"Bimba!? Estás a ouvir?", insistiu Diogo, sacudindo-lhe o ombro esquerdo. "é melhor não mexeres nessa merda, pá!... Vamos chamar alguém, está bem?"

Em vez de responder, o perito em minas e armadilhas pôs-se a trautear uma cançoneta que Diogo reconheceu como a canção que Tonicha levara no ano anterior ao Festival Eurovisão da Canção.

"Menina de olhar sereno raiando pela manhã", começou Bimba a cantarolar, "de seio duro e pequeno num coletinho de lã..."

Diogo cravou o olhar no rosto alterado do camarada e depois nos dedos que brincavam com os três fios ligados aos explosivos e lembrou-se de ouvir Chaparro dizer que o Bimba estava em fim de comissão e já andava transtornado e sentiu enfim a verdade impor-se diante dele, terrível e definitiva.

"Tá piruças!"

Com o pânico a apossar-se do corpo, Diogo desatou a descer apressadamente o pilar, sem saber se ia a tempo de se salvar, se Bimba esperaria pelo final da canção para puxar os fios, se a canção era longa, se...

"Já está!"

A voz de Bimba, lá em cima, paralisou-o de terror. Encolheu- -se abraçado ao pilar, à espera do pior. Mas nada aconteceu. A medo, sempre a aguardar que o mundo desabasse a todo o momento, ergueu devagar os olhos e espreitou para cima.

"Já está, como? O que fizeste?"

"Era o fio vermelho", devolveu Bimba com despreocupação, as mãos ocupadas a desmontar o engenho sem qualquer cerimónia. "Os cabrões às vezes fintam-nos e mudam as cores. para nos baralhar, mas a mim não me enganam eles!" Soltou uma risada histérica. "Filhos da puta, pensavam que trapaceavam o Bimba?! Ora tomem lá, que já ficaram sem a bomba!..."

Desceram os pilares com os explosivos separados em peças diferentes. Depois de guardarem o material na Berliet foram inspeccionar o resto da ponte e, não encontrando mais nada que considerassem suspeito, juntaram-se ao resto da unidade de combate. Os homens da companhia estavam posicionados na estrada e no mato em redor da ponte, a vigiar o local de modo a garantir a segurança em torno da estrutura.

O rádio estralejou à distância e Diogo consultou o relógio. Tinham passado duas horas desde que haviam desmontado a armadilha. Espreitou a Berliet onde Bimba, por ser o engenhocas, se encarregava das comunicações e ouviu a voz do camarada responder para o rádio. Instantes depois vislumbrou-lhe o vulto a erguer-se e acenar.

"Vêm aí!"

Os soldados redobraram de atenção, esquadrinhando o mato à procura de qualquer movimento suspeito. Se os turras tinham plantado explosivos na ponte era porque andavam por perto. Uma nuvem de poeira tornou-se visível da estrada, confirmando que chegara o momento mais delicado da operação. Volvidos cinco minutos sentiram o ar vibrar e viram uns ponitos zumbir no céu, como varejeiras gigantes.

Os pontos cresceram e transformaram-se em helicópteros. A nuvem de poeira estava já bem próxima e a sua origem ficou de repente visível; era uma coluna de viaturas que se aproximava da ponte com grande espalhafato. Diogo deu um passo para trás porque a barulheira em crescendo se tornara infernal! e a confusão generalizara-se.

As primeiras viaturas entraram na ponte; tratava-se' de Berliets com operacionais de boinas vermelhas, evidentemente comandos. Depois, enquadrados pela pesada escolta militar, apareceram vários camiões com atrelados pesados e incrivellmente longos; alguns tinham fileiras com pares de doze rodas. Iam devagar e funcionavam como magnetos para os olhos; toda a gente fixava a atenção neles, encarando-os com um quase iinexplicável respeito. Os camiões apresentavam um formato estranho. Todos sabiam que eles tinham enorme importância, uma vez que transportavam as famosas cargas críticas destinadas às obras da barragem de Cabora Bassa. A sua circulação exigia por isso operações militares de grande envergadura, envolvendo meiios aéreos e batalhões inteiros.

Hipnotizado por aquela visão esmagadora, Diogo abeirou-se da estrada e espreitou-lhes as matrículas. Eram inglesas, obviamente oriundas da Rodésia. Os veículos pesados percorreram lentamente todo o tabuleiro, como se receassem que o seu peso fizesse desabar a ponte, até chegarem por fim ao outtro lado. A retaguarda era protegida por mais Berliets carregadas de homens com boinas vermelhas, que fechavam a coluna como a cauda de uma longa e estranha serpente.

A coluna passou e a tranquilidade regressou à ponte. Sem pronunciarem uma palavra, os soldados do Batalhão de Artilharia encaminharam-se para as Berliets e assumiram os seus lugares.

Diogo sentiu-se por momentos um autómato; estava ali mas tinha a mente noutro lado. Pela enésima vez desde que acordara nessa madrugada, contou os dias que faltavam para a coluna de abastecimento ir a Tete e para ele a integrar na viagem até Sheila. Ah, como seria bom o reencontro!

Na próxima visita à cidade fariam as coisas de maneira diferente. Aliás, já tinha tudo planeado: em vez de passar a noite no quartel, ia ficar no Hotel Zambeze. Tinha a certeza de que...

Os motores foram ligados, interrompendo o devaneio, e os homens prepararam-se para iniciar o caminho de regresso ao Chioco. Diogo inclinou-se no assento e lançou ainda um derradeiro olhar à outra margem. A nuvem de poeira, enquadrada pela aparatosa escolta de helicópteros e comandos, esfumava-se já em direcção ao Songo,

deixando-lhe a impressão de que tudo não havia passado de uma

estranha miragem. XLVII

A fuga inopinada de Mimicas ao ver o marido na sala criou um ambiente de profundo desconforto na casa dos Rouco. Até ali, José e Domingos haviam mantido uma conversa na ficção de que nada de anormal se passava entre o casal Branco e de que aquela visita era meramente de cortesia, mas agora deixara de ser possível fingir que estava tudo bem.

O primeiro impulso de José foi sair a correr atrás da mulher, mas conteve-se. Já não pretendia disfarçar o estado de coisas entre ele e Mimicas, mas sentia-se determinado a pelo menos manter a dignidade e não dar espectáculo. Forçou-se por isso a encolher os ombros e a sorrir para os anfitriões.

"Mulheres!"

Disse-o num desabafo, como se a palavra tudo explicasse, e só então acenou em despedida.


Sempre a esforçar-se por manter uma pose calma e controlada, partiu enfim em busca de Mimicas.

Não a viu quando chegou à rua, o que o intrigou. Embora não tivesse saído imediatamente no encalço da mulher, fizera-o uns trinta segundos depois dela. Como podia ter desaparecido tão depressa? Vasculhou a longa estrada marginal de um lado para o outro, primeiro varrendo o espaço em redor com um olhar rápido, depois demorando-se nos pormenores, tentando identificar rostos, detectar movimentos, localizar azuis como o do vestido que Mimicas trazia quando a vira, mas o facto é que não vislumbrava sinais dela.

"Onde raio se meteu?", murmurou entre dentes.

Fez a pergunta quase com esperança de que a sua mera verbalização lhe pudesse trazer uma resposta, mas não surgiu réplica de parte alguma. A mulher volatilizara-se. Pensou em dar meia volta e aguardar em casa dos Rouco que ela reaparecesse, parecia-lhe evidente que em algum momento teria inevitavelmente de regressar, mas percebeu que se instalaria um ambiente estranho e que o melhor seria resolver as coisas em privado. Teria de descobrir Mimicas.

Meteu-se no carro e deambulou pela zona espreitando em todas as direcções. As ruas da cidade eram guardadas pelas sombras das acácias, que se alinhavam nos passeios como uma guarda de honra, mas não a enxergou entre as pessoas que por ali circulavam e decidiu dar uma volta pelo centro. Foi até à vasta Praça do Município e contornou-a devagar, sem resultado; depois seguiu até ao Grande Hotel, onde também não a conseguiu avistar.

Deixou o olhar esvaziar-se pelo mar, a mente concentrada no problema imediato. Se eu fosse a Mimicas, para onde iria?, interrogou-se. Viu um torvelinho de fumo ascender pelo horizonte azul, como se um cigarro aceso deslizasse no mar; era um cargueiro a passar ao largo, se calhar em direcção a Nacala, ou talvez o destino fosse Porto Amélia. Foi nesse instante, enquanto mirava aquele ponto fumegante, que teve a ideia.

O calor no areal era insuportável e José sentiu ganas de dar um mergulho nas águas irrequietas da praia da Beira. Havia pessoas estendidas em toalhas a apanhar banhos de sol, enquanto outras chapinhavam à beira-mar e algumas crianças brincavam com baldes na areia molhada. As ondas morriam na praia com um clamor incessante, ora vinham, ora iam, e o odor salgado da maresia enchia o ar, misturando-se momentaneamente com os aromas frutados exalados pela geleira de um vendedor ambulante de gelados que por ali passou aos gritos.

"sorvete! E morango, é chocolate! Esquimó! sorvete! Tem chuinga também! Maningue naice!"

O médico tirou os sapatos e caminhou pela água ao longo da praia, refrescando-se; o mar estava tépido, como sempre na Beira, e era agradável passear à sua borda. José levantou os olhos e viu a estrutura erguer-se da areia com o seu emaranhado de ferros enferrujados, como um esqueleto metálico que o Indico vomitara das suas entranhas, e dirigiu-se a ela.

A sombra do velho barco encalhado na praia distinguiu um vulto sentado na areia e percebeu que era Mimicas. O seu palpite estava certo.

"Sempre gostaste de vir para aqui", atirou-lhe ao aproximar- se. "O teu local favorito na praia da Beira."

A mulher lançou-lhe um olhar ressentido.

"Vai-te embora!"

A ordem foi ignorada por José, que continuou a caminhar até mergulhar na sombra do navio encalhado e estacar junto a Mimicas. Estava-se bem ali, com os destroços a protegê-los do calor húmido e inclemente. Era difícil perceber por que razão aquele barco ainda não havia sido removido, mas a verdade é que se tornara já parte integrante da paisagem daquela praia, como um velho coqueiro a que todos se tivessem habituado.


"Anda para casa", disse ele num tom suave. "Não sei o que te diga mais para expressar o meu arrependimento. Já te pedi desculpa mil vezes e peço-te outras mil se tiver de ser."

"Nem que peças um milhão de vezes", retorquiu ela, sem tirar os olhos do mar. "Vai-te embora!

Nem te quero ver à frente!"

José suspirou e sentou-se na areia ao lado dela.

"Eu sei que não serve de desculpa, mas quero-te dizer que nada foi planeado nem desejado por mim. Ela simplesmente...

atirou-se a mim. Eu resisti, mas, sabes como é, um homem é um homem e... e..."

"Cala-te!", cortou Mimicas num grito, o corpo agitado numa convulsão. "Não quero ouvir nada!"

O marido reavaliou o que havia dito e concluiu que deveria evitar referências a Nicole. O

melhor era concentrar-se nos seus sentimentos pela sua mulher.

"O que te quero dizer é que nunca gostei de outra pessoa que não fosse de ti", disse. "Os homens às vezes são estúpidos e fazem coisas estúpidas. No momento em que as estão a fazer sabem que são estúpidas, mas é como se algo tomasse conta da nossa vontade... não sei como explicar."

Respirou fundo. "O que quero dizer é que fiz um grande disparate, mas espero que me perdoes.

Amo-te a ti e só a ti e o que se passou não se repetirá nem mais uma vez."

Mimicas levantou-se bruscamente.

"Não quero voltar a pôr-te os olhos em cima!", rosnou. Deu meia volta e começou a afastar-se com passos rápidos, mas o marido ainda lhe escutou um derradeiro desabafo. "Metes-me nojo." XLVIII O herói do bigode e a rapariga de sari púrpura e dourado trocaram um longo olhar langoroso e, embalados por uma melodia sentimental pungente, aproximaram os rostos com infinito vagar até as pontas dos narizes se tocarem com pudor; a imagem fez então um lento fade a negro, as luzes acenderam-se como se o Sol tivesse irrompido no salão e os aplausos eclodiram em cascata na plateia, misturando-se com uma chuva de assobios e alguns protestos por, em matéria de carne, "só mostrarem isto!"

"Então?", perguntou Diogo ao levantar-se, espremendo-se contra o assento da frente para deixar a namorada passar. "Gostaste?

"Foi bonito."

A multidão enchia já o corredor, fazendo fila para sair da sala, e os dois juntaram-se àquela massa de gente.

"Só não percebo por que motivo estes filmes indianos nem um beijo mostram."

"És um tonto!", riu-se Sheila. "Quando eles olham um para o outro ou quando tocam o nariz, isso é a coisa."

"Que coisa?"Ela premiu-lhe o nariz com um dedo.

"Tu sabes muito bem!..."

"Não sei, não."

"Pois, pois. Faz-te sonso..."

Desaguaram no átrio, que se enchia de gente; eram brancos e negros, crianças e adultos, indianos e mulatos, balalaicas e fardas, toda uma multidão atraída pela famosa matinê indiana dos domingos no Cinema São Tiago.

Esticando o pescoço para a esquerda, Diogo olhou por cima das cabeças para verificar se o bar do Café Dominó ainda estava aberto. O enxame de clientes para lá das portas deu-lhe a resposta.

"Queres tomar alguma coisa?"

Sheila tirou a língua para fora e exibiu uma forma elástica branca e amarfanhada.

"Já tenho uma chuinga."

"Eu reparei lá dentro", retorquiu ele, passando a língua pelos lábios. "Hoje sabes a morango."

"Parvo!"

Diogo riu-se. Aquele "parvo!" pareceu-lhe uma carícia.

"Anda, ao menos faz-me companhia."

Furaram pela multidão ainda compacta e quase lutaram para chegar ao muito concorrido balcão do café ao lado do Cinema São Tiago. Fazia calor e Diogo conseguiu uma nesga entre dois bancos. Ergueu a mão e fez sinal ao empregado logo que ele se virou na sua direcção.

"Cerveja", pediu. "Bem fresca!"

"Manica, Dois ou Laurentina?"

"Laurentina."

O pedido estava feito e Diogo voltou-se para a namorada, apoiando o cotovelo no balcão.

Incomodada com a acumulação de tanta gente num espaço tão quente, Sheila parecia ansiosa por fugir dali. Mas não havia pressas; se ele tinha feito o sacrifício de ir ao cinema ver aquela pepineira só para lhe agradar, ela bem que podia aguentar uns minutinhos enquanto o namorado refrescava a garganta no Café Dominó.

O pensamento regressou-lhe ao filme e ao curioso pormenor de os olhares entre personagens substituírem os beijos. Ia fazer uma pergunta à namorada a propósito dessa peculiaridade do cinema indiano quando sentiu alguém tocar-lhe no ombro.

"Então? Já não se fala aos amigos?"

Virou a cabeça e viu um soldado em uniforme de passeio voltado para ele. Antes de lhe fixar a face, a sua atenção foi atraída para a boina que o soldado trazia na cabeça. Ou, em bom rigor, o que lhe despertou a curiosidade não foi tanto a boina como a cor dela.

Era vermelha.

"Perdão?"

"Então agora finges que não me conheces, pá?"

A boina vermelha significava que o homem que se dirigia a ele era um comando. Que Diogo soubesse não conhecia comando algum. Nunca falara com nenhum, apenas os vira a passar na rua, acantonados em quartéis ou a escoltar comboios que transportavam cargas críticas para o Songo.

Mas se é certo que jamais travara conhecimento com qualquer boina vermelha, o facto é que ali estava um a interpelá-lo.

Sacudiu a cabeça, num esforço para se livrar dos pensamentos e concentrar-se no que importava, e observou por fim o rosto do seu interlocutor. Era um rapaz seco, com uma face longa e estreita, mas o que ele tinha de mais característico e singular era o olhar baço.

"Angelino!?"

O comando sorriu.

"Estava a ver que não me reconhecias!"

Abraçaram-se como velhos amigos; havia anos que Diogo não via Angelino Melro. Trocaram as palavras que se dizem nestas circunstâncias, com perguntas sobre a família e observações cúmplices a propósito dos tempos que tinham passado juntos no Orfeão da Madalena e no FC

Porto.

Diogo apresentou-lhe a namorada com uma ponta de orgulho, consciente do efeito que Sheila produzia em qualquer homem, e a conversa desviou-se para a estranha circunstância de se reencontrarem justamente ali em Tete, uma terriola poeirenta nos confins de África, ambos soldados no meio de uma guerra.

"Agora és comando?"

Angelino bateu no ombro esquerdo, chamando a atenção para as insígnias de alferes.

"E comandante de companhia, ainda por cima!"

A revelação extraiu um esgar estupefacto do amigo. "

"Comandante? Mas tu és oficial de carreira? Desde quando?"

"Desde que o meu comandante adoeceu."

"E então? Se o teu comandante adoeceu, avança o segundo comandante..."

Angelino abanou a cabeça.

"Nos comandos não é assim", explicou. "O comandante da minha companhia é o capitão Janeiro, do quadro de oficiais. Mas ele apanhou uma hepatite e está de cama. Como nos comandos o comandante é o único oficial de carreira da companhia, quem o substitui é sempre o miliciano que ficou mais bem classificado no curso."

Diogo avaliou da cabeça aos pés a figura franzina e seca do amigo, como se duvidasse.

"Tu foste o primeiro classificado do curso de comandos?"

"O voleibol sempre serviu para alguma coisa, hein?", confirmou o amigo. "Enquanto o capitão Janeiro não voltar, o comandante da 6.a Companhia de Comandos de Moçambique é aqui o teu ilustre amigo e antigo colega de equipa."

Diogo não parecia convencido.

"Mas que idade tens tu afinal?"

"Vinte anos. Porquê?"

"Ainda és muito novo, pá!", exclamou. "Como é possível que estejas a comandar uma companhia de comandos com essa idade?"

Foi a vez de Angelino contemplar o camuflado de Diogo.

"Olha lá, e tu? Que eu saiba somos da mesma idade! Quer- me cá parecer que estás é com inveja!..."

"Não digas disparates! O que acho é que ninguém devia comandar uma companhia com apenas vinte anos. Incluindo eu, claro."

O comandante dos comandos ajeitou-lhe os galões de furriel.

"E o que eu acho é que a chefia de uma unidade deve ser entregue segundo o mérito, não a idade", argumentou. "Ou muito me engano ou tu já estás contaminado pela mentalidade aramista da tropa macaca."

"Qual aramista? Qual tropa macaca?", questionou Diogo, fingindo-se ofendido com a expressão usada pelo amigo. "Eu sou um atirador miliciano destacado."

"Destacado onde? Nas tropas especiais?"

"No BART. Enfiaram-me no Chioco."

A referência ao Chioco foi propositadamente introduzida para impressionar Angelino, mas não surtiu efeito.

"Tropa macaca", insistiu o comando num tom paternalista. "Tsss! Não tens vergonha?"

Vergonha era coisa que jamais ocorrera a Diogo, mas o facto é que, perante a descoberta de que o amigo se tornara comando, de algum modo sentia-se um tudo-nada diminuído, como se estivesse ao lado de um galo de guerra e não passasse de um pinto. O sentimento deixou-o algo acabrunhado, complexado até, e, procurando ganhar tempo para congeminar uma resposta condigna, agarrou na caneca de Laurentina e bebeu metade de um trago.

Quando pousou a cerveja no balcão e limpou com a língua a espuma branca que lhe ficara a borbulhar nos lábios não lhe havia ocorrido ainda qualquer resposta de génio. Percebeu, resignado, que teria de se contentar com algo banal.

"Não tenho vergonha nenhuma", acabou por dizer. "Porquê? Devia ter?"

"Claro que devias! A tropa macaca é formada por um bando de maricas que não fazem porra nenhuma a não ser coçar os tomates o dia inteiro. Nunca te imaginei uma menina..."

"Ora! Vou para onde me mandam!..."

"Se te mandarem vestir saias também vestes? E que à tropa macaca só lhe falta mesmo andar a provar vestidos!"

"Desculpa lá, mas não é bem assim", corrigiu Diogo, a levar o assunto mais a peito. "Que eu saiba, o Chioco não é propriamente uma estação balnear e a malta não anda aqui a reinar. Aquilo é duro, pá. Maningue duro."

Angelino emitiu uma gargalhada seca.

"Duro? Não me faças rir!"

"Podes gozar o que quiseres, mas só eu sei o que tenho de aturar. Vivemos num buraco cercado pelo in, sofremos emboscadas, apanhamos morteiradas, andamos em campos minados, patrulhamos território hostil, fazemos operações de protecção a pontes, a estradas, às linhas de muito alta tensão... olha, que eu saiba os comandos não passam pior. Alguma vez estiveste no Chioco? Fazes alguma ideia do que aquilo é?"

Confrontado com a pergunta, Angelino fitou-o com intensidade e o olhar, habitualmente opaco, agitou-se com uma súbita tonalidade sinistra.

"Achas que a merda do teu buraco no Chioco é guerra? Mas tu sabes o que é guerra a sério? Tu alguma vez viste a guerra como ela verdadeiramente é? Tens por acaso alguma ideia do que é a guerra?"

Aquele inesperado olhar de ferro atrapalhou Diogo, desconcertado por observar tanta certeza no rosto do velho amigo.

"Bem... suponho que sim", titubeou. "Porquê? O que vês tu que eu não veja?"

O comandante dos comandos abanou a cabeça, como se nenhuma explicação que pudesse dar fosse capaz de responder àquela pergunta. Ainda abriu a boca para tentar apresentar um esboço do que lhe ia na mente, mas acabou por fechá-la sem pronunciar mais do que um som ininteligível.

Era impossível descrever a guerra; para perceber a sua essência tornava-se imprescindível vivê-la como os comandos a viviam, uma experiência que não se podia articular por palavras. No mato, em território absolutamente hostil e apenas protegido pela G3 e pelos camaradas, é que se poderia ver a verdade. Se ao menos o amigo pudesse vir com ele!... Logo que formulou o desejo sentiu-se paralisado, os olhos vidrados, como se só então tivessem visto algo que sempre estivera diante dele. Acabara de lhe ocorrer uma ideia.

"Olha lá", disse, voltando-se devagar para Diogo enquanto a ia trabalhando na mente. "Tu queres saber o que é verdadeiramente a guerra?"

"Bem... iá."

"Então vem passar um mês connosco."

Diogo carregou as sobrancelhas numa interrogação, sem entender bem o que acabara de escutar.

"Connosco quem?"

"Com os comandos, pá. Vens ver como é a guerra a doer."

"Tás a reinar?"

"Não, estou a falar muito a sério!"

Diogo apontou para as insígnias do Batalhão de Artilharia 7220, que trazia cosidas ao camuflado.

"Eu já estou destacado, pá."

"Estás destacado para artilharia e é uma questão de te destacares para os comandos, não tem problema nenhum."

"Não é bem assim", corrigiu. "Que eu saiba um gajo não pode ir para os comandos assim do pé para a mão."

"Claro que não", reconheceu Angelino. "Mas não te esqueças que eu sou o comandante da companhia. Conheço muito bem o comandante do teu batalhão porque ainda no outro dia o safei numa situação bem chata em Cademera. Os turras emboscaram-no numa picada e, se não fôssemos nós a ir lá dar- lhe uma mãozinha, ele ficava-se. De maneira que, se eu te pedir emprestado por um mês, o gajo não se vai opor.

Diogo considerou a ideia. Estava já havia três meses no Chioco e a vida naquele buraco era de uma monotonia insuportável. Uma mudança de ares até seria agradável. Além disso, uma experiência nas tropas especiais poderia muito bem revelar-se interessante. O que tinha a perder?

"Mas o que iria eu fazer nos comandos?"

"Ora, acompanhavas-nos nas missões."

"Com que estatuto?"

Angelino passou uma mão pensativa pelo queixo.

"Ficavas como uma espécie de elemento de ligação. Isso arranja-se, não te preocupes. O que não faltam são bons pretextos. Consigo falar com o teu comandante e tratar da papelada de modo a ter-te nos comandos no dia 1." Consultou o calendário no relógio. "Ou seja, daqui a... digamos, quinze dias. Assim passas o próximo mês todo connosco. O que achas?"

Hesitante, Diogo agarrou na caneca e balançou-a, os olhos a observarem a cerveja a dançar, a mente a considerar a possibilidade inesperada.

"Eh pá, não sei..."

O amigo agarrou-lhe o braço e puxou-o levemente, como se o quisesse levar com ele.

"Anda daí! é só um mês! Sais daquela ratoeira no Chioco, ganhas uma experiência nos comandos, vês como é a guerra a sério e a malta põe a conversa em dia. Além disso, quando a coisa terminar até podes fazer uma tatuagem no ombro a dizer Comandos, Dezembro 1972. Maningue naice, não?"

"Prefiro escrever Amor de mãe, Moçambique", gracejou Diogo. "E ainda desenho uma kalash."

"Pões o que quiseres, pá. Alinhas?"

Diogo manteve a atenção presa na cerveja, mirando o líquido dourado que bailava na caneca.

"Um mês, dizes tu?"

"E durante esse tempo não vês o Chioco nem pintado no mapa! Poderá haver melhor?"

O soldado hesitou um instante mais. Tudo aquilo era verdade, mas sabia que a vida nos comandos era dura. Valeria a pena arriscar? Olhou para Sheila como se buscasse conselho, mas a namorada encolheu os ombros; aqueles eram assuntos de militares, que não compreendia.

"Vai dar para vir aqui a Tete?"

Angelino desviou os olhos para Sheila e, com um sorriso, percebeu a importância da pergunta.

"Nos intervalos das missões", assentiu. "O que significa que terás mais oportunidades de vir cá do que se ficares no Chioco. Além do mais não te esqueças que a malta está aquartelada no Mazoi, não é? Fica relativamente perto de Tete. Muito mais do que o Chioco, que está lá para trás do Sol posto!..."

O argumento revelou-se decisivo. Diogo espreitou a cerveja, como se procurasse aí alguma razão para rejeitar o convite, mas percebeu que não encontraria nenhuma resposta no fundo da caneca. Por fim ergueu os olhos para o amigo e, com o sorriso de quem já se vê longe do Chioco, estendeu-lhe a mão.

"Está combinado."

Foi um aperto de mão forte, firmado com a convicção de quem sela um acordo solene. Angelino tirou a boina castanha que o amigo tinha na cabeça e substituiu-a pela sua boina vermelha, como se quisesse apreciar o efeito da mudança. Diogo espreitou-se ao espelho do bar, imaginando-se já um comando, e voltou-se para Sheila.

"Fico bem?"

A rapariga abanou a cabeça e revirou os olhos, resignada às coisas dos homens.

"Maningue chunguila."

O namorado esboçou uma careta.

"O que é isso?"

"Lindo", traduziu ela. "Maningue lindo!"

Diogo riu-se e deu-lhe um beijo. Depois voltou-se para Angelino e ficou surpreendido ao constatar que o amigo observava a cena com uma expressão grave.

"Diverte-te enquanto podes", observou o comando. "Porque quando estiveres connosco vou-te levar para um sítio que nem imaginas que existe."

"Ai sim? Onde é isso?"

Foi a vez de Angelino agarrar na sua caneca e engolir toda a cerveja de um trago só. Depois pousou a caneca no balcão com estrondo, arrotou baixinho e o seu olhar nublado passeou pelo Café Dominó.

"O inferno." ) Parte Três

Загрузка...