46 Fal Dara

A área ao redor do Portal dos Caminhos era de colinas ondulantes, cobertas por uma floresta, mas, afora os portões propriamente ditos, não havia sinal de nenhum bosque Ogier. Em sua maior parte, as árvores eram esqueletos cinzentos arranhando o céu com suas garras. Espécies perenes em menor quantidade que aquela a que Rand estava acostumado pontilhavam a floresta, e folhas e agulhas de pinheiro secas e mortas cobriam a maior parte. Loial não fez nenhum comentário além de balançar, tristonho, a cabeça.

— Tão mortas quanto as Terras Devastadas — disse Nynaeve, franzindo a testa. Egwene puxou o manto mais para si e estremeceu.

— Pelo menos saímos — disse Perrin, e Mat acrescentou:

— Saímos onde?

— Shienar — disse-lhes Lan. — Estamos nas Terras da Fronteira. — Em sua voz dura havia uma entonação que quase dizia “em casa”.

Rand apertou mais o manto contra o corpo. As Terras da Fronteira. Então a Praga estava próxima. A Praga. O Olho do Mundo. E o que eles tinham ido fazer.

— Estamos perto de Fal Dara — disse Moiraine. — Só mais algumas milhas. — Acima do topo das árvores, torres se erguiam ao norte e a leste deles, escuras contra o céu da manhã. Entre as colinas e a floresta, as torres desapareciam a todo momento enquanto eles cavalgavam, apenas para reaparecerem assim que chegavam ao topo de uma elevação mais alta.

Rand notou que as árvores estavam rachadas, como se atingidas por um raio.

— O frio — respondeu Lan quando ele perguntou. — Às vezes o inverno é tão frio aqui que a seiva congela, e as árvores explodem. Há noites em que você consegue ouvi-las estourando como fogos de artifício, e o ar é tão frio que você acha que vai se estilhaçar também. No último inverno, isso aconteceu mais que o normal.

Rand balançou a cabeça. Árvores explodindo? E isso era durante um inverno comum. Como devia ter sido aquele inverno? Certamente como nada que ele pudesse imaginar.

— Quem disse que o inverno passou? — perguntou Mat, os dentes batendo.

— Ora, isto aqui é uma bela primavera, pastor — disse Lan. — Uma bela primavera para se viver. Mas, se você quer calor, bem, na Praga estará quente.

Mat murmurou baixinho:

— Sangue e cinzas. Sangue e malditas cinzas!

Começaram a passar por fazendas, e, embora fosse hora de cozinhar a refeição do meio do dia, não havia qualquer fumaça saindo das compridas chaminés de pedra. Nos campos não havia homens nem gado, embora ocasionalmente se visse um arado ou um carroção abandonado, como se o dono fosse voltar a qualquer instante.

Em uma fazenda próxima uma única galinha ciscava no terreiro. Uma porta de celeiro batia livremente com o vento; na outra, a dobradiça de baixo quebrara e ela pendia em diagonal. A casa alta, estranha aos olhos de Rand, acostumados aos Dois Rios, com seu telhado pontudo de grandes telhas de madeira correndo quase até o chão, estava parada e silenciosa. Nenhum cão apareceu para latir para eles. Uma foice jazia no meio do pátio; havia baldes virados numa pilha ao lado do poço.

Moiraine franziu a testa ao olhar a casa quando passaram. Ela ergueu as rédeas de Aldieb, e a égua branca apertou o passo.

Todos de Campo de Emond seguiam aglomerados com Loial um pouco atrás da Aes Sedai e do Guardião.

Rand balançou a cabeça. Não conseguia imaginar qualquer coisa crescendo ali, nunca. Mas também não conseguia imaginar os Caminhos. Mesmo agora que havia passado por eles, não conseguia imaginá-los.

— Acho que ela não esperava isso — disse Nynaeve baixinho, com um gesto que abarcava todas as fazendas vazias que haviam visto.

— Para onde foram todos? — perguntou Egwene. — Por quê? Não podem ter ido muito longe.

— O que faz você dizer isso? — perguntou Mat. — Pelo aspecto daquela porta de celeiro, podem ter partido no começo do inverno. — Nynaeve e Egwene olharam para ele como se ele não raciocinasse direito.

— As cortinas nas janelas — disse Egwene pacientemente. — Parecem leves demais para cortinas de inverno, mesmo daqui. Por mais frio que seja aqui, mulher nenhuma teria colocado aquelas cortinas há mais de uma semana, talvez menos. — A Sabedoria concordou com um gesto de cabeça.

— Cortinas! — Perrin riu. Ele imediatamente apagou o sorriso da cara quando as duas mulheres o olharam com as sobrancelhas arqueadas. — Ah, eu concordo com vocês. Não havia ferrugem suficiente naquela foice para ter estado mais de uma semana a céu aberto. Você devia ter visto isso, Mat. Mesmo que tenha deixado de reparar nas cortinas.

Rand olhou de esguelha para Perrin, tentando não encará-lo. Seus olhos eram mais aguçados que os de Perrin, ou tinham sido, quando costumavam caçar coelhos juntos, mas ele não havia sido capaz de ver aquela foice bem o bastante para encontrar qualquer sinal de ferrugem.

— Eu realmente não dou a mínima para onde eles foram — resmungou Mat. — Só quero encontrar algum lugar com uma lareira. E rápido.

— Mas por que eles foram embora? — perguntou Rand baixinho. A Praga não ficava longe dali. A Praga, onde estavam todos os Desvanecidos e Trollocs, os que não estavam em Andor à caça deles. A Praga, para onde eles estavam indo.

Ele aumentou o volume da voz o suficiente para ser ouvido pelos que estavam perto.

— Nynaeve, talvez você e Egwene não tenham de ir até o Olho do Mundo conosco. — As duas mulheres olharam para Rand como se ele estivesse falando bobagens, mas com a Praga tão perto ele tinha de tentar uma última vez. — Talvez seja suficiente para vocês estarem perto. Moiraine não disse que vocês tinham de ir. Nem você, Loial. Vocês podiam ficar em Fal Dara. Até voltarmos. Ou já poderiam partir para Tar Valon. Talvez um comboio de mercadores passe, ou aposto que Moiraine até mesmo alugaria um coche. Nós nos encontraremos em Tar Valon quando tudo acabar.

Ta’veren. — O suspiro de Loial era um rugido de trovão no horizonte. — Vocês fazem vidas girarem ao seu redor, Rand al’Thor, você e seus amigos. Seu destino escolhe o nosso. — O Ogier deu de ombros, e subitamente um sorriso enorme cruzou seu rosto. — Além disso, vai ser fantástico conhecer o Homem Verde. O Ancião Haman sempre fala sobre seu encontro com o Homem Verde, e meu pai também, e a maioria dos Anciões.

— Tantos? — disse Perrin. — As histórias dizem que o Homem Verde é difícil de encontrar, e ninguém consegue encontrá-lo duas vezes.

— Não duas vezes, não — concordou Loial. — Mas eu nunca o encontrei, nem vocês. Ele não parece evitar Ogier do jeito que evita vocês, humanos. Ele sabe muito sobre árvores. Até as Canções das Árvores.

— O que eu estava querendo dizer era… — Rand insistiu.

A Sabedoria o cortou.

Ela diz que Egwene e eu fazemos parte do Padrão também. Estamos todos entremeados com vocês três. Se formos acreditar nela, existe alguma coisa na maneira como essa parte do Padrão é tecida que poderia deter o Tenebroso. E receio que acredito nela; muita coisa já aconteceu para eu não acreditar. Mas se Egwene e eu formos embora, o que poderíamos mudar no Padrão?

— Eu só estava tentando…

Nynaeve o interrompeu novamente, com brusquidão.

— Eu sei o que você estava tentando fazer. — Ela o encarou até ele se mexer desconfortavelmente na sela, então o rosto dela se suavizou. — Eu sei o que você estava tentando fazer, Rand. Não gosto muito de nenhuma Aes Sedai, e desta aqui menos que todas, eu acho. Gosto menos ainda de entrar na Praga, mas se há algo de que eu gosto menos que tudo é o Pai das Mentiras. Se vocês, rapazes… vocês, homens podem fazer o que precisa ser feito quando poderiam fazer quase qualquer outra coisa, por que você acha que eu faria menos? Ou Egwene? — Ela não parecia esperar resposta. Pegando as rédeas, franziu a testa na direção da Aes Sedai à frente. — Fico me perguntando se vamos chegar a essa tal de Fal Dara em breve, ou se ela quer que passemos a noite ao ar livre aqui?

Quando ela trotou na direção de Moiraine, Mat falou:

— Ela nos chamou de homens. Parece que foi ontem que disse que deveríamos estar debaixo da saia das nossas mães, e agora ela nos chama de homens.

— Você ainda não devia ter saído de debaixo da saia da sua mãe — disse Egwene, mas Rand não achou que ela quisesse mesmo dizer aquilo. Ela aproximou Bela do alazão dele e abaixou a voz para que nenhum dos demais pudesse ouvir, embora Mat, pelo menos, tentasse. — Eu só dancei com Aram, Rand — disse baixinho, sem olhar para ele. — Você não pensaria mal de mim por dançar com alguém que nunca vou ver de novo, pensaria?

— Não — respondeu ele. O que a fez tocar nisso agora? — É claro que não. — Mas subitamente ele se lembrou de uma coisa que Min dissera em Baerlon, que parecia ter sido cem anos antes. Ela não é para você, nem você para ela; pelo menos, não do jeito que vocês dois querem.

A cidade de Fal Dara havia sido construída sobre colinas mais altas que a área ao redor. Não era nem de longe tão grande quanto Caemlyn, mas sua muralha era igualmente alta. Do lado de fora, por uma milha inteira em todas as direções, o terreno não tinha nada mais alto que a grama, e mesmo assim cortada rente. Nada poderia se aproximar sem ser visto de uma das muitas torres altas cobertas por andaimes de madeira. Enquanto as muralhas de Caemlyn tinham uma certa beleza, os construtores de Fal Dara pareciam não ter se importado se alguém acharia sua muralha bonita. A pedra cinza era lugubremente implacável, proclamando que existia com um único objetivo: proteger. Flâmulas sobre as passarelas drapejavam ao vento, dando a impressão de que o Falcão Negro de Shienar voava ao longo das muralhas.

Lan jogou para trás o capuz de seu manto e, apesar do frio, fez um gesto para que os outros fizessem o mesmo. Moiraine já tinha abaixado o dela.

— É a lei em Shienar — disse o Guardião. — Em todas as Terras da Fronteira. Ninguém pode esconder o rosto dentro das muralhas de uma cidade.

— São todos bonitos assim? — Mat riu.

— Um Meio-homem não pode se esconder com o rosto exposto — disse o Guardião categoricamente.

O sorriso de Rand fugiu de seu rosto. Mat tirou o capuz rapidamente.

Os portões estavam abertos, altos e revestidos de ferro escuro, mas uma dúzia de homens com armaduras montava guarda com casacos amarelo-ouro exibindo o Falcão Negro. O punho de espadas longas em suas costas despontava acima dos ombros, e em cada cintura pendia uma espada larga, maça ou machado. Seus cavalos estavam presos por perto, tornados grotescos por placas de aço que cobriam peito, pescoço e cabeça, com lanças perto dos estribos, todos prontos para serem montados num instante. Os guardas não fizeram qualquer gesto para impedir Lan, Moiraine e os outros. Na verdade, eles acenaram e gritaram, alegres.

— Dai Shan! — gritou um deles, erguendo os punhos com manoplas de aço sobre a cabeça quando eles passaram. — Dai Shan!

Vários outros gritaram:

— Glória aos Construtores!

Kiserai ti Wansho!

Loial pareceu surpreso, mas então um sorriso largo se abriu em seu rosto e ele acenou para os guardas.

Um homem correu ao lado do cavalo de Lan por uma parte do caminho, sem sentir o peso da armadura que usava.

— O Grou Dourado vai voar de novo, Dai Shan?

— Paz, Ragan — foi tudo o que o Guardião disse, e o homem ficou para trás. Ele retribuía os acenos dos guardas, mas seu rosto subitamente ficou ainda mais sombrio.

Enquanto cavalgavam por ruas calçadas de pedra e cheias de gente e carroções, Rand franziu a testa, preocupado. Fal Dara estava quase inchando de tanta gente, mas as pessoas não eram nem as multidões ansiosas de Caemlyn, desfrutando da grandeza da cidade mesmo enquanto brigavam, nem as massas trabalhadoras de Baerlon. Espremidas lado a lado, essas pessoas viam seu grupo passar cavalgando com olhos pesados e rostos despidos de emoção. Carroças e carroções obstruíam cada beco, cheios de mobílias de casas inteiras em altas pilhas, e baús entalhados tão cheios que as roupas saíam pelas frestas. No topo deles, sentavam-se crianças. Os adultos mantinham as crianças onde podiam vê-las e não as deixavam se afastar nem para brincar. As crianças eram ainda mais caladas que seus pais, os olhos maiores, os olhares mais assombrados. Os vãos e as frestas entre os carroções estavam lotados de um gado peludo e porcos de manchas pretas em chiqueiros improvisados. Caixotes de galinhas, patos e gansos compensavam adequadamente o silêncio das pessoas. Agora ele sabia para onde todos os fazendeiros haviam ido.

Lan conduziu-os até a fortaleza no meio da cidade, uma estrutura de pedra maciça em cima da colina mais alta. Um fosso seco, profundo e largo, seu fundo uma floresta de estacas de aço afiadas como navalhas da altura de um homem, cercava as muralhas imensas do fortim. Um lugar para uma última defesa, se o resto da cidade caísse. De uma das torres do portão um homem com armadura gritou:

— Bem-vindo, Dai Shan!

Outro gritou para o interior da fortaleza:

— O Grou Dourado! O Grou Dourado!

Seus cascos tamborilaram nas pesadas toras da ponte levadiça quando atravessaram o fosso e passaram sob as pontas afiadas da grade maciça. Assim que cruzaram os portões, Lan desceu da sela para conduzir Mandarb, fazendo sinal para que os demais desmontassem.

O primeiro pátio era uma grande praça pavimentada com grandes blocos de pedra e cercada por torres e ameias de aspecto tão ameaçador quanto as do lado de fora das muralhas. Por maior que fosse, o pátio parecia tão lotado quanto as ruas, e com a mesma agitação, embora a multidão ali tivesse um certo ordenamento. Em toda parte havia homens e cavalos de armadura. Em meia dúzia de ferrarias que atravessavam o pátio, martelos retiniam, e grandes foles, cada um manobrado por dois homens com aventais de couro, faziam o fogo das forjas rugir. Um fluxo constante de rapazes corria com as novas ferraduras para os ferradores. Flecheiros estavam sentados fazendo flechas, e toda vez que uma cesta ficava cheia era rapidamente levada e substituída por outra vazia.

Criados de libré apareceram correndo, ansiosos e sorridentes em preto e ouro. Rand desamarrou apressadamente seus pertences de trás da sela e entregou o alazão para um dos criados quando um homem vestido em armadura de placas, cota de malha e couro fez uma mesura formal. Ele vestia um manto amarelo vivo com borda vermelha por cima da armadura, com o Falcão Negro no peito, e uma sobrecasaca amarela com uma coruja cinza. Não usava capacete e tinha os cabelos raspados, à exceção de um rabo de cavalo amarrado com um cordão de couro.

— Já faz muito tempo, Moiraine Aes Sedai. É bom ver você, Dai Shan. Muito bom. — Ele voltou a se curvar, agora para Loial, e murmurou: — Glória aos Construtores. Kiserai ti Wansho.

— Não sou digno — respondeu Loial formalmente —, e a obra é pequena. Tsingu ma choba.

— Você nos honra, Construtor — disse o homem. — Kiserai ti Wansho. — Virou-se novamente para Lan. — A notícia foi enviada a Lorde Agelmar, Dai Shan, assim que vocês foram vistos chegando. Ele está esperando vocês. Por aqui, por favor.

Enquanto eles o seguiam para o interior da fortaleza, por corredores de pedra com correntes de ar e tapeçarias coloridas penduradas ao lado de telas compridas de seda com cenas de caça e batalhas, ele continuou:

— Estou feliz porque o chamado chegou até você, Dai Shan. Vai erguer o estandarte do Grou Dourado mais uma vez?

Os salões estavam vazios, com exceção das tapeçarias nas paredes, e mesmo estas usavam o mínimo de figuras feitas com o mínimo de linhas necessário para transmitir o significado, ainda que em cores vivas.

— As coisas realmente estão tão ruins quanto parecem, Ingtar? — perguntou Lan baixinho. Rand se perguntou se suas próprias orelhas não estariam tremelicando como as de Loial.

O rabo de cavalo do homem balançou quando ele meneou a cabeça, mas hesitou antes de abrir um sorriso.

— As coisas nunca são tão ruins quanto parecem, Dai Shan. Um pouco piores que de costume este ano, é só. Os ataques continuaram por todo o inverno, mesmo na época mais dura. Mas não foram piores do que em qualquer outro lugar da Fronteira. Eles ainda vêm à noite, mas o que mais se pode esperar na primavera, se é que isto pode ser chamado de primavera? Os batedores voltam da Praga, os que voltam, com notícias de acampamentos de Trollocs. Sempre com novas notícias de mais acampamentos. Mas nós vamos enfrentá-los na Garganta de Tarwin, Dai Shan, e vamos rechaçá-los como sempre fizemos.

— É claro — disse Lan, mas não parecia ter tanta certeza.

O sorriso de Ingtar hesitou, mas retornou imediatamente. Em silêncio, ele os conduziu ao estúdio de Lorde Agelmar, então se desculpou, dizendo que tinha tarefas urgentes, e saiu.

Tratava-se de um aposento tão prático quanto todo o resto da fortaleza, com fendas para flechas na parede externa e uma barra pesada para a porta grossa, que tinha seus próprios furos para flechas e era presa por cintas de ferro. Havia apenas uma tapeçaria pendurada ali. Esta cobria uma parede inteira e mostrava homens, armados como os homens de Fal Dara, lutando contra Myrddraal e Trollocs num desfiladeiro.

Uma mesa, um baú e algumas cadeiras eram as únicas peças de mobília, além de dois cavaletes na parede, que chamaram a atenção de Rand tanto quanto a tapeçaria. Um deles tinha uma espada de duas mãos, mais alta que um homem, uma espada larga mais comum, e abaixo delas uma maça com pontas e um longo escudo em forma de pipa, com o símbolo de três raposas. Do outro pendia uma armadura completa, disposta como se alguém fosse vesti-la. Um capacete com penacho e sua proteção facial com barras sobre um almôfar de cota de malha dupla. Uma cota longa de malha, aberta no meio para cavalgar, e um casaco de couro polido pelo uso. Placa peitoral, manoplas de aço, protetores de joelho e cotovelo, e meia placa para ombros, braços e pernas. Mesmo ali, no coração do fortim, armas e armadura pareciam prontas para serem usadas a qualquer momento. Assim como a mobília, eram decoradas de modo simples e severo com ouro.

O próprio Agelmar se levantou quando entraram e deu a volta na mesa, atulhada de mapas, resmas de papel e penas enfiadas em tinteiros. À primeira vista, ele parecia pacífico demais para o aposento em seu casaco de veludo azul de colarinho alto e largo e botas de couro macio, mas um segundo olhar mostrou outra coisa a Rand. Como todos os combatentes que ele já tinha visto, a cabeça de Agelmar estava raspada a não ser por um rabo de cavalo, totalmente branco. Seu rosto era tão duro quanto o de Lan, as únicas rugas vincando o canto dos olhos, que se assemelhavam a pedras marrons, embora apresentasse um sorriso.

— Paz, mas é bom ver você, Dai Shan — disse o Senhor de Fal Dara. — E você, Moiraine Aes Sedai, talvez ainda mais. Sua presença me aquece, Aes Sedai.

Ninte calichniye no domashita, Agelmar Dai Shan — respondeu Moiraine formalmente, mas com um toque na voz que dizia que os dois eram velhos amigos. — Suas boas-vindas me aquecem, Lorde Agelmar.

Kodome calichniye ga ni Aes Sedai hei. Aqui uma Aes Sedai é sempre bem-vinda. — Virou-se para Loial. — Você está longe dos pousos, Ogier, mas honra Fal Dara. Glória eterna aos Construtores. Kiserai ti Wansho hei.

— Não sou digno — disse Loial, fazendo uma mesura. — É o senhor quem me honra. — Olhou para as paredes de pedra escura e pareceu lutar consigo mesmo. Rand ficou feliz porque o Ogier conseguiu evitar mais comentários.

Serviçais vestidos de preto e dourado apareceram silenciosamente, os pés calçados em chinelos macios. Uns traziam toalhas dobradas, úmidas e quentes, sobre bandejas de prata, para limpar a poeira do rosto e das mãos. Outros traziam vinho quente e tigelas prateadas com ameixas e pêssegos secos. Lorde Agelmar deu ordens para que quartos fossem preparados, e também banhos.

— Uma longa jornada de Tar Valon — disse. — Vocês devem estar cansados.

— Uma jornada curta pelo caminho que tomamos — disse Lan —, mas mais cansativa que o caminho longo.

Agelmar pareceu intrigado quando o Guardião não falou mais nada, mas disse meramente:

— Alguns dias de descanso porão todos em ótima disposição.

— Peço uma noite de guarida, Lorde Agelmar — disse Moiraine —, para nós e nossos cavalos. E suprimentos frescos de manhã, se puder dispor deles. Precisamos deixá-lo cedo, lamento.

Agelmar franziu a testa.

— Mas pensei… Moiraine Sedai, não tenho direito de lhe pedir isso, mas você valeria mil lanças na Garganta de Tarwin. E você, Dai Shan. Mil homens virão quando souberem que o Grou Dourado voa mais uma vez.

— As Sete Torres estão quebradas — disse Lan com severidade —, e Malkier está morta; os poucos do povo dela que restaram estão espalhados pela face da terra. Eu sou um Guardião, Agelmar, jurado à Chama de Tar Valon, e estou ligado à Praga.

— É claro, Dai Sh… Lan. É claro. Mas certamente alguns dias de atraso, algumas semanas no máximo, não farão diferença. Vocês são necessários. Você e Moiraine Sedai.

Moiraine aceitou um cálice de prata de um dos serviçais.

— Ingtar parece crer que vocês derrotarão esta ameaça assim como derrotaram muitas outras ao longo dos anos.

— Aes Sedai — disse Agelmar, seco —, se Ingtar tivesse de cavalgar sozinho até a Garganta de Tarwin, ele cavalgaria o caminho inteiro proclamando que os Trollocs seriam derrubados mais uma vez. Ele é quase orgulhoso o suficiente para acreditar que poderia fazer isso sozinho.

— Desta vez ele não está tão confiante quanto você pensa, Agelmar. — O Guardião ergueu uma taça, mas não bebeu. — As coisas estão tão mal assim?

Agelmar hesitou, puxando um mapa de dentro da pilha sobre a mesa. Ele ficou encarando o mapa sem enxergar por um momento, então o jogou de lado.

— Quando cavalgarmos até a Garganta — disse em voz baixa —, as pessoas serão enviadas para Fal Moran, ao sul. Talvez a capital possa resistir. Paz, ela tem de resistir. Alguma coisa tem de resistir.

— Tão mal assim? — perguntou Lan, e Agelmar assentiu, cansado.

Rand trocou olhares de preocupação com Mat e Perrin. Era fácil crer que os Trollocs reunidos na Praga estavam atrás dele. Atrás deles. Agelmar prosseguiu, pessimista:

— Kandor, Arafel, Saldaea… Os Trollocs atacaram todas ininterruptamente ao longo do inverno. Nada assim acontece desde as Guerras dos Trollocs; os ataques nunca foram tão ferozes, nem tão grandes, nem tão próximos de casa. Todo rei e conselho tem certeza de que um grande ataque está vindo da Praga, e todos nas Terras da Fronteira acreditam que está vindo contra eles. Nenhum de seus batedores, e nenhum dos guardiões, relata Trollocs se reunindo acima de suas fronteiras como temos aqui, mas eles acreditam, e todos têm medo de enviar combatentes para outros lugares. As pessoas sussurram que o mundo está chegando ao fim, e que o Tenebroso está solto novamente. Shienar cavalgará sozinha até a Garganta de Tarwin, e estaremos em desvantagem de pelo menos dez para um. Pode vir a ser a última Reunião das Lanças.

“Lan… não!, Dai Shan, pois você é um Senhor das Batalhas do Diadema de Malkier, não importa o que diga. Dai Shan, o estandarte do Grou Dourado na vanguarda daria ânimo aos homens que sabem que estão indo para o norte para morrer. A notícia vai se espalhar como fogo na floresta, e, embora seus reis tenham ordenado que fiquem onde estão, lanças virão de Arafel e Kandor, e até mesmo de Saldaea. Embora possam não chegar a tempo para ficar ao nosso lado na Garganta, eles poderão salvar Shienar.”

Lan olhou para seu vinho. Seu rosto não mudou, mas o vinho molhou sua mão; ele esmagou o cálice de prata. Um serviçal pegou o cálice arruinado e limpou a mão do Guardião com uma toalha; um segundo pôs um novo cálice em sua mão enquanto o outro era rapidamente levado embora. Lan nem pareceu notar.

— Não posso! — murmurou ele, a voz rouca. Quando levantou a cabeça, seus olhos azuis ardiam com uma luz feroz, mas a voz estava calma novamente e sem emoção. — Eu sou um Guardião, Agelmar. — Seu olhar duro deslizou por Rand, Mat e Perrin até chegar a Moiraine. — Ao amanhecer, cavalgarei para a Praga.

Agelmar soltou um suspiro pesado.

— Moiraine Sedai, você, pelo menos, não virá? Uma Aes Sedai poderia fazer a diferença.

— Não posso, Lorde Agelmar. — Moiraine parecia preocupada. — Realmente há uma batalha a ser travada, e não é por acaso que os Trollocs estão reunidos na fronteira de Shienar, mas nossa batalha, a verdadeira batalha contra o Tenebroso, acontecerá na Praga, no Olho do Mundo. Você deve travar sua batalha, e nós a nossa.

— Você não pode estar me dizendo que ele está à solta! — O pétreo Agelmar parecia abalado, e Moiraine rapidamente sacudiu a cabeça.

— Ainda não. Se vencermos no Olho do Mundo, talvez nunca mais.

— Você consegue localizar o Olho, Aes Sedai? Se deter o Tenebroso depender disso, provavelmente já estamos mortos. Muitos tentaram e fracassaram.

— Eu posso encontrá-lo, Lorde Agelmar. A esperança ainda não está perdida.

Agelmar a estudou, e depois os outros. Ele parecia intrigado com Nynaeve e Egwene; as roupas rurais das duas contrastavam agudamente com o vestido de seda de Moiraine, embora todas estivessem igualmente sujas graças à viagem.

— Elas são Aes Sedai também? — perguntou, duvidando. Quando Moiraine sacudiu a cabeça em negativa, ele pareceu ainda mais confuso. Seu olhar seguiu para os rapazes de Campo de Emond, detendo-se em Rand, passando pela espada com o encordoamento vermelho em sua cintura. — Uma guarda estranha que você leva consigo, Aes Sedai. Só um combatente. — Ele olhou de relance para Perrin, e o machado que pendia de seu cinturão. — Talvez dois. Mas ambos são pouco mais que rapazes. Deixe-me enviar homens com vocês. Cem lanças a mais ou a menos não farão diferença na Garganta, mas vocês vão precisar de mais do que um Guardião e três jovens. E duas mulheres não vão ajudar, a menos que sejam Aiel disfarçadas. A Praga está pior do que de costume este ano. Ela… está se agitando.

— Cem lanças seriam demais — disse Lan. — E mil não são o bastante. Quanto maior o grupo que levarmos para dentro da Praga, maior a chance de atrairmos atenção. Precisamos chegar ao Olho sem lutar, se pudermos. Você sabe que o resultado é quase certo quando os Trollocs forçam uma batalha dentro da Praga.

Agelmar assentiu com pessimismo, mas se recusou a desistir.

— Menos, então. Até mesmo dez homens bons lhe darão uma chance melhor de escoltar Moiraine Sedai e as outras duas mulheres até o Homem Verde do que apenas estes rapazes.

Rand subitamente percebeu que o Senhor de Fal Dara supunha que eram Nynaeve e Egwene que, junto com Moiraine, lutariam contra o Tenebroso. Era natural. Esse tipo de luta significava usar o Poder Único, e isso implicava mulheres. Esse tipo de luta significa usar o Poder Único. Enfiou os polegares no cinturão da espada e agarrou a fivela com força para evitar que suas mãos tremessem.

— Nenhum homem — disse Moiraine. Agelmar abriu a boca mais uma vez, e ela continuou antes que ele pudesse falar. — É a natureza do Olho, e a natureza do Homem Verde. Quantos de Fal Dara já encontraram o Homem Verde e o Olho?

— No total? — Agelmar deu de ombros. — Desde a Guerra dos Cem Anos, você pode contá-los nos dedos de uma só mão. Não mais do que um em cinco anos, somando todas as Terras da Fronteira.

— Ninguém encontra o Olho do Mundo — disse Moiraine —, a menos que o Homem Verde queira que essa pessoa encontre. A necessidade é a chave, e a intenção. Eu sei para onde ir. Já estive lá antes. — Rand virou a cabeça, surpreso; a dele não foi a única entre os de Campo de Emond, mas a Aes Sedai não pareceu notar. — Mas se houver um entre nós buscando glória, procurando acrescentar seu nome àqueles quatro, e pode ser que nunca o encontremos, mesmo que eu os leve exatamente ao ponto de que me lembro.

— Você já viu o Homem Verde, Moiraine Sedai? — O Senhor de Fal Dara parecia impressionado, mas no instante seguinte franziu a testa. — Mas se você já o encontrou uma vez…

— A necessidade é a chave — disse Moiraine baixinho —, e não pode haver necessidade maior do que a minha. Do que a nossa. E eu tenho uma coisa que os outros que buscam não têm.

Seus olhos mal se desviaram do rosto de Agelmar, mas Rand tinha certeza de que eles haviam relanceado na direção de Loial antes que a Aes Sedai os trouxesse de volta. Rand encontrou os olhos do Ogier, e Loial estremeceu.

Ta’veren — disse o Ogier suavemente.

Agelmar ergueu as mãos para o céu.

— Será como você diz, Aes Sedai. Paz, se a verdadeira batalha será no Olho do Mundo, estou tentado a levar o estandarte do Falcão Negro com você em vez de até a Garganta. Eu poderia abrir caminho para vocês…

— Isto seria um desastre, Lorde Agelmar. Tanto na Garganta de Tarwin quanto no Olho. Você tem sua batalha, e nós temos a nossa.

— Paz! Como quiser, Aes Sedai.

Tendo chegado a uma decisão, por menos que gostasse, o Senhor de Fal Dara pareceu tirá-la de sua cabeça raspada. Ele os convidou para a mesa, o tempo inteiro conversando sobre falcões, cavalos e cães, mas sem jamais mencionar Trollocs, ou a Garganta de Tarwin, ou o Olho do Mundo.

O aposento onde comeram era tão vazio e simples quanto o estúdio de Lorde Agelmar, com pouca mobília além da mesa e das cadeiras propriamente ditas, estas de linha e forma severas. Belas, porém severas. Uma grande lareira aquecia o aposento, mas não tanto que um homem chamado a sair às pressas passasse mal com o frio lá de fora. Criados de libré trouxeram sopa, pão e queijo, e a conversa foi sobre livros e música até Lorde Agelmar perceber que o povo de Campo de Emond não estava falando. Como um bom anfitrião, ele fez gentilmente perguntas pensadas para tirá-los de seu silêncio.

Rand em pouco tempo percebeu que estava competindo para contar sobre Campo de Emond e os Dois Rios. Foi preciso um esforço para não falar demais. Ele torceu para que os outros segurassem s língua, especialmente Mat. Só Nynaeve se segurou, comendo e bebendo em silêncio.

— Há uma canção nos Dois Rios — disse Mat. — “Voltando da Garganta de Tarwin”. — Ele terminou com hesitação, como se subitamente percebesse que estava trazendo à baila o que vinham evitando, mas Agelmar lidou com isso de maneira tranquila.

— Não é de se espantar. Poucas terras não enviaram homens para conter a Praga ao longo dos anos.

Rand olhou para Mat e Perrin. Mat formou silenciosamente a palavra Manetheren.

Agelmar sussurrou para um dos serviçais, e enquanto outros limpavam a mesa esse homem desapareceu e voltou com um cilindro, e cachimbos de barro para Lan, Loial e Lorde Agelmar.

— Tabac, fumo dos Dois Rios — disse o Senhor de Fal Dara enquanto enchiam seus cachimbos. — É difícil de conseguir por aqui, mas vale o preço.

Quando Loial e os dois homens mais velhos soltavam baforadas alegremente, Agelmar olhou de esguelha para o Ogier.

— Você parece preocupado, Construtor. Espero que não esteja sofrendo da Saudade. Há quanto tempo está longe do pouso?

— Não é a Saudade; não parti há tanto tempo assim. — Loial deu de ombros, e a fumaça azul-acinzentada que subia de seu cachimbo fez uma espiral sobre a mesa enquanto ele gesticulava. — Eu esperava, torcia, para que o bosque ainda estivesse aqui. Alguma reminiscência de Mafal Dadaranell, pelo menos.

Kiserai ti Wansho — murmurou Agelmar. — As Guerras dos Trollocs não deixaram nada a não ser lembranças, Loial, filho de Arent, e pessoas para construir algo a partir delas. Elas não podiam duplicar a obra dos Construtores, não mais do que eu poderia. Aquelas curvas e padrões intrincados que seu povo cria estão além da capacidade dos olhos e das mãos humanos. Talvez desejássemos evitar uma imitação pobre que só teria servido como um lembrete sempre presente do que havíamos perdido. Há uma beleza diferente na simplicidade, numa única linha colocada exatamente daquele jeito, uma única flor entre as rochas. A dureza da pedra torna a flor mais preciosa. Tentamos não nos ater muito ao que se foi. O coração mais forte pode se partir sob essa tensão.

— “A pétala da rosa flutua sobre a água” — recitou Lan suavemente. — “O martim-pescador dispara sobre o lago. Vida e beleza turbilhonam em meio à morte.”

— Sim — disse Agelmar. — Sim. Esses versos sempre simbolizaram a totalidade disso para mim também. — Os dois homens cumprimentaram-se com um gesto de cabeça.

Lan recitando poesia? O homem era como uma cebola; toda vez que Rand achava que sabia alguma coisa a respeito do Guardião, ele descobria mais uma camada por baixo.

Loial assentiu devagar.

— Talvez eu também me detenha demais no que se foi. E, no entanto, os bosques eram lindos. — Mas ele estava olhando para o aposento austero como se o visse pela primeira vez e subitamente descobrisse coisas dignas de serem vistas.

Ingtar apareceu e fez uma mesura para Lorde Agelmar.

— Perdão, Lorde, mas o senhor queria saber de qualquer coisa fora do comum, por menor que fosse.

— Sim, o que foi?

— Coisa pequena, Lorde. Um estranho tentou entrar na cidade. Não é de Shienar. Pelo sotaque, um homem de Lugard. Às vezes, pelo menos. Quando os guardas do Portão Sul tentaram interrogá-lo, ele fugiu. Viram-no entrar na floresta, mas pouco tempo depois ele foi encontrado escalando a muralha.

— Coisa pequena! — A cadeira de Agelmar raspou no chão quando ele se levantou. — Paz! O vigia da torre é tão negligente que um homem consegue atingir as muralhas sem ser visto, e você chama isso de coisa pequena?

— É um louco, Lorde. — Havia uma ponta de assombro na voz de Ingtar. — A Luz protege os loucos. Talvez a Luz tenha coberto os olhos do vigia da torre e permitido que o homem alcançasse as muralhas. Certamente um pobre louco que não pode fazer mal nenhum.

— Ele já foi trazido ao fortim? Ótimo. Traga-o até aqui. Agora. — Ingtar fez uma mesura e saiu, e Agelmar se virou para Moiraine. — Perdão, Aes Sedai, mas preciso cuidar disto. Talvez ele seja apenas um pobre coitado com a mente cega pela Luz, mas… Há dois dias, cinco de nossos próprios homens foram encontrados à noite tentando serrar as dobradiças de um portão de cavalos. Pequeno, mas o suficiente para deixar os Trollocs entrarem. — Ele fez uma careta. — Amigos das Trevas, suponho, embora deteste pensar isso de qualquer shienarano. Eles foram feitos em pedaços pelo povo antes que os guardas pudessem pegá-los, portanto jamais saberei. Se shienaranos podem ser Amigos das Trevas, preciso ser especialmente cuidadoso com estrangeiros. Se desejarem se retirar, eu os mandarei para seus quartos.

— Amigos das Trevas não conhecem fronteira nem sangue — disse Moiraine. — Eles são encontrados em todas as terras, e não são de qualquer delas. Eu também estou interessada em ver esse homem. O Padrão está formando uma Teia, Lorde Agelmar, mas a forma final da Teia ainda não foi definida. Ela pode ainda envolver o mundo, ou se desfazer e levar a Roda a uma nova tessitura. A essa altura, até mesmo as coisas pequenas podem mudar a forma da Teia. A essa altura eu desconfio de coisas pequenas fora do comum.

Agelmar olhou de relance para Nynaeve e Egwene.

— Como desejar, Aes Sedai.

Ingtar retornou com dois guardas carregando lanças longas e escoltando um homem que parecia um saco esfarrapado virado do avesso. Seu rosto estava cheio de fuligem e grudava seus cabelos e barba compridos e emaranhados. Ele entrou curvado no aposento, com os olhos fundos se movendo de um lado para outro. Um cheiro acre emanava dele.

Rand sentou-se mais para a frente, tentando ver através de toda aquela sujeira.

— Vocês não têm motivo para me prender assim — gemeu o homem imundo. — Sou apenas um pobre sem nada, abandonado pela Luz e procurando um lugar, como todo mundo, para me abrigar da Sombra.

— As Terras da Fronteira são um lugar estranho para procurar… — começou Agelmar, quando Mat o interrompeu.

— O mascate!

— Padan Fain — concordou Perrin, assentindo.

— O mendigo — disse Rand, subitamente rouco. Ele se recostou ao ver o ódio súbito que flamejava nos olhos de Fain. — Ele é o homem que estava perguntando por nós em Caemlyn. Tem de ser.

— Então isto lhe diz respeito, afinal, Moiraine Sedai — disse Agelmar lentamente.

Moiraine assentiu.

— Receio enormemente que sim.

— Eu não queria. — Fain começou a chorar. Lágrimas grossas abriam canais na sujeira em seu rosto, mas eram incapazes de chegar à camada mais profunda. — Ele me obrigou! Ele e seus olhos de fogo. — Rand estremeceu. Mat enfiou a mão embaixo do casaco, sem dúvida segurando a adaga de Shadar Logoth. — Ele fez de mim seu cão! Seu sabujo, para caçar e seguir sem sequer um pouco de descanso. Apenas seu cão, mesmo depois que ele me jogou fora.

— Isso nos preocupa a todos — disse Moiraine, pessimista. — Há algum lugar onde eu possa conversar com ele a sós, Lorde Agelmar? — Sua boca se contraiu de nojo. — E lavem-no primeiro. Posso precisar tocar nele. — Agelmar assentiu e falou baixinho com Ingtar, que fez uma mesura e desapareceu porta afora.

— Eu não serei compelido! — A voz era de Fain, mas ele não estava mais chorando, e um tom arrogante havia substituído os gemidos. Empertigou-se e, jogando a cabeça para trás, gritou para o teto: — Nunca mais! Eu… não… aceitarei! — Encarou Agelmar como se os homens que o flanqueavam fossem seus próprios guarda-costas e o Senhor de Fal Dara seu igual, e não seu captor. O tom de voz se tornou mais leve e untuoso. — Há um mal-entendido aqui, Grande Senhor. Eu às vezes sou possuído por feitiços, mas isso passará logo. Sim, logo me livrarei deles. — Com desprezo, passou a ponta dos dedos pelos farrapos que vestia. — Não se deixe levar por isto, Grande Senhor. Precisei me disfarçar contra aqueles que tentaram me deter, e minha jornada foi longa e árdua. Mas finalmente cheguei a terras onde os homens ainda conhecem os perigos de Ba’alzamon, onde os homens ainda combatem o Tenebroso.

Rand ficou olhando fixamente para ele, os olhos arregalados. A voz era mesmo de Fain, mas as palavras não soavam nem um pouco como sendo do mascate.

— Então você veio aqui porque lutamos contra Trollocs — disse Agelmar. — E você é tão importante que alguém quer detê-lo. Estas pessoas dizem que você é um mascate chamado Padan Fain, e que as está seguindo.

Fain hesitou. Olhou de esguelha para Moiraine e apressadamente desviou os olhos. Seu olhar percorreu todos de Campo de Emond, depois voltou rápido para Agelmar. Rand sentiu o ódio naquele olhar, e o medo. Quando Fain tornou a falar, entretanto, sua voz estava normal.

— Padan Fain é simplesmente um dos muitos disfarces que tenho sido forçado a usar ao longo dos anos. Amigos das Trevas me perseguem, pois aprendi como derrotar a Sombra. Eu posso lhes mostrar como derrotá-la, Grande Senhor.

— Nós estamos indo tão bem quanto podem os homens — disse Agelmar, seco. — Há de ser o que a Roda tecer, mas nós combatemos o Tenebroso quase desde a Ruptura do Mundo sem mascates para nos ensinar como.

— Grande Senhor, seu poder é inquestionável, mas ele poderá resistir ao Tenebroso para sempre? O senhor não se sente com frequência pressionado a resistir? Perdoe-me a temeridade, Grande Senhor; ele o esmagará no fim, do jeito que as coisas estão. Eu sei; creia em mim, eu sei. Mas eu posso lhe mostrar como expulsar a Sombra da terra, Grande Senhor. — Seu tom de voz se tornou ainda mais untuoso, embora ainda arrogante. — Se experimentar o que aconselho, verá, Grande Senhor. Purificará a terra. O Grande Senhor pode fazer isso, se direcionar seu poder na direção correta. Não permita que Tar Valon o emaranhe em suas armadilhas, e poderá salvar o mundo. O Grande Senhor será o homem lembrado por toda a história por trazer a vitória final à Luz. — Os guardas continuavam onde estavam, mas suas mãos buscaram os longos cabos das lanças como se achassem que poderiam ter de usá-las.

— Ele se acha muito importante para um vendedor ambulante — disse Agelmar para Lan. — Acho que Ingtar tem razão. Ele é louco.

Os olhos de Fain se estreitaram, raivosos, mas sua voz permaneceu suave.

— Grande Senhor, sei que minhas palavras parecem grandiosas, mas se simplesmente… — Ele se interrompeu de modo abrupto, recuando, quando Moiraine se levantou e começou lentamente a contornar a mesa. Somente as lanças cruzadas dos guardas evitavam que Fain recuasse a ponto de sair do aposento.

Parando atrás da cadeira de Mat, Moiraine pôs a mão em seu ombro e se curvou para sussurrar em seu ouvido. O que quer que ela tenha dito, a tensão desapareceu do rosto dele, que tirou a mão de dentro do casaco. A Aes Sedai prosseguiu até se encontrar ao lado de Agelmar, confrontando Fain. Quando ela parou, o mascate se agachou mais uma vez.

— Eu o odeio — gemeu. — Quero me libertar dele. Eu quero andar na Luz novamente. — Seus ombros começaram a sacudir, e as lágrimas começaram a escorrer pelo rosto ainda mais abundantes que antes. — Ele me obrigou a fazer isso.

— Receio que ele seja mais que um vendedor ambulante, Lorde Agelmar — disse Moiraine. — Menos que humano, pior do que vil, mais perigoso do que você pode imaginar. Ele pode tomar banho depois que eu tiver falado com ele. Não ouso perder um minuto sequer. Vamos, Lan.

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