13 Escolhas

Antes que fossem dormir, Moiraine ajoelhou-se ao lado deles, um por um, e pousou as mãos em suas cabeças. Lan resmungou, dizendo que não tinha necessidade e que ela não deveria desperdiçar suas forças, mas não tentou detê-la. Egwene estava ansiosa pela experiência, Mat e Perrin claramente apavorados por passar por ela, e apavorados demais para dizer não. Thom afastou-se das mãos da Aes Sedai, mas Moiraine agarrou-lhe a cabeça grisalha com um olhar que não admitia bobagens. O menestrel exibiu uma careta durante todo o processo. Ela lhe dirigiu um sorriso zombeteiro assim que afastou as mãos. Ele franziu a testa ainda mais, mas parecia renovado. Todos pareciam.

Rand havia recuado para um nicho na parede irregular, onde esperava passar despercebido. Seus olhos queriam se fechar assim que ele encostou o corpo no emaranhado de madeira, mas forçou-se a ficar de guarda. Pressionou o punho contra a boca para abafar um bocejo. Um cochilo, de uma ou duas horas, e ele ficaria bem. Moiraine, porém, não o esqueceu.

Ele se encolheu ao sentir o toque frio dos dedos dela em seu rosto e disse:

— Eu não… — Seus olhos arregalaram-se de espanto. O cansaço escoou dele como água morro abaixo; dores e incômodos foram se desvanecendo até virarem vagas lembranças e desaparecerem. Ele a fitava, boquiaberto. Ela limitou-se a sorrir e retirou as mãos.

— Pronto — disse ela, e, quando ela se levantou com um suspiro cansado, Rand lembrou-se de que ela não podia fazer o mesmo por si própria. De fato, ela só bebeu um pouco de chá, recusando o pão e o queijo que Lan tentou forçá-la a comer, antes de se enroscar ao lado do fogo. Pareceu adormecer no instante em que se enrolou no manto.

Todos os demais, com exceção de Lan, caíam adormecidos onde quer que conseguissem encontrar um espaço para se esticar, mas Rand não conseguia imaginar por quê. Ele tinha a sensação de ter dormido uma noite inteira numa boa cama. Assim que se recostou na parede de troncos, entretanto, o sono o derrubou. Quando Lan o acordou, cutucando-o, uma hora depois, era como se tivesse descansado por três dias.

O Guardião acordou todos, com exceção de Moiraine, e mandou severamente que silenciassem qualquer som que pudesse perturbá-la. Mesmo assim, ele só lhes permitiu uma breve estada na aconchegante caverna de árvores. Antes que o sol alcançasse duas vezes a própria altura acima do horizonte, todos os vestígios de que alguém havia algum dia parado ali tinham sido apagados, e todos encontravam-se montados e seguindo para o norte na direção de Baerlon, cavalgando devagar para poupar os cavalos. A Aes Sedai tinha olheiras, mas sentava-se ereta e firme em sua sela.

A neblina ainda era espessa sobre o rio atrás deles, uma muralha cinzenta que resistia aos esforços do sol fraco de dissipá-la e ocultava das vistas os Dois Rios. Rand ficou olhando para trás enquanto cavalgava, torcendo por um último vislumbre, mesmo que fosse de Barca do Taren, até que a banquisa de névoa se perdeu de vista.

— Jamais pensei que fosse chegar tão longe assim de casa — disse ele quando as árvores finalmente esconderam tanto a neblina quanto o rio. — Lembra quando a Colina da Vigília parecia distante? — Isso foi há dois dias. Parece uma eternidade.

— Em um ou dois meses estaremos de volta — afirmou Perrin com a voz tensa. — Pense no que vamos ter para contar.

— Nem mesmo Trollocs podem nos caçar para sempre — disse Mat. — Que me queimem, eles não podem. — Ele se endireitou com um suspiro profundo, desabando pesado na sela como se não acreditasse em uma só palavra do que havia sido dito.

— Homens! — bufou Egwene. — Vocês têm a oportunidade de viver a aventura de que estão sempre falando, e já estão com esse papo de voltar para casa. — Ela mantinha a cabeça erguida, mas Rand reparou num tremor na voz dela então, quando mais nada podia ser visto dos Dois Rios.

Nem Moiraine nem Lan fizeram a menor tentativa de acalmá-los, nem uma palavra para dizer que com certeza eles voltariam. Rand tentou não pensar no que aquilo poderia significar. Mesmo descansado, ainda tinha dúvidas suficientes sem precisar procurar por mais. Curvado na sela, começou a sonhar acordado, um sonho em que cuidava das ovelhas ao lado de Tam em um pasto com grama alta e exuberante e cotovias cantando numa manhã de primavera. E uma viagem para Campo de Emond, e o Bel Tine do jeito que sempre fora, dançando no Campo sem nenhuma preocupação além do cuidado para não tropeçar nos passos. E nesse devaneio ele se perdeu por um longo tempo.

A jornada até Baerlon levou quase uma semana. Lan reclamava da lentidão da viagem, mas era ele quem marcava o passo e forçava o restante a acompanhá-lo. Consigo mesmo e com seu garanhão, Mandarb — ele disse que significava “Lâmina” na Língua Antiga —, ele não era tão leniente. O Guardião cobria o dobro da distância deles, galopando adiante, o manto que mudava de cor turbilhonando ao vento, para rastrear o que havia à frente deles, ou ficando para trás para examinar a retaguarda. Qualquer outro que tentasse ir num ritmo mais rápido que uma caminhada, entretanto, era alvo de palavras cortantes sobre tomar conta de seus animais e palavras mordazes sobre como eles se dariam bem a pé se os Trollocs aparecessem. Nem mesmo Moiraine estava a salvo de sua língua se deixasse a égua branca marcar o próprio ritmo. Aldieb era o nome da égua; na Língua Antiga, “Vento Oeste”, o vento que trazia as chuvas de primavera.

O trabalho de batedor do Guardião não revelava nenhum sinal de perseguição nem de emboscada. Ele só falava do que via para Moiraine, e mesmo assim baixinho, para não ser ouvido, e a Aes Sedai informava ao restante deles o que julgava que precisavam saber. No começo, Rand olhava para trás tanto quanto para a frente. Não era o único. Perrin levava a mão ao machado com frequência, e Mat cavalgava com uma flecha encaixada no arco, no começo. Mas a terra atrás permanecia livre de Trollocs e figuras em mantos negros, e o céu continuava sem Draghkar. Lentamente, Rand começou a pensar que talvez eles tivessem realmente escapado.

Não se achava nenhuma grande cobertura, nem mesmo nas partes mais densas da floresta. O inverno era tão forte ao norte do Taren quanto nos Dois Rios. Pequenos arvoredos de pinheiros, abetos ou folhas-de-couro, e aqui e ali alguns benjoeiros ou louros, pontilhavam uma floresta que, afora isso, era toda galhos cinzentos e despidos de folhas. Nem mesmo as árvores mais velhas mostravam uma folha sequer. Somente galhinhos verdes dispersos de plantas novas despontavam contra o marrom das campinas arrasadas pelas neves do inverno. Ali também muito do que crescia eram urtigas, cardos e trombeteiras. Sobre a terra nua do chão da floresta, um pouco da última neve ainda resistia, em trechos sombrios e em montes sob os galhos baixos das árvores perenes. Todos mantinham seus mantos bem fechados, pois a tênue luz do sol não tinha calor, e o frio da noite cortava fundo. Ali não voavam mais pássaros do que nos Dois Rios, nem mesmo corvos.

Não havia nada de despreocupado na lentidão do movimento deles. A Estrada do Norte — Rand continuava a pensar nela desse jeito, embora suspeitasse de que ela pudesse ter um nome diferente ali, ao norte do Taren — ainda corria quase exatamente na direção norte, mas, por insistência de Lan, o caminho deles serpenteava para cá e para lá através da floresta com a mesma frequência com que seguia ao longo da estrada de dura terra batida. Uma aldeia, ou uma fazenda, ou qualquer sinal de homens ou de civilização fazia com que dessem voltas por milhas para evitá-los, embora não encontrassem muitos desses sinais. Durante todo o primeiro dia Rand não viu evidência alguma, além da estrada, de que homens houvessem algum dia estado naquela floresta. Ocorreu-lhe que mesmo quando chegara ao pé das Montanhas da Névoa provavelmente não estivera tão longe de uma habitação humana quanto estava naquele dia.

A primeira fazenda que viu, uma enorme casa e um celeiro alto com telhados pontudos de palha, uma espiral de fumaça saindo de uma chaminé de pedra, foi um choque.

— Não é diferente de onde viemos — disse Perrin, franzindo a testa ao olhar para os prédios distantes, que mal eram visíveis entre as árvores. Pessoas andavam pelo pátio da fazenda, sem se dar conta dos viajantes.

— É claro que é — disse Mat. — Só não estamos perto o bastante para ver.

— Estou dizendo. Não é diferente — insistiu Perrin.

— Tem de ser. Estamos ao norte do Taren, afinal de contas.

— Quietos, vocês dois — grunhiu Lan. — Não queremos ser vistos, lembram? Por aqui. — Virou-se para oeste para dar, por entre as árvores, a volta na fazenda.

Olhando para trás, Rand achou que Perrin tinha razão. A fazenda se parecia bastante com qualquer outra ao redor de Campo de Emond. Havia um garotinho tirando água do poço, e garotos mais velhos cuidando de ovelhas atrás de uma cerca de madeira. Via-se até mesmo uma estufa de cura, para o tabac. Mas Mat também tinha razão. Estamos ao norte do Taren. Deve ser diferente.

Eles sempre paravam enquanto ainda havia luz no céu, para escolher um ponto numa encosta, onde não houvesse acúmulo de água e fosse abrigado do vento que quase nunca parava completamente, só mudava de direção. A fogueira que faziam era sempre pequena e não podia ser vista mesmo de algumas jardas de distância, e, assim que o chá era feito, as chamas eram apagadas, e as brasas, enterradas.

Em sua primeira parada, antes de o sol se pôr, Lan começou a ensinar aos rapazes o que fazer com as armas que carregavam. Começou com o arco. Depois de ver Mat colocar três flechas num nó do tamanho da cabeça de um homem no tronco fissurado de uma folha-de-couro morta a cem passos de distância, ele disse aos outros que fizessem o mesmo. Perrin duplicou o feito de Mat, e Rand, invocando a chama e o vazio, meteu suas três onde as pontas quase se tocavam. Mat lhe deu um tapinha de congratulação no ombro.

— Bem, se todos vocês tivessem arcos — disse o Guardião com secura quando eles começaram a sorrir — e se os Trollocs concordassem em não chegar tão perto que vocês não pudessem usá-los… — Os sorrisos sumiram bruscamente. — Deixem-me ver o que posso lhes ensinar caso eles cheguem mais perto.

Mostrou a Perrin algumas técnicas para usar aquele machado de lâmina grande; erguer um machado para desferir um golpe contra alguém, ou alguma coisa, que tivesse uma arma era muito diferente de cortar lenha ou brandir a arma de brincadeira. Lan colocou o grande aprendiz de ferreiro para fazer uma série de exercícios, bloquear, esquivar e atacar, e fez o mesmo com Rand e sua espada. Não os saltos violentos e golpes que Rand tinha em mente sempre que pensava em usá-la, mas movimentos suaves, um fluindo para o outro, quase uma dança.

— Mover a lâmina não é o bastante — disse Lan —, embora uns pensem que sim. A mente faz parte disso, a maior parte. Esvazie a mente, pastor. Esvazie-a do ódio ou do medo, de tudo. Elimine tudo. Isso serve para vocês todos. Podem aplicar isso ao machado ou ao arco, à lança ou ao bastão, ou até mesmo às mãos nuas.

Rand o encarou.

— A chama e o vazio — disse ele, admirado. — É o que você quer dizer, não é? Meu pai me ensinou isso.

O Guardião lhe devolveu um olhar indecifrável.

— Segure a espada conforme lhe mostrei, pastor. Não posso transformar um aldeão bronco num mestre da espada em uma hora, mas talvez possa evitar que você corte seu próprio pé.

Rand deu um suspiro e segurou a espada ereta com as mãos à frente. Moiraine observava sem expressão, mas na noite seguinte ela disse a Lan que continuasse com as aulas.

A refeição da noite era sempre a mesma que a do meio do dia e o desjejum, pão ázimo, queijo e carne-seca, mas à noite havia chá quente para acompanhar em vez de água. De noite, Thom os entretinha. Lan não deixava que o menestrel tocasse a harpa nem a flauta — não havia necessidade de acordar o campo, dizia o Guardião —, mas Thom fazia malabarismos e contava histórias. “Mara e os Três Reis Tolos” ou uma das centenas de histórias sobre Anla, a Sábia Conselheira, ou algum conto de glória e aventura, como A Grande Caçada de Trompa, mas sempre com um final feliz e um alegre retorno para casa.

Entretanto, se por um lado a terra ao redor deles estava em paz, se nenhum Trolloc surgia entre as árvores, nenhum Draghkar entre as nuvens, a Rand parecia que eles conseguiam aumentar suas tensões por conta própria sempre que estas estavam em risco de desaparecer.

Como, por exemplo, na manhã em que Egwene acordou e começou a desfazer a trança de seus cabelos. Rand ficou olhando para ela de canto de olho enquanto enrolava o cobertor. À noite, quando o fogo era apagado, todos se deitavam em seus cobertores, menos Egwene e a Aes Sedai. As duas mulheres sempre se afastavam dos outros e ficavam conversando por uma ou duas horas, retornando quando todos já estavam dormindo. Egwene correu o pente pelos cabelos — cem vezes, ele contou — enquanto ele encilhava Nuvem, amarrando os alforjes e o cobertor atrás da sela. Então ela guardou o pente, jogou os cabelos soltos por cima do ombro e ergueu o capuz de seu manto.

Espantado, ele perguntou:

— O que você está fazendo? — Ela lhe lançou um olhar de esguelha sem responder. Era a primeira vez que ele falava com ela em dois dias, Rand se deu conta, desde a noite no abrigo de troncos às margens do Taren, mas não deixou que isso o detivesse. — Durante a vida toda você esperou para usar os cabelos numa trança, e agora está abrindo mão dela? Por quê? Porque ela não trança o dela?

— Aes Sedai não trançam seus cabelos — respondeu Egwene simplesmente. — Pelo menos, não se não quiserem.

— Você não é uma Aes Sedai. Você é Egwene al’Vere, de Campo de Emond, e o Círculo das Mulheres teria um chilique se a visse agora.

— O que o Círculo das Mulheres faz não é da sua conta, Rand al’Thor. E eu serei uma Aes Sedai. Assim que chegar a Tar Valon.

Ele bufou.

— Assim que chegar a Tar Valon. Por quê? Pela Luz, me diga. Você não é uma Amiga das Trevas.

— Você acha que Moiraine Sedai é Amiga das Trevas? Acha mesmo? — Ela se virou de todo e o encarou com os punhos cerrados, e ele quase pensou que ela fosse lhe dar um soco. — Depois de ela ter salvado a aldeia? Depois de ter salvado seu pai?

— Eu não sei o que ela é, mas, seja lá o que for, isso não diz nada sobre o restante delas. As histórias…

— Cresça, Rand! Esqueça as histórias e use seus olhos.

— Meus olhos a viram afundar a barca! Negue isso! Quando você mete uma ideia na cabeça, não tira nem que alguém aponte que você está tentando andar sobre as águas. Se não fosse uma tola tão cega pela Luz, veria…!

— Tola, eu? Deixe-me contar uma ou duas coisinhas a você, Rand al’Thor! Você é o sujeito mais teimoso, mais estúpido…!

— Vocês dois estão tentando acordar todo mundo num raio de dez milhas? — perguntou o Guardião.

Ali parado de pé com a boca aberta, tentando falar, Rand subitamente percebeu que estava gritando. Os dois estavam.

O rosto de Egwene ficou vermelho até as sobrancelhas, e ela girou sobre os calcanhares com um resmungo — “Homens!” — que parecia voltado tanto para o Guardião quanto para ele.

Desconfiado, Rand olhou ao redor. Todos o fitavam, não só o Guardião. Mat e Perrin, com o rosto branco. Thom, tenso, como se pronto para fugir ou lutar. Moiraine. O rosto da Aes Sedai não tinha expressão, mas seus olhos pareciam perfurar a cabeça dele. Desesperado, ele tentou se lembrar exatamente do que tinha dito sobre Aes Sedai e Amigos das Trevas.

— Está na hora de partirmos — anunciou Moiraine. Em seguida, virou-se para Aldieb, e Rand estremeceu como se tivesse sido libertado de uma armadilha. Ficou imaginando se não era isso o que havia acontecido.

Duas noites depois, com o fogo queimando baixo, Mat lambeu as últimas migalhas de queijo dos dedos e disse:

— Sabe, acho que os despistamos para valer. — Lan havia saído na noite, dando uma última olhada ao redor do acampamento. Moiraine e Egwene haviam se afastado para uma de suas conversas. Thom estava cochilando sobre o cachimbo, e os jovens tinham o fogo só para eles.

Perrin, cutucando as brasas distraidamente com uma vara, respondeu:

— Se os perdemos, por que Lan continua fazendo trabalho de batedor? — Quase dormindo, Rand rolou, as costas voltadas para o fogo.

— Eles nos perderam em Barca do Taren. — Mat recostou-se com os dedos trançados atrás da cabeça, olhando para o céu tomado pela lua. — Se é que estavam mesmo atrás da gente.

— Você acha que aquele Draghkar estava nos perseguindo porque gostou da gente? — perguntou Perrin.

— O que estou dizendo é: parem de se preocupar com Trollocs e coisas do gênero — continuou Mat, como se Perrin não tivesse falado — e comecem a pensar em ver o mundo. Estamos no lugar de onde as histórias vêm. Como acham que é uma cidade de verdade?

— Estamos indo para Baerlon — disse Rand, sonolento, mas Mat bufou.

— Baerlon até que não é ruim, mas eu vi aquele mapa velho de Mestre al’Vere. Se virarmos para o sul assim que chegarmos a Caemlyn, a estrada leva diretamente para Illian, e além.

— O que há de tão especial em Illian? — perguntou Perrin, bocejando.

— Para começar — respondeu Mat —, Illian não está cheia de Aes Se…

Um silêncio recaiu sobre o acampamento, e Rand subitamente viu-se de todo desperto. Moiraine havia voltado mais cedo. Egwene estava com ela, mas foi a Aes Sedai, em pé à beira da fogueira, que chamou a atenção de todos. Mat estava ali deitado, a boca ainda aberta, o olhar fixo nela. Os olhos de Moiraine capturavam a luz como pedras polidas e escuras. Rand perguntou-se há quanto tempo ela estaria ali parada.

— Os rapazes só estavam… — começou Thom.

Mas Moiraine falou, suas palavras atropelando as dele:

— Um descanso de alguns dias e vocês estão prontos para desistir. — A voz calma e baixa em um contraste agudo com seus olhos. — Um dia ou dois de tranquilidade, e vocês já se esqueceram da Noite Invernal.

— Não esquecemos — disse Perrin. — É só que…

Ainda sem levantar a voz, a Aes Sedai fez com ele o mesmo que havia feito com o menestrel.

— É assim que vocês todos se sentem? Estão ansiosos para sair correndo para Illian e esquecer de Trollocs, Meios-homens e Draghkar? — Ela correu os olhos por eles, aquele brilho pétreo se sobrepondo ao tom cotidiano de voz deixava Rand perturbado, mas não deu a ninguém a chance de falar. — O Tenebroso está atrás de vocês três, de um ou de todos, e se eu deixá-los fugir para onde vocês querem, ele os pegará. Ao que quer que o Tenebroso queira, eu me oponho, então ouçam isto e saibam que é verdade. Antes de deixar que o Tenebroso pegue vocês, eu os destruirei pessoalmente.

Foi a voz dela, tão prosaica, que convenceu Rand. A Aes Sedai faria exatamente o que disse se achasse que era necessário. Ele custou muito a dormir naquela noite, e não foi o único. Mesmo o menestrel, cujo ronco só começou bem depois que as últimas brasas morreram. Dessa vez, Moiraine não ofereceu nenhuma ajuda.

Aquelas conversas noturnas entre Egwene e a Aes Sedai eram uma coisa que incomodava muito Rand. Sempre que elas desapareciam na escuridão, afastando-se dos outros em busca de privacidade, ele se perguntava sobre o que elas estariam falando, o que estariam fazendo. O que a Aes Sedai estava fazendo com Egwene?

Uma noite, ele aguardou até que os outros homens tivessem se deitado, Thom roncando feito uma serra cortando um nó num carvalho. Então ele saiu de fininho, o cobertor enrolado no corpo. Usando toda a habilidade que havia adquirido perseguindo coelhos, ele se moveu com as sombras da lua até se encontrar agachado na base de uma árvore de folha-de-couro alta, a copa densa com folhas largas e duras, perto o bastante para ouvir Moiraine e Egwene, onde elas se encontravam sentadas num tronco caído com um pequeno lampião fornecendo alguma luz.

— Pergunte — Moiraine dizia —, e, se puder lhe responder agora, eu o farei. Compreenda, há muitas coisas para as quais você ainda não está pronta, coisas que não pode aprender até ter aprendido outras que exigirão ainda outros aprendizados prévios. Mas pergunte o que quiser.

— Os Cinco Poderes — Egwene disse devagar. — Terra, Vento, Fogo, Água e Espírito. Não parece justo que os homens sejam os mais fortes para lidar com Terra e Fogo. Por que ficaram com os Poderes mais fortes?

Moiraine riu.

— É isso o que você pensa, criança? Existe uma rocha tão dura que o vento e a água não possam desgastar, um fogo tão forte que a água não possa apagar ou que o vento não possa extinguir?

Egwene ficou em silêncio por um tempo, escavando o chão da floresta com o dedo do pé.

— Eles… eles foram os que… que tentaram libertar o Tenebroso e os Abandonados, não foram? Os homens Aes Sedai? — Ela respirou fundo e prosseguiu com mais firmeza. — As mulheres não fizeram parte disso. Foram os homens que ficaram loucos e causaram a Ruptura do Mundo.

— Você está com medo — disse Moiraine num tom de voz sombrio. — Se tivesse ficado em Campo de Emond, com o tempo, se tornaria Sabedoria. Esse era o plano de Nynaeve, não era? Ou você teria se sentado no Círculo das Mulheres e gerenciado os problemas de Campo de Emond enquanto o Conselho da Aldeia achava que o fazia. Mas você fez o impensável. Deixou o Campo de Emond, deixou os Dois Rios em busca de aventura. Você queria fazer isso, mas ao mesmo tempo tem medo. E teimosamente se recusa a deixar seu medo vencê-la. Caso contrário, não teria me perguntado como uma mulher se torna uma Aes Sedai. Caso contrário, não teria deixado de lado costumes e convenções.

— Não — protestou Egwene. — Não tenho medo. Eu quero me tornar uma Aes Sedai.

— Melhor para você se tivesse medo, mas espero que se atenha a essa convicção. Poucas mulheres hoje têm a habilidade para se tornar iniciadas, quanto mais ter esse desejo. — A voz de Moiraine soava como se ela tivesse começado a ponderar consigo mesma. — Certamente nunca antes duas em uma única aldeia. O sangue antigo é de fato ainda forte nos Dois Rios.

Nas sombras, Rand se mexeu. Um graveto estalou sob seu pé. Ele se imobilizou no mesmo instante, suando e prendendo a respiração, mas nenhuma das mulheres olhou ao redor.

— Duas? — exclamou Egwene. — Quem mais? É Kari? Kari Thane? Lara Ayellan?

Moiraine estalou a língua, exasperada, então disse com severidade:

— Esqueça que eu disse isso. A estrada dela segue em outra direção. Preocupe-se com suas próprias circunstâncias. A estrada que escolheu não é fácil.

— Eu não vou retornar — disse Egwene.

— Assim seja. Mas você ainda quer uma garantia, e isso eu não posso lhe dar, não do jeito que quer.

— Não compreendo.

— Você quer ouvir que as Aes Sedai são boas e puras, que foram aqueles homens malvados das lendas que provocaram a Ruptura do Mundo, não as mulheres. Bem, foram os homens, mas eles não eram mais perversos que qualquer outro homem. Eles eram insanos, não maus. As Aes Sedai que você vai encontrar em Tar Valon são humanas, em nada diferentes de outras mulheres exceto pela habilidade que nos distingue. Elas são corajosas e covardes, fortes e fracas, bondosas e cruéis, compassivas e frias. Tornar-se uma Aes Sedai não fará você ser diferente do que é.

Egwene respirou fundo.

— Acho que era disso que eu tinha medo, de ser transformada pelo Poder. Disso e dos Trollocs. E do Desvanecido. E… Moiraine Sedai, em nome da Luz, por que os Trollocs foram a Campo de Emond?

A cabeça da Aes Sedai girou, e ela olhou direto para o esconderijo de Rand. A respiração dele ficou presa na garganta; os olhos dela estavam tão duros quanto no momento em que ela os ameaçara, e ele teve a sensação de que podiam penetrar os galhos espessos da árvore. Luz, o que ela fará se me pegar escutando?

Ele tentou recuar e se fundir com as sombras mais escuras. Com os olhos nas mulheres, uma raiz prendeu seu pé, e por muito pouco ele não desabou em cima de arbustos mortos que o teriam desmascarado com um espocar de galhos partidos igual a fogos de artifício. Arfando, ele saiu tropeçando de quatro, mantendo-se em silêncio mais por sorte do que por qualquer outra coisa. Seu coração batia tão forte que ele achou que os batimentos acabariam por entregá-lo. Idiota! Ficar espionando uma Aes Sedai!

De volta aonde os outros estavam dormindo, ele conseguiu se meter entre eles silenciosamente. Lan se mexeu quando ele caiu ao chão e puxou o cobertor, mas o Guardião voltou a se acomodar com um suspiro. Ele só havia se virado no sono. Rand soltou uma respiração longa e silenciosa.

Um instante depois Moiraine surgiu de dentro da noite, parando onde podia estudar as formas adormecidas. O luar criava um nimbo em torno dela. Rand fechou os olhos e respirou regularmente, o tempo todo de ouvidos atentos à espera de passos se aproximando. Não ouviu nada. Quando voltou a abrir os olhos, ela havia ido embora.

Quando finalmente o sono chegou, este foi perturbado e cheio de sonhos assustadores nos quais todos os homens em Campo de Emond alegavam ser o Dragão Renascido e todas as mulheres tinham pedras azuis nos cabelos como aquela que Moiraine usava. Ele não tentou mais ouvir as conversas de Moiraine e Egwene.

A lenta jornada se prolongou pelo sexto dia. O sol frio deslizava lentamente na direção das copas das árvores, enquanto um punhado de nuvens finas vagava no alto para o norte. O vento soprou numa rajada mais forte por um momento, e Rand ajeitou o manto em torno dos ombros, resmungando consigo mesmo. Ele se perguntava se algum dia eles chegariam a Baerlon. A distância que haviam viajado desde o rio já era mais do que suficiente para levá-lo de Barca do Taren ao Rio Branco, mas, sempre que alguém perguntava, Lan dizia que era apenas uma curta jornada, que nem valia a pena chamar aquilo de jornada. Isso fazia com que ele se sentisse perdido.

Lan surgiu à frente deles na floresta, retornando de uma de suas incursões. Ele puxou as rédeas e passou a cavalgar ao lado de Moiraine, a cabeça abaixada ao lado da dela.

Rand fez uma careta, mas não perguntou mais nada. Lan simplesmente se recusava a responder qualquer pergunta dessa natureza que lhe dirigiam.

Somente Egwene entre os demais pareceu reparar no retorno de Lan, de tão acostumados a esse arranjo eles estavam, e ela também se conteve. A Aes Sedai podia ter começado a agir como se Egwene estivesse encarregada dos moradores de Campo de Emond, mas isso não lhe dava direito algum quando o Guardião fazia seus relatórios. Perrin carregava o arco de Mat, envolto no silêncio pensativo que parecia dominá-los mais e mais à medida que se afastavam dos Dois Rios. A lenta marcha dos cavalos permitia que Mat praticasse malabarismo com três pedras pequenas sob o olhar vigilante de Thom Merrilin. Assim como Lan, o menestrel também dava aulas todas as noites.

Lan terminou o que quer que estivesse contando a Moiraine, que se virou em sua sela a fim de olhar para os outros. Rand tentou não enrijecer quando os olhos dela passaram por ele. Teriam se detido sobre ele um instante a mais do que sobre os outros? Ele tinha a desagradável sensação de que ela sabia quem estivera escutando na escuridão naquela noite.

— Ei, Rand — gritou Mat. — Já consigo fazer malabarismo com quatro! — Rand acenou em resposta sem olhar para trás. — Eu disse que ia chegar a quatro antes de você. Eu… Olhe!

Eles haviam chegado ao topo de uma colina baixa, e, à frente deles, a cerca de uma milha entre as árvores nuas e as sombras compridas da noite, lá embaixo, estendia-se Baerlon. Rand arquejou, tentando sorrir e escancarar a boca ao mesmo tempo.

Uma muralha de troncos de quase vinte pés de altura cercava a cidade, com torres de vigia de madeira espalhadas ao longo de sua extensão. Do lado de dentro, telhados de ardósia e azulejo reluziam com o sol que baixava, e penachos de fumaça saíam das chaminés. Centenas de chaminés. Não havia um só telhado de palha à vista. Uma estrada larga corria para leste a partir da cidade, e outra para oeste, cada qual com pelo menos uma dezena de carroças e duas vezes a mesma quantidade de carros de boi seguindo na direção da paliçada. Fazendas jaziam espalhadas em torno da cidade, mais agrupadas ao norte, enquanto apenas algumas rompiam a floresta ao sul. Para Rand, no entanto, elas podiam muito bem não estar lá. É maior do que Campo de Emond, a Colina da Vigília e Trilha de Deven, todas juntas! E talvez até Barca do Taren.

— Então isso é uma cidade. — Mat suspirou, inclinando-se para a frente sobre o pescoço do cavalo para olhar melhor.

Perrin só conseguia balançar a cabeça.

— Como pode tanta gente viver num lugar só?

Egwene ficou simplesmente olhando.

Thom Merrilin olhou de relance para Mat, depois revirou os olhos e soprou os bigodes.

— Cidade! — Ele bufou.

— E você, Rand? — perguntou Moiraine. — O que acha de sua primeira visão de Baerlon?

— Eu acho que é muito longe de casa — disse ele devagar, provocando uma risada aguda de Mat.

— Vocês ainda têm muito que percorrer — disse Moiraine. — Muito. Mas não há outra escolha, exceto fugir, esconder-se e fugir novamente, pelo resto de suas vidas. E seriam vidas curtas. Vocês precisam se lembrar disso, quando a jornada se tornar difícil. Vocês não têm escolha.

Rand trocou olhares com Mat e Perrin. Pela expressão deles, estavam pensando a mesma coisa. Como ela podia falar como se eles tivessem alguma escolha depois do que dissera. A Aes Sedai fez a escolha por nós.

Moiraine continuou como se o pensamento deles não fosse óbvio.

— O perigo recomeça aqui. Cuidado com o que dizem dentro dessas muralhas. Acima de tudo, não mencionem Trollocs, nem Meios-homens, nem coisas do gênero. Vocês não devem nem sequer pensar no Tenebroso. Alguns em Baerlon têm menos apreço pela Aes Sedai do que a gente de Campo de Emond, e pode haver até mesmo Amigos das Trevas. — Egwene arquejou, e Perrin murmurou entredentes. O rosto de Mat empalideceu, mas Moiraine continuou calmamente: — Precisamos atrair o mínimo de atenção possível. — Lan estava trocando seu manto de cinza e verdes mutantes por um marrom-escuro, mais comum, embora de fino corte. Seu manto de cores mutáveis formou uma grande protuberância em um de seus alforjes. — Aqui não usamos nossos nomes verdadeiros — prosseguiu Moiraine. — Aqui sou conhecida como Alys, e Lan é Andra. Lembrem-se disso. Muito bem. Vamos adentrar as muralhas antes que a noite nos pegue. Os portões de Baerlon ficam fechados do pôr do sol ao amanhecer.

Lan conduziu-os colina abaixo e pela floresta na direção da muralha de troncos. A estrada passava por meia dúzia de fazendas — nenhuma das casas ficava próxima, e nenhuma das pessoas que concluíam suas tarefas pareceu reparar nos viajantes —, terminando em portões pesados de madeira presos com cintas largas de ferro preto. Eles estavam bem fechados, mesmo com o sol ainda no céu.

Lan aproximou-se da muralha e deu um puxão em uma corda esfiapada que pendia ao lado dos portões. Um sino soou do outro lado da muralha. De repente, do alto da muralha, um rosto vincado sob um capacete de tecido surrado espiou desconfiado para baixo, olhando entre as pontas cortadas de dois dos troncos, umas boas três braças acima da cabeça deles.

— O que é isso, hein? Está muito tarde para abrir este portão. Tarde demais, eu digo. Deem a volta até o Portão de Ponte Branca se quiserem… — A égua de Moiraine foi até onde o homem no alto da muralha pudesse vê-la com clareza. Subitamente as rugas dele se aprofundaram num sorriso em que faltavam alguns dentes, e ele pareceu hesitar entre falar e cumprir seu dever. — Eu não sabia que era a senhora. Espere. Já estou descendo. Espere só um pouquinho. Já estou chegando. Já estou chegando.

A cabeça sumiu de vista, mas Rand ainda conseguia ouvir gritos abafados para que eles ficassem onde estavam, que ele estava chegando. Com grandes rangidos decorrentes do desuso, o lado direito do portão deslizou lentamente para fora, parando quando a abertura era apenas suficiente para a passagem de um cavalo de cada vez. O vigia meteu a cabeça para fora pela abertura, ofereceu-lhes novamente seu sorriso meio desdentado e recuou correndo, saindo do caminho. Moiraine entrou seguindo Lan, com Egwene logo atrás dela.

Rand conduziu Nuvem num trote depois de Bela e se viu numa rua estreita com cercas altas de madeira e armazéns, altos e sem janelas, as grandes portas muito bem fechadas. Moiraine e Lan já estavam de pé, conversando com o vigia de rosto enrugado, e Rand também desmontou.

O homenzinho, usando manto e casaco muito remendados, segurava seu chapéu de tecido amarrotado numa das mãos e abaixava a cabeça sempre que falava. Espiou aqueles que desmontavam atrás de Lan e Moiraine, e balançou a cabeça.

— Gente das terras de baixo. — Ele sorriu. — Ora, Senhora Alys, começou a colecionar gente do sul com feno no cabelo? — Então seu olhar chegou a Thom Merrilin. — Você não é um criador de ovelhas. Eu me lembro de tê-lo deixado passar faz alguns dias. Não gostaram dos seus truques lá no sul, hein, menestrel?

— Espero que o senhor tenha se lembrado de esquecer que nos deixou passar, Mestre Avin — disse Lan, colocando uma moeda na mão livre do homem. — E de nos deixar voltar também.

— Isso não é necessário, Mestre Andra. Não é preciso. O senhor me deu o suficiente quando partiu. O suficiente. — Ainda assim Avin fez a moeda desaparecer habilmente, como se ele também fosse um menestrel. — Eu não contei a ninguém e não vou contar. Especialmente não a eles, os Mantos-brancos. — Ele terminou com uma careta. Franziu os lábios para cuspir, então olhou de relance para Moiraine e engoliu.

Rand piscou, mas ficou de boca fechada. Os outros fizeram o mesmo, embora para Mat isso parecesse ser um esforço. Filhos da Luz, Rand pensou imaginando. Histórias contadas sobres os Filhos por mascates, mercadores e guardas dos mercadores variavam da admiração ao ódio, mas todas concordavam que os Filhos odiavam Aes Sedai tanto quanto odiavam Amigos das Trevas. Ficou se perguntando se isso já não significava mais problemas.

— Os Filhos estão em Baerlon? — Lan exigiu saber.

— Certamente que sim. — O vigia do portão assentiu com a cabeça. — Chegaram no mesmo dia que os senhores partiram, se me lembro bem. Ninguém aqui gosta deles. A maioria não demonstra, é claro.

— Eles disseram por que estão aqui? — Moiraine perguntou, interessada.

— Por que estão aqui, senhora? — Avin ficou tão surpreso que esqueceu de abaixar a cabeça. — É claro, eles disseram por que… Ah, esqueci. A senhora estava lá para baixo. É provável que não tenha ouvido nada a não ser as ovelhas balindo. Dizem que estão aqui por causa do que está acontecendo lá em Ghealdan. O Dragão, a senhora sabe… bem, aquele que se autodenomina Dragão. Eles dizem que o sujeito está despertando o mal… o que eu imagino que esteja mesmo… e eles estão aqui para acabar com isso. Só que ele está lá em Ghealdan, não aqui. Isso foi só uma desculpa para se meterem nos assuntos das outras pessoas, é o que eu acho. Já encontraram a Presa do Dragão nas portas de algumas pessoas. — Dessa vez ele cuspiu.

— Então eles têm causado problemas? — perguntou Lan, e Avin sacudiu a cabeça vigorosamente.

— Não que não queiram, imagino, só que o Governador não confia neles mais do que eu. E não deixa entrar mais do que dez no interior das muralhas de cada vez, e eles ficam furiosos com isso. O restante fica em um acampamento um pouco ao norte, pelo que ouvi dizer. Aposto que os fazendeiros ficam de olho neles o tempo todo. Os que conseguem entrar só ficam espreitando naqueles mantos brancos, olhando de nariz empinado para gente honesta. Caminhem na Luz, eles dizem, e é uma ordem. Quase saíram no soco mais de uma vez com os condutores de carroça, mineiros e fundidores e outros, e até mesmo a Guarda, mas o Governador quer tudo em paz, e é assim que tem sido até agora. Se eles estão caçando o mal, eu pergunto: por que não estão lá em cima, em Saldaea? Estão tendo algum tipo de problema lá em cima, pelo que ouvi dizer. Ou lá embaixo, em Ghealdan? Houve uma grande batalha por lá, dizem eles. Grande mesmo.

Moiraine suspirou baixinho.

— Ouvi dizer que Aes Sedai estavam indo para Ghealdan.

— Sim, foram mesmo, senhora. — A cabeça de Avin começou a se sacudir novamente. — Foram para Ghealdan, isso mesmo, e foi isso o que começou a batalha, ou pelo menos foi o que ouvi falar. Dizem que algumas dessas Aes Sedai estão mortas. Talvez todas elas. Eu conheço alguns sujeitos que não se dão com Aes Sedai, mas eu digo, quem mais vai deter um falso Dragão? Hein? E aqueles tolos malditos que pensam que podem ser Aes Sedai homens ou coisa do gênero? O que me dizem deles? É claro que alguns dizem… não os Mantos-brancos, veja bem, e nem eu, mas alguns… que talvez esse sujeito realmente seja o Dragão Renascido. Ele pode fazer coisas, ouvi dizer. Usar o Poder Único. E tem milhares de seguidores.

— Não seja tolo — disse Lan bruscamente, e o rosto de Avin se fechou numa expressão magoada.

— Só estou dizendo o que ouvi, está bem? Só o que ouvi, Mestre Andra. Eles dizem, alguns dizem, que ele está levando seu exército para leste e para sul, na direção de Tear. — Sua voz tornou-se solene, cheia de implicações. — Dizem que ele os chamou de Povo do Dragão.

— Nomes pouco significam — replicou Moiraine calmamente. Se alguma coisa que ouvira a perturbara, ela não dava nenhum sinal. — Você podia chamar sua mula de Povo do Dragão, se quisesse.

— Isso não seria provável, senhora. — Avin riu. — Não com os Mantos-brancos por aí, certamente. Não creio que ninguém fosse gostar muito de um nome desses também. Entendi o que a senhora quis dizer, mas… Ah, não, senhora. A minha mula não.

— Sem dúvida uma sábia decisão — afirmou Moiraine. — Agora precisamos ir.

— E a senhora não se preocupe — disse Avin, abaixando bem a cabeça. — Eu não vi ninguém. — Ele correu até o portão e começou a fechá-lo com puxões rápidos. — Não vi ninguém e não vi nada. — O portão se fechou com uma pancada seca, e Avin desceu a tranca com uma corda. — Na verdade, senhora, há dias que este portão não é aberto.

— Que a Luz o ilumine, Avin — disse Moiraine.

Então ela os levou dali. Rand olhou para trás uma vez, e Avin ainda estava em pé diante do portão. Ele parecia estar polindo uma moeda com a borda do manto e rindo baixinho.

O caminho levava por ruas de terra batida onde mal passavam duas carroças lado a lado, e que estavam desertas; as ruas eram todas ladeadas por armazéns e ocasionais cercas altas de madeira. Rand caminhou por algum tempo ao lado do menestrel.

— Thom, o que foi aquilo sobre Tear e o Povo do Dragão? Tear é uma cidade lá no Mar das Tempestades, não é?

O Ciclo de Karaethon — disse Thom, seco.

Rand piscou. As Profecias do Dragão.

— Ninguém conta as… essas histórias nos Dois Rios. Pelo menos não em Campo de Emond. A Sabedoria esfolaria vivo quem fizesse isso.

— Acho que ela faria isso mesmo — replicou Thom com secura. Ele olhou de relance para Moiraine, que seguia adiante com Lan, viu que ela não podia ouvi-los, e continuou: — Tear é o maior porto no Mar das Tempestades, e a Pedra de Tear é a fortaleza que a protege. Dizem que foi a primeira fortaleza construída depois da Ruptura do Mundo, e em todo esse tempo ela jamais caiu, embora muitos exércitos tenham tentado derrubá-la. Uma das Profecias diz que a Pedra de Tear não cairá até que o Povo do Dragão vá até ela. Outra diz que a Pedra não cairá até que a Espada que Não Pode Ser Tocada seja brandida pela mão do Dragão. — Thom fez uma careta. — A queda da Pedra será uma das maiores provas de que o Dragão renasceu. Que a Pedra possa resistir até que eu vire pó.

— A espada que não pode ser tocada?

— É o que se diz. Não sei se é uma espada. Seja lá o que for, fica no Coração da Pedra, a cidadela central da fortaleza. Ninguém a não ser os Grão-senhores de Tear pode entrar lá, e eles nunca falam do que há lá dentro. Certamente não para menestréis, pelo menos.

Rand franziu a testa.

— A Pedra não pode cair até que o Dragão empunhe a espada, mas como ele pode fazer isso, a menos que a Pedra já tenha caído? Será que o Dragão deve ser um Grão-senhor de Tear?

— Não vejo muita chance disso — respondeu o menestrel, seco. — Tear odeia qualquer coisa que tenha a ver com o Poder, mais ainda que Amador, e Amador é a base dos Filhos da Luz.

— Então como a Profecia poderá se realizar? — perguntou Rand. — Eu gostaria muito que o Dragão nunca renascesse, mas uma profecia que não pode ser realizada não faz muito sentido. Parece uma história criada para fazer as pessoas pensarem que o Dragão jamais renascerá. É isso mesmo?

— Você faz muitas perguntas, garoto — observou Thom. — Uma profecia que fosse facilmente cumprida não valeria de muita coisa, valeria? — Subitamente sua voz se alegrou. — Bem, chegamos. Onde quer que seja.

Lan havia parado diante de uma seção de cerca de madeira da altura de sua cabeça que não parecia diferente de nenhuma outra pela qual já haviam passado. Ele estava inserindo a lâmina de seu punhal entre duas das tábuas. Subitamente soltou um grunhido de satisfação, puxou, e uma parte da cerca se abriu como um portão. Na verdade, era mesmo um portão, Rand viu, embora a intenção original fosse de que ela se abrisse somente pelo lado interno. O trinco de metal que Lan havia erguido com sua adaga demonstrava isso.

Moiraine entrou imediatamente, puxando Aldieb. Lan fez sinal para que os demais a seguissem e ficou na retaguarda, fechando o portão atrás de si.

Do outro lado da cerca, Rand se viu no pátio do estábulo de uma estalagem. Um grande ruído vinha da cozinha da construção, mas o que o impressionou foi o tamanho desta: ela cobria mais que o dobro da Estalagem Fonte de Vinho e tinha quatro andares de altura. Bem mais da metade das janelas reluzia no crepúsculo que se adensava. Rand admirou-se com aquela cidade, onde devia haver muitos estranhos.

Mal haviam acabado de entrar no pátio e três homens vestindo aventais de lona sujos apareceram nas amplas portas em arco do imenso estábulo. Um deles, um sujeito esguio e musculoso, e o único sem um forcado para estrume nas mãos, avançou, acenando com os braços.

— Ei! Ei! Vocês não podem entrar por aí! Têm de dar a volta pela frente!

A mão de Lan foi até sua bolsa mais uma vez, mas nesse instante outro homem, tão grande de cintura quanto o Mestre al’Vere, saiu correndo da estalagem. Tufos de cabelo despontavam acima de suas orelhas, e o avental branco impecável era um sinal claro, proclamando-o o estalajadeiro.

— Está tudo certo, Mutch — disse o recém-chegado. — Está tudo certo. Essas pessoas são convidados que já eram esperados. Tome conta dos cavalos deles. Tome conta muito bem.

Mutch massageou a testa com os nós dos dedos, amuado, depois fez um gesto para seus dois companheiros virem ajudar. Rand e os outros rapidamente tiraram seus alforjes e cobertores enrolados enquanto o estalajadeiro se voltava para Moiraine. Ele lhe fez uma grande mesura e falou com um sorriso genuíno:

— Bem-vinda, Senhora Alys. Bem-vinda. É bom vê-la novamente, a senhora e o Mestre Andra também. Muito bom. Sentimos falta de sua ótima conversa. Sentimos, sim. Devo dizer que fiquei preocupado com sua ida ao sul e tudo o mais. Bem, quer dizer, numa época destas, com o tempo todo enlouquecido e lobos uivando para as muralhas à noite. — Subitamente ele bateu as duas mãos na barriga redonda e balançou a cabeça. — Cá estou eu de novo, falando sem parar, em vez de levá-los para dentro. Venham. Venham. Refeições quentes e camas mornas, é isso o que vocês querem agora. E as melhores de Baerlon estão bem aqui. As melhores.

— E banhos quentes também, espero, Mestre Fitch? — perguntou Moiraine, e Egwene ecoou fervorosamente:

— Ah, isso.

— Banhos? — perguntou o estalajadeiro. — Ora, simplesmente os melhores e mais quentes de Baerlon. Vamos. Bem-vindos ao Cervo e Leão. Bem-vindos a Baerlon.

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