52 Não Há Começo Nem Fim

Primeiro, Rand se deu conta do sol, movendo-se por um céu sem nuvens, preenchendo seus olhos que não piscavam. Parecia andar aos trancos, ficando parado por dias e em seguida disparando adiante num risco de luz, rumo ao horizonte distante, o dia caindo junto com ele. Luz. Isso deveria significar alguma coisa. O pensamento era algo novo. Eu posso pensar. E eu significa eu. Em seguida veio a dor, a lembrança de uma febre terrível, os hematomas onde tremores de frio o haviam jogado de um lado para outro como uma boneca de pano. E um fedor. Um cheiro gorduroso, de queimado, que preenchia suas narinas e sua cabeça.

Com os músculos doloridos, ele se virou e se ergueu, conseguindo ficar de quatro. Sem compreender, olhou fixamente para as cinzas oleosas sobre as quais estivera deitado, cinzas dispersas, manchas sobre a rocha no topo da colina. Pedaços de tecido verde-escuro jaziam misturados ao carvão, fragmentos com as bordas enegrecidas que haviam escapado das chamas.

Aginor.

Seu estômago se revirou. Tentando limpar as manchas negras de cinzas de suas roupas, ele se afastou tropegamente dos restos do Abandonado. Suas mãos se moviam debilmente, o que não o fazia avançar muito. Tentou usar as duas mãos e caiu para a frente. Diante de seu rosto estendia-se uma queda brusca, um paredão de rocha lisa que girava em sua visão, com a altura a atraí-lo. Sua cabeça começou a rodopiar, e ele vomitou sobre a beira do precipício.

Tremendo, rastejou de bruços para trás até ver pedra sólida sob os olhos, e então se virou e caiu de costas, ofegante. Com grande esforço, tirou a espada da bainha. Apenas algumas cinzas restavam do pano vermelho. Suas mãos tremeram quando ele a segurou na frente do rosto; foram necessárias as duas mãos. Era uma lâmina com a marca da garça… Marca da garça? Sim. Tam. Meu pai… Mas era apenas aço. Precisou de três tentativas vacilantes para tornar a embainhá-la. Ela havia sido alguma outra coisa. Ou então havia outra espada.

— Meu nome — disse, depois de um tempo — é Rand al’Thor. — Mais lembranças voltaram violentamente à sua cabeça, como uma bola de chumbo, e ele gemeu. — O Tenebroso — sussurrou para si mesmo. — O Tenebroso está morto. — Não havia mais necessidade de cautela. — Shai’tan está morto. — O mundo pareceu balançar. Ele tremeu em um júbilo silencioso até as lágrimas começarem a jorrar de seus olhos. — Shai’tan está morto! — Ele riu para o céu. Outras lembranças. — Egwene! — Aquele nome significava algo importante.

Dolorosamente ele se levantou, oscilando como um salgueiro numa ventania, e passou, cambaleante, pelas cinzas de Aginor sem olhar para elas. Isso não importa mais. Ele mais caiu do que desceu por aquela primeira parte íngreme da encosta, tropeçando e escorregando de um arbusto a outro. Quando chegou a uma parte mais reta do terreno, seus hematomas doíam duas vezes mais, no entanto ele encontrou forças suficientes para ficar em pé, precariamente. Egwene. Ele partiu numa corrida desengonçada. Uma chuva de folhas e pétalas de flores caía ao seu redor enquanto ele passava aos trancos pela mata rasteira. Tenho de encontrá-la. Quem é ela?

Seus braços e pernas pareciam mais se vergar como longas folhas de relva que agir como ele ordenava. Vacilante, caiu de encontro a uma árvore, batendo com tanta força no tronco que soltou um grunhido. Uma chuva de folhas caiu em sua cabeça enquanto ele pressionava o rosto contra a casca rugosa, segurando-se para não cair. Egwene. Ele se forçou a se afastar da árvore e continuou correndo. Quase imediatamente voltou a vacilar, caindo, mas forçou as pernas a se moverem mais rápido, correrem na direção da descida, de modo que passou a cambalear numa boa velocidade, sempre a um passo de cair de cara no chão. Movimentar-se fez com que suas pernas começassem a obedecer mais. Lentamente, ele se viu correndo ereto, braços subindo e descendo, as pernas compridas levando-o aos saltos encosta abaixo. Entrou com um pulo na clareira, cuja metade fora tomada pelo grande carvalho que marcava o túmulo do Homem Verde. Lá estavam o arco de pedra branca marcado com o símbolo ancestral das Aes Sedai e o poço escuro onde fogo e vento haviam tentado capturar Aginor e falhado.

— Egwene! Egwene, onde está você? — Uma garota bonita, de olhos grandes, levantou a cabeça de onde estava ajoelhada sob os galhos, com flores no cabelo, e folhas marrons de carvalho. Era esguia e jovem, e estava com medo. Sim, é assim que ela é. É claro. — Egwene, graças à Luz você está bem.

Havia duas outras mulheres com ela, uma com olhos assombrados e uma longa trança, ainda decorada com algumas estrelas-da-manhã brancas. A outra jazia estendida no chão, a cabeça sobre um travesseiro de mantos dobrados, seu próprio manto azul-celeste quase não escondendo o vestido em farrapos. Viam-se pontos chamuscados e rasgões no rico tecido, e o rosto dela mostrava-se pálido, mas seus olhos estavam abertos. Moiraine. Sim, a Aes Sedai. E a Sabedoria, Nynaeve. As três mulheres olharam para ele, sem piscar, intensamente.

— Você está mesmo bem, não está? Egwene? Ele não machucou você. — Rand já conseguia andar sem tropeçar, e a visão dela o fazia ter vontade de dançar, com hematomas e tudo, mas ainda assim foi bom sentar-se de pernas cruzadas ao lado delas.

— Eu nem sequer o vi depois que você me empurrou… — Os olhos dela o observavam, inseguros. — E você, Rand?

— Eu estou bem. — Ele riu. Tocou o rosto dela e ficou se perguntando se havia imaginado um leve recuo da parte dela. — Um pouco de descanso, e estarei novo em folha. Nynaeve? Moiraine Sedai? — A sensação era de que os nomes eram novos em sua boca.

Os olhos da Sabedoria eram velhos, antigos em seu rosto jovem, mas ela balançou a cabeça.

— Um pouco machucada — respondeu, ainda a observá-lo. — Moiraine é a única… a única de nós que foi realmente ferida.

— Fui mais ferida em meu orgulho que em qualquer outro lugar — disse a Aes Sedai, irritada, puxando o manto que a cobria. Era como se ela tivesse estado doente por muito tempo, ou sofrido maus-tratos, mas, apesar dos círculos escuros sob os olhos, estes estavam aguçados e cheios de poder. — Aginor ficou surpreso e furioso por eu tê-lo segurado por tanto tempo, mas felizmente ele não tinha tempo a perder comigo. Eu mesma estou surpresa por tê-lo detido todo aquele tempo. Na Era das Lendas, Aginor quase se equiparava ao Fratricida e a Ishamael em termos de poder.

— “O Tenebroso e todos os Abandonados” — citou Egwene, com uma voz fraca e insegura — “estão presos em Shayol Ghul, presos pelo Criador…” — Ela respirou fundo e estremeceu.

— Aginor e Balthamel devem ter sido aprisionados perto da superfície. — Moiraine soava como se já tivesse explicado aquilo, impaciente por ter de fazê-lo de novo. — O remendo na prisão do Tenebroso enfraqueceu o suficiente para libertá-los. Vamos agradecer por mais nenhum dos Abandonados ter conseguido escapar. Se isso tivesse acontecido, nós os teríamos visto.

— Não importa — disse Rand. — Aginor e Balthamel estão mortos, assim como Shai…

— O Tenebroso. — A Aes Sedai o interrompeu. Doente ou não, sua voz era firme, e seus olhos escuros transmitiam autoridade. — É melhor que ainda o chamemos de Tenebroso. Ou pelo menos de Ba’alzamon.

Ele deu de ombros.

— Como desejar. Mas ele está morto. O Tenebroso está morto. Eu o matei. Eu o queimei com… — O resto da lembrança veio numa enxurrada, deixando-o de queixo caído. O Poder Único. Eu usei o Poder Único. Nenhum homem pode… Ele umedeceu os lábios subitamente secos. Uma rajada de vento fez as folhas caídas rodopiarem ao redor deles, mas ela não estava mais gelada que seu coração. Elas estavam olhando para ele, as três. Observando. Nem sequer piscando. Ele estendeu a mão para Egwene, e desta vez não foi sua imaginação: ela recuou. — Egwene? — Ela virou o rosto, e ele deixou a mão cair.

Subitamente ela o abraçou, enterrando o rosto em seu peito.

— Desculpe, Rand. Desculpe. Eu não me importo. Sério, não me importo.

Seus ombros sacudiam. Ele achou que ela estava chorando. Dando palmadinhas em sua cabeça, desajeitado, olhou para as outras duas mulheres por cima da cabeça dela.

— Há de ser o que a Roda tecer — disse Nynaeve, devagar —, mas você ainda é Rand al’Thor de Campo de Emond. Contudo, que a Luz me ajude, que a Luz ajude a todos nós, você é perigoso demais, Rand. — Ele se arrepiou com o olhar da Sabedoria, sentindo-se triste, pesaroso e já aceitando a perda.

— O que aconteceu? — perguntou Moiraine. — Conte-me tudo!

E, com seus olhos sobre ele, imperativos, ele contou. Quis desviar, resumir tudo, deixar coisas de fora, mas os olhos da Aes Sedai extraíram tudo dele. Lágrimas correram por seu rosto quando chegou a Kari al’Thor. Sua mãe. Ele destacou isso.

— Ele tinha minha mãe. Minha mãe! — Havia simpatia e dor no rosto de Nynaeve, mas os olhos da Aes Sedai o compeliram a continuar, a falar da espada de Luz, de cortar o cordão negro e das chamas que consumiram Ba’alzamon. Os braços de Egwene se apertaram ao seu redor como se o quisessem afastar do que havia acontecido. — Mas não fui eu — terminou. — A Luz… me puxou, me conduziu. Não fui realmente eu. Isso não faz nenhuma diferença?

— Eu desconfiei desde o começo — disse Moiraine. — Mas desconfiança não é prova. Depois que dei a vocês o símbolo, a moeda, e criei aquele vínculo, você deveria estar disposto a aceitar o que eu quisesse, mas você resistiu, questionou. Isso me disse alguma coisa, mas não o bastante. O sangue de Manetheren sempre foi teimoso, ainda mais depois que Aemon morreu e o coração de Eldrene foi estilhaçado. Depois veio Bela.

— Bela? — perguntou ele. Nada faz a menor diferença.

A Aes Sedai assentiu.

— Na Colina da Vigília, Bela não teve necessidade de que eu lhe aliviasse o cansaço; alguém já havia feito isso. Ela poderia ter ultrapassado Mandarb naquela noite. Eu deveria ter pensado em quem Bela estava carregando. Com Trollocs nos nossos calcanhares, um Draghkar acima de nossas cabeças e um Meio-homem só a Luz sabia onde, como você deve ter temido que Egwene ficasse para trás… Você precisava de algo mais do que jamais precisara de qualquer coisa na vida, e buscou a única coisa que poderia dá-lo a você. Saidin.

Ele estremeceu. Sentia tanto frio que seus dedos doíam.

— Se eu nunca mais fizer isso novamente, se eu nunca mais tocá-lo, eu não vou… — Ele não conseguiu dizer. Enlouquecer. Levar a terra e as pessoas ao seu redor à loucura. Morrer, apodrecendo ainda em vida.

— Talvez — disse Moiraine. — Seria muito mais fácil se houvesse alguém para ensinar você, mas pode ser feito, com um esforço supremo de vontade.

— Você pode me ensinar. Certamente você… — Ele parou quando a Aes Sedai balançou a cabeça.

— Um gato pode ensinar um cão a subir em árvores, Rand? Um peixe, ensinar um pássaro a nadar? Eu conheço saidar, mas não posso lhe ensinar nada de saidin. Aqueles que poderiam estão mortos há quase três mil anos. Mas talvez você seja teimoso o bastante. Talvez sua vontade seja forte o bastante.

Egwene se endireitou, enxugando os olhos avermelhados com as costas da mão. Ela parecia querer dizer alguma coisa, mas, quando abriu a boca, nada saiu. Pelo menos ela não está se afastando. Pelo menos ela consegue olhar para mim sem gritar.

— E os outros? — perguntou ele.

— Lan os levou para dentro da caverna — disse Nynaeve. — O Olho se foi, mas há alguma coisa no meio do lago, uma coluna de cristal, e degraus para chegar até ela. Mat e Perrin queriam procurar você primeiro, e Loial também, mas Moiraine falou… — Ela olhou de relance para a Aes Sedai, preocupada. Moiraine retribuiu o olhar calmamente. — Ela falou que não deveríamos perturbar você enquanto você estivesse…

A garganta dele ficou apertada a ponto de ele mal conseguir respirar. Será que eles vão virar o rosto como Egwene? Será que eles vão gritar e fugir correndo como se eu fosse um Desvanecido? Moiraine falou como se não tivesse notado a palidez de seu rosto.

— Havia uma grande quantidade do Poder Único no Olho. Mesmo na Era das Lendas, poucos poderiam ter canalizado tanto sem ajuda e sem que isso os destruísse. Muito poucos.

— Você contou a eles? — perguntou ele, rouco. — Se todos souberem…

— Apenas Lan — disse Moiraine gentilmente. — Ele precisava saber. E Nynaeve e Egwene, pelo que elas são e pelo que se tornarão. Os outros ainda não têm necessidade.

— Por que não? — A garganta dele arranhou e fez sua voz ficar mais rouca. — Vocês vão querer me amansar, não vão? Não é o que as Aes Sedai fazem com homens que conseguem usar o Poder? Mudá-los para que não possam mais? Torná-los seguros? Thom disse que homens amansados morrem porque perdem a vontade de viver. Por que você não está falando em me levar para Tar Valon para ser amansado?

— Você é ta’veren — respondeu Moiraine. — Talvez o Padrão ainda não tenha terminado com você.

Rand se sentou, ereto.

— Nos sonhos, Ba’alzamon disse que Tar Valon e o Trono de Amyrlin tentariam me usar. Ele deu nomes, e eu me lembro deles agora. Raolin Algoz-das-trevas e Guaire Amalasan. Yurian Arco-de-pedra. Davian. Logain. — O último foi o mais difícil de dizer. Nynaeve ficou branca, e Egwene arquejou, mas ele continuou, irado. — Cada um deles, um falso Dragão. Não tente negar. Bem, eu não serei usado. Não sou uma ferramenta que vocês podem descartar depois de usada.

— Uma ferramenta feita para um propósito não vale menos por ter sido usada para esse propósito — a voz de Moiraine era tão dura quanto a dele próprio —, mas um homem que acredita no Pai das Mentiras diminui o próprio valor. Você diz que não será usado, e então deixa que o Tenebroso defina seu caminho como um cão enviado por seu dono para caçar um coelho.

Ele cerrou os punhos e virou a cabeça. Era semelhante demais às coisas que Ba’alzamon dissera.

— Não sou cão de ninguém. Está me ouvindo? De ninguém!

Loial e os outros apareceram no arco, e Rand se levantou com dificuldade, olhando para Moiraine.

— Eles não saberão — disse a Aes Sedai — até que o Padrão determine.

E então seus amigos se aproximaram. Lan vinha na frente, com o rosto tão duro como sempre mas ainda bastante depauperado. Tinha uma das ataduras de Nynaeve ao redor das têmporas e uma rigidez no andar. Atrás dele, Loial carregava um grande baú de ouro, ricamente trabalhado com relevos de prata. Ninguém a não ser um Ogier poderia tê-lo erguido sem ajuda. Perrin envolvia com os braços uma trouxa enorme de tecido branco dobrado, e Mat segurava com as duas mãos o que pareciam ser fragmentos de cerâmica.

— Então você está vivo afinal. — Mat riu. Seu rosto ficou sério, e ele indicou Moiraine com a cabeça. — Ela não nos deixou procurar você. Disse que tínhamos de descobrir o que o Olho escondia. Eu teria ido de qualquer maneira, mas Nynaeve e Egwene se juntaram a ela e quase me jogaram pelo arco.

— Você está aqui agora — disse Perrin —, e pelo visto nem apanhou tanto. — Seus olhos não brilhavam, mas as íris estavam completamente amarelas. — Isto é que é importante. Você está aqui, e nós terminamos o que viemos fazer, seja lá o que for. Moiraine Sedai diz que acabamos e podemos ir. Para casa, Rand. Que a Luz me queime, mas eu quero ir para casa.

— É bom ver você vivo, pastor — disse Lan num tom áspero. — Vejo que continua com a espada. Talvez aprenda a usá-la agora. — Rand sentiu uma súbita afeição pelo Guardião; Lan sabia, mas, pelo menos por fora, nada havia mudado. Ele pensou que, talvez, para Lan, nada houvesse mudado por dentro também.

— Devo dizer — disse Loial, colocando o baú no chão — que viajar com ta’veren acabou sendo ainda mais interessante do que eu esperava. — Suas orelhas tremeram violentamente. — Se ficar mais interessante que isso, vou voltar ao Pouso Shangtai imediatamente, confessar tudo ao Ancião Haman e nunca mais deixar meus livros. — Subitamente o Ogier deu um sorriso, com a boca imensa, que dividiu seu rosto em dois. — É tão bom ver você, Rand al’Thor! O Guardião é o único destes três que se importa com livros, e ele não conversa. O que aconteceu com você? Nós todos fugimos e nos escondemos na floresta até Moiraine Sedai enviar Lan para nos encontrar, mas ela não nos deixou procurar por você. Por que ficou tanto tempo sumido, Rand?

— Eu corri e corri — respondeu ele devagar — até cair de uma colina e bater a cabeça numa pedra. Acho que bati em cada pedra na descida. — Isso deveria explicar os hematomas. Ele olhou para a Aes Sedai, e Nynaeve e Egwene também, mas seus rostos não se alteraram. — Quando acordei, estava perdido, e finalmente voltei para cá cambaleando. Acho que Aginor está morto, queimado. Encontrei algumas cinzas e pedaços do manto dele.

As mentiras soaram vazias aos seus ouvidos. Ele não conseguia compreender por que eles não riam, escarneciam e exigiam saber a verdade, mas seus amigos assentiram, aceitando, e se reuniram ao redor da Aes Sedai para mostrar a ela o que haviam encontrado.

— Ajudem-me a levantar — disse Moiraine. Nynaeve e Egwene a ergueram até ela ficar sentada; mesmo assim, tiveram de continuar apoiando seu corpo.

— Como essas coisas podiam estar dentro do Olho — perguntou Mat — sem serem destruídas como aquela rocha?

— Elas não foram postas ali para serem destruídas — respondeu a Aes Sedai polidamente, e desencorajou mais perguntas com a testa franzida enquanto pegava os fragmentos de cerâmica, pretos, brancos e brilhantes, com Mat.

Para Rand tudo aquilo parecia entulho, mas ela foi encaixando cada pedaço com destreza no chão ao seu lado, fazendo um círculo perfeito do tamanho da mão de um homem. O símbolo ancestral das Aes Sedai, a Chama de Tar Valon unida à Presa do Dragão, preto lado a lado com branco. Por um momento Moiraine se limitou a olhar aquilo, seu rosto imperscrutável. Então ela pegou a faca em seu cinto e a entregou para Lan, indicando o círculo com um gesto da cabeça.

O Guardião separou a peça maior, depois ergueu a faca bem alto e golpeou com toda a força. Uma fagulha voou, o fragmento saltou com a força do impacto, e a lâmina se quebrou com um estalo. Ele examinou o toco que restou ligado ao cabo, depois a jogou de lado.

— O melhor aço de Tear — disse, seco.

Mat pegou o fragmento e grunhiu, depois mostrou-o a todos. Não havia uma marca sequer.

Cuendillar — disse Moiraine. — Pedra-do-coração. Ninguém é capaz de fabricá-la desde a Era das Lendas, e mesmo então ela só era feita para os maiores propósitos. Uma vez feita, nada pode quebrá-la. Nem o próprio Poder Único usado pelos maiores Aes Sedai que já viveram auxiliados pelo mais poderoso sa’angreal já feito. Qualquer poder direcionado contra a pedra-do-coração só a torna mais forte.

— Então como…? — O gesto de Mat com a peça que ele segurava abarcou as outras peças no chão.

— Este era um dos sete selos da prisão do Tenebroso — disse Moiraine.

Mat deixou a peça cair como se ela tivesse ficado incandescente. Por um momento, os olhos de Perrin pareceram reluzir novamente. A Aes Sedai começou calmamente a recolher os fragmentos.

— Não importa mais — disse Rand. Seus amigos olharam para ele de modo estranho, e ele desejou ter ficado calado.

— É claro — respondeu Moiraine. Mas colocou cuidadosamente todas as peças em sua bolsa. — Traga-me o baú.

Loial o ergueu e o levou mais para perto dela.

O cubo achatado de ouro e prata parecia sólido, mas os dedos da Aes Sedai tatearam o trabalho intrincado, fazendo pressão, e com um clique súbito uma tampa se abriu como se tivesse molas por dentro. Uma trombeta de ouro estava aninhada em seu interior. Apesar de seu brilho, parecia simples ao lado do baú que a continha. A única marca era uma linha escrita em prata gravada ao redor da embocadura. Moiraine ergueu a trombeta como quem segura um bebê.

— Isto deve ser levado a Illian — disse.

— Illian! — grunhiu Perrin. — Fica quase no Mar das Tempestades, quase tão ao sul de casa quanto estamos ao norte agora.

— Isso é…? — Loial parou para respirar. — Será possível que seja…?

— Você sabe ler a Língua Antiga? — perguntou Moiraine, e, quando ele assentiu, ela lhe entregou a trombeta.

O Ogier a pegou com tanta gentileza quanto ela, passando delicadamente o dedo enorme pela escrita. Seus olhos ficaram cada vez mais arregalados, e suas orelhas se ergueram.

Tia mi aven Moridin isainde vadin — murmurou. — O túmulo não impede o meu chamado.

— A Trombeta de Valere. — Pela primeira vez o Guardião parecia realmente abalado; sua voz tinha um tom de assombro.

Ao mesmo tempo Nynaeve disse, a voz trêmula:

— Para invocar os heróis das Eras de volta dos mortos para lutar contra o Tenebroso.

— Que me queimem! — disse Mat, num suspiro.

Loial depositou reverentemente a trombeta de volta em seu ninho dourado.

— Eu começo a me perguntar — disse Moiraine. — O Olho do Mundo foi feito para atender a maior necessidade que o mundo jamais enfrentaria, mas foi feito para o uso que… nós… lhe demos? Ou para guardar estas coisas? Rápido, a última, me mostrem.

Depois das duas primeiras, Rand entendeu a hesitação de Perrin. Lan e o Ogier pegaram o tecido branco enrolado de suas mãos quando ele hesitou, e o desdobraram, cada um segurando uma ponta. Um longo estandarte branco se desfraldou, erguendo-se no ar. Rand só conseguia olhar fixamente para ele. A coisa inteira parecia feita de uma peça só, nem tecida, nem tingida, nem pintada. Uma figura como uma serpente, de escamas escarlates e douradas, percorria todo o estandarte, mas a serpente tinha também pernas escamosas, e patas com cinco longas garras douradas cada uma, e uma grande cabeça com uma juba dourada e olhos como o sol. O tremular do estandarte fazia com que a criatura parecesse se mover, as escamas reluzindo como metais e pedras preciosas, viva, e ele quase pensou tê-la ouvido rugir em desafio.

— O que é isso? — perguntou ele.

Moiraine respondeu devagar.

— O estandarte do Senhor da Manhã quando ele liderou as forças da Luz contra a Sombra. O estandarte de Lews Therin Telamon. O estandarte do Dragão.

Loial quase deixou cair sua ponta.

— Que me queimem! — disse Mat baixinho.

— Vamos levar estas coisas conosco quando partirmos — disse Moiraine. — Elas não foram colocadas aqui por acaso, e eu preciso saber mais. — Seus dedos roçaram sua bolsa, onde estavam as peças do selo estilhaçado. — É tarde demais para começarmos agora. Vamos descansar e comer, mas partiremos cedo. A Praga está por toda parte aqui. Não é como ao longo da Fronteira, e está forte. Sem o Homem Verde, este lugar não pode resistir por muito tempo. Deixem que eu me deite — disse a Nynaeve e Egwene. — Preciso repousar.

Rand se deu conta do que estivera vendo o tempo todo, mas sem se dar conta. Folhas marrons mortas caindo do grande carvalho. Folhas mortas na brisa, transformando o chão num tapete espesso, marrom, misturado com pétalas caídas dos milhares de flores. O Homem Verde havia mantido a Praga afastada, mas ela já começava a matar o que ele havia criado.

— Acabou, não é? — perguntou Rand a Moiraine. — Chegou ao fim.

A Aes Sedai virou a cabeça em seu travesseiro de mantos. Seus olhos pareciam tão profundos quanto o Olho do Mundo.

— Nós fizemos o que viemos fazer. A partir daqui você pode viver sua vida conforme o Padrão tecer. Coma e depois durma, Rand al’Thor. Durma, e sonhe com sua casa.

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