42 Recordações de Sonhos

Foi um grupo desanimado que Rand conduziu escada abaixo. Ninguém queria falar com ele, nem uns com os outros. Ele também não tinha lá muita vontade de falar.

O sol já havia avançado o suficiente no céu para deixar a escada dos fundos na penumbra, mas os lampiões ainda não haviam sido acesos. A luz do sol e a sombra listravam os degraus. A expressão de Perrin estava tão fechada quanto a dos outros, mas onde a preocupação franzia as testas dos demais, a dele estava lisa. Rand achou que o olhar de Perrin era de resignação. Ele imaginou por quê, e queria perguntar, mas sempre que Perrin andava por um trecho mais profundo de sombra, seus olhos pareciam recolher o pouco de luz que havia, brilhando suavemente como âmbar polido.

Rand estremeceu e tentou se concentrar no ambiente ao redor, nas paredes com painéis de nogueira e no corrimão de carvalho, nas coisas sólidas, cotidianas. Ele enxugou as mãos no casaco diversas vezes, mas a cada vez que fazia isso o suor tornava a brotar nas palmas das mãos. Tudo vai ficar bem agora. Estamos juntos novamente, e… Luz, Mat.

Levou-os para a biblioteca pelo caminho dos fundos que passava pela cozinha, evitando o salão. Poucos viajantes usavam a biblioteca; a maioria dos que sabiam ler ficava em estalagens mais elegantes na Cidade Interna. Mestre Gill a mantinha mais para seu próprio prazer do que para o punhado de hóspedes que queriam um livro de vez em quando. Rand não queria pensar em por que Moiraine não queria que eles fossem vistos, mas não parava de pensar no suboficial dos Mantos-brancos dizendo que voltaria, e nos olhos de Elaida quando perguntara onde ele estava hospedado. O que quer que Moiraine quisesse, aquilo já era motivo suficiente.

Deu cinco passos dentro da biblioteca antes de perceber que todos os outros haviam parado, aglomerados na entrada, de queixo caído e olhos arregalados. Um pequeno fogo crepitava na lareira, e Loial se esticava no sofá comprido, lendo, com um gatinho preto de patas brancas enroscado e semiadormecido em cima de sua barriga. Quando eles entraram, ele fechou o livro com um dedo imenso marcando o lugar e colocou gentilmente o gato no chão, depois se levantou para fazer uma mesura formal.

Rand estava tão acostumado com o Ogier que levou um instante para perceber que Loial era o objeto dos olhares dos outros.

— Estes são os amigos que eu estava esperando, Loial — disse. — Esta é Nynaeve, a Sabedoria da minha aldeia. E Perrin. E esta é Egwene.

— Ah, sim — disse Loial numa voz de trovão. — Egwene. Rand falou muito de você. Sim. Eu sou Loial.

— Ele é um Ogier — explicou Rand e viu a natureza do espanto deles mudar. Mesmo depois de Trollocs e Desvanecidos em carne e osso, ainda era espantoso encontrar uma lenda viva, andando e respirando. Lembrando-se de sua própria reação inicial a Loial, ele sorriu, pesaroso. Estavam indo melhor do que ele.

Loial reagiu naturalmente aos olhares deles. Rand supôs que ele mal os notasse comparados a uma turba furiosa gritando “Trolloc”.

— E a Aes Sedai, Rand? — perguntou Loial.

— Está lá em cima com Mat.

O Ogier ergueu uma sobrancelha espessa, pensativo.

— Então ele está doente. Sugiro que nos sentemos todos. Ela se juntará a nós? Sim. Então nada há a fazer a não ser esperar.

O ato de sentar pareceu relaxar a tensão de todos de Campo de Emond, como se estar numa poltrona estofada com uma lareira acesa e um gato enroscado perto do fogo os fizesse se sentir em casa. Assim que se acomodaram, começaram, animados, a fazer perguntas ao Ogier. Para a surpresa de Rand, Perrin foi o primeiro a falar.

— Os pousos, Loial. Eles são realmente refúgios, do jeito que as histórias contam? — A voz dele era séria, como se ele tivesse um motivo particular para perguntar.

Loial ficou feliz em falar sobre os pousos, e como ele fora parar na Bênção da Rainha, e o que havia visto em suas viagens. Rand logo se recostou, escutando apenas parcialmente. Já ouvira tudo aquilo antes, em detalhes. Loial gostava de falar, e falar muito, quando tinha a menor oportunidade, embora em geral parecesse achar que uma história precisava de duzentos ou trezentos anos de pano de fundo para ser compreendida. Seu senso de tempo era muito estranho; para ele, trezentos anos parecia uma extensão razoável de tempo para uma história ou explicação cobrir. Ele sempre falava do pouso como se o tivesse deixado apenas alguns meses antes, mas finalmente ficara claro que ele partira havia quase três anos.

Os pensamentos de Rand se dirigiram a Mat. Uma adaga. Uma maldita faca, e poderia matá-lo só por carregá-la. Luz, eu não quero mais aventuras. Se ela puder curá-lo, nós deveríamos todos ir… para casa. Não. Não podemos ir para casa. Para algum lugar. Vamos todos para algum lugar onde nunca ninguém tenha ouvido falar em Aes Sedai ou no Tenebroso. Algum lugar.

A porta se abriu, e por um momento Rand achou que ainda estava imaginando coisas. Mat estava ali parado, piscando, com o casaco abotoado até o alto e o cachecol escuro enrolado na testa. Então Rand viu Moiraine, com a mão no ombro de Mat, e Lan atrás dos dois. A Aes Sedai estava observando Mat cuidadosamente, como se observa um convalescente que acabou de sair do leito. Como sempre, Lan vigiava tudo enquanto aparentava não vigiar nada.

Mat parecia não ter ficado doente um dia sequer. Seu primeiro sorriso hesitante incluiu a todos, embora tenha se tornado um olhar boquiaberto à visão de Loial, como se encontrasse o Ogier pela primeira vez. Dando de ombros e sacudindo a cabeça, ele voltou a atenção novamente para os amigos.

— Eu… ah… é… — Ele respirou fundo. — Isso… ah… parece que eu andei agindo… ah… meio estranho. Na verdade, não me lembro muito bem. — Ele olhou para Moiraine, desconfortável. Ela sorriu de volta de modo confiante, e ele continuou. — Tudo está nebuloso depois de Ponte Branca. Thom e o… — Ele estremeceu e se apressou. — Quanto mais longe de Ponte Branca, mais nebuloso tudo fica. Eu realmente não me lembro de ter chegado a Caemlyn. — Ele olhou para Loial de esguelha. — Não mesmo. Moiraine Sedai disse que eu… lá em cima, eu… ah… — Ele sorriu, e subitamente ali estava o velho Mat, finalmente. — Vocês não podem culpar um homem pelo que ele faz quando fica maluco, podem?

— Você sempre foi maluco — disse Perrin, e por um momento ele também pareceu o mesmo de antigamente.

— Não — disse Nynaeve. As lágrimas faziam seus olhos brilharem, mas ela estava sorrindo. — Nenhum de nós culpa você.

Rand e Egwene começaram a falar ao mesmo tempo então, dizendo a Mat como estavam felizes por vê-lo melhor e como ele parecia bem, fazendo alguns comentários risonhos sobre torcer para que ele fosse parar com seus truques agora que acabara de ser vítima de um tão terrível. Mat reagiu às brincadeiras com mais brincadeiras e foi até uma cadeira com todo o seu velho jogo de corpo. Quando se sentou, ainda sorrindo, tocou distraído seu casaco como se para se certificar de que alguma coisa enfiada atrás de seu cinto ainda estava ali, e Rand prendeu a respiração.

— Sim — disse Moiraine baixinho —, ele ainda está com a adaga. — Os risos e a conversa ainda prosseguiam entre o resto da gente de Campo de Emond, mas ela havia notado sua mudança súbita na respiração e visto o que a havia provocado. Aproximou-se da cadeira dele, onde não precisava levantar a voz para que ele a ouvisse com clareza. — Não posso tirá-la dele sem matá-lo. A união durou tempo demais, e se tornou forte demais. Esse nó precisa ser desatado em Tar Valon; está além de mim, ou de qualquer Aes Sedai sozinha, mesmo com um angreal.

— Mas ele não parece mais doente. — Algo ocorreu a Rand, que olhou para ela. — Enquanto ele tiver a adaga, os Desvanecidos saberão onde estamos. E Amigos das Trevas também, alguns deles. Você disse isso.

— Consegui conter isso, de certa forma. Se eles se aproximarem o suficiente de nós para sentir isso, já estarão em cima de nós de qualquer maneira. Eu limpei a mácula dele, Rand, e fiz o que pude para reduzir a velocidade de seu retorno, mas ela retornará, sem dúvida, com o tempo, a menos que ele receba ajuda em Tar Valon.

— Que bom que é para lá que vamos, não é? — Ele achou que talvez fosse a resignação em sua voz, e a esperança por alguma outra coisa, que a fez lhe dirigir um olhar severo antes de lhe dar as costas.

Loial estava de pé, fazendo uma mesura para ela.

— Eu sou Loial, filho de Arent, filho de Halan, Aes Sedai. O pouso oferece santuário para os Servos da Luz.

— Obrigada, Loial, filho de Arent — respondeu Moiraine, séria —, mas eu não seria tão liberal com essa saudação se fosse você. Há talvez vinte Aes Sedai em Caemlyn neste momento, todas, exceto eu, da Ajah Vermelha. — Loial assentiu sabiamente, como se compreendesse. Rand só conseguia balançar a cabeça, confuso. Que a Luz o cegasse se ele soubesse o que aquilo significava. — É estranho encontrar você aqui — continuou a Aes Sedai. — Poucos Ogier têm deixado os pousos nos últimos anos.

— As velhas histórias me cativaram, Aes Sedai. Os livros antigos encheram minha cabeça indigna de imagens. Eu quero ver os bosques. E as cidades que construímos também. Parece que não resta muito de nenhuma das duas coisas de pé, mas, se os prédios são um pobre substituto para as árvores, mesmo assim ainda vale a pena vê-los. Os Anciões acham que sou esquisito, por querer viajar. Eu sempre quis, e eles sempre acharam. Nenhum deles acredita que exista algo que valha a pena ver do lado de fora do pouso. Talvez, quando eu voltar e lhes contar o que vi, eles mudem de ideia. Espero que sim. Com o tempo.

— Talvez mudem — disse Moiraine com suavidade. — Agora, Loial, você precisa me desculpar a descortesia. É uma falha da humanidade, eu sei. Meus companheiros e eu temos uma necessidade urgente de planejar nossa jornada. Poderia nos dar licença?

Foi a vez de Loial parecer confuso. Rand foi em seu socorro.

— Ele vem conosco. Prometi que ele poderia.

Moiraine ficou parada, olhando para o Ogier como se não tivesse ouvido, mas finalmente assentiu.

— Há de ser o que a Roda tecer — murmurou ela. — Lan, cuide para que não sejamos pegos de surpresa. — O Guardião desapareceu do aposento, em silêncio a não ser pelo clique da porta se fechando.

O desaparecimento de Lan foi como um sinal; todas as conversas foram interrompidas. Moiraine foi até a lareira, e, quando se virou novamente para a sala, todos olhavam para ela. Por mais baixa e esguia que fosse, sua presença dominava a sala.

— Não podemos permanecer muito tempo em Caemlyn, nem tampouco estamos seguros aqui na Bênção da Rainha. Os olhos do Tenebroso já estão na cidade. Eles não encontraram o que vieram buscar, ou não estariam mais procurando. Isso nós temos a nosso favor. Coloquei feitiços de proteção para mantê-los longe, e, quando o Tenebroso perceber que há uma parte da cidade na qual os ratos não entram mais, já teremos partido. Entretanto, qualquer feitiço de proteção que afaste um homem é o mesmo que um farol de fogo para os Myrddraal, e há Filhos da Luz em Caemlyn também, procurando Perrin e Egwene. — Rand emitiu um som, e Moiraine ergueu uma sobrancelha para ele.

— Achei que eles estivessem procurando por Mat e por mim — disse ele.

A explicação fez a Aes Sedai erguer as duas sobrancelhas.

— Por que você acharia que os Mantos-brancos estavam à procura de vocês?

— Ouvi um deles dizer que estavam procurando alguém dos Dois Rios. Amigos das Trevas, eles disseram. O que mais eu deveria pensar? Com tudo o que tem acontecido, tenho sorte de estar conseguindo pensar.

— Eu sei que as coisas têm sido confusas, Rand — interrompeu Loial. — Mas você pode pensar com mais clareza do que isso. Os Filhos odeiam Aes Sedai. Elaida não…

— Elaida? — interrompeu Moiraine abruptamente. — O que Elaida Sedai tem a ver com isso?

Ela estava olhando para Rand com tanta intensidade que ele sentiu vontade de inclinar-se para trás.

— Ela quis me jogar na cadeia — disse ele devagar. — Eu só queria ver Logain, mas ela não acreditou que eu estava nos jardins do Palácio com Elayne e Gawyn apenas por acaso. — Todos olhavam para ele como se um terceiro olho tivesse nascido de repente em sua testa, todos exceto Loial. — A Rainha Morgase me deixou partir. Ela disse que não havia provas de que eu quisesse fazer qualquer coisa de mal e que ela faria cumprir a lei, independentemente de qualquer suspeita de Elaida. — Ele sacudiu a cabeça, a lembrança de Morgase em todo o seu esplendor fazendo-o esquecer por um minuto que alguém olhava para ele. — Vocês conseguem me imaginar encontrando uma Rainha? Ela é linda, como as rainhas das histórias. Elayne também. E Gawyn… Você iria gostar de Gawyn, Perrin. Perrin? Mat? — Eles ainda o encaravam de olhos arregalados. — Sangue e cinzas, eu só escalei o muro para ver o falso Dragão. Não fiz nada de errado.

— É o que eu sempre digo — disse Mat, tranquilo, embora subitamente exibisse um sorriso de orelha a orelha, e Egwene perguntou com uma voz decididamente neutra:

— Quem é Elayne?

Moiraine resmungou alguma coisa, irritada.

— Uma Rainha — disse Perrin, balançando a cabeça. — Você teve mesmo aventuras. Nós só encontramos Latoeiros e uns Mantos-brancos. — Ele evitava tão obviamente olhar para Moiraine que Rand percebeu. Perrin tocou as escoriações no rosto. — No geral, cantar com os Latoeiros foi mais divertido que os Mantos-brancos.

— O Povo Errante vive por suas canções — disse Loial. — Por todas as canções, aliás. Pela busca por elas, pelo menos. Conheci alguns Tuatha’an alguns anos atrás, e eles queriam aprender as canções que cantamos para as árvores. Na verdade, já não são muitas as árvores que ouvem, e não são muitos os Ogier que aprendem as canções. Eu tenho um pouco desse Talento, por isso o Ancião Arent insistiu para que eu aprendesse. Ensinei aos Tuatha’an o que podiam aprender, mas as árvores nunca ouvem os humanos. Para o Povo Errante elas eram apenas canções, e como tais foram recebidas, já que nenhuma delas era a canção que eles buscavam. É assim que eles chamam o líder de cada bando. O Buscador. Eles às vezes vão ao Pouso Shangtai. Poucos humanos o fazem.

— Se fizer o favor, Loial — disse Moiraine, mas ele subitamente pigarreou e continuou a falar num murmúrio grave e rápido como se tivesse medo de que ela pudesse interrompê-lo.

— Acabei de me lembrar de uma coisa, Aes Sedai, uma coisa que eu sempre quis perguntar a uma Aes Sedai se algum dia eu encontrasse uma, já que vocês sabem muitas coisas e têm grandes bibliotecas em Tar Valon, e agora eu encontrei, claro, e… posso?

— Se puder ser breve — respondeu ela, seca.

— Breve — repetiu ele como se estivesse se perguntando o que aquilo significava. — Sim. Bem. Breve. Um homem chegou ao Pouso Shangtai há pouco tempo. Isto em si não era incomum, na época, já que muitos refugiados foram até a Espinha do Mundo fugindo do que vocês humanos chamam de a Guerra dos Aiel. — Rand sorriu. Há pouco tempo; quase vinte anos. — Ele estava à beira da morte, embora não tivesse ferimento nem marca alguma no corpo. Os Anciões acharam que podia ser algo que uma Aes Sedai tivesse feito — Loial lançou um olhar se desculpando a Moiraine —, já que ele melhorou rapidamente assim que entrou no pouso. Alguns meses. Uma noite ele partiu sem dizer uma só palavra a ninguém. Simplesmente se esgueirou para fora quando a lua estava baixa. — Ele olhou para o rosto de Moiraine e voltou a pigarrear. — Sim. Breve. Antes de partir, ele contou uma história curiosa que ele disse que pretendia levar até Tar Valon. Ele contou que o Tenebroso pretendia cegar o Olho do Mundo, e matar a Grande Serpente, matar o próprio tempo. Os Anciões disseram que ele estava tão são de mente quanto de corpo, mas foi aquilo o que ele falou. O que eu tenho desejado perguntar é: o Tenebroso pode fazer tal coisa? Matar o próprio tempo? E o Olho do Mundo? Ele pode cegar o olho da Grande Serpente? O que significa isso?

Rand esperava quase tudo de Moiraine, exceto o que ele viu. Em vez de dar uma resposta a Loial, ou lhe dizer que não tinha tempo para aquilo naquele momento, ela ficou olhando direto através do Ogier, a testa franzida, pensativa.

— Foi isso o que os Latoeiros nos disseram — disse Perrin.

— Sim — confirmou Egwene. — A história dos Aiel.

Moiraine virou a cabeça devagar. Nenhuma outra parte dela se moveu.

— Que história?

Ela lhes lançou um olhar sem expressão, mas que fez Perrin respirar fundo. Quando ele falou, entretanto, foi com a mesma ponderação de sempre.

— Alguns Latoeiros atravessando o Deserto, eles disseram que podiam fazer isso sem sofrer mal nenhum, encontraram um bando de Aiel morrendo depois de uma batalha com Trollocs. Antes que a última Aiel morresse, ela, aparentemente eram todas mulheres, contou aos Latoeiros o que Loial acabou de dizer. O Tenebroso, que elas chamavam de Cega-vista, pretende cegar o Olho do Mundo. Isto foi apenas três anos atrás, não vinte. Significa alguma coisa?

— Talvez tudo — disse Moiraine. Seu rosto estava imóvel, mas Rand tinha a sensação de que a mente dela estava a mil por trás daqueles olhos escuros.

— Ba’alzamon — disse Perrin subitamente. O nome cortou todo e qualquer som no aposento. Ninguém parecia respirar. Perrin olhou para Rand e depois para Mat, os olhos dele estranhamente calmos e mais amarelos que nunca. — Naquela ocasião eu me perguntei onde tinha ouvido esse nome antes… o Olho do Mundo. Agora me lembro. Vocês não?

— Eu não quero me lembrar de nada — disse Mat, rígido.

— Precisamos contar a ela — continuou Perrin. — Agora é importante. Não podemos mais guardar segredo. Você entende, não entende, Rand?

— Contar o quê? — A voz de Moiraine era severa, e ela parecia estar se preparando para receber um golpe. O olhar dela se fixou em Rand.

Ele não queria responder. Assim como Mat, não queria lembrar, mas lembrava, e sabia que Perrin tinha razão.

— Eu… — Ele olhou para seus amigos. Mat assentia relutantemente, Perrin com decisão, mas pelo menos o haviam feito. Ele não precisava encará-la sozinho. — Nós temos tido… sonhos. — Ele esfregou o ponto de seu dedo onde o espinho o havia espetado, lembrando do sangue quando acordara. Lembrando-se, incomodado, da sensação do rosto queimado pelo sol em outro momento. — Só que talvez não fossem exatamente sonhos. Ba’alzamon estava neles. — Ele sabia por que Perrin havia usado esse nome; era mais fácil que dizer que o Tenebroso havia estado em seus sonhos, dentro de sua cabeça. — Ele disse… ele disse todo tipo de coisa, mas uma vez ele falou que o Olho do Mundo jamais me serviria. — Por um momento sua boca ficou seca como pó.

— Ele me disse a mesma coisa — contou Perrin, e Mat suspirou pesadamente, assentindo.

Rand descobriu que tinha saliva novamente.

— Você não está zangada conosco? — perguntou Perrin, com ar de surpresa, e Rand percebeu que Moiraine não parecia zangada. Ela os estava estudando, mas seus olhos pareciam límpidos e calmos, ainda que intensos.

— Mais comigo mesma do que com vocês. Mas eu lhes pedi que me contassem se tivessem sonhos estranhos. No começo, eu pedi. — Embora sua voz continuasse num tom neutro, um lampejo de fúria cruzou seus olhos e desapareceu num instante. — Se eu tivesse sabido depois do primeiro, teria sido capaz de… Não há uma Andarilha dos Sonhos em Tar Valon há quase mil anos, mas eu poderia ter tentado. Agora é tarde demais. Toda vez que o Tenebroso toca vocês, ele torna o toque seguinte mais fácil. Talvez minha presença ainda possa proteger vocês de algum jeito, mas mesmo assim… Lembram-se das histórias dos Abandonados ligando homens a eles? Homens fortes, homens que haviam combatido o Tenebroso desde o começo. Essas histórias são verdadeiras, e nenhum dos Abandonados tinha um décimo da força de seu mestre, nem Aginor nem Lanfear, nem Balthamel nem Demandred, nem mesmo Ishamael, o Traidor da Esperança em pessoa.

Nynaeve e Egwene estavam olhando para ele, Rand viu, ele, Mat e Perrin, todos os três. Os rostos das mulheres eram uma mistura exangue de medo e horror. Elas têm medo por nós, ou medo de nós?

— O que podemos fazer? — perguntou. — Tem de haver alguma coisa.

— Ficar perto de mim — respondeu Moiraine — vai ajudar. Um pouco. Lembrem-se de que a proteção do toque da Fonte Verdadeira se estende um pouco ao meu redor. Mas não há como estarem sempre próximos a mim. Vocês podem se defender se tiverem forças para isso, mas precisam encontrar essa força e a vontade dentro de vocês mesmos. Isso eu não posso lhes dar.

— Acho que já encontrei minha proteção — disse Perrin, parecendo mais resignado do que feliz.

— Sim — disse Moiraine. — Suponho que tenha encontrado. — Ela o olhou até ele abaixar os olhos, e mesmo depois continuou olhando, pensativa, para ele. Por fim, ela se virou para os outros. — Há limites para o poder do Tenebroso dentro de vocês. Cedam por um instante sequer, e ele amarrará uma corda no coração de vocês, uma corda que talvez vocês jamais possam cortar. Rendam-se, e vocês serão dele. Neguem-no, e o poder dele falhará. Não é fácil quando ele toca seus sonhos, mas pode ser feito. Ele ainda pode enviar Meios-homens contra vocês, e Trollocs, e Draghkars, e outras coisas, mas não pode tê-los a menos que vocês permitam.

— Desvanecidos já são ruins o suficiente — disse Perrin.

— Eu não quero ele dentro da minha cabeça novamente — rosnou Mat. — Não existe nenhum jeito de mantê-lo do lado de fora?

Moiraine sacudiu a cabeça.

— Loial nada tem a temer, nem Egwene, nem Nynaeve. De toda a massa da humanidade, o Tenebroso pode tocar um indivíduo apenas por acaso, a menos que essa pessoa procure isso. Mas pelo menos por algum tempo vocês três são fundamentais para o Padrão. Uma Teia do Destino está sendo tecida, e cada fio leva diretamente até vocês. O que mais o Tenebroso lhes disse?

— Eu não me lembro assim tão bem — disse Perrin. — Ele falou alguma coisa sobre um de nós ser escolhido, algo assim. Lembro que ele riu — ele terminou, sombrio — ao falar sobre por quem nós havíamos sido escolhidos. Ele disse que eu… nós poderíamos servir a ele ou morrer. E mesmo assim nós ainda o serviríamos.

— Ele disse que o Trono de Amyrlin tentaria nos usar — acrescentou Mat, sua voz enfraquecendo ao se lembrar de com quem estava falando. Engoliu em seco e continuou. — Disse que seria exatamente como Tar Valon usou… ele falou alguns nomes. Davian, eu acho. Também não lembro muito bem.

— Raolin Algoz-das-trevas — disse Perrin.

— Isso — disse Rand, franzindo a testa. Ele havia tentado esquecer tudo relacionado àqueles sonhos. Era desagradável trazê-los à tona novamente. — Yurian Arco-de-pedra era outro, e Guaire Amalasan. — Parou subitamente, torcendo para que Moiraine não tivesse notado. — Não reconheço nenhum deles.

Mas um ele havia reconhecido, agora que o puxava das profundezas da memória. O nome que por muito pouco ele não pronunciara naquele momento. Logain. O falso Dragão. Luz! Thom disse que eram nomes perigosos. Foi isso o que Ba’alzamon quis dizer? Moiraine deseja usar um de nós como falso Dragão? Aes Sedai caçam falsos Dragões, não os usam. Será que usam? Que a Luz me ajude, será que usam?

Moiraine estava olhando para ele, mas ele não conseguia ler seu rosto.

— Você os conhece? — perguntou ele. — Significam alguma coisa?

— O Pai das Mentiras é um bom nome para o Tenebroso — respondeu Moiraine. — Sempre foi típico dele colocar o verme da dúvida onde for possível. Esse verme devora as mentes dos homens como um câncer. Acreditar no Pai das Mentiras é o primeiro passo para a rendição. Lembre-se. Se você se render ao Tenebroso, ele o possuirá.

Uma Aes Sedai nunca mente, mas a verdade que ela diz pode não ser a verdade que você pensa que ouviu. Fora o que Tam dissera, e ela não havia realmente respondido à sua pergunta. Ele manteve o rosto impassível e as mãos ainda sobre os joelhos, tentando não enxugar o suor delas na calça.

Egwene chorava baixinho. Nynaeve tinha os braços ao redor dela, mas também parecia querer fazer o mesmo. Rand quase desejou poder chorar também.

— Eles são todos ta’veren — disse Loial bruscamente. Parecia empolgado com a possibilidade, ansioso para ver de perto o Padrão tecendo-se ao redor deles. Rand olhou para ele sem acreditar, e o Ogier deu de ombros meio envergonhado, mas não foi o bastante para reduzir sua ansiedade.

— São mesmo — disse Moiraine. — Três deles, quando eu esperava um. Aconteceram muitas coisas que eu não esperava. Essa novidade com relação ao Olho do Mundo muda muita coisa. — Ela fez uma pausa, franzindo a testa. — Por um tempo o Padrão parece estar girando ao redor de vocês três, como Loial falou, e esse turbilhão vai crescer antes de ficar menor. Às vezes, ser ta’veren quer dizer que o Padrão é forçado a se dobrar a você, e às vezes quer dizer que o Padrão força você a seguir o caminho necessário. A Teia ainda pode ser tecida de muitas maneiras, e alguns desses desenhos seriam desastrosos. Para vocês, para o mundo.

“Não podemos permanecer em Caemlyn, mas, por qualquer estrada, Myrddraal e Trollocs estarão em cima de nós antes de percorrermos dez milhas. E justo neste ponto ouvimos falar de uma ameaça ao Olho do Mundo, não de uma fonte, mas de três, cada qual aparentemente independente das outras. O Padrão está forçando nosso caminho. O Padrão ainda está sendo tecido ao redor de vocês três, mas que mão agora segura o fuso, e que mão controla a roca? Será que a prisão do Tenebroso enfraqueceu o suficiente para que ele exerça tanto controle assim?”

— Não há necessidade para este tipo de conversa! — disse Nynaeve bruscamente. — Você só vai assustá-los.

— E a você não? — perguntou Moiraine. — Isso me assusta. Bem, talvez você tenha razão. Não podemos permitir que o medo afete nosso curso. Seja isto uma armadilha ou um aviso bem a tempo, precisamos fazer o que é necessário, e isto significa chegar ao Olho do Mundo rapidamente. O Homem Verde precisa saber desta ameaça.

Rand levou um susto. O Homem Verde? Os outros também a olharam, todos a não ser Loial, cujo rosto largo parecia preocupado.

— Não posso sequer correr o risco de parar em Tar Valon em busca de ajuda — continuou Moiraine. — O tempo nos aprisiona. Ainda que pudéssemos cavalgar para fora da cidade sem obstáculos, levaríamos muitas semanas para chegar à Praga, e receio que não tenhamos semanas.

— A Praga! — Rand ouviu a si mesmo ecoado num coro, mas Moiraine ignorou todas as vozes.

— O Padrão apresenta uma crise e, ao mesmo tempo, um jeito de solucioná-la. Se eu não soubesse que era impossível, quase poderia acreditar que o Criador está intervindo. Há um caminho. — Ela sorriu como se fosse uma piada particular e virou-se para Loial. — Havia um bosque Ogier aqui em Caemlyn, e um Portal dos Caminhos. A Cidade Nova agora se espalha sobre o local onde o bosque ficava, de modo que o Portal dos Caminhos deve estar dentro das muralhas. Eu sei que não são muitos Ogier que conhecem os Caminhos agora, mas um que possui um Talento e aprende as antigas Canções do Crescimento deve ter se sentido atraído por tal tipo de conhecimento, ainda que acredite que ele nunca será usado. Você conhece os Caminhos, Loial?

O Ogier mexeu os pés, desconfortável.

— Conheço, Aes Sedai, mas…

— Você consegue encontrar a trilha para Fal Dara ao longo dos Caminhos?

— Nunca ouvi falar em Fal Dara — disse Loial, parecendo aliviado.

— Nos tempos das Guerras dos Trollocs o lugar era conhecido como Mafal Dadaranell. Esse nome você conhece?

— Conheço — disse Loial com relutância —, mas…

— Então você consegue encontrar a trilha para nós — disse Moiraine. — Uma virada curiosa, de fato. Quando não podemos ficar nem partir por nenhum meio normal, fico sabendo de uma ameaça ao Olho, e no mesmo lugar existe alguém que pode nos levar até lá em dias. Seja o Criador, ou o destino ou até mesmo o Tenebroso, o Padrão escolheu nosso caminho por nós.

— Não! — disse Loial, num ribombar enfático como trovão. Todos se voltaram para ele, que piscou ante tamanha atenção, mas não havia nenhuma hesitação em suas palavras. — Se entrarmos nos Caminhos, todos morreremos… ou seremos engolidos pela Sombra.

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