PRÓLOGO


— Dragões — disse Mollander. Pegou numa maçã estragada que estava no chão e a jogou de uma mão para a outra.

— Atire a maçã — pediu Alleras, o Esfinge. Puxou uma seta da aljava e prendeu-a na corda do arco.

— Eu gostaria de ver um dragão. — Roone era o mais novo do grupo, um rapaz atarracado ainda a dois anos de se fazer homem. — Gostaria muito mesmo.

E eu gostaria de dormir com os braços da Rosey à minha volta, pensou Pate. Mexeu-se inquieto no banco. De manhã a garota podia bem ser sua.

Vou levá-la para longe de Vilavelha, para o outro lado do mar estreito até uma das Cidades Livres. Lá não havia meistres, não existia ninguém que o acusasse.

Ouvia as gargalhadas de Emma, vindas de uma janela fechada por cima da sua cabeça, misturadas com a voz mais profunda do homem que estava recebendo. Era a mais velha das mulheres que serviam no Pena e Caneca, tinha pelo menos quarenta anos, mas ainda era bonita ao seu jeito carnudo. Rosey era sua filha, com quinze anos e acabada de florir.

Emma decretara que a virgindade de Rosey custaria um dragão de ouro. Pate poupara nove veados de prata e um cântaro de estrelas e dinheiros de cobre, mas isso de nada lhe serviria. Teria tido mais chance de trazer ao mundo um dragão verdadeiro do que de poupar moedas suficientes para um de ouro.

— Nasceu tarde demais para dragões, moço — disse a Roone Armen, o Acólito. Armen usava uma tira de couro em volta do pescoço, amarrada com elos de peltre de estanho, chumbo e cobre, e tal como a maioria dos acólitos, parecia pensar que os noviços tinham nabos crescendo entre os ombros no lugar das cabeças. — O último morreu durante o reinado do Rei Aegon Terceiro.

— O último dragão em Westeros — insistiu Mollander.

— Atire a maçã — voltou a pedir Alleras. Era um jovem bem apessoado, o Esfinge. Todas as criadas tinham um fraco por ele. Até Rosey lhe tocava por vezes no braço quando lhes trazia vinho, e Pate tinha de ranger os dentes e fingir não ver.


— O último dragão em Westeros foi o último dragão — disse Armen com teimosia. — Isso é bem sabido.

— A maçã — disse Alleras. — A menos que queira comer ela.

— Aqui. — Arrastando a perna de pau, Mollander deu um curto salto, rodopiou e arremessou horizontalmente a maçã para as névoas que pairavam sobre o Vinhomel. Se não fosse o pé, teria sido um cavaleiro como o pai. Tinha a força necessária naqueles braços grossos e ombros largos. A maçã voou para longe rápido…

… mas não tão rápido como a seta que assobiou no seu encalço, um metro de haste de madeira dourada com penas escarlates. Pate não viu a seta atingir a maçã, mas ouviu-a. Um tchunc suave ecoou por sobre o rio, seguido por um esparrinhar de água.

Mollander assobiou.

— Mesmo em cheio. Boa.

Nem de perto tão boa como Rosey. Pate adorava os seus olhos cor de avelã e os seus seios em botão, e o modo como ela sorria sempre que o via.

Adorava as covinhas no seu rosto. Ela por vezes andava descalça enquanto servia, para sentir a erva sob os pés. Também adorava isso. Adorava o cheiro limpo e fresco que ela exalava, o modo como o cabelo se lhe curvava sob as orelhas. Até adorava os seus dedos dos pés. Uma noite deixara-o esfregar-lhe os pés e brincar com eles, e ele inventara uma história divertida para cada dedo, a fim de pô-la aos risinhos.

Talvez fizesse melhor em permanecer deste lado do mar estreito.

Podia comprar um burro com o dinheiro que poupara, e ele e Rosey podiam montá-lo por turnos enquanto vagueavam por Westeros. Ebrose podia não o achar merecedor da prata, mas Pate sabia como endireitar um osso e curar uma febre com sanguessugas. O povo ficaria grato pela sua ajuda. Se conseguisse aprender a cortar cabelo e a fazer barbas, podia mesmo tornar-se barbeiro. Isso seria o bastante, disse a si próprio, desde que tivesse a Rosey.

Rosey era tudo o que desejava no mundo.

Nem sempre fora assim. Em tempos sonhara em ser um meistre num castelo, ao serviço de qualquer senhor generoso que o honrasse pela sua sabedoria e lhe concedesse um belo cavalo branco a fim de lhe agradecer pelos seus serviços. E quão alto o montaria, quão nobremente, concedendo sorrisos aos plebeus quando passasse por eles na estrada… Uma noite na sala comum do Pena e Caneca, após a segunda caneca de uma cidra terrivelmente forte, Pate gabara-se de que não seria noviço para sempre.


— É verdade — gritara o Leo Preguiçoso. — Vais ser um antigo noviço, criando porcos.

Ele esvaziou sua caneca. A varanda iluminada pelos archote do Pena e Caneca era naquela manhã uma ilha de luz num mar de névoa. Rio abaixo, o distante brilho de uma alta torre, flutuava no relento da noite como uma lua alaranjada e brumosa, mas a luz pouco fez para lhe melhorar o estado de espírito. O Arquimeiestre já devia ter chegado há esta hora. Teria sido tudo alguma despedida cruel, ou teria algo acontecido ao homem? Não seria a primeira vez que a sorte cobria Pate de amargura. Uma vez achara-se sortudo por ter sido escolhido para ajudar o velho Arquimeistre Walgrave com os corvos, sem sonhar que em breve estaria também buscando as refeições do homem, varrendo os seus aposentos e a vestindo-o todas as manhãs.

Todos diziam que Walgrave esquecera mais da criação de corvos do que a maior parte dos meistres achava, portanto Pate assumira que um elo negro de ferro era o mínimo que poderia esperar, mas acabara por descobrir que Walgrave não poderia dar. O velho continuava a ser arquimeistre apenas por cortesia. Por maior que tivesse sido como meistre, agora o mais frequente era que as suas vestes escondessem a roupa interior emporcalhada, e meio ano antes um grupo de acólitos tinha-no encontrado chorando na Biblioteca, sem ser capaz de encontrar o caminho de volta aos seus aposentos. Era o Meistre Gormon que se sentava sob a máscara de ferro no lugar de Walgrave, o mesmo Gormon que um dia acusara Pate de roubo.

Na macieira, junto à água, um rouxinol começou a cantar. Era um som doce, uma pausa bem vinda nos gritos roucos e no crocitar sem fim dos corvos de que cuidara o dia inteiro. Os corvos brancos conheciam o seu nome, e o resmungavam uns para os outros sempre que o vislumbravam, “Pate, Pate, Pate”, até deixá-lo a ponto de gritar. As grandes aves brancas eram o orgulho do arquimeistre Walgrave. Desejava que o comessem quando morresse, mas Pate andava meio desconfiado de que os corvos também pretendiam comê-lo. Talvez fosse a cidra terrivelmente forte — não viera para beber, mas Alleras estava pagando para festejar o seu elo de cobre, e a culpa dera-lhe sede — mas quase soava como se o rouxinol estivesse a trinar ouro por ferro, ouro por ferro, ouro por ferro. O que era muitíssimo estranho, pois fora isso o que o estranho dissera na noite em que Rosey os juntara.

— Quem é você? — quisera saber Pate, e o homem respondera:

— Um alquimista. Sei transformar ferro em ouro. — E então tinha a moeda na mão, dançando sobre os nós dos dedos, fazendo brilhar o suave ouro amarelo à luz das velas. De um lado tinha um dragão de três cabeças, do outro a cabeça de um rei qualquer morto. Ouro por ferro recordou Pate, não vai conseguir fazer melhor. Você a quer? Você a ama?

— Não sou nenhum ladrão — dissera ao homem que se designava por alquimista. — Sou um noviço da Cidadela. — O alquimista inclinara a cabeça e dissera:

— Se reconsiderar, voltarei aqui dentro de três dias com o meu dragão. Tinham-se passado três dias. Pate regressara ao Pena e Caneca, ainda incerto do que seria, mas em vez do alquimista encontrara Mollander, Armen e o Esfinge, com Roone a reboque. Teria levantado suspeitas se não se juntasse a eles.

O Pena e Caneca nunca fechava. Havia seiscentos anos que se erguia a sua ilha no Vinhomel, e nem por uma vez tivera as portas fechadas ao negócio. Embora o alto edifício de madeira se inclinasse para sul como os noviços por vezes se inclinavam após beberem uma caneca, Pate supunha que a estalagem continuaria em pé por mais seiscentos anos, vendendo vinho, cerveja e cidra terrivelmente forte a homens do rio e do mar, a ferreiros e cantores, a sacerdotes e príncipes, e aos noviços e acólitos da Cidadela.

— Vilavelha não é o mundo — declarou Mollander, alto demais. Era filho de um cavaleiro, e não poderia estar mais bêbado. Desde que lhe tinham trazido a notícia da morte do pai na Água Negra, embebedava-se quase todas as noites. Até em Vilavelha, longe da luta e em segurança atrás das suas muralhas, a Guerra dos Cinco Reis tocara-os a todos… embora o Arquimeistre Benedict insistisse que nunca houvera uma guerra de cinco reis, uma vez que Renly Baratheon fora morto antes de Balon Greyjoy se ter coroado.

— O meu pai sempre disse que o mundo era maior do que o castelo de qualquer senhor — prosseguiu Mollander. — Os dragões devem ser a menor das coisas que um homem poderá encontrar em Qarth, Asshai e Yi Ti.

Estas histórias dos marinheiros…

—… são histórias contadas por marinheiros — interrompeu Armen.

Marinheiros, meu caro Mollander. Vai lá abaixo às docas, e aposto que irá encontrar marinheiros que te falarão das sereias com que dormiram, ou de como passaram um ano na barriga de um peixe.

— Como é que você sabe que não passaram? — Mollander bateu os pés pela relva a fora, à procura de mais maçãs. — Tinha de estar você próprio na barriga para jurar que não passaram. Um marinheiro com uma história está bem, um homem podia rir-se dela, mas quando remadores vindos de quatro navios diferentes contam a mesma história em quatro línguas diferentes…

— A história não é a mesma — insistiu Armen. — Dragões em Asshai, dragões em Qarth, dragões em Meereen, dragões dothraki, dragões libertando escravos… todos os contos são diferentes uns dos outros.

— Só nos detalhes. — Mollander ficava mais teimoso quando bebia, e até sóbrio era obstinado. — Todos falam de dragões, e de uma bela jovem rainha.

O único dragão que interessava a Pate era feito de ouro amarelo.

Perguntou a si próprio o que teria acontecido ao alquimista. Ao terceiro dia.

Ele disse que estaria aqui.

— Há outra maçã perto do seu pé — gritou Alleras a Mollander — e eu ainda tenho duas setas na aljava.

— Que se foda a tua aljava. — Mollander apanhou o fruto caído. — Esta tem bicho — protestou, mas atirou-a assim mesmo. A seta atingiu a maçã quando ela começava a cair e cortou-a ao meio. Uma metade caiu no telhado de um torreão, tombou até um telhado mais baixo, saltou, e não acertou em Armen por meio metro.

— Se cortar um verme em dois, vai criar dois vermes — informou-os o acólito.

— Se ao menos acontecesse o mesmo com as maçãs, nunca ninguém precisaria passar fome — disse Alleras com um dos seus sorrisos suaves.

O Esfinge andava sempre a sorrir, como se conhecesse algum gracejo secreto. Isso lhe dava um aspecto malicioso que combinava bem com o queixo pontiagudo, com o bico que a linha do cabelo formava a meio da testa, e com o denso matagal de caracóis negros de azeviche cortados curtos. Alleras chegaria a meistre. Só estava na Cidadela há um ano, mas já forjara três elos da sua corrente de meistre. Armen podia ter mais, mas levara um ano para ganhar cada um dos seus. Mesmo assim, ele também chegaria a meistre. Roone e Mollander continuavam a ser noviços de pescoço rosado, mas Roone era muito novo e Mollander gostava mais de beber do que de ler.

Mas Pate… Estava na Cidadela há cinco anos, tendo chegado com não mais de treze, mas o seu pescoço permanecia tão rosado como fora no dia em que viera das terras ocidentais. Julgara-se pronto por duas vezes. Da primeira apresentara-se ao Arquimeistre Vaellyn para demonstrar o seu conhecimento dos céus. Em vez disso ficara sabendo como fora que o Vinagre Vaellyn ganhara esse nome. Pate levara dois anos a reunir coragem para voltar a tentar. Dessa vez, submetera-se ao velho e amável Arquimeistre Ebrose, famoso pela sua voz suave e mãos gentis, mas os suspiros de Ebrose revelaram-se tão dolorosos como as farpas de Vaellyn.

— Uma última maçã — prometeu Alleras — e eu contarei a vocês as minhas suspeitas acerca desses dragões.

— O que você pode saber que eu não saiba? — resmungou Mollander.

Localizou uma maçã num ramo, saltou, arrancou-a e arremessou-a.

Alleras puxou a corda do arco até a orelha, virando-se habilmente para seguir o alvo em voo. Largou a seta precisamente no momento em que a maçã começava a cair.

— Você sempre falha no último tiro — disse Roone.

A maçã mergulhou no rio, intacta.

— Viu? — disse Roone.

— No dia em que acertar todos é o dia em que irei parar de melhorar. — Alleras desprendeu a corda do arco e enfiou-o no seu estojo de couro.

O arco fora esculpido em amagodouro, uma madeira rara e lendária das Ilhas do Verão. Pate tentara uma vez dobra-lo, e falhara. O Esfinge parece franzino, mas há força naqueles braços magros, refletiu, enquanto Alleras fazia passar uma perna por sobre o banco e estendia a mão para a taça de vinho.

— O dragão tem três cabeças — anunciou, na sua arrastada pronúncia dornesa.

— Isso é um enigma? — quis saber Roone. — Nas histórias, as esfinges falam sempre por enigmas.

— Não é enigma nenhum. — Alleras bebericou do vinho.

Os outros emborcavam canecas da cidra terrivelmente forte pela qual o Pena e Caneca era famoso, mas ele preferia os estranhos vinhos doces do país da mãe. Mesmo em Vilavelha, tais vinhos não se obtinham a baixo preço. Fora o Leo Preguiçoso quem apelidara Alleras como “o Esfinge”.

Uma esfinge é um pouco disto, um pouco daquilo: uma cara humana, o corpo de um leão, as asas de um falcão. Alleras era igual: o pai era dornês, a mãe uma mulher de pele negra das Ilhas do Verão. A sua pele era escura como teca. E, tal como as esfinges de mármore verde que flanqueavam o portão principal da Cidadela, Alleras tinha olhos de ônix.


— Nunca nenhum dragão teve três cabeças, exceto em escudos e bandeiras — disse com firmeza Armen, o Acólito. — Isso é um símbolo heráldico, nada mais. Além disso, os Targaryen estão todos mortos.

— Nem todos — disse Alleras. — O Rei Pedinte tinha uma irmã.

— Julgava que a cabeça dela tinha sido esmagada contra uma parede

— disse Roone.

— Não — disse Alleras. — Foi a cabeça do jovem filho do Príncipe Rhaegar que foi atirada contra uma parede pelos bravos homens do Leão de Lannister. Estamos falando da irmã de Rhaegar, nascida em Pedra do Dragão antes do castelo cair. Aquela a quem chamaram Daenerys.

— A Nascida na Tormenta. Agora lembro. — Mollander ergueu bem alto a caneca, agitando a cidra que restava. — A ela! — Emborcou, bateu com a caneca vazia na mesa, arrotou, e limpou a boca com as costas da mão. — Onde está a Rosey? A nossa legítima rainha merece outra rodada de cidra, não acham?

Armen, o Acólito, fez uma expressão de alarme.

— Baixe a voz, palerma. Nem devia brincar com essas coisas.

Nunca se sabe quem poderia ouvir. A Aranha tem ouvidos por todo o lado.

— Oh, não se mije, Armen. Estava a propor uma bebida, não uma rebelião.

Pate ouviu um risinho abafado. Uma voz suave e zombeteira gritou atrás dele.

— Sempre soube que você era um traidor, Salto de Rã. — Leo Preguiçoso estava encostado à base da antiga ponte de pranchas, envolto em cetim listado de verde e dourado, com uma meia capa de seda negra presa ao ombro por uma rosa de jade. O vinho que deixara pingar na parte da frente do traje era de um robusto tinto, ajuizando pela cor das manchas. Uma madeixa do seu cabelo louro acinzentado caia por sobre um olho.

Mollander irritou-se ao vê-lo.

— Que se lixe isso. Vai embora. Não é bem vindo aqui. — Alleras colocou uma mão no braço dele para acalmá-lo, enquanto Armen franzia a sobrancelha

— Leo. Senhor. Achava que estava confinado à Cidadela durante…

—… mais três dias. — Leo Preguiçoso encolheu os ombros. — O Perestan diz que o mundo tem quarenta mil anos. Mollos diz que tem quinhentos mil. Que são três dias, eu pergunto? — Embora houvesse uma dúzia de mesas vazias na varanda, Leo sentou-se na deles. — Compre para mim uma taça de dourado da Árvore, Salto de Rã, e eu talvez não informe o meu pai sobre o teu brinde. As pedras viraram-se contra mim na Sorte Xadrez, e desperdicei o meu último veado no jantar. Leitão com molho de ameixas, recheado de castanhas e trufas brancas. Um homem tem de comer.

O que vocês comeram rapazes?

— Carneiro — resmungou Mollander. Não soava nada satisfeito com isso. — Partilhamos um quarto de carneiro cozido.

— Tenho certeza que estão satisfeitos. — Leo virou-se para Alleras.

— O filho de um senhor devia ser generoso, Esfinge. Soube que ganhaste o teu elo de cobre. Bebo a isso.

Alleras sorriu-lhe.

— Eu só pago aos amigos. E não sou nenhum filho de senhor, já te tinha dito. A minha mãe era uma mercadora.

Os olhos de Leo eram cor de avelã, brilhantes de vinho e malícia.

— A sua mãe era uma macaca das Ilhas do Verão. Os dorneses fodem qualquer coisa que tenha um buraco entre as pernas. Sem ofensa.

Podes ser castanho como uma noz, mas pelo menos tomas banho. Ao contrário do nosso criador de porcos malhado. — Indicou Pate com um aceno de mão.

Se batesse a caneca na sua boca, podia partir-lhe metade dos dentes, pensou Pate. Pate Malhado, o criador de porcos, era o herói de mil histórias libertinas: um rústico de bom coração e cabeça vazia que conseguia sempre levar a melhor sobre os fidalgos gordos, os altivos cavaleiros, e os septões pomposos que lhe criavam dificuldades. De algum modo, a sua estupidez revelava ser uma espécie de astúcia rude; as histórias terminavam sempre com o Pate Malhado sentado no cadeirão de um lorde ou dormindo com a filha de um cavaleiro. Mas isso eram as histórias. No mundo real, os criadores de porcos nunca se davam tão bem. Pate por vezes achava que a mãe devia tê-lo odiado, para lhe dar o nome que dera.

Alleras já não estava sorrindo.

— Tens que pedir desculpa.

— Ah tenho? — disse Leo. — Como serei capaz de tal, com a garganta tão seca…

— Envergonha a tua Casa com cada palavra que fala — disse-lhe Alleras. — Envergonha a Cidadela por ser um de nós.


— Eu sei. Portanto paga-me um pouco de vinho, para que eu possa afogar a minha vergonha.

Mollander disse:

— Eu gostaria de te arrancar a língua pela raiz.

— A sério? Então como é que eu contaria sobre os dragões? — Leo voltou a encolher os ombros. — O mestiço tem razão. A filha do Rei Louco está viva, e conseguiu fazer nascerem três dragões.

— Três? — disse Roone, espantado.

Leo deu-lhe palmadinhas na mão.

— Mais do que dois e menos do que quatro. Eu se fosse você não tentava ganhar o elo dourado por enquanto.

— Deixa-o em paz — avisou Mollander.

— Que Salto de Rã tão cavalheiresco. Como quiser. Todos os homens de todos os navios que velejaram a menos de cem léguas de Qarth estão falando desses dragões. Alguns até dizem que os viram. O Mago está inclinado a crer neles.

Armen apertou os lábios com desaprovação.

— Marwyn é insano. O Arquimeistre Perestan seria o primeiro a te dizer isso.

— O Arquimeistre Ryam diz o mesmo — disse Roone.

Leo bocejou.

— O mar é molhado, o sol é quente, e os animais enjaulados odeiam o mastim.

Ele tem um apelido para todo mundo, pensou Pate, mas não podia negar que Marwyn se parecia mais com um mastim do que com um meistre.

É como se quisesse nos morder. O Mago não era como os outros meistres.

Dizia-se que ele se fazia acompanhar de prostitutas e de feiticeiros andantes, que falava com ibbeneses peludos e ilhéus do verão, negros como breu nas suas próprias línguas, e fazia sacrifícios a deuses estranhos nos pequenos templos dos marinheiros que se erguiam junto aos molhes. Os homens falavam de o terem visto na parte escura da cidade, em arenas de ratazanas e bordéis negros, na companhia de saltimbancos, cantores, mercenários, até pedintes. Alguns chegavam mesmo a sussurrar que ele uma vez matara um homem com os punhos.


Quando Marwyn regressara a Vilavelha, depois de passar oito anos no leste mapeando terras distantes em busca de livros perdidos, e estudando com feiticeiros e umbromantes, o Vinagre Vaellyn apelidara-o de “Marwyn, o Mago”. O nome espalhara-se rapidamente por toda a Vilavelha, para grande aborrecimento de Vaellyn.

— Deixe os feitiços e as preces para os sacerdotes e os septões, e vire a inteligência para a aprendizagem de verdades em que um homem possa confiar — aconselhara o Arquimeistre Ryam uma vez a Pate, mas o anel, bastão e máscara de Ryam eram de ouro amarelo, e a sua corrente de meistre não incluía um elo de aço valiriano.

Armen olhou ao longo do nariz para o Leo Preguiçoso. Tinha o nariz perfeito para isso, longo, estreito e pontiagudo.

— O Arquimeistre Marwyn acredita em muitas coisas curiosas —disse — mas não tem mais provas sobre os dragões do que Mollander. Só tem mais histórias de marinheiro.

— Está enganado — disse Leo. — Há uma vela de vidro ardendo nos aposentos do Mago.

Um silêncio caiu sobre a varanda iluminada por archotes. Armen suspirou e abanou a cabeça. Mollander pôs-se a rir. O Esfinge estudou Leo com os seus grandes olhos negros. Roone pareceu não compreender. Pate sabia das velas de vidro, embora nunca tivesse visto uma ardendo. Era o segredo mais mal guardado da Cidadela. Dizia-se que tinham sido trazidas de Valíria para Vilavelha mil anos antes da Perdição. Ouvira dizer que havia quatro; uma era verde e três negras, e todas eram altas e retorcidas.

— O que são essas velas de vidro? — perguntou Roone.

Armen, o Acólito, pigarreou.

— Antes de um acólito proferir os seus votos, tem de passar a noite anterior de vigília na cave. Não lhe é permitida lanterna, archote, lâmpada ou círio… só uma vela de obsidiana. Tem de passar a noite na escuridão, a menos que seja capaz de acender essa vela. Alguns tentam. Os tolos e os teimosos, aqueles que estudaram os ditos mistérios superiores. É freqüente cortarem os dedos, pois se diz que as arestas das velas são afiadas como navalhas. Então, com mãos ensanguentadas, têm de esperar a alvorada, cismando sobre o seu fracasso. Homens mais sensatos vão simplesmente dormir, ou passam a noite em oração, mas todos os anos há sempre alguns que têm de tentar.

— Sim. — Pate ouvira as mesmas histórias. — Mas de que serve uma vela que não dá luz?


— É uma lição — disse Armen — a última lição que temos de aprender antes de pormos as nossas correntes de meistre. A vela de vidro pretende representar a verdade e a aprendizagem, coisas raras, belas e frágeis. Tem a forma de uma vela para nos lembrar de que um meistre deve iluminar o lugar em que prestar serviço, e é cortante para nos lembrar de que o conhecimento pode ser perigoso. Os sábios podem tornar-se arrogantes da sua sabedoria, mas um meistre deve permanecer sempre humilde. A vela de vidro lembra-nos também disso. Mesmo depois de ter proferido os votos, colocado a corrente e partido para servir, um meistre recordará a escuridão da sua vigília e irá se lembrar de que nada do que fizera conseguira fazer com que a vela ardesse… pois mesmo com o conhecimento, algumas coisas não são possíveis.

O Leo Preguiçoso desatou à gargalhada.

— Não são possíveis para você, quer dizer. Eu vi a vela ardendo com os meus próprios olhos.

— Vistes uma vela ardendo, não duvido — disse Armen. — Uma vela de cera negra, talvez.

— Eu sei o que vi. A luz era estranha e brilhante, muito mais brilhante do que a de qualquer vela de cera de abelha ou de sebo. Gerava sombras estranhas e a chama nunca oscilava, nem mesmo quando uma brisa soprou pela porta aberta atrás de mim.

Armen cruzou os braços.

— A obsidiana não arde.

Vidro de dragão — disse Pate. — O povo chama de vidro de dragão. — Não sabia por que, mas aquilo parecia importante.

— Chamam. — meditou Alleras, o Esfinge — e se houver de novo dragões no mundo…

— Dragões e coisas mais escuras — disse Leo. — As ovelhas cinzentas fecharam os olhos, mas o mastim vê a verdade. Velhos poderes acordam. Sombras agitam-se. Uma era de maravilha e terror cairá em breve sobre nós, uma era para deuses e heróis. — Espreguicou-se, exibindo o seu sorriso indolente.

— Isto vale uma rodada, julgo eu.

— Já bebemos o suficiente — disse Armen. — A manhã chegará mais depressa do que gostaríamos, e o Arquimeistre Ebrose irá falar sobre as propriedades da urina. Aqueles que tencionam forjar um elo de prata fariam bem em não perder a sua palestra.


— Longe de mim afastar vocês da prova de mijo — disse Leo. — Eu por mim, prefiro o sabor do dourado da Árvore.

— Se a escolha for entre você e o mijo, eu bebo o mijo. —Mollander afastou-se da mesa. — Vem, Roone.

O Esfinge estendeu a mão para o estojo do arco.

— Para mim também é cama. Imagino que sonharei com dragões e velas de vidro.

— Todos? — Leo encolheu os ombros. — Bem, a Rosey fica.

Talvez acorde a nossa pequena doçura e faça dela uma mulher.

Alleras viu a expressão no rosto de Pate.

— Se ele não tem um cobre para uma taça de vinho, não pode ter um dragão para a moça.

— Verdade — disse Mollander. — Além disso, é preciso ser homem para fazer de uma garota uma mulher. Vem com a gente, Pate. O Velho Walgrave há de acordar quando o sol nascer. Ele vai precisar que o ajude a ir à latrina.

Se hoje se lembrar de quem sou. O Arquimeistre Walgrave não tinha dificuldade em distinguir os corvos uns dos outros, mas não era tão bom com as pessoas. Havia dias em que parecia pensar que Pate era alguém chamado Cressen.

— Ainda não — disse aos amigos. — Vou ficar por algum tempo.

— A alvorada ainda não rompera, não propriamente. O alquimista podia ainda vir, e Pate pretendia estar ali se ele viesse.

— Como quiser — disse Armen. Alleras deitou a Pate um olhar demorado, e então pendurou o arco num ombro magro e seguiu os outros na direção da ponte.

Mollander estava tão bêbado que tinha de caminhar com uma mão no ombro de Roone para evitar cair. A Cidadela não ficava a uma grande distância em voo de corvo, mas nenhum deles era um corvo, e Vilavelha era um verdadeiro labirinto, cheia de ruelas, vielas entrecruzadas e ruas estreitas e tortuosas.

— Cuidado — ouviu Armen dizer quando as névoas do rio engoliram os quatro — a noite está úmida, e as pedras vão estar escorregadias.

Quando desapareceram, Leo Preguiçoso observou amargamente Pate por cima da mesa.


— Que tristeza. O Esfinge falou com toda a sua prata, abandonando com o Pate Malhado, o criador de porcos. — Espreguicou-se, bocejando. — Como anda a nossa adorável Roseyzinha, diga-me?

— Está dormindo — disse Pate secamente.

— Nua, com certeza. — Leo fez um sorriso. — Achas que ela vale mesmo um dragão? Suponho que um dia tenho de verificar.

Pate sabia que não era boa ideia dar resposta àquilo.

Leo não precisava de resposta.

— Suponho que uma vez que eu sangre a garota, o preço dela caia de forma que até criadores de porcos consigam pagá-la. Devia me agradecer.

Devia te matar, pensou Pate, mas estava longe de se encontrar suficientemente bêbado para jogar a vida fora. Leo recebera treino de armas, e tinha fama de ser mortífero com espada de sicário e punhal. E se Pate de algum modo conseguisse mata-lo, isso iria lhe custar também a cabeça. Leo tinha dois nomes, enquanto que Pate não possuía mais do que um, e o segundo era Tyrell. Sor Moryn Tyrell, comandante da Patrulha da Cidade de Vilavelha, era pai de Leo. Mace Tyrell, Senhor de Jardim de Cima e Protetor do Sul, era primo de Leo. E o Velho de Vilavelha, lorde Leyton de uma alta torre, que incluía “Protetor da Cidadela” entre os seus muitos títulos, era vassalo ajuramentado à Casa Tyrell. Deixa estar, disse Pate a si próprio. Ele diz estas coisas só para me ferir.

As névoas estavam se iluminado a leste. A alvorada compreendeu Pate. A alvorada chegou, e o alquimista não. Não sabia se deveria rir ou chorar. Ainda serei um ladrão se devolver tudo e ninguém souber de nada?

Era outra pergunta para a qual não tinha resposta, como aquelas que Ebrose e Vaellyn em tempos lhe tinham feito. Quando se afastou do banco e se pôs em pé, a cidra terrivelmente forte subiu-lhe à cabeça toda ao mesmo tempo.

Teve de pousar uma mão na mesa para se equilibrar.

— Deixe Rosey em paz — disse, em jeito de despedida. — Deixe ela em paz, senão pode ser que te mate.

Leo Tyrell afastou o cabelo do olho num movimento rápido.

— Não travo duelos com criadores de porcos. Vá embora.

Pate virou-se e atravessou a varanda. Os seus calcanhares ressoaram nas pranchas desgastadas da velha ponte. Quando chegou ao outro lado, o céu oriental estava tornando-se rosado. O mundo é grande, disse a si próprio.

Se comprasse tal burro, ainda podia vaguear pelas estradas e atalhos dos Sete Reinos, sangrando o povo e catando-lhe lêndeas dos cabelos. Podia me oferecer num navio qualquer, puxar um remo, e velejar para Qarth, a dos Portões de Jade, para ver esses malditos dragões com os meus próprios olhos. Não teria de voltar para o velho Walgrave e os corvos.

Mas sem saber como, os pés levaram-no na direção da Cidadela.

Quando o primeiro raio de sol perfurou as nuvens a leste, os sinos matinais começaram a repicar no Septo do Marinheiro, junto ao porto. O Septo do Senhor juntou-se um momento mais tarde, seguido pelos Sete Santuários nos seus jardins do outro lado do Vinhomel, e por fim o Septo Estrelado, que fora a sede do Alto Septão durante os mil anos que antecederam o desembarque de Aegon em Porto Real. Faziam uma música poderosa.

Embora não tão doce como um pequeno rouxinol.

Também ouvia cantos, sob o repique dos sinos. Todas as manhãs, à primeira luz da aurora, os sacerdotes vermelhos reuniam-se para dar as boas vindas ao sol no exterior do seu modesto templo erguido junto aos molhes.

Pois a noite é escura e cheia de terrores. Pate ouvira-os gritar aquelas palavras uma centena de vezes, pedindo ao seu deus R’hllor para protegê-los da escuridão. Os Sete eram deuses suficientes para ele, mas ouvira dizer que Stannis Baratheon orava agora às fogueiras noturnas. Até pusera o coração flamejante de R’hllor nos seus estandartes, em vez do veado coroado.

Se ele conquistar o Trono de Ferro, vamos todos ter de aprender a letra da canção dos sacerdotes vermelhos, pensou Pate, mas isso não era provável. Tyrion Lannister esmagara Stannis e R’hllor na Água Negra, e em breve acabaria com eles e espetaria a cabeça do pretendente Baratheon num espigão por cima dos portões de Porto Real.

À medida que as névoas da noite se dissipavam, Vilavelha ia tomando forma à sua volta, emergindo fantasmagoricamente das sombras que antecediam a alvorada. Pate nunca vira Porto Real, mas sabia que era uma cidade de taipa, uma extensão de ruas lamacentas, telhados de colmo e telheiros de madeira. Vilavelha era construída em pedra, e todas as suas ruas eram empedradas, até a mais escusa das vielas. A cidade nunca era tão bela como ao romper da aurora. A oeste do Vinhomel, as sedes das Guildas orlavam a margem como uma fileira de palácios. A montante, as cúpulas e torres da Cidadela erguiam-se de ambos os lados do rio, ligadas por pontes de pedra repletas de casas e edifícios públicos. Logo abaixo, sob as muralhas de mármore negro e janelas arqueadas do Septo Estrelado, as mansões dos piedosos aglomeravam-se como crianças reunidas em torno dos pés de uma velha viúva rica.

E mais para diante, onde o Vinhomel se alargava e mergulhava na Enseada dos Murmúrios, erguia-se a Alta torre, com as suas fogueiras de aviso brilhantes contra o fundo da aurora. Desde o local onde ela se erguia no topo das escarpas da Ilha da Batalha, a sua sombra cortava a cidade como uma espada. Os nascidos e criados em Vilavelha sabiam dizer as horas pelo ponto onde a sombra caía. Alguns diziam que do topo da torre se conseguia ver tudo, até a Muralha. Talvez fosse por isso que Lorde Leyton não descia havia mais de uma década, preferindo governar a sua cidade a partir das nuvens. A carroça de um açougueiro passou por Pate trovejando ao longo da estrada do rio, levando cinco leitões que guinchavam numa aflição.

Afastando- se do seu caminho, evitou por pouco ser salpicado quando uma mulher esvaziou um balde de dejetos noturnos de uma janela por cima dele.

Quando for um meistre num castelo terei um cavalo para montar, pensou.

Então tropeçou numa pedra e perguntou a si próprio quem estava enganando. Para ele não haveria corrente, não haveria lugar à mesa de honra de um senhor, não haveria nenhum alto cavalo branco para montar. Os seus dias seriam passados a ouvir o cuorc dos corvos e a lavar manchas de merda da roupa interior do Arquimeistre Walgrave. Estava apoiado num joelho, tentando limpar a lama da sua veste quando uma voz disse:

— Bom dia, Pate.

O alquimista estava em pé ao seu lado.

Pate ergueu-se.

— O terceiro dia… disse que estaria no Pena e Caneca.

— Estava com seus amigos. Não queria me intrometer na camaradagem de vocês. — O alquimista trazia um manto de viajante com capuz, castanho e incaracterístico. O sol nascente espreitava por sobre os telhados atrás do seu ombro, tornando difícil distinguir o rosto dentro do capuz. — Já decidiste o que és?

Será que ele tem de me obrigar a dizê-lo?

— Suponho que sou um ladrão.

— Achei que talvez fosse.

A parte mais difícil fora pôr-se de quatro para puxar a caixa forte de debaixo da cama do Arquimeistre Walgrave. Embora a caixa fosse robusta e reforçada com ferro, tinha a fechadura quebrada. O Meistre Gormon suspeitara que fora Pate que quebrá-la, mas isso não era verdade. Fora o próprio Walgrave quem quebrara a fechadura, depois de perder a chave que a abria.

Lá dentro, Pate encontrara um saco de veados de prata, uma madeixa de cabelo amarelo atada com uma fita, uma miniatura pintada de uma mulher que se assemelhava a Walgrave (até no bigode), e uma manopla de cavaleiro feita de aço articulado. A manopla pertencera a um príncipe, segundo Walgrave afirmava, embora já não parecesse ser capaz de recordar qual deles. Quando Pate a sacudira, a chave caíra ao chão. Se apanhar aquilo, sou um ladrão, lembrava-se de ter pensado. A chave era velha e pesada, feita de ferro negro; supostamente, abria todas as portas da Cidadela. Só os arquimeistres possuíam chaves daquelas. Os outros transportavam as suas consigo ou escondiam em algum local seguro, mas se Walgrave tivesse escondido a sua, nunca mais ninguém a veria. Pate apanhara a chave e percorrera metade do caminho até a porta antes de voltar para trás para apanhar também a prata. Um ladrão era um ladrão, quer roube muito, quer roube pouco. “Pate” chamara um dos corvos brancos, “Pate, Pate, Pate”.

— Você tem o meu dragão? — perguntou ao alquimista.

— Se você tiver o que eu quero.

— Dê ele aqui. Quero ver. — Pate não tencionava permitir que o enganassem.

— A estrada do rio não é lugar para isso. Vem.

Não teve tempo de pensar, de pesar as suas hipóteses. O alquimista estava afastando-se. Pate tinha de segui-lo ou perderia tanto Rosey como o dragão, e para sempre. Seguiu-o. Enquanto caminhavam, enfiou a mão na manga. Conseguia sentir a chave, em segurança dentro do bolso escondido que cosera aí. As vestes de meistre tinham bolsos por todo o lado. Pate sabia disso desde rapaz.

Tinha de se apressar para conseguir acompanhar os passos mais longos do alquimista. Desceram por uma viela, viraram uma esquina, atravessaram o antigo Mercado dos Ladrões, percorreram a Ruela do Trapeiro. Por fim, o homem virou para outra viela, mais estreita do que a primeira.

— Já chega — disse Pate. — Não há ninguém à nossa volta. Vamos fazer aqui.

— Como quiser.

— Quero o meu dragão.

— Com certeza. — A moeda surgiu. O alquimista a fez caminhar por sobre os nós dos dedos, como fizera quando Rosey os juntara. À luz da manhã, o dragão cintilava enquanto se movia, e dava aos dedos do alquimista um brilho dourado.


Pate tirou a moeda da mão do outro. O ouro parecia-lhe morno contra a pele da mão. Levou-o à boca e trincou-o, como vira os homens fazer.

Na verdade, não tinha a certeza de qual era suposto ser o sabor do ouro, mas não queria parecer um tolo.

— A chave? — inquiriu educadamente o alquimista.

Algo levou Pate a hesitar.

— É algum livro que você quer? — Dizia-se que alguns dos velhos pergaminhos valirianos trancados nas caves eram as únicas cópias que sobreviviam no mundo.

— O que eu quero não é da tua conta.

— Não. — Está feito, disse Pate a si próprio. Vai. Corre de volta ao Pena e Caneca, acorda Rosey com um beijo e diz-lhe que te pertence. Mas

ainda se deixou ficar. — Mostre-me seu rosto.

— Como quiser. — O alquimista baixou o capuz.

Era apenas um homem, e o seu rosto era apenas um rosto. Um rosto de jovem, comum, com faces cheias e a sombra de uma barba. Uma tênue cicatriz entrevia-se na bochecha direita. Tinha um nariz adunco, e uma densa cabeleira preta que se encaracolava, bem apertada, em volta das orelhas.

Não era um rosto que Pate reconhecesse.

— Não te conheço.

— Nem eu a ti.

— Quem é você?

— Um estranho. Ninguém. A sério.

— Oh. — Pate ficara sem palavras. Puxou da chave e a pos na mão do estranho, sentindo a cabeça leve, sentindo-se quase com vertigens. Rosey recordou a si próprio. — Então é tudo.

Já tinha percorrido metade da viela quando o empedrado começou a mover-se por baixo dos seus pés. As pedras estão escorregadias e úmidas, pensou, mas não era isso. Sentia o coração martelando no peito.

— O que está acontecendo? — disse. Suas pernas tinham se transformado em água. — Não compreendo.

— E nunca vai compreender — disse uma voz num tom triste.


O empedrado saltou para beijá-lo. Pate tentou gritar por ajuda, mas a voz também estava falhando.

O seu último pensamento foi para Rosey.



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