tentando nos animar.
- Não está fazendo um trabalho muito bom - Dirk respondeu com um sorriso. Então completou - Obrigado pela refeição. Converti meus padrões para moeda do Festival antes de chegar, mas temo não ter ganhado muito com o câmbio.
- Jadeferro não é pobre - Gwen disse. - E não há muito que ser pago em Worlorn de qualquer modo.
- Humm. Sim. Nunca pensei que houvesse, até agora.
- Programas do Festival - Gwen explicou. - Esta é a única cidade que ainda funciona desta maneira. Todas as outras estão fechadas. Uma vez por ano, di-Emerel manda um enviado para limpar todas as contas dos bancos. Embora logo chegue ao ponto de que a viagem custará mais do que ele arrecada.
- Estou surpreso de que ainda não tenha acontecido.
- Voz! - ela disse. - Quantas pessoas vivem em Desafio hoje?
As paredes responderam.
- Atualmente tenho trezentos e nove residentes legais e quarenta e dois convidados, incluindo vocês. Vocês podem, se quiserem, se tornar residentes. Os preços são bastante razoáveis.
- Trezentos e nove? - Dirk surpreendeu-se. - Onde?
- Desafio foi construída para abrigar vinte milhões - Gwen explicou. - Você dificilmente pode esperar dar de cara com um deles, mas estão aqui. Nas outras cidades também, embora não tantos quanto em Desafio. A vida é mais fácil aqui. A morte seria fácil também, se os altos-senhores de Braith alguma vez pensassem em começar a caçar nas cidades, em vez de nos bosques. Esse sempre foi o grande medo de Jaan.
- Quem são eles? - Dirk quis saber, curioso. - Como vivem? Não entendo. Desafio não perde uma fortuna a cada dia?
- Sim. Uma fortuna em energia, jogada no lixo, desperdiçada. Mas esse é o ponto central de Desafio, de Larteyn e de todo o Festival. Desperdício, um desperdício descomunal, para provar que a Orla era rica e forte, desperdício em uma escala que o reino humano jamais conhecera antes, um planeta inteiro moldado e então abandonado. Você vê? Quanto a Desafio, bem, verdade seja dita, a vida da cidade é um movimento vazio, agora. Ela se auto-alimenta de reatores de fusão e descarrega energia em fogos de artifício que ninguém vê. Colhe toneladas de comida todos os dias, com suas imensas máquinas agrícolas, mas ninguém come, exceto um punhado de ermitões, fanáticos religiosos, crianças perdidas que se tornaram selvagens, qualquer que seja a escória que sobrou do Festival. A cidade envia um barco para Musquel todos os dias, para buscar peixe. Não há peixe algum, é claro.
- A Voz não reescreve o programa?
- Ah, o xis da questão! A Voz é idiota. Não pensa realmente, não consegue programar a si mesma. Oh, sim, os emerelianos queriam impressionar as pessoas, e a Voz é imponente, é claro. Mas, na realidade, é muito primitiva se comparada aos computadores da Academia, em Ávalon, ou às Inteligências Artificiais da Antiga Terra. Não pode pensar, ou fazer mudanças. Faz o que lhe foi dito para fazer, e os emerelianos lhe disseram para seguir em frente, para suportar o frio o máximo que for capaz. E o computador fará isso. - Ela olhou para Dirk. - Como você. Insiste muito depois que sua persistência perdeu todo o sentido e o significado, segue em frente, para nada, depois que tudo está morto.
- Oh - exclamou Dirk. - Mas até que tudo esteja morto, você tem que seguir. Este é o ponto, Gwen. Não há outro jeito, há? Prefiro admirar a cidade, mesmo que ela seja a grande insensatez que você diz.
Ela balançou a cabeça.
- Você devia mesmo.
- E ainda há mais - ele continuou. - Você enterra tudo rápido demais, Gwen. Worlorn pode estar morrendo, mas ainda não está morto. E nós, bem, não temos que estar mortos também. O que você disse no restaurante, sobre Jaan e eu, acho que deveria pensar sobre isso. Decida o que sobrou para mim, para ele. Quão pesado este bracelete é no seu braço - ele apontou para a peça de jade-e-prata - e de que nome você gosta mais, ou mesmo quem tem mais possibilidade para dar a você seu próprio nome. Vê? Então, depois me diga o que está vivo e o que está morto!
Ele se sentiu muito satisfeito com seu pequeno discurso. Certamente, pensou, ela veria que ele podia deixar Jenny de lado e deixá-la ser Gwen com mais facilidade do que Jaantony Vikary poderia torná-la uma teyn feminina, em vez de uma mera betheyn. Parecia muito claro. Mas ela apenas olhou para ele, sem dizer nada, até que chegaram ao aeromóvel.
Então ela saiu do veículo acolchoado.
- Quando nós quatro escolhemos onde viveríamos em Worlorn, Garse e Jaan votaram por Larteyn, e Arkin por Décimo-Segundo Sonho - ela disse. - Eu não votei por nenhuma das duas. Nem por Desafio, apesar de toda a sua vitalidade. Não gosto de viver em um labirinto. Quer saber o que está morto e o que está vivo? Venha, então, vou lhe mostrar minha cidade.
Foram para fora mais uma vez, Gwen lacônica e silenciosa atrás dos controles, o repentino frio do ar da noite ao redor deles, a brilhante agulha de Desafio desaparecendo atrás deles. Agora era a profunda escuridão novamente, como havia sido na noite em que o Tremor de Inimigos Esquecidos trouxera Dirk t'Larien para Worlorn. Apenas uma dúzia de estrelas solitárias balançava no céu, e metade delas estava oculta por nuvens turbulentas. Todos os sóis haviam se posto.
A cidade da noite era vasta e intrincada, com apenas algumas luzes dispersas rasgando a escuridão que caíra sobre ela, como se uma pálida joia tivesse sido colocada em um macio feltro negro. Entre todas as cidades, era a única construída nos bosques além da cadeia de montanhas, e pertencia àquele lugar, entre as florestas de estranguladores, árvores-fantasmas e viúvos azuis. A partir da escuridão da mata, suas finas torres brancas se levantavam como espectros em direção às estrelas, ligadas por graciosas pontes penseis que reluziam como teias de aranhas congeladas. Cúpulas baixas se erguiam como vigias solitários entre uma rede de canais cujas águas capturavam as luzes das torres e o brilho das raras estrelas distantes, e circulando a cidade havia uma série de construções estranhas que pareciam mãos descarnadas e angulosas tentando agarrar o céu. As árvores - e como havia árvores - eram do mundo exterior; não havia grama, apenas grossos tapetes de musgo fosforescente que irradiavam um fulgor opaco.
E a cidade tinha uma canção.
Não era como nenhuma música que Dirk já ouvira. Era inquietante, selvagem e quase inumana, e se elevava, caía e deslocava-se constantemente. Era uma escura sinfonia do vazio, das noites sem estrelas e dos sonhos conturbados. Era feita de gemidos, sussurros e uivos, e uma estranha nota baixa que só podia ser o som da tristeza. Com tudo isso, era música.
Dirk olhou para Gwen, maravilhado.
- Como?
Ela escutava enquanto dirigia, mas a pergunta dele arrancou-a de seus acordes flutuantes e a fez sorrir de leve.
- Escuralba construiu esta cidade, e os escuralbinos são um povo estranho. Há um vão nas montanhas. Os guardiões do tempo fizeram os ventos soprarem por ele. Então construíram as torres, e em cima de cada uma delas há uma abertura. O vento toca a cidade como um instrumento. A mesma canção, uma vez e outra. Os aparelhos de controle do tempo guiam os ventos e, a cada mudança, algumas torres soam suas notas, enquanto outras ficam em silêncio. A música é uma sinfonia escrita em Escuralba há muitos séculos, por uma compositora chamada Lamiya-Bailis. Um computador a toca, eles dizem, fazendo funcionar as máquinas de vento. A coisa estranha nisso tudo é que os escuralbinos nunca usaram muito os computadores e têm pouca tecnologia. Outra história era popular durante os dias do Festival. Uma lenda, dizem. Ela afirma que Escuralba era um mundo sempre perigosamente no limite da sanidade, e que a música de Lamiya-Bailis, a maior das sonhadoras de Escuralba, empurrou a cultura inteira para a loucura e o desespero. Em punição, dizem, o cérebro da compositora foi mantido vivo, e pode agora ser encontrado nas profundezas sob as montanhas de Worlorn, conectado às máquinas de vento e tocando sua própria obra-prima uma vez após a outra, para sempre. - Ela estremeceu. - Ou, pelo menos, até que a atmosfera congele. Nem mesmo os guardiões do tempo de Escuralba podem parar isso.
- Isso... - Dirk, perdido na canção, não conseguia encontrar as palavras. - Isso se encaixa, de algum modo - disse, finalmente. - Uma canção para Worlorn.
- Se encaixa agora. - Gwen concordou. - É uma canção do crepúsculo e da noite que chega, com nenhum amanhecer novamente, jamais. Uma canção de finais. No auge dos dias do Festival, a música estava fora de lugar. Kryne Lamiya (este é o nome da cidade, Kryne Lamiya, embora seja freqüentemente chamada de Cidade Sereia, do mesmo modo que Larteyn era chamada de Fortaleza de Fogo), bem, nunca foi um lugar popular. Parece grande, mas na realidade não é. Foi construída para abrigar apenas cem pessoas, e nunca esteve com mais de um quarto de sua lotação. Como a própria Escuralba, suponho. Quantos viajantes já foram para Escuralba, bem na margem do Grande Mar Negro? E quantos vão para lá no inverno, quando o céu de Escuralba é quase totalmente vazio, com nada para ver além da luz de algumas galáxias muito distantes? Não muitos. É necessário um tipo de gente muito peculiar para isso. Aqui também, para amar Kryne Lamiya. As pessoas dizem que a música as perturba. E nunca para. Os escuralbinos não fizeram nem quartos de dormir à prova de som.
Dirk não disse nada. Estava olhando para as mágicas torres e as escutava cantar.
- Quer descer? - Gwen perguntou.
Ele assentiu, e ela fez uma espiral em direção ao solo. Encontraram uma clareira ao lado de uma das torres. Ao contrário das pistas de aterrissagem de Desafio e de Décimo-Segundo Sonho, esta não estava completamente vazia. Dois outros aeromóveis descansavam ali, um modelo esportivo vermelho de asas curtas e um pequeno negro e prateado com forma de lágrima, ambos havia muito abandonados. A poeira soprada pelo vento formava uma camada grossa em suas cabines e tetos, e os estofados dentro do modelo esportivo já haviam começado a apodrecer. Só por curiosidade, Dirk experimentou os dois veículos. O esportivo estava morto, queimado, sua energia esvaída havia anos. Mas o pequeno aeromóvel em forma de lágrima ainda ligava sob seu toque, e o painel de controle se acendeu e piscou, mostrando que uma pequena reserva de energia ainda sobrava. A imensa arraia cinzenta de Alto Kavalaan era maior e mais pesada do que os dois objetos abandonados juntos.
Da pista de pouso, foram por uma longa galeria, onde painéis luminosos cinza e brancos oscilavam e giravam em formas opacas que acompanhavam o ritmo da música. Então subiram até um balcão que haviam visto quando chegaram.
Do lado de fora, a música estava por todas as partes, chamando-os com vozes sobrenaturais, tocando-os e brincando com seus cabelos, aumentando e reverberando como um trovão da paixão. Dirk pegou a mão de Gwen e ficou ouvindo, enquanto lançava um olhar perdido para além das torres, cúpulas e canais, em direção à floresta e às montanhas depois dela. A música do vento parecia arrastá-lo. Era como se falasse com ele suavemente, instando-o a pular, a acabar com tudo, com toda a tolice, indignidade e insignificante futilidade que ele chamava de vida.
Gwen viu em seus olhos. Apertou a mão dele e, quando ele olhou para ela, disse:
- Durante o Festival, mais de duzentas pessoas cometeram suicídio em Kryne Lamiya. Dez vezes o número de qualquer outra cidade. E isso apesar de que esta cidade tinha a menor população de todas.
Dirk assentiu.
- Sim. Posso sentir. A música.
- A celebração da morte - Gwen falou. - Sim, você sabe, a Cidade Sereia não está morta, não como Musquel ou Décimo-Segundo Sonho. Ela ainda vive, teimosamente, apenas para exaltar o desespero e glorificar o vazio da vida ao qual ela mesma se aferra. Estranho, não?
- Por que construíram tal lugar? É bonito, mas...
- Tenho uma teoria - Gwen respondeu. - Os escuralbinos são niilistas de humor negro, antes de tudo, e acho que Kryne Lamiya é sua piada amarga para Alto Kavalaan, Tocadolobo, Tober e os outros mundos que se esforçaram tanto pelo Festival na Orla. Os escuralbinos vieram, tudo bem, e construíram uma cidade que diz que tudo é sem valor. Tudo sem valor: o Festival, a civilização humana, a vida em si. Pense nisso! Que armadilha para um turista desprevenido! - Jogou a cabeça para trás e começou a gargalhar descontroladamente, e por um breve momento Dirk sentiu um súbito medo irracional, como se Gwen tivesse enlouquecido.
- E você queria viver aqui? - ele perguntou.
Sua gargalhada morreu tão abruptamente quanto começara; o vento a levou embora. Longe, à direita deles, uma torre espigada emitia uma nota breve e penetrante que vagava como o uivo de um animal em dor. A torre em que estavam respondia com um triste gemido baixo de uma buzina, lento e interminável. A música rodopiava ao redor deles. Bem ao longe, Dirk pensou ter ouvido o bater de um único tambor, golpes graves e contundentes, uniformemente espaçados.
- Sim - Gwen confirmou. - Eu queria viver aqui. - A buzina desapareceu; quatro torres avermelhadas do outro lado do canal, unidas por pontes pênseis, começaram a ulular selvagemente, cada nota mais alta do que a anterior, até que finalmente se tornaram inaudíveis. O tambor continuou, imutável: bum, bum, bum.
Dirk suspirou.
- Entendo - disse, em uma voz muito cansada. - Eu teria vivido aqui também, suponho, embora me pergunte quanto tempo viveria se fizesse isso. Braque era um pouco assim, o mais suave dos ecos, especialmente à noite. Talvez fosse por isso que eu vivesse lá. Estava muito cansado, Gwen. Muito. Acho que tinha desistido. Nos velhos tempos, você sabe, eu estava sempre procurando... por amor, por dinheiro fácil, pelos segredos do universo, pelo que quer que fosse. Mas depois que você me deixou... não sei, tudo dava errado, me deixava um gosto amargo na boca. E quando alguma coisa dava certo, eu achava que não importava, não fazia nenhuma diferença. Era tudo vazio. Tentei e tentei, mas tudo o que consegui foi me cansar, me tornar apático e cínico. Talvez tenha sido por isso que vim até aqui. Você... bem, eu era melhor naquela época. Se eu encontrasse você de novo, talvez conseguisse me encontrar novamente também. Não funcionou bem desse jeito. Não sei se funcionou de algum jeito.
- Ouça Lamiya-Bailis - Gwen falou -, e a música da cidade lhe dirá que nada funciona, que nada significa coisa alguma. Eu queria viver aqui, você sabe. Eu votei... bem, não planejava votar desse jeito, mas estávamos conversando sobre isso quando chegamos aqui pela primeira vez, e simplesmente saiu. Isso me assustou. Talvez você e eu ainda tenhamos muito em comum, Dirk. Fiquei cansada também. Em geral, não demonstro. Tenho meu trabalho para me manter ocupada, Arkin é meu amigo, e Jaan me ama. Mas quando venho aqui... ou algumas vezes simplesmente paro e começo a pensar demais, então me questiono. As coisas que tenho não são suficientes. Não é o que eu queria. - Ela se virou na direção dele e pegou sua mão. - Sim, eu tenho pensado em você. Tenho pensado que as coisas eram melhores quando você e eu estávamos juntos em Ávalon, e tenho pensado que talvez ainda seja você quem eu amo, e não Jaan, e tenho pensado que você e eu podíamos trazer a mágica de volta, fazer tudo ter sentido outra vez. Mas você não vê? Não é assim, Dirk, e toda a sua pressão não vai fazer com que seja. Ouça a cidade, ouça Kryne Lamiya. Eis a sua verdade. Você pensa em mim, e algumas vezes eu penso em você, apenas porque a morte está entre nós. Esta é a única razão pela qual parece melhor. Felicidade ontem e felicidade amanhã, mas nunca hoje, Dirk. Não pode ser, porque tudo é apenas ilusão no final das contas, e ilusões só parecem reais a distância. A nossa terminou, meu amor perdido e sonhador terminou, e isso é o melhor de tudo, porque é a única coisa que o faz ser bom.
Ela estava chorando; as lágrimas escorriam lentamente por seu rosto. Kryne Lamiya chorava com ela, as torres pranteando o lamento deles. Mas a cidade zombava dela também, como se dissesse, "Sim, vejo sua dor, mas a dor não tem mais significado do que todo o resto, a dor é tão vazia quanto o prazer". As torres gemiam, grades finas riam insanamente, e o som baixo do tambor continuava: bum, bum, bum.
Novamente, mais forte dessa vez, Dirk quis saltar do balcão, em direção à pedra clara e aos canais escuros embaixo deles. Uma queda vertiginosa, e então o descanso finalmente. Mas a cidade cantava para ele como para um tolo: Descanso?, cantava, não há descanso na morte. Apenas o nada. Nada. Nada. O tambor, os ventos, os gemidos. Ele tremeu, ainda segurando as mãos de Gwen. Olhou em direção ao solo abaixo.
Algo avançava pelo canal. Balançando e flutuando, facilmente à deriva, vindo na direção dele. Um barco negro, com um remador solitário.
- Não - ele disse.
Gwen pestanejou.
- Não? - repetiu.
E repentinamente as palavras vieram, as palavras que o outro Dirk t'Larien teria dito para sua Jenny, e as palavras estavam na ponta de sua língua, embora não tivesse certeza se podia acreditar nelas, e pegou a si mesmo dizendo tudo mesmo assim.
- Não! - exclamou, gritando para a cidade, sentindo uma raiva súbita pela música zombeteira de Kryne Lamiya. - Maldição, Gwen, todos temos algo desta cidade em nós mesmos, sim. O teste é como enfrentamos isso. Tudo isto é assustador - soltou as mãos dela para gesticular em direção à escuridão, o gesto de sua mão abarcando tudo - o que a cidade diz é assustador, e o pior é o medo que você sente quando parte de sua alma concorda, quando você sente que é tudo verdade, que você pertence a este lugar. Mas o que você faz a esse respeito? Se você é fraco, ignora. Finge que não existe, entende? E talvez isso vá embora. Ocupa-se durante todo o dia com tarefas triviais e nunca pensa na escuridão lá fora. E, deste modo, você a deixa ganhar, Gwen. No fim, a cidade engole você e todas as suas coisas triviais, e você e outros tolos mentem uns para os outros reciprocamente e aceitam isso. Não pode ser assim, Gwen, você não pode ser assim. Tem que tentar. Você é uma ecologista, certo? E sobre o que a ecologia trata? De vida! Você tem que estar do lado da vida, tudo o que você é diz isso. Esta cidade, esta maldita cidade branca como ossos, com seu hino morto, é a negação de tudo o que acredita, de tudo o que você é. Se você é forte, encara isso, luta, chama-a pelo nome. Desafia isso.
Gwen parara de chorar.
- Isso é inútil - ela disse, balançando a cabeça.
- Você está errada - ele respondeu. - Sobre esta cidade, sobre nós. Está tudo entrelaçado, percebe? Você diz que quer viver aqui? Muito bem! Viva aqui! Viver nesta cidade seria uma vitória em si mesma, uma vitória filosófica. Mas viva aqui porque você sabe que a vida refuta Lamiya-Bailis, viva aqui e ria desta absurda música dela, não viva aqui e concorde com este maldito lamento mentiroso. - Pegou a mão dela novamente.
- Não sei - ela disse.
- Você sabe - ele refutou, mentindo.
- Você realmente acha que... que poderíamos fazer dar certo novamente? Melhor do que antes?
- Você não será Jenny - ele prometeu. - Nunca mais.
- Não sei - ela repetiu, num sussurro.
Ele pegou o rosto dela com as duas mãos e levantou-o, para que os olhos dela encontrassem os dele. Beijou-a muito suavemente, apenas roçando os lábios nos dela. A cidade gemia. A buzina soava profunda e queixosa ao redor deles, as torres distantes gritavam e lamentavam, e o tambor solitário continuava a tocar seu bumbo sem sentido.
Depois do beijo, ficaram parados em meio à música, encarando um ao outro.
- Gwen - ele finalmente disse, em uma voz nem tão forte ou tão segura quanto tinha estado alguns momentos antes - , eu também não sei, acho. Mas, talvez, possa valer a pena tentar...
- Talvez - ela respondeu, desviando e baixando os grandes olhos verdes. - Seria difícil, Dirk. E há Jaan para se considerar, e Garse, tantos problemas. E nem mesmo sabemos se valeria a pena. Não sabemos se fará a mínima diferença.
- Não, não sabemos - ele concordou. - Muitas vezes, nestes poucos últimos anos, decidi que não importava, que não valia a pena tentar. Não me senti bem, então, apenas cansado, infinitamente cansado. Gwen, se não tentarmos, nunca saberemos.
Ela assentiu.
- Talvez - disse, e nada mais. O vento soprava frio e forte; a música da loucura escuralbina se ergueu e baixou novamente. Foram para dentro, então desceram as escadas do balcão, passaram pelos painéis opacos e tremulantes de luzes cinza e brancas, para onde a sólida sanidade do aeromóvel os esperava para levá-los de volta a Larteyn.