"Estás a ver aquilo ali?", perguntou José, apontando para uns troncos que boiavam na água.
"São jacarés."
O Zambeze guiou-os até Tete, onde aterraram meia hora depois. O médico-aviador ligou do Aero-Clube para o hospital e pediu à irmã Lúcia que mandasse um jipe buscar o ferido, dando instruções de que ele fosse imediatamente visto pelo doutor Feitor.
Aguardaram junto ao paciente até a viatura chegar. Depois de o entregarem, José e Nicole meteram-se de novo no aparelho e retomaram viagem, sobrevoando mais uma vez o Zambeze por algum tempo, só que dessa vez em sentido contrário, e dirigindo- se enfim para Bene.A semana havia sido dura, como aliás sempre sucedia quando o trabalho do Serviço Médico Aéreo apertava, e José Branco ansiava por regressar a casa. Acossado pelos remorsos desencadeados com o retomar da ligação com Nicole, logo que no final da tarde de sexta-feira aterrou no Aero-Clube sentiu uma vontade quase incontrolável de correr para os braços da mulher. Sabia, contudo, que não o podia fazer imediatamente; tinha primeiro de ir ao hospital tratar da papelada que se acumulara na sua ausência.
Enquanto guiava pelas ruas poeirentas de Tete em direcção ao centro, o sentimento de culpa em relação a Mimicas adensou-se. A relação que durante esses últimos dias desenvolvera com a rodesiana tinha um cariz fortemente sexual, mas deixara-o vazio e com saudades da mulher. Como pudera traí-la daquela maneira? Sempre encarara o que havia acontecido dois anos antes no Hotel Cardoso como um acidente de percurso, um tropeção que o tempo tornara uma vaga lembrança, algo tão distante que quase não passava já de um sonho.
Mas desta vez tinha sido diferente. Traíra e voltara a trair a mulher. Fizera-o conscientemente, durante vários dias seguidos e mesmo ali no distrito de Tete, não na longínqua Lourenço Marques.
E o pior, o que realmente o perturbava, é que não se sentia com forças para cortar com Nicole. Era como se a mente lhe desse uma ordem e o corpo se recusasse a cumpri-la.
Porque o fazia? A novidade de experimentar uma estrangeira constituía sem dúvida parte da resposta. Mas havia mais, tinha de haver mais. Alguma coisa faltava na sua relação com a mulher e ele suspeitava que eram os filhos. Havia anos que mimicas tentava engravidar, mas nada sucedera ainda. Haveria algum problema com ela? Ou com ele? A verdade é que não tinha respostas para a situação.
Estacionou diante do hospital e, depois de lançar um olhar melancólico na direcção de casa, plantada orgulhosamente na berma da colina como um castelo sobranceiro à cidade, galgou as escadas e entrou no edifício.
Cumprimentou o porteiro e cruzou-se com a irmã Lúcia no corredor.
"Foi buena a viagem?", quis ela saber, mais por cortesia do que por curiosidade genuína.
"Normal", devolveu o médico com um gesto de indiferença. "Como vão as coisas por aqui?"
"O inspector Aniceto Silva telefonou a dicer que o doutor se deveria apresentar na PIDE logo que chegasse."
José estacou a meio caminho, intrigado com o recado.
"Está a falar a sério?"
"Sí, claro. Ele disse: imediatamente."
"Explicou porquê?"
A freira espanhola revirou os olhos, como se aquilo fosse um jogo e ela estivesse cansada de o jogar.
"No", suspirou. " Pero ele levou o guerrillero."
"Qual guerrilheiro? O que eu trouxe de Cazula?"
"Esse mismo. O doutor Feitor tratou-lhe da perna, não foi preciso amputar. Pero logo que melhorou, a PIDE veio buscá-lo."
A informação deixou o director do hospital chocado.
"Ah!", exclamou. "E como diabo soube a PIDE que o tipo estava aqui internado?"
Lúcia encolheu os ombros, num gesto de absoluta ignorância.
"No sé."
Não teve de esperar muito para ser recebido pelo inspector Aniceto Silva nas instalações da polícia de segurança do estado em Tete. Tratando-se do médico que dava assistência aos funcionários dessa polícia, José era bem conhecido por ali e foi acolhido com um copo fresco de capilé e encaminhado para o gabinete do chefe.
"Mandei que o chamassem porque temos aqui uma pequena chatice", disse o inspector em jeito de preâmbulo.
"O que foi?", quis saber o médico. "Não me diga que está preocupado com o novo treinador do Benfica..."
Era um truque simples, mas funcionava. Sempre que previa tensão com Aniceto Silva, puxava o clube à baila e a conversa amaciava um pouco.
"Isso é que não, doutor!", exclamou o inspector, sem conter um sorriso. "Tenho confiança neste Hagan que fomos buscar a Inglaterra. E um bife teso que nem um carapau. Com esse gajo ainda vamos voltar a conquistar a Europa, vai ver."
"Olhe que o Ajax anda forte. Ganhou a Taça dos Campeões e tem aquele Cruijf, dizem que é uma máquina a fintar!..."
"Ora essa! E nós temos o Eusébio! Esse é uma máquina a bujardar!"
"Pois, mas ele não dura para sempre..."
Aniceto Silva pareceu ficar pensativo, como se reflectisse no problema do envelhecimento do grande craque do Benfica. Indicou ao visitante que se sentasse no sofá e depois ele próprio acomodou-se no seu lugar habitual.
"Olhe, doutor, o que eu espero que não dure para sempre é o raio desta guerra", desabafou, mudando o ângulo da conversa. "E foi justamente por causa dela que o mandei chamar."
"Então? Que se passa?"
"Passa-se que me chegou aos ouvidos que o doutor teve um encontro com os turras e trouxe um deles para Tete. Não pense que não sei que o senhor já antes tratou alguma dessa rapaziada com quem se cruza por vezes lá no mato. Por mim, tudo maningue naice. Agora o que eu não estava à espera é que o doutor transportasse um turra na sua geringonça aqui para Tete e ainda por cima o internasse numa enfermaria do nosso hospital, numa cama onde a porra do turra tinha como vizinhos os nossos soldados! Um e outros lado a lado! Isso, doutor, é o cúmulo! Já só falta o senhor levar o turra para Lourenço Marques e...e pô-lo
numa suite do Polana, caraças! Onde é que já se viu isto?"
O tom em que as palavras foram pronunciadas foi em crescendo, com o inspector a ruborescer à medida que ia falando e a terminar quase aos berros, empolgado pela indignação que dele se ia apossando, cada frase a empolar a seguinte. Concluiu quase sem fôlego, como um tribuno eloquente mas já exangue, e quase esperou aplausos quando se calou e ficou a arfar. Fez-se um silêncio súbito e ambos permaneceram dois longos segundos a fitar-se.
"Já terminou?"
A pergunta do médico foi formulada numa voz tranquila, sem ponta de ironia, o registo quase neutro.
"Iá", assentiu Aniceto Silva, um tudo-nada ofegante. "Estou à espera de uma explicação sua."
"A explicação é a mesma que lhe tenho dado desde que nos conhecemos", disse José. "Eu sou médico e tenho um dever de neutralidade. Não lido com turras nem com tropa, não lido com pretos nem com brancos. Lido com pacientes. Se uma pessoa precisa de ajuda, cá estou eu. Não quero saber se é branco ou preto, não quero saber se..."
"Mas, ó doutor", interrompeu-o o inspector, num tom bem mais sereno do que aquele que usara no final da sua empolgada intervenção. "O senhor usou meios do estado para transportar um turra para Tete e meteu-o numa enfermaria ao lado dos nossos homens, se calhar alguns deles feridos por esse mesmo turra. Acha isso normal?"
"Eu não transportei um turra", argumentou o médico. "Eu transportei um ferido que precisava de assistência imediata. Não podia deixá-lo a morrer no meio do mato."
"Ele não morreria se não tivesse pegado em armas contra nós!..."
"Desculpe, inspector, mas isso não me diz respeito. Tudo o que sei é que tinha um ferido nas mãos e dispunha dos meios necessários para o salvar. Foi o que fiz, conforme é meu dever. E
quanto a tê-lo posto na enfermaria, fique a saber que não é a primeira vez que uma coisa dessas acontece."
"O quê?"
"É como lhe estou a dizer", insistiu José, quase satisfeito por dar ao chefe distrital da polícia de segurança do estado uma novidade e provar-lhe assim que ele afinal não sabia tudo sobre todos.
"Quantas vezes não apanhamos no mato homens feridos ou doentes? Acha que lhes pergunto se são turras? Não sei quem são, eles não andam com nenhum cartão a dizer 'turra', nem isso me interessa. Se precisam de ajuda, eu dou-lha. Estamos fartos de internar no hospital gente assim, o que pensa o senhor? E todos eles vão para a enfermaria dos homens e são instalados nas camas vagas, independentemente de quem esteja ao lado, seja ou não soldado. E, para que conste, nunca ocorreu nenhum incidente entre eles. No hospital não há tropa nem turras nem inimigos. Há gente."
O inspector Aniceto Silva respirou fundo, avaliando o problema. Sentia-se tentado a resolver a questão à bruta, sempre seria mais simples e expedito, mas sabia que não podia fazê-lo. Havia falta de médicos no distrito, pelo que tocar num deles iria gerar dificuldades. E logo aquele médico.
Além de director do hospital, presidente da Cruz Vermelha de Tete e delegado de saúde, José Branco era o director do Serviço Médico Aéreo, levando a cabo uma missão que Lourenço Marques considerava de importância estratégica. Não podia atacar frontalmente um homem daqueles por causa de uma questão que, embora sem dúvida relevante em matéria de princípio, era na verdade de menor importância. O melhor mesmo, decidiu, seria explicar-lhe as coisas e tentar injectar algum bom senso naquela cabeça de casmurro.
Recostou-se na poltrona e respirou fundo, avaliando o que poderia ou não revelar.
"Ó doutor, compreenda uma coisa", disse devagar, como se pesasse as palavras. "As coisas mudaram muito desde que a subversão começou. É natural, estamos em 1970 e já passaram seis anos desde o início desta chatice, não é verdade? Do nosso lado morreu Salazar e o presidente do Conselho é o professor Marcello Caetano. Do lado deles morreu o Mondlane e quem manda agora é um gajo chamado Machel."
"ó inspector, tudo isso já eu sei", atalhou o médico. "Onde quer o senhor chegar?"
"Estou a tentar explicar-lhe que, como é inevitável, chefes novos trouxeram ideias novas. Até os nomes mudaram, caraças!" Bateu no peito. "Olhe para nós: antigamente éramos a PIDE, agora resolveram chamar-nos DGS. Está a ver?"
José não conteve um sorriso.
"Desculpe lá, inspector, mas DGS parece nome de um modelo de automóvel." Fez um gesto no ar, como se imaginasse uma placa invisível. " Renault DGS!" Abanou a cabeça. "Acho que toda a gente vai continuar a chamar-vos PIDE..."
"Que era o que me apetecia também fazer, mas não posso", desabafou Aniceto Silva. "Decidiram chamar-nos Direcção-Geral de Segurança e temos é que respeitar. Manda quem pode, obedece quem deve, já dizia Salazar. Mas nada disso interessa. O que importa é que, se as mudanças começam pelos nomes, imagine como não será com tácticas e estratégias e tudo o mais. Como calculará, estas coisas congeminadas em gabinetes confortáveis estão a ter efeitos práticos no terreno." Bateu com o indicador na mesinha diante da poltrona, como se ela fosse "o terreno". "O
nosso novo presidente do Conselho mandou para cá o general Kaúlza de Arriaga, que tem umas ideias um bocado americanadas. Por causa delas, a guerra aqui em Moçambique está a entrar numa nova fase e..."
"Está a falar daquela grande operação que o Kaúlza lançou lá em Cabo Delgado?"
O inspector da DGS tentou dissimular a surpresa, mas um pestanejar de olhos irrefreável traiu-o.
"Ai o doutor já sabia? Quem lhe contou?"
Na face de José desenhou-se um sorriso reservado, como de um jogador de póquer a esconder as cartas.
"Digamos que tenho as minhas fontes..."
"E o que lhe disseram as suas fontes?"
"Que se tratou de uma operação à americana, envolvendo grandes meios, e que resultou num sucesso." O médico soergueu o sobrolho, como se buscasse cumplicidade. "Confirma, não é verdade?"
Aniceto Silva esboçou um esgar, parecia até que tinha acabado de descobrir uma coisa desagradável na sua poltrona, quem sabe se um alfinete apontado para cima.
"Depende do que se entende por sucesso", observou com secura. "A operação foi lançada para expulsar os turras de Cabo Delgado e do Niassa. Nesse particular, acho que sim, pode dizer-se que foi um sucesso." Afinou a voz. "O problema é que este sucesso teve um efeito imprevisto e que, receio bem, nos esteja a atingir em cheio." Fez um gesto a indicar o gabinete em redor. "Quando eu digo 'nos esteja a atingir' estou a referir-me a nós, aqui em Tete."
"A nós?", admirou-se José. "Que quer dizer com isso?"
"Quero dizer que os turras se estão a transferir de armas e bagagens para o nosso distrito, doutor." Arregalou os olhos, de modo a enfatizar a ideia. "De armas e bagagens."
"Está a falar a sério?"
O homem da DGS retirou um maço de LM do bolso da camisa e extraiu um cigarro, que acendeu com o isqueiro.
"Infelizmente, sim", confirmou após largar a primeira baforada. "Há dois anos que os turras elegeram Cabora Bassa como o seu alvo prioritário, como sabe, mas isso na altura não passou de mera conversa. Os tipos continuavam concentrados lá em Cabo Delgado e no Niassa, junto à Tanzânia, e não conseguiam descer porque, explorando as rivalidades étnicas com os macondes, pusemos os macuas do nosso lado. Depois veio esta Operação Nó Gordio, que os obrigou a recuar, e neste momento está já a ser aplicada a Operação Fronteira, que se destina a interditar a passagem de turras provenientes da Tanzânia. Isto deixou-os perante um problema, como deve calcular. Que fazer? Deveriam tentar entrar de novo em força num território que nós tornámos inabitável? Ou deveriam permanecer na Tanzânia, aceitando assim implicitamente a derrota militar? Encostados à parede, os tipos optaram por uma terceira solução. Mudaram o teatro de operações e vieram aqui para Tete. Quem é que se lixa?" Encostou o polegar ao peito, como se fosse ele a vítima. "Somos nós! Se até agora a coisa neste distrito estava relativamente calma e os turras se limitavam a acções de propaganda junto da população e a um ou outro ataque ocasional, agora passaram mesmo à ofensiva." Nova baforada. "O doutor não tem reparado no aumento de incidentes?"
José balançou afirmativamente a cabeça.
"De facto", confirmou. "Aliás, quando aterrei em Cazula a pista estava minada e o homem que trouxe para Tete era justamente um ferido de combate. Coisas destas estão agora a acontecer-me com frequência crescente."
Aniceto Silva aspirou o cigarro e ficou a contemplar a névoa acinzentada que revoluteava para cima, numa estranha dança em espiral lenta.
"O problema", murmurou pensativamente, "é que eles nos surpreenderam de calças na mão."
"Que quer dizer com isso?"
"Apanharam-nos desprevenidos. Há seis anos, quando os gajos atacaram em Cabo Delgado, nós já tínhamos tomado as nossas precauções. Mas desta vez não. Tete está desguarnecida."
"O Kaúlza não vai enviar tropas para cá?"
"Claro que sim", assentiu o inspector. "Mas quando eu falo em precauções não estou a falar em termos puramente militares. Era preciso termos aldeamentos já preparados para meter lá a população e assim dificultar a infiltração subversiva. Era preciso trabalhar os grupos étnicos para explorar as divergências entre eles e minar assim o apoio dos indígenas aos turras. Ficámos a dormir e nada disso foi feito. Agora receio que já seja tarde."
"Mas o engenheiro Pontes disse-me há uns tempos que a Missão de Fomento anda a fazer esses aldeamentos e que..."
"GPZ."
"Como?"
"Também a Missão de Fomento mudou de nome, doutor. Chama-se agora Gabinete de Planeamento do Zambeze, ou GPZ."
O médico revirou os olhos, sem perceber porque havia sido interrompido por causa de uma minudência daquelas. Sabia muito bem que o organismo se chamava GPZ, mas habituara-se ao nome antigo e esses hábitos tendem a perdurar.
"O que seja. O facto é que eles já estão a construir os aldeamentos e a meter gente lá dentro."
Baixou a voz. "Parece até que, em muitos casos, contra a vontade das pessoas."
O inspector espreitou o relógio e esmagou o cigarro na mesinha diante dele.
"Oiça, doutor, estive a contar-lhe isto para que o senhor perceba que as coisas vão mudar aqui em Tete e que é preciso muito bom senso", disse em jeito de quem quer apressar a conversa. "Tudo o que lhe peço é bom senso. Não estou a pedir muito, pois não? Ajudar um turra, como o senhor fez, é ajudar o inimigo. Não sei se isso será a coisa mais inteligente a fazer nestas circunstâncias."
Aniceto Silva pôs-se de pé e José também se ergueu.
"O senhor tem os seus deveres e eu tenho os meus", argumentou o médico. "Se um ser humano precisa de auxílio, tenho obrigação de o dar. Se o senhor não compreender isso... paciência."
O inspector puxou-o suavemente pelo braço em direcção à porta.
"Eu compreendo-o se o doutor me compreender." Esboçou um sorriso enigmático. "Se é que me compreende."
O homem da DGS abriu a porta e deixou o director do hospital passar. Já no corredor, José hesitou, como se tivesse sido assaltado por uma ideia, e voltou-se para trás.
" inspector, queria pedir-lhe um favor."
"Diga."
Nova hesitação. A ideia que tinha na cabeça era atrevida e precisava de ganhar balanço para a formular.
"Posso ver o turra que eu trouxe de Cazula?"O homem estava deitado numa esteira estendida no chão e soergueu-se quando a porta se abriu. Os olhos de José começaram por absorver o espaço exíguo onde acabara de penetrar. A pequena cela parecia um forno escaldante e tinha um aspecto imundo, com um fedor a urina e fezes a pairar no ar estagnado. A luz irrompia por uma janelinha no topo da cela e fixava-se na parede contrária, como um projector de cinema ainda ligado após o filme.
A atenção do médico desceu então para o recluso, que, sentado da esteira, o observava com curiosidade. O homem já não trazia a roupa esfarrapada com que o encontrara no mato, mas peças relativamente asseadas que evidentemente lhe haviam sido entregues no hospital. Tinha ligaduras a atar-lhe a coxa, mas pelo aspecto tornava-se evidente que já precisavam de ser mudadas.
"Olá, Ernesto", cumprimentou o médico, acocorando-se diante do homem. "Sou o doutor Branco. Como vai essa perna?"
O recluso lançou-lhe um olhar inquisitivo.
"Doutor Branco? Foi o senhor que me trouxe do mato?"
"Sim."O rosto de Ernesto abriu-se num sorriso sincero.
"Quero-lhe agradecer a sua gentileza. A madre Lúcia endere- çou-lhe os maiores encómios quando me encontrava internado no hospital e sinto-me extremamente grato pela assistência que teve a amabilidade de me prestar."
José ergueu o sobrolho, estranhando o vocabulário do guerrilheiro. Não era habitual encontrar no mato negros que falassem português daquele modo.
"Apenas cumpri o meu dever." Concentrou-se nas ligaduras. "Essa perna?"
"Está em franca recuperação. O doutor Feitor e a madre Lúcia fizeram um magnífico trabalho e salvaram-me a perna." Lançou um olhar resignado em redor. "O meu receio é que esta cela desfaça tudo. A ferida precisa de atenção, senão infecta outra vez."
"Vamos lá então ver isso."
O médico abriu a malinha e preparou um novo rolo de ligaduras e dois frascos, um de álcool e outro de mercurocromo. Depois concentrou-se na perna do paciente e começou a desenrolar-lhe a ligadura já suja.
"Ai", gemeu Ernesto.
Um pouco de dor era inevitável, considerando a gravidade da lesão, o pouco tempo de recuperação e as condições de menor higiene naquele espaço, pelo que José procurou que os seus movimentos fossem mais suaves. Examinou a perna e percebeu que ela tinha emagrecido e estava visivelmente mais mirrada do que a outra, o que era natural considerando que o paciente deixara de a usar e é a função que faz o músculo; se a perna não exerce a sua função, o músculo simplesmente desaparece.
"Então tu és turra?", perguntou o médico, mais para manter Ernesto distraído do que por curiosidade pessoal. "Andas aos tiros à tropa?"
O paciente hesitou, como se ponderasse o que deveria responder.
"Não sei nada da guerra, doutor."
"Ai não? Então como é que ficaste ferido?"
"Eu faço o que o chefe me manda. O chefe mandou-me ir para o mato, eu fui para o mato. Os chefes tomam as suas decisões e nós é que arcamos com as consequências, não é verdade?"
José sorriu.
"Sei bem como é." A ligadura já tinha sido toda retirada e a ferida encontrava-se exposta. Estava suturada, mas uma breve inspecção tornou evidente que precisava de mudar os pontos. O médico aprontou a agulha e pegou num pedaço de algodão e num frasco e deitou álcool sobre o algodão.
"Prepara-te."
"Para quê, doutor?"
"Vai doer."
Encostou o algodão à ferida e o paciente urrou.
O curativo durou meia hora e, quando saiu da cela, o médico foi direito ao gabinete de Aniceto Silva. O inspector ditava um ofício à secretária enquanto girava em círculos pensativos diante do ar condicionado, mas interrompeu a tarefa para atender o visitante.
"Então o seu protegido?", gracejou. "Está finório?"
" inspector, aquela cela não tem condições para uma pessoa em convalescença."
O homem da PIDE encolheu os ombros, como se declinasse responsabilidades.
"Isto não é um hospital, doutor. Nem um hotel."
"Mas nestas condições a ferida vai infectar outra vez. Aliás, a infecção já está a começar. Se eu não o tivesse visto agora, a coisa desenvolvia-se e era uma chatice."
Aniceto Silva apoiou-se noutra perna, num movimento subtil a exprimir alguma impaciência.
"lá, mas está fora de questão o gajo voltar para o hospital", rosnou. Depois pareceu absorto, como se reconsiderasse. "A não ser que o doutor viesse cá vê-lo de dois em dois dias..."
Deixou a ideia pairar, dando a entender que tinha acabado de apresentar uma solução e que cabia ao seu interlocutor agarrá-la. O médico percebeu a intenção.
"Isso era uma possibilidade", conformou-se José. "Ou venho eu ou mando alguém. Ele precisa de mudar de pontos e de ligaduras."
O inspector deu-lhe uma palmada no ombro, como se tivessem acabado de fechar um acordo.
"Então está combinado", exclamou. "Acha que consegue pô-lo a caminhar numa semana?"
"Numa semana?", admirou-se o médico. "Nem pensar! Ele vai precisar de pelo menos um mês de convalescença e mais um mês de fisioterapia para recuperar o músculo, que já está a perder com a inactividade. Só depois poderá andar normalmente."
A língua do homem da DGS fez um estalido contrariado.
"Que merda! Dois meses para recuperar? Tem a certeza?"
"Dois meses, se não forem mais", insistiu o médico. Carregou as sobrancelhas, a curiosidade a espicaçá-lo. "Mas, desculpe lá, para quê tanta urgência?"
"Tenho de entregar o tipo aos comandos." Indicou com a mão um mapa que tinha no gabinete.
"Queremos que ele os leve para identificar bases, zonas de passagem e pontos de abastecimento.
Mas isso tem de ser feito rapidamente, porque senão os turras mudam as rotas e a informação fica desactualizada."
"Se é para isso, desengane-se", atalhou José com ênfase. "Ele vai precisar de tempo para recuperar."
Aniceto Silva abriu os braços, numa postura de frustração, e respirou fundo, o olhar desagradado a perder-se no corredor.
"Então o que faço com o tipo?"
Era uma questão que ultrapassava o director do hospital.
"Bem, não sei. O que ia fazer com ele depois de o entregar aos comandos?"
O inspector premiu os lábios e olhou para o seu interlocutor como quem acha que está a falar com um idiota.
"O doutor, ele ia e já não voltava."
"Não voltava como?"
"O senhor não sabe que um turra que é entregue aos comandos nunca mais regressa?"
A declaração foi de tal modo perturbadora que o médico pensou ter ouvido mal.
"Perdão?"
O chefe distrital da DGS revirou os olhos e respirou fundo, quase enervado com tanta ignorância e ingenuidade'
"Estamos em guerra, doutor", disse num tom pedagógico, como um professor primário a explicar o abecedário a uma criança. "Quando um turra vai com os comandos, não volta. Depois da operação o gajo não passa de um peso-morto. Se o trouxerem para aqui, o que fazemos dele?
Mandamo-lo de férias para a Beira? E uma chatice a mais que para aí temos. Por isso os comandos limpam-lhe o canastro, escrevem no relatório que ele tentou fugir e o caso fica logo resolvido."
José teve dificuldade em acreditar no que ouvia e permaneceu um instante sem saber o que pensar ou dizer. Seria brincadeira? Mas o tom convicto com que o inspector falara tirou-lhe as dúvidas.
"Eles podem fazer isso? Não é ilegal?"
Aniceto Silva encolheu os ombros, como se o argumento fosse absolutamente irrelevante.
"Oh, doutor!... Há tanta coisa ilegal nesta vida! Estamos em guerra, não estamos? Numa guerra estas coisas acontecem!..."
Inquieto e já algo alarmado, o médico apontou com o polegar para o corredor, ao fundo do qual se encontravam as celas, incluindo aquela onde haviam fechado o guerrilheiro de Cazula.
"O que lhe vão fazer?"
O inspector suspirou, resignado.
"Para já, nada. Teremos de aguardar os dois meses para o entregar aos comandos. Que remédio!"
"Mas isso significa que o vão matar!..."
O homem da DGS abriu as mãos, indicando que a questão o ultrapassava.
"Já lhe disse, é a guerra."
Não era a resposta que o médico queria ouvir. José endirei- tou-se quase empertigado, e encheu o peito de ar, como se buscasse energia para enfrentar aquele problema.
"Oiça, inspector, isso não pode ser", disse numa voz baixa e tensa, a cabeça a abanar com ênfase.
"Entregue-me o homem e ele fica à minha responsabilidade."
As linhas do rosto de Aniceto Silva contraíram-se, desenhando uma expressão de incompreensão.
"À sua responsabilidade? Não estou a perceber..."
"Entregue-me o homem", repetiu o director do hospital. "Se o senhor não sabe o que lhe vai fazer, não o entregue aos comandos. Entregue-mo a mim."
O inspector da DGS ouvia mas não acreditava.
"O doutor enlouqueceu? Quer que eu lhe entregue um turra? Fica com um turra nas mãos? Um turra? A que propósito?"
"A propósito de que vocês não sabem o que lhe vão fazer. Mas eu sei. Entregue-mo a mim e eu encarrego-me dele."
Aniceto Silva abanou a cabeça.