- Enlouqueceste. Ainda não reúno as condições necessárias.

- Enganas-te, mon cher.

Naquela tarde, quando chegou ao apartamento, Tony descobriu que a rapariga não se encontrava só. Acompanhava -a Anton Goerg, um indivíduo magro, de estômago dilatado e olhos castanhos protuberantes, proprietário da Galeria Goerg, na Rue Dauphine. As telas de Tony achavam-se dispersas à sua volta.

- Que se passa? - quis saber o recém-chegado.

- Passa-se que, na minha opinião, o seu trabalho é brilhante, monsieur - e o homem desferiu-lhe uma palmada nas costas. - Terei o maior prazer em promover-lhe uma exposição na minha galeria.

Tony desviou os olhos para Dominique, que o fitava com um sorriso de alegria.

- Não sei o que dizer.

- Já disse - redarguiu Goerg. - Nestas telas.

Tony e Dominique passaram metade da noite imersos na discussão do assunto.

- Penso que ainda não chegou o momento oportuno - alegava ele. - Os críticos crucificavam-me.

- Não concordo, chéri. O ambiente é o ideal para ti.

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Trata -se de uma pequena galeria, e só as pessoas do bairro poderão admirar os teus trabalhos e julgá-los. Não tens nada a perder. Goerg não sugeria a exposição se não te reconhecesse talento. Pensa, como eu, que serás um artista importante.

- Está bem - acabou por capitular. - Quem sabe? Até sou capaz de vender uma tela.

O telegrama era do seguinte teor: “CHEGO PARIS SÁBADO. JANTAREMOS

JUNTOS. MÃE.”

O primeiro pensamento de Tony quando viu Kate entrar no estúdio foi: “É uma bela mulher!” Na realidade, ela completara cinquenta e cinco anos e apenas e xibia uns vestígios grisalhos nas têmporas, irradiando um ar de vitalidade impressionante. Uma ocasião, perguntara -lhe porque não voltara a casar e obtivera a resposta com prontidão:

- Houve apenas dois homens importantes na minha vida. Teu pai e tu.

Agora, no pequeno apartamento de Paris, diante da mãe, Tony proferiu:

- Te-tenho muito go-gosto em voltar a ver-te, m-mãe.

- Estás com um aspecto absolutamente maravilhoso! A barba fica-te muito bem - e ela deu uma risada e acariciou-lha. - Lembras Abe Lincoln - olhou em volta com curiosidade. - Vejo que arranjaste uma mulher a dias competente. Dá a impressão de que te mudaste.

Em seguida, aproximou-se do cavalete e contemplou demoradamente a tela por concluir, enquanto Tony aguardava a reacção com ansiedade.

Por fim, Kate exprimiu-se em voz pausada:

- É brilhante. Realmente brilhante.

Consagraram as duas horas seguintes ao exame das outras pinturas, discutindoas pormenorizadamente. Ao cabo de numerosas palavras encomiásticas intermitentes, ela anunciou:

- Vou preparar uma exposição. Conheço alguns proprietários de galerias que…

- Obrigado, m-mãe, mas não é ne-necessário. Tenho uma pre-prevista para sexta - feira.

- Estupendo! - abraçou o filho com entusiasmo. - Onde?

- Na Galeria Go-Goerg.

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- Nunca ouvi falar dela.

- É pequena, mas ainda não es-estou em condições de apresentar os meus trabalhos na Hammer ou na Wil-wildenstein.

- Discordo - apontou para a pintura de Dominique debaixo da árvore. - Só esta…

Naquele momento, ouviu-se o som da porta de entrada e a voz de Dominique, ansiosa:

- Estou com o cio, chéri! Despe-te já para… - nesse instante, avistou Kate. - Oh, merde! Não sabia que tinhas visitas.

Seguiu-se um breve silêncio embaraçoso, cortado finalmente por Tony:

- Apresento-te minha m-mãe. M-mãe, esta é Do-domini-que Masson.

As duas mulheres observaram-se sem proferir palavra por alguns segundos, até que Dominique murmurou:

- Tenho muito gosto em conhecê-la, Mistress Blackwell.

- Estava a admirar o seu retrato pintado por meu filho - redarguiu Kate, à guisa de retribuição.

E estabeleceu-se novo silêncio carregado.

- Tony falou-lhe da sua próxima exposição, Mistress Blackwell?

- Sim. Foi uma surpresa muito agradável para mim.

- Po-podes ficar para assistir, mãe?

- Daria tudo para estar presente, mas tenho uma reunião da administração em Joanesburgo, depois de amanhã, a que não posso de modo algum faltar. Se soubesse mais cedo, tomava providências para a adiar.

- Não faz m-mal - disse Tony. - Compreendo perfeitamente.

Receava que ela aludisse a mais pormenores sobre a companhia diante de Dominique, mas o pensamento de Kate concentrava-se nas telas.

- É importante que as pessoas apropriadas compareçam na exposição.

- Quem são as pessoas apropriadas, Mistress Blackwell?

- Os formadores de opinião, os críticos - replicou, virando-se para a rapariga. - Alguém como André d'Usseau deve estar presente.

Referia-se ao crítico mais respeitado em França, um leão feroz que guardava o templo da arte, cujas impressões podiam

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favorecer ou destruir um artista de um dia para o outro. Era convidado para assistir à inauguração de todas as exposições, mas só comparecia às de maior projecção.

Os proprietários de galerias e pintores tremiam enquanto a sua opinião não vinha a lume. Era um mestre do bon mot e as suas tiradas sarcásticas circulavam por Paris em asas envenenadas. André d'Us-seau podia considerar-se o homem mais odiado nos círculos da arte e, ao mesmo tempo, o mais venerado.

- Não vai às ga-galerias de importância secundária - esclareceu Tony.

- Mas tem de ir a essa! Pode tornar-te famoso num abrir e fechar de olhos.

- Ou reduzir-me a pó.

- Não acreditas em ti? - bradou Kate, olhando-o com assombro.

- Claro que acredita - interpôs Dominique. - Mas não se atreve a esperar que D'Usseau compareça.

- Posso procurar uns amigos que o devem conhecer.

- Isso era divinal! - e os olhos da rapariga iluminaram-se. Virando-se para Tony, acrescentou: - Já pensaste no que representaria a sua presença?

- Ó esquecimento definitivo?

- Falo a sério. Sei do que ele gosta e estou certa de que adoraria os teus trabalhos.

- Não efectuarei qualquer diligência, a menos que o desejes - advertiu Kate.

- Sem dúvida que deseja, Mistress Blackwell.

- Te-tenho medo - Tony respirou fundo. - Mas, que diabo! Vamos a isso.

- Verei o que consigo - e Kate contemplou a tela no cavalete por um longo momento e voltou-se para o filho, com uma expressão de amargura no olhar. - Tenho de deixar Paris, amanhã. Podemos jantar juntos, esta noite?

- Sem dúvida. Estamos livres.

- Vamos ao Maxines ou prefere?… - começou, dirigindo-se a Dominique.

- Conhecemos um pequeno restaurante, perto daqui - acudiu Tony, com prontidão.

Afinal, entraram num bistro da Place Victoire, onde a comida era boa e o vinho excelente. As duas mulheres pareciam entender-se satisfatoriamente e o rapaz orgulhava -se de

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ambas. “É uma das melhores noites da minha vida. Estou com a minha mãe e a mulher com quem casarei.”

Na manhã seguinte, Kate telefonou do aeroporto:

- Contactei com meia dúzia de pessoas, mas nenhuma me forneceu uma resposta concreta acerca de André d'Usseau. No entanto, qualquer que seja o resultado, orgulho-me de ti, querido. As telas são maravilhosas. Até breve.

- Até breve, m-mãe.

A Galeria Goerg era espaçosa apenas o suficiente para se furtar à classificação de intime. Duas dezenas de telas de Tony foram penduradas nas paredes, numa preparação de última hora para a abertura. Numa mesa de tampo de mármore, viam-se fatias de queijo, biscoitos e garrafas de Chablis. Os únicos ocupantes da sala eram Anton Goerg, Tony, Domini-que e uma jovem assistente incumbida de pendurar os últimos quadros.

- O convite menciona as sete horas - disse o primeiro, consultando o relógio. - As pessoas devem começar a chegar a todo o momento.

Tony, que não esperara estar nervoso, reflectia: “E não estou. Entrei em pânico!” - E se não aparecer ninguém? - aventou.

- Ficamos com todos estes aperitivos para nós - volveu Dominique, acariciandolhe a face.

Com efeito, principiaram a chegar pessoas. Isoladamente ao princípio, e depois em maior número, enquanto Goerg, postado à entrada, as saudava com efusão.

Por seu turno, Tony cogitava: “Não têm aspecto de compradores de objectos de arte.” O seu olhar arguto dividia-se em três categorias: os artistas e estudantes de arte, que compareciam a todas as exposições para tomar o pulso à concorrência, os negociantes, empenhados em difundir informações detractoras sobre os aspirantes a pintores, e a multidão de curiosos, composta em larga medida por homossexuais e lésbicas, que pareciam passar a vida na periferia do mundo da arte. “Não conseguirei vender uma única tela”, acabou por pensar.

De súbito, apercebeu-se de que Goerg lhe fazia sinal para que se aproximasse e segredou a Dominique:

- Não me apetece conhecer esta gente. Vieram todos para me reduzir a tiras.

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- Não digas disparates. Vieram mas foi para te serem apresentados. Trata-os com amabilidade.

Nessa conformidade, mostrou-se amável. Foi apresentado a todos, sorriu com abundância e pronunciou as frases apropriadas em resposta aos elogios que lhe dirigiam. “Mas tratar-se-á na verdade de elogios?” Ao longo dos anos, desenvolvera-se um vocabulário nos círculos da arte para abarcar as exposições de artistas desconhecidos. Frases que diziam tudo e nada.

- Uma pessoa sente-se identificada com o assunto…

- Nunca tinha visto um estilo como o seu…

- A isto é que eu chamo pintar!…

- Trata-se de um tema arrebatador…

- Não acredito que alguém conseguisse fazer melhor… Entretanto, continuava a chegar gente, e Tony perguntava a si próprio se a atracção residia na curiosidade pelos seus trabalhos ou nos aperitivos e no vinho gratuitos. Até àquele momento, não fora vendido um único quadro, mas o queijo e o vinho desapareciam a olhos vistos.

- Seja paciente - recomendava Goerg. - Eles estão interessados. Primeiro, têm de captar o aroma das pinturas. Quando vêem uma que lhes agrada, começam a rondá-la, até que perguntam o preço. Nessa altura, mordem o anzol!

- Isto parece mais uma pescaria - disse Tony a Domini -que.

Por fim, Goerg procurou-o, para anunciar:

- Vendemos uma! A paisagem da Normandia, por quinhentos francos.

Foi um momento que Tony recordaria toda a vida. Alguém comprara um quadro seu! Alguém apreciara suficientemente o seu trabalho para dar dinheiro por ele, pendurá-lo em sua casa ou no escritório, viver com ele, mostrá-lo aos amigos.

Tratava-se de um pequeno fragmento de imortalidade. Era uma maneira de viver mais de uma vida, de estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. Um artista coroado de êxito e ncontrava-se em centenas de lares, escritórios e museus de todo o mundo, para proporcionar prazer a milhares, por vezes milhões, de pessoas. Tony sentia-se como se tivesse entrado no panteão de Da Vinci, Miguel Ângelo e Rembrandt. Deixara de ser um amador para se tornar um profissional.

Alguém dera dinheiro pelo seu trabalho…

Pouco depois, Dominique acercou-se, excitada.

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- Acabas de vender outra, chéri!

- Qual? - quis saber ele, com ansiedade.

- A floral.

O ruído das conversas, que fora aumentando gradualmente, extinguiu-se de súbito, como que em obediência a um sinal, e todos os olhares se concentraram na entrada.

André d'Usseau acabava de fazer a sua aparição. Aparentava uns cinquenta e cinco anos, mais alto que o francês médio, de expressão leonina e cabelos abundantes revoltos. Usava uma capa sem mangas e chapéu estilo Borsalino e seguia-o uma comitiva de oportunistas. Automaticamente, todos começaram a desviar-se para que a importante personagem passasse. Com efeito, não havia um único dos presentes que não soubesse de quem se tratava.

- Afinal, veio! - sussurrou Dominique, apertando o braço de Tony.

Goerg nunca fora alvo de semelhante honra e, quase transtornado, curvava-se diante do insigne crítico.

- Que prazer inesperado, Monsieur D'Usseau - balbuciava. - Permita -me que lhe ofereça uma taça de vinho - e amaldiçoava-se intimamente por não ter adquirido bebidas de melhor qualidade.

- Obrigado, mas vim apenas para satisfazer os meus olhos - replicou o grande crítico. - Desejava conhecer o artista.

Tony sentia-se demasiado aturdido para dar um passo, e Dominique teve de o impelir para a frente.

- Ei-lo - anunciou Goerg. - Monsieur André d'Usseau, este é Tony Blackwell.

- Muito prazer… - articulou Tony, a meia voz. - Agradeço a gentileza de ter comparecido.

D'Usseau inclinou a cabeça ligeiramente e aproximou-se das telas nas paredes, acompanhado pelos olhares curiosos e ávidos de todos. Examinou cada uma demoradamente, antes de passar à seguinte, enquanto Tony desenvolvia esforços desesperados para lhe ler a expressão. No entanto, o crítico não enrugava a fronte nem sorria. Fez uma pausa mais longa diante do nu de Dominique e prosseguiu, até completar o circuito da sala. Por último, dirigiu-se a Tony e limitouse a declarar:

- Estou contente por ter vindo.

Escassos minutos depois de se retirar, todos os quadros

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expostos tinham sido vendidos. Acabava de nascer um grande artista e todos queriam participar no nascimento.

- Nunca tinha assistido a nada assim - confessou Goerg. - André d'Usseau visitou a minha galeria. A minha galeria! Amanhã, toda cidade lerá a notícia nos jornais.

“Estou contente por ter vindo.” Ele não costuma desperdiçar palavras. O momento exige champanhe. Celebremo-lo!

Mais tarde, naquela noite, Tony e Dominique tiveram a sua celebração privada.

Anichada nos braços dele, ela admitia:

- Dormi com diversos pintores, mas com nenhum tão célebre como tu virás a ser.

Amanhã, Paris em peso saberá quem és.

E não se equivocava.

Às cinco horas da madrugada seguinte, vestiram-se apressadamente e saíram para comprar o matutino que acabava de chegar ao quiosque mais próximo. Tony abriu-o na secção artística e descobriu sem dificuldade a crítica que lhe interessava, assinada por André d'Usseau, a qual leu em voz alta: “A noite passada, foi inaugurada uma exposição de um jovem pintor americano, Anthony Blackwell, na Galeria Goerg, a qual constituiu uma experiência excepcional, para o autor destas linhas. Assisti a tantas mostras de pintores talentosos que já esquecera o aspecto de uma tela má. A memória foi-me avivada ontem à noite…” - Não leias mais, por favor - murmurou Dominique, tentando arrancar o jornal das mãos de Tony, que se tornara lívido.

- Larga! - vociferou ele. E continuou a ler: “Ao princípio, pensei que se tratava de uma brincadeira. Custava-me a crer que alguém tivesse o arrojo de exibir semelhantes trabalhos de amador e chamar-lhes arte. Esquadrinhei-os em busca de um indício de talento, mas debalde. Deviam pendurar o pintor em vez das telas. Recomendo a Mr. Blackwell que regresse à sua verdadeira profissão, a qual decerto consiste em pintar paredes.” - Não acredito - disse Dominique. - É impossível que não visse o talento. O bastardo! - e rompeu em soluços.

Tony sentia a impressão de que tinha o peito cheio de chumbo e experimentava dificuldade em respirar.

- Ele viu-o - afirmou. - E reconheceu-o - a voz

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denunciava profunda amargura. - É isso o que mais me magoa. Fui um imbecil!

- Aonde vais? - perguntou ela, vendo que se afastava.

- Não sei.

Tony vagueou pelas ruas, sem se aperceber das lágrimas que lhe deslizavam pelas faces. Dentro de poucas horas, todos os parisienses interessados pela arte teriam lido a crítica, e seria alvo de comentários jocosos. Mas o que mais lhe custava era que se iludira a si próprio. Chegara a acreditar realmente que tinha um futuro brilhante à sua frente como pintor. Pelo menos, André d'Usseau impedira-o de cometer esse erro. Por fim, entrou num bar e embriagou-se metodicamente.

Quando regressou ao apartamento, eram cinco horas da madrugada seguinte e Dominique esperava-o com profunda ansiedade.

- Onde estiveste? Tua mãe tentou contactar contigo. Parecia preocupadíssima.

- Leste-lhe a crítica?

- Sim. Insistiu, mas…

Naquele momento, o telefone tocou, e a rapariga, depois de se entreolharem, levantou o auscultador.

- Estou… Sim, Mistress Blackwell. Acaba de chegar. Estendeu-o a Tony, que o aceitou, após breve hesitação.

- Sim, m-mãe?

- Escuta, querido - a voz de Kate achava-se alterada pela apreensão. - Posso obrigá-lo a retractar-se…

- Isto não é uma operação de negócios. Trata -se de um crí-crítico exprimindo uma opinião segundo a qual eu mereço que me en-enforquem.

- Custa-me que estejas tão amargurado. Não consigo… - interrompeu-se, dominada pela emoção.

- Não te preocupes, m-mãe. Foi um capricho que não resultou. Fiquei com ódio a D'Usseau, mas é o melhor crítico de arte do mundo. Devo reconhecê-lo. No fundo, impediu-me de cometer um erro grave.

- Gostava de poder dizer alguma coisa para te animar…

- Ele já disse tudo. Foi preferível inteirar-me agora do que dentro de dez anos. Tetenho de abandonar esta cidade.

- Espera aí por mim. Sigo amanhã para Joanesburgo e acompanhar-me-ás até Nova Iorque.

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- Pois sim - Tony pousou o auscultador e voltou-se para Dominique. - Tenho muita pena. Escolheste o homem errado.

Ela conservou-se silenciosa, limitando-se a contemplá-lo com os olhos dominados por uma amargura indizível.

Na tarde seguinte, Kate Blackwell preenchia um cheque no escritório da sucursal da Kruger-Brent, na Rue Matignon, enquanto o homem sentado na sua frente exalava um suspiro.

- É pena, porque o seu filho tem realmente talento, Mistress Blackwell. Podia tornar-se um pintor importante.

- Há dezenas de milhares de pintores no mundo, Mon-sieur D'Usseau - replicou ela, glacialmente. - Meu filho não nasceu para se incorporar nessa multidão - e fez deslizar o cheque ao longo do tampo da secretária na direcção do interlocutor. - Cumpriu a sua parte do acordo e eu acabo de cumprir a minha. A Kruger-Brent patrocinará museus de arte em Joanesburgo, Londres e Nova Iorque e o senhor encarre-gar-se-á de escolher as telas… por uma comissão generosa, evidentemente.

No entanto, muito depois de o francês se haver retirado, Kate permanecia sentada sob o efeito de uma tristeza irreprimível. Amava o filho profundamente, e se alguma vez ele descobrisse… Reconhecia o risco a que se expusera, mas não podia permitir, de braços cruzados, que Tony voltasse as costas à herança.

Necessitava de o proteger por qualquer preço. Os interesses da companhia exigiam todos os meios para alcançar esse fim. Por fim, levantou-se, sentindo uma súbita e enorme fadiga. Eram horas de o ir buscar e levar para casa. Ajudá-lo-ia a recompor-se, para que pudesse cumprir a tarefa para a qual nascera: dirigir a companhia.

Capítulo décimo nono Nos dois anos que se seguiram, Tony Blackwell sentiu que se encontrava num instrumento de tortura gigantesco que não o conduzia a parte alguma. Era o herdeiro aparente de um império impressionante. O império da Kruger-Brent expandira-se, para incluir fábricas de papel, uma companhia aérea,

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bancos e uma rede de hospitais. Ele aprendera que um nome constituía uma chave que abria todas as portas. Havia clubes, organizações e diques sociais onde a moeda corrente não era o dinheiro ou a influência, mas o nome apropriado.

Tony fora aceite como sócio do Union Club, do Brook e do Links Club.

Cumulavam-no de atenções aonde quer que se dirigisse, mas considerava-se um impostor, pois nada fizera para merecer tudo aquilo. Achava-se na sombra gigantesca do avô e assolava-o a impressão de que o comparavam constantemente com ele. Afigurava-se-lhe injusto, porque já não havia campos de minas para transpor rastejando, guardas que o alvejassem ou tubarões ameaçadores. As velhas histórias de heroicidade não tinham nada de comum com ele. Pertenciam a outro século, outra época, outro lugar, actos heróicos praticados por um desconhecido.

Tony trabalhava com afinco insuperá vel na Kruger-Brent, Ltd., numa tentativa para se libertar de recordações demasiado pungentes para suportar. Escreveu várias vezes a Dominique, mas as cartas foram devolvidas intactas. Telefonou a Maítre Cantai e obteve a informação de que ela já não trabalhava como modelo na escola. Desaparecera.

Tony executava a sua missão com perícia e método, sem paixão nem amor, e se sentia um vazio profundo no seu íntimo, ninguém o suspeitava. Nem sequer Kate, que recebia relatórios semanais dele e ficava satisfeita com o que lia.

- Tem uma aptidão natural para os negócios - afirmou Brad Rogers.

Para ela, as longas horas que o filho consagrava ao trabalho provavam que gostava do que fazia. Cada vez que pensava como estivera na iminência de comprometer o futuro, estremecia e congratulava-se por o ter salvo a tempo.

Em 1948, o Partido Nacionalista assumiu plenos poderes na África do Sul, com a segregação em todos os locais públicos. A migração era controlada rigorosamente, com a separação de famílias para satisfazer as conveniências governamentais. Cada negro tinha de se munir de um bewyshoek, o qual, mais do que um salvo-conduto, constituía o seu salva-vidas, certificado de nascimento, licença para trabalhar e recibo de impostos. Por outras palavras, regulava-lhe os movimentos na vida. Registavam-se tumultos crescentes no país, reprimidos

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impiedosamente pela Polícia. De vez em quando, Kate lia nos jornais casos de sabotagem e agitação a que o nome de Banda se achava invariavelmente ligado.

Continuava a desempenhar as funções de dirigente na resistência, apesar da idade. “Compreende-se que lute pelo seu povo”, pensava ela. “É Banda!”

Kate celebrou o seu quinquagésimo sétimo aniversário com Tony, na residência da Quinta Avenida, e pensou: “Este belo rapaz de vinte e quatro anos, sentado na mesa diante de mim, não pode ser meu filho. Sou demasiado jovem.” Entretanto, ele erguia a taça num brinde:

- A m-minha fantástica m-mãe. Feliz aniversário!

- Diz antes “à minha fantástica e velha mãe”.

“Não tardarei a retirar-me da actividade, mas ele tomará o meu lugar. O meu filho!”

Por insistência dela, Tony mudara-se para a mansão da Quinta Avenida, sob o pretexto de que era demasiado grande para viver só. Além disso, prometera reservar-lhe toda a ala leste e o isolamento de que necessitasse, e ele considerara mais fácil aceder do que argumentar.

Tomavam o pequeno-almoço juntos todas as manhãs e o tópico abordado era sempre a Kruger-Brent, Ltd. Tony surpreendia-se com o facto de a mãe se preocupar tão apaixonadamente com uma entidade sem rosto nem alma, uma colecção amorfa de edifícios, máquinas e números registados em livros. “Onde residirá a magia?” Com toda a miríade de mistérios do mundo para explorar, porque desejaria alguém desperdiçar uma vida inteira acumulando riqueza para a juntar a outras riquezas, reunindo poder que se situava para além do poder? Viase forçado a admitir que não a entendia. Não obstante, amava-a. E tentava corresponder às suas esperanças.

O voo da Pan American de Roma para Nova Iorque decorrera sem qualquer novidade. Tony gostava de viajar de avião, por o julgar um meio de transporte agradável e eficiente. Debruçara -se sobre os relatórios das aquisições no estrangeiro desde o momento da descolagem, ignorando o jantar e a hospedeira, que de vez em quando se aproximava para lhe oferecer bebidas, almofadas ou outra coisa susceptível de atrair o interesse do importante passageiro.

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Uma mulher de meia-idade no assento ao lado dele lia uma revista e, no momento em que voltava a página, Tony lançou-Lhe uma olhadela e estremeceu ao ver um modelo que apresentava um vestido de baile. Era Dominique. Não podia haver a mínima dúvida, e sentiu as pulsações acelerarem-se.

- Queira desculpar - proferiu, polidamente. - Empresta-me a revista, quando terminar de a ler?

Na manhã seguinte, telefonou ao costureiro autor do vestido e obteve o nome da agência publicitária a que recorrera, com a qual se apressou a contactar.

- Tento localizar um dos vossos modelos - explicou à telefonista. - Pode?…

- Um momento, por favor.

No instante imediato, surgia uma voz masculina na linha:

- Em que lhe posso ser útil?

- Trata-se de uma fotografia publicada no último número da Vogue. É de um modelo que exibe um vestido do costureiro Rothman. Foram vocês que trataram disso?

- Sim.

- Pode dar-me o nome da agência desse modelo?

- Deve tratar-se da Carleton Blessing - e o homem mencionou um número de telefone.

Transcorrido menos de um minuto, Tony falava com uma mulher da agência.

- Interessa-me localizar um dos vossos modelos. Dominique Masson.

- Lamento, mas não fornecemos informações de natureza pessoal.

E a ligação foi cortada, antes que ele pudesse acrescentar algo. Tinha de haver uma maneira de entrar em contacto com Dominique. Por fim, dirigiu-se ao gabinete de Brad Rogers e perguntou:

- Conhece a agência Carleton Blessing?

- Sem dúvida. Pertence -nos.

- O quê?

- Encontra-se à sombra de uma das nossas subsidiárias.

- Quando a adquirimos?

- Há uns dois anos. Mais ou menos na altura em que você ingressou na companhia. Qual é o seu interesse nela?

- Queria localizar um dos seus modelos. Trata -se de uma velha amiga.

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- Nada mais fácil. Vou ligar para lá e…

- Não. Eu encarrego-me disso. Obrigado, Brad. Entretanto, Tony sentia-se invadido por uma agradável sensação de antecipação.

À tarde, visitou os escritórios da agência Carleton Blessing c, sessenta segundos depois de se identificar, encontrava-se sentado no gabinete de um tal Tilton, o presidente.

- É uma honra inesperada, Mister Blackwell. Espero que não haja nenhum problema. Os nossos lucros do último trimestre…

- Não venho em missão oficial. Interessa-me um dos vossos modelos. Dominique Masson.

- É uma das melhores - a expressão do homem iluminou-se. - Sua mãe sabe escolher o pessoal.

- Desculpe… - articulou Tony, julgando ter ouvido mal.

- Sua mãe insistiu pessoalmente em que contratássemos Dominique. Foi uma condição implícita na aquisição da nossa firma pela Kruger-Brent. Está tudo mencionado nos arquivos. Se lhe interessa consultar o processo…

- Não é necessário - não conseguia encontrar uma explicação para o que escutava. “Que motivo levaria a mãe?…” - Pode dar-me o endereço de Dominique?

- Decerto, Mister Blackwell. Hoje, teve de se deslocar a Vermont, em serviço - informou Tilton, consultando uma agenda -, mas deve regressar amanhã à tarde.

Tony aguardava à entrada do prédio de apartamentos, quando um sedan negro se imobilizou e a rapariga desceu. Acompanhava -a um homem de porte atlético, com a mala dela na mão. Dominique estacou abruptamente no momento em que avistou Tony e exclamou:

- Meu Deus! Que… que fazes aqui?

- Preciso falar contigo.

- Fica para outra vez, amigo - interveio o atleta. - Temos uma tarde muito atarefada.

- Manda-o embora - indicou Tony, sem o olhar.

- Quem diabo se julga, para?…

- Deixa-nos, por favor, Ben - rogou ela. - Telefono-te à noite.

O outro hesitou por um momento e acabou por encolher os ombros.

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- Está bem - e afastou-se, após uma mirada incendiária a Tony.

- É melhor entrarmos - sugeriu Dominique, voltando-se de novo para Tony.

O apartamento era um duplex espaçoso, com decoração moderna, que decerto custara uma pequena fortuna.

- Não se pode dizer que vivas mal - comentou ele.

- Sim, tive sorte - e os dedos dela moviam-se nos botões da blusa com nervosismo. - Queres uma bebida?

- Não, obrigado. Tentei contactar contigo, depois de deixar Paris.

- Mudei-me.

- Para a América?

- Sim.

- Como conseguiste trabalho na Carleton Blessing?

- Bem… respondi a um anúncio - explicou, cada vez mais embaraçada.

- Quando viste a minha mãe pela primeira vez?

- No teu apartamento, em Paris. Não te lembras que?…

- Basta de mentiras! - Tony sentia uma cólera surda propagar-se a todas as fibras do corpo. - Terminou a comédia. Nunca bati numa mulher, mas se insistes em dizer falsidades, palavra de honra que ficas com a cara imprópria para ser fotografada por uns tempos.

Agora, não houve hesitação na resposta:

- Quando foste admitido na École dês Beaux-Arts. Ela conseguiu que me aceitassem como modelo.

Experimentou uma sensação pungente no estômago, mas desenvolveu esforços para prosseguir.

- Para que nos conhecêssemos?

- Sim, mas…

- E pagou-te para que te tornasses minha amante e fingisses amar-me?

- Exacto. A guerra tinha acabado pouco antes e eu esta va sem dinheiro. Procura compreender a situação. Mas acredita que o meu amor por ti não era fingido…

- Limita-te a responder às minhas perguntas, sem comentários desnecessários.

Qual a finalidade de tudo isso?

- Tua mãe queria que te vigiasse.

Tony recordou-se da ternura dela… - proporcionada pelo dinheiro da mãe - e sentiu-se dominado pela vergonha. Não

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passara de um títere, controlado e manipulado pela progenitora, que nunca se preocupara com ele. Não era seu filho, mas o seu príncipe coroado, o herdeiro natural. A única coisa que contava para ela era a companhia.

Com um derradeiro olhar a Dominique, rodou nos calcanhares e afastou-se, enquanto ela o acompanhava com o olhar ofuscado pelas lágrimas. “Não menti quando disse que te amava. Nisso, fui sincera.”

Kate encontrava-se na biblioteca, quando Tony surgiu, extremamente embriagado.

- Fa-falei com Dominique. Vo-cês as duas devem ter rido como loucas à mi-minha custa.

- Tony… - começou ela, alarmada.

- A partir de agora, não quero que te tor-tornes a imiscuir na mi-minha vida pessoal, ouviste?

Viu-o retirar-se em passos incertos e acudiu-lhe um presságio desagradável.

Capítulo vigésimo No dia seguinte, Tony alugou um apartamento em Green-wich Village e pôs termo aos jantares sociais com a mãe, mantendo as suas relações a um nível rigorosamente impessoal, de negócios. De vez em quando, Kate efectuava uma tentativa de reconciliação, que o filho ignorava.

Apesar de assolada por profunda amargura, estava convencida de que procedera da melhor maneira para Tony, tal como acontecera numa ocasião em relação a David. Não podia permitir que abandonassem a companhia. O filho era o único ser humano do mundo que ela amava, e observava com pesar que se tornava cada vez mais insular, refugiando-se no seu íntimo e rejeitando os outros. Não tinha amigos e, em contraste com a cordialidade e comunicabilidade do passado, mostrava-se frio e reservado. Erguera uma muralha à sua volta que ninguém lograva transpor. “Precisa de uma esposa que se preocupe com ele. E de um filho que continue a herança. Tenho de o ajudar.”

251

Brad Rogers entrou precipitadamente no gabinete de Kate e anunciou:

- Vai haver mais problemas.

- Que aconteceu?

- O Parlamento da África do Sul ilegalizou o Conselho Representativo dos Nativos e aprovou a Lei Comunista - explicou, pousando um cabograma na secretária.

- Meu Deus! - o diploma nada tinha a ver com o comunismo. Referia simplesmente que quem discordasse de qualquer medida governamental e tentasse alterá-la incorria em transgressão da Lei Comunista e podia ser detido. - É a sua maneira de enfraquecer a resistência dos negros. Se… - foi interrompida pela recepcionista, através do intercomunicador.

- Há uma chamada do estrangeiro para si. Trata-se de Mister Pierce, de Joanesburgo.

Jonathan Pierce era o gerente da sucursal da firma na capital sul-africana, e Kate apressou-se a pegar no auscultador.

- Olá, Johnny! Como vai?

- Eu bem, mas lamento não poder dizer o mesmo da situação por cá.

- Que aconteceu?

- Acabo de ser informado pela Polícia de que capturaram Banda.

Kate encontrava-se a bordo do primeiro voo para Joanesburgo, depois de recomendar aos advogados da companhia que vissem o que podiam fazer por Banda. No entanto, receava que nem o poder e o prestígio da Kruger-Brent fossem suficientes para o auxiliar. Com efeito, fora considerado inimigo do Estado, e ela não se atrevia a pensar no que consistiria o castigo aplicado. Em todo o caso, impunha-se que pelo menos lhe falasse e oferecesse todo o apoio ao seu alcance.

Assim que o avião aterrou em solo sul-africano, Kate dirigiu-se aos escritórios da firma e telefonou ao director das prisões, que informou:

- Ele encontra -se num bloco de isolamento e não pode receber visitas. No seu caso, porém, vou ver o que consigo.

Na manhã imediata, ela achava-se na prisão de Joanesburgo, sentada diante de Banda, que estava algemado, e havia uma espessa chapa de vidro entre ambos.

Kate não sabia bem

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o que esperava ver, todavia ele não apresentava um ar desesperado e sorriu ao dizer:

- Tinha a certeza de que viria. É como seu pai. Não consegue estar longe do barulho, hem?

- Olha quem fala - redarguiu ela. - Raios para isto! Como te vamos tirar daqui?

- Num caixão. É a única maneira de me deixarem sair.

- Disponho de um batalhão de bons advogados que…

- Não merece a pena. Desta vez, apanharam-me com as mãos na massa. Agora, tenho de me resignar.

- Não compreendo.

- Sempre fui alérgico às prisões. Ainda não construíram uma capaz de me conter.

- Não cometas loucuras, Banda. Eles não hesitavam em matar-te.

- Lembre-se que fala com um homem que sobreviveu a tubarões, a um campo de minas e a cães de guarda - ele deixou transparecer uma ponta de nostalgia no olhar. - Sabe uma coisa? Creio que foi o melhor período da minha vida.

Quando Kate se apresentou para nova visita, no dia seguinte, o director da prisão declarou:

- Sinto muito, Mistress Blackwell, mas Banda foi transferido, por razões de segurança.

- Para onde?

- Não estou autorizado a revelá-lo.

No outro dia, quando se levantou, pegou no jornal e leu a notícia que figurava na primeira página: “Chefe rebelde abatido na tentativa de fuga da prisão”. Uma hora mais tarde, encontrava-se no gabinete do director da prisão, que explicou:

- Banda perdeu a vida nas circunstâncias reveladas pela Imprensa. Não há nada a acrescentar.

“Enganas-te. Há mais. Muito mais!” Banda morrera, mas ter-se-ia porventura extinguido o sonho de liberdade do seu povo?

Dois dias depois, Kate regressava a Nova Iorque, não sem antes se ter ocupado de todos os preparativos para o funeral. A bordo do avião, voltou-se para a janela, a fim de contemplar a sua terra amada pela última vez. O solo era vermelho e fértil e encerrava nas suas entranhas tesouros que excediam os

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sonhos dos homens mais ambiciosos. No entanto, dir-se-ia que fora lançada uma maldição sobre o território. “Não tornarei a pôr cá os pés”, prometeu a si própria.

“Nunca!”

Uma das responsabilidades de Brad Rogers consistia em orientar o Departamento de Planeamento de Longo Alcance da Kruger-Brent. Na realidade, tinha uma propensão especial para descobrir firmas que constituíam aquisições lucrativas.

Um dia do princípio de Maio, entrou no gabinete de Kate e depositou duas pastas de cartolina sobre a secretária.

- Deparou-se-me uma coisa interessante. Duas companhias. Se conseguíssemos ficar com qualquer delas, seria uma proeza.

- Obrigada, Brad. Darei uma olhadela nisto, esta noite. Assim, ela jantou só e analisou os relatórios confidenciais sobre as duas firmas: Wyatt Oil Tool e International Technology. Os elementos eram extensos e pormenorizados e terminavam com as iniciais NIV, que, segundo o código da companhia, significavam “Não Interessada na Venda” e exigiriam diligências excepcionais para conseguir a sua aquisição. Cada uma delas era dirigida por um indivíduo abastado e competente, o que eliminava qualquer tentativa para empregar os processos normais. Tratava -se de um desafio, situação que não se deparava a Kate desde longa data. Quanto mais pensava no assunto, maior a excitação que as possibilidades lhe suscitavam. A Wyatt Oil Tool pertencia a um texano chamado Charlie Wyatt e as suas actividades incluíam poços de petróleo, uma empresa de utilidade pública e dezenas de outros ramos lucrativos. Não subsistia a mínima dúvida: representaria uma aquisição excelente para a Kruger-Brent, Ltd.

Quanto à International Techonology, tinha à testa o conde alemão Frederick Hoffmann. A companhia principiara com uma pequena fundição de aço, em Essen, e com o passar dos anos expandira-se num vasto grupo que abarcava estaleiros navais, fábricas de petroquímica, uma frota de petroleiros e uma divisão de computadores.

Apesar da sua vasta envergadura, a Kruger-Brent só podia digerir um dos dois gigantes, e Kate sabia qual lhe interessava. No entanto, no final do relatório figurava a ominosa advertência: NIV.

“Veremos”, reflectiu com determinação.

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Na manhã imediata, mal entrou no gabinete mandou chamar Brad Rogers.

- Gostava de saber como conseguiu estas folhas de balanço confidenciais, mas respeito o segredo profissional - começou, com um sorriso malicioso. - Fale-me de Charlie Wyatt e de Frederick Hoffmann.

- Wyatt nasceu em Dállas. É um homem de temperamento autoritário e impetuoso, arguto como poucos. Principiou do zero, teve sorte em alguns empreendimentos arriscados, foi-se expandindo e hoje metade do Texas pertence-lhe.

- Que idade tem?

- Quarenta e sete.

- Filhos?

- Uma rapariga, de vinte e cinco, que, segundo as minhas informações, é uma autêntica brasa.

- Casada?

- Divorciada.

- E Frederick Hoffmann?

- E dois anos mais novo que Wyatt. Ostenta o título de conde e pertence a uma família distinta que remonta à Idade Média. Enviuvou há algum tempo e o avô começou com uma modesta fundição de aço. Hoffmann herdou-a do pai e transformou-a num império. Foi um dos primeiros a enveredar pelo ramo dos computadores e possui numerosas patentes de miniprocessadores. Cada vez que utilizamos uma dessas máquinas, o nosso conde recebe direitos de explo ração.

- Tem filhos?

- Também uma rapariga, de vinte e três anos.

- Como é ela?

- Não consegui averiguar. Trata-se de uma família muito fechada, que só se move dentro dos seus círculos restritos - Brad hesitou. - Talvez estejamos a perder tempo neste caso. Tomei umas bebidas com dois dirigentes de ambas as companhias e apurei que tanto Wyatt como Hoffmann não estão interessados na venda, fusão ou trabalho em conjunto. Como pode verificar pela sua posição financeira, só um louco pensaria o contrário.

No entanto, a sensação de desafio achava-se presente uma vez mais, estimulando Kate de forma irresistível.

Dez dias depois, foi convidada pelo presidente dos Estados Unidos para participar numa conferência de industriais em

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Washington, a fim de discutirem as possibilidades de auxílio a países subdesenvolvidos. Acto contínuo, Kate fez uma chamada telefónica, e, transcorrido pouco tempo, Charlie Wyatt e o conde Frederick Hoffmann recebiam convites idênticos.

Ela formara uma impressão mental do texano e do alemão e verificou que não se equivocara muito. Nunca conhecera um habitante do Texas tímido, e Charlie Wyatt não constituía uma excepção. Era um homem quase gigantesco, com corpo de praticante de râguebi, que o deixara engordar em excesso. Kate compreendeu que ele não construíra o seu império em resultado de mera sorte nas operações que empreendera. Tratava-se de um génio no campo dos negócios. Dez minutos de conversa bastaram para a convencer de que aquele homem não faria coisa alguma que não desejasse. Ninguém lograria levá -lo a desfazer-se da sua companhia. Não obstante, descobriu-lhe o calcanhar de Aquiles, o que bastava para os seus desígnios.

Frederick Hoffmann era a antítese de Wyatt, um indivíduo bem-parecido, de ar aristocrático e maneiras irrepreensíveis. Superficialmente, deixava transparecer cordialidade e deferência. No íntimo, porém, Kate pressentiu um núcleo de aço.

A conferência em Washington prolongou-se por três dias e decorreu o melhor possível. As reuniões desenrolavam-se sob as vistas do vice-presidente, e o presidente efectuou uma breve aparição. Todos os presentes se sentiram impressionados com Kate Blackwell, uma mulher atraente e carismática, chefe de um império industrial que construíra, e, sobretudo, fascinados, como ela pretendia.

Quando conseguiu achar-se a sós com Charlie Wyatt por um momento, perguntou:

- A sua família acompanhou-o?

- Vim com minha filha, que necessitava fazer umas compras.

- Ah, sim? - ninguém teria suspeitado de que Kate até se encontrava ao corrente do género de vestido que a rapariga comprara naquela manhã. - Promovo um pequeno jantar, na sexta -feira, em Dark Harbor, e gostaria que comparecesse com ela, para passarem o fim-de-semana.

- Ouvi falar na importância da sua organização, Mistress

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Blackwell - o texano não hesitou um segundo. - Teremos muito gosto.

- Óptimo. Providenciarei para que sigam para lá de avião, amanhã à noite.

Dez minutos depois, ela conversava com Frederick Hoffmann.

- Encontra-se só em Washington, Mister Hoffmann, ou veio com sua esposa?

- Enviuvei há vários anos - esclareceu o alemão. - No entanto, trouxe minha filha.

- Promovo uma recepção em Dark Harbor - Kate sabia que eles se alojavam na suite quatrocentos e dezoito do Hotel Hay Adams. - Teria o maior prazer em contar com a vossa presença para o fim-de-semana.

- Convém-me regressar à Alemanha sem demora - Hoffmann fez uma pausa e observou a interlocutora por uns instantes, até que esboçou um sorriso. - Mas mais dois ou três dias nos Estados Unidos não me levarão à bancarrota.

- Esplêndido. Ocupar-me-ei do vosso transporte.

Era costume de Kate realizar uma pequena festa em Dark Harbor cada dois meses, a que compareciam as pessoas mais interessantes e poderosas do mundo. Agora, estava empenhada em que fosse uma reunião de cariz especial e o único problema consistia em que Tony estivesse presente. Nos últimos meses, ele raramente se preocupava em assistir e, nas escassas excepções, retirava -se na primeira oportunidade. Agora, porém, era imperioso que não faltasse e protelasse a partida para o mais tarde possível.

Quando lhe mencionou a festa, ele apressou-se a declarar secamente:

- Não po-posso ir. Sigo para o Ca-Canadá, segunda-feira, e tenho muitos assuntos a tratar até lá.

- É importante - insistiu Kate. - Charlie Wyatt e Frederick Hoffmann prometeram comparecer e…

- Sei de quem se trata. Fa-falei com Brad Rogers. Não existe a mí-mínima hipótese de adquirir qualquer de-dessas companhias.

- Em todo o caso, quero tentar.

- Qual te in-interessa mais?

- A Wyatt Oil Tool, que podia contribuir para aumentar

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os nossos lucros em quinze por cento, pelo menos. Quando os países árabes compreenderem que têm o mundo entre a espada e a parede, formarão um cartel e os preços do petróleo subirão às nuvens.

- E a In-International Techonology?

- É uma boa companhia, mas a outra reveste-se de mais interesse - declarou ela, com um encolher de ombros. - Preciso de ti lá, Tony. O Canadá pode esperar uns dias.

Ele detestava as reuniões daquela natureza, com as conversas fúteis intermináveis, homens fanfarrões e mulheres predatórias. No entanto, desta vez tratava-se de uma diligência de negócios.

- Está bem - acabou por capitular.

Todas as pedras se achavam nos seus lugares do tabuleiro.

Os Wyatt seguiram para o Maine num Cessna da companhia e, à chegada doferryboat, havia uma limusina que os conduziu a Cedar Hill, onde Kate os aguardava à entrada. Brad Rogers não se equivocara. A filha, Lucy, era uma autêntica “brasa”, alta, de cabelos pretos e olhos castanhos num rosto perfeito. O vestido, saído das mãos de um costureiro dispendioso, moldava um corpo de linhas deslumbrantes. Kate apresentou-a a Tony e observou a reacção deste último. Todavia ele conservou-se impávido. Saudou os Wyatt com deferência formal e acompanhou-os ao bar.

- Que bela sala! - exclamou Lucy. - Passa muito tempo nesta mansão?

- Não - foi a resposta seca de Tony. Apercebendo-se do perigo iminente de a reserva do filho comprometer os seus interesses, Kate tratou de intervir.

- As suas recordações mais agradáveis referem-se a esta casa. O trabalho absorve-o tanto, coitado, que raramente tem oportunidade de saborear esta atmosfera aprazível. Não é verdade?

- Sem dúvida - assentiu ele, com uma expressão glacial. - Neste momento, por exemplo, devia estar no Canadá…

- Mas adiou a viagem para os conhecer.

- Sinto -me honrado - declarou Charlie Wyatt. - Tenho ouvido falar de seu filho, Mistress Blackwell - com um sorriso, acrescentou: - Suponho que não lhe interessa vir trabalhar para o Texas.

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- Não creio que isso seja exactamente o que minha mãe tem em vista para mim - alegou Tony.

- Acredito - o texano soltou uma gargalhada e virou-se de novo para Kate. - Sua mãe é uma mulher incomparável. Gostava que visse enrodilhar toda a gente na reunião da Casa Branca e…

Interrompeu-se no instante em que Frederick Hoffmann e a filha, Marianne, entravam na sala. A rapariga era uma versão pálida do pai, com o mesmo semblante aristocrático. Tinha cabelos louros que se prolongavam até aos ombros e usava um vestido de chiffon branco. Ao lado de Lucy Wyatt, quase passava despercebida.

- Queiram desculpar o atraso - proferiu o alemão. - O avião ficou retido em La Guardiã.

- Que pena! - exclamou Kate, que providenciara para que tal acontecesse, a fim de os Wyatt chegarem em primeiro lugar. - Que tomam?

- Um scoth, por favor - pediu o conde Hoffmann.

- E você? - perguntou ela a Marianne.

- Nada, obrigada.

Os outros convidados começaram a surgir pouco depois e Tony passou a circular entre eles, em obediência às suas funções de anfitrião atencioso. Ninguém, à parte a mãe, suspeitava do reduzido significado que aquelas reuniões tinham para ele. Não era que estivesse enfastiado. Achava -se simplesmente isolado de tudo o que ocorria à sua volta. Perdera o prazer proporcionado pelo convívio, circunstância que preocupa va Kate profundamente.

Tinham sido preparadas duas mesas na vasta sala de jantar. Ela instalou Marianne Hoffmann entre um magistrado do Supremo Tribunal e um senador, numa, e Lucy Wyatt à direita de Tony, na outra. Todos os homens presentes - solteiros e casados - concentravam os olhares na filha do texano. Kate apercebiase dos esforços da rapariga para conversar com o filho, deixando transparecer que simpatizava com ele, o que representava um bom começo.

Na manhã seguinte, sábado, durante o pequeno-almoço, Wyatt disse a Kate:

- Tem um iate estupendo, Mistress Blackwell. Quanto mede?

- Não sei bem - ela voltou-se para Tony. - Que comprimento tem o Corsair?

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- Vinte e cinco metros - informou o interpelado, reflectindo que a mãe estava perfeitamente ao corrente.

- No Texas, não ligamos aos barcos. Estamos sempre com muita pressa.

Viajamos quase sempre de avião.

- Gostava que me deixasse mostrar-lhe a ilha, do mar - observou Kate. - Podemos fazê-lo no iate, amanhã.

- Excelente ideia! - aprovou o texano.

Entretanto, Tony assistia aos manejos da mãe sem se pronunciar. Acabava de efectuar uma das primeiras jogadas importantes, e perguntava a si próprio se Wyatt se teria apercebido. Talvez não. Apesar de ser um homem de negócios arguto, nunca enfrentara ninguém como Kate Blackwell.

Pouco depois, esta virou-se para o filho e para Lucy e sugeriu:

- Porque não aproveitam o tempo estupendo que faz para dar uma volta na lancha?

- Agradava-me imenso - afirmou a rapariga, antes que Tony tivesse ensejo de abrir a boca.

Todavia, ele advertiu:

- Não posso, porque espero um telefonema importante. Esforçando-se por dissimular o desagrado, Kate voltou-se para Marianne Hoffmann.

- Ainda não vi o seu pai, esta manhã.

- Foi explorar a ilha. Costuma levantar-se muito cedo.

- Ouvi dizer que gosta de montar a cavalo. Temos uma coudelaria muito satisfatória.

- Agradeço-lhe, Mistress Blackwell, mas prefiro andar por aí, se não vê inconveniente.

- Claro que não. Esteja à sua vontade - concentrou-se de novo no filho. - Não queres mesmo levar Miss Wyatt a dar um passeio? - inquiriu numa inflexão áspera.

- Não posso, como já expliquei.

Embora pequena, tratava-se de uma vitória. A batalha fora travada, e Tony não fazia tenção de a perder. A mãe já não dispunha do poder de o iludir. Utilizara-o como peão outrora e ele estava bem ciente de que pretendia fazê -lo de novo, mas desta vez os seus esforços não resultariam. Desejava adquirir a Wyatt Oil Tool, que o texano não pretendia vender, mas Kate julgara encontrar uma maneira de o vencer por intermédio do seu único ponto fraco: a filha. Se Lucy ingressasse na família Blackwell, tornar-se-ia inevitável a fusão das duas firmas.

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No final do pequeno -almoço, Kate levantou-se e propôs ao filho:

- Enquanto o teu telefonema não chega, porque nã o mostras os jardins a Miss Wyatt?

Eíle reconheceu que não existia possibilidade de se esquivar graciosamente, pelo que assentiu, decidido a abreviar a visita.

Por seu turno, a mãe virou-se para Charlie Wyatt e perguntou:

- Interessa-se por livros raros? Temos uma vasta colecção, na biblioteca.

- Interessa-me tudo o que quiser mostrar-me - redarguiu ele, com um largo sorriso.

Como que obedecendo a uma inspiração de última hora, ela voltou-se para Marianne Hoffmann.

- Quer acompanhar-nos?

- Obrigada, mas pre firo dar uma volta por aí, como disse. Não se preocupe comigo.

- Claro que não.

Tony reflectiu que estas palavras da mãe se revestiam da maior sinceridade. A alemã não figurava nos seus projectos, pelo que tratava de a marginalizar. Fazia-o numa atitude amável, sorridente, que encobria uma firmeza implacável que ele detestava.

- Vamos, Tony? - sugeriu Lucy.

- Com certeza.

Encaminharam-se para a porta, e preparavam -se para a transpor, quando ele ouviu a mãe dizer aos outros:

- Fazem um par admirável.

Dirigiram-se para o molhe onde o Corsair se encontrava acostado, percorrendo uma extensa área repleta de flores e árvores.

- É um lugar celestial - murmurou Lucy.

- Pois é.

- Não temos flores destas, no Texas.

- Não?

- É um ambiente tranquilo e pacífico.

- Tem razão.

De súbito, deteve-se e fitou o companheiro, com uma expressão agastada.

- Disse alguma coisa que a ofendesse? - viu-se ele na necessidade de perguntar.

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- Não disse absolutamente nada. É isso que considero ofensivo. Não consigo arrancar-lhe mais do que monossílabos ou palavras secas. Faz-me ficar com a impressão de que pretendo caçá-lo.

- E pretende?

- Adivinhou - a rapariga soltou uma risada. - Se pudesse ensiná -lo a falar, talvez nos entendêssemos - e vendo-o esboçar um sorriso, inquiriu. - Em que pensa?

- Em nada de especial.

Na realidade, Tony pensava na mãe e no que lhe custava perder.

Entretanto, Kate acompanhava Charlie Wyatt na visita à biblioteca, em cujas estantes se viam primeiras edições de Oliver Goldsmith, Laurence Sterne, Tobias Smollett e John Donne, juntamente com um in-fólio de Ben Johnson. O texano percorria com a vista os tesouros que o rodeavam, até que se imobilizou diante de um volume encadernado do Endymion, de John Keats.

- É um exemplar da Roseberg - afirmou, voltando-se para Kate.

- Exacto - confirmou ela, surpreendida. - Há apenas dois conhecidos.

- O outro encontra-se na minha biblioteca.

- Era de prever - articulou, rindo. - Os seus ares de texano do petróleo conseguiram iludir-me.

- Sim? São uma camuflagem excelente.

- Onde estudou?

- Primeiro na Escola de Minas do Colorado e depois em Oxford como bolseiro - e Wyatt contemplou Kate em silêncio, por um momento. - Constou-me que foi você que sugeriu a minha presença na conferência da Casa Branca.

- Limitei-me a mencionar o seu nome.

- Foi um gesto que não posso deixar de agradecer. E, agora que estamos sós, porque não me explica exactamente o que tem em mente?

Tony encontrava -se no seu gabinete de trabalho, uma pequena dependência a meio do corredor do rés-do-chão, afundado numa poltrona de espaldar elevado, examinando uns documentos, quando sentiu a porta abrir-se e entrar alguém.

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Era Marianne Hoffmann, e antes que ele pudesse revelar a sua presença, ouviu-a soltar uma exclamação abafada.

Acabava de ver os quadros na parede. Tratava-se de trabalhos de Tony, os poucos que trouxera do apartamento de Paris, e só permitira que estivessem expostos naquela saleta. Viu a rapariga mover-se em redor para os contemplar, mas era demasiado tarde para o poder evitar.

- Não acredito - murmurou ela, finalmente. Assolou-o uma irritação repentina, pois sabia que não eram maus a esse ponto. De súbito, fez um movimento na poltrona e o couro rangeu, obrigando Marianne a voltar-se.

- Peço desculpa - balbuciou. - Não sabia que estava aqui alguém.

- Não tem importância - retorquiu Tony, com certa brusquidão, pois desagradavalhe que invadissem o seu santuário. - Procurava alguma coisa?

- Não. Vagueava simplesmente. A sua colecção de quadros devia encontrar-se num museu.

- Excepto estes.

Intrigada, a rapariga voltou a observá -los e distinguiu a assinatura.

- São seus!

- Lamento que não lhe agradem.

- Acho-os fantásticos! Não compreendo. Se sabe pintar tão bem, porque decidiu fazer outra coisa? Considero os seus trabalhos, não bons, mas maravilhosos! - calou-se por um momento, mas ele não reagiu visivelmente. - Em tempos, quis ser pintora e cheguei a estudar com Oskar Kokoschka durante um ano. Finalmente, desisti, porque reconheci que nunca atingiria o nível que pretendia. Mas você! - virou-se de novo para os quadros. - Esteve em Paris?

- Sim.

- Que pena…

- Ah, estão aqui? - Kate acabava de assomar à entrada e olhava -os com curiosidade. Por fim, aproximou-se de Marianne e prosseguiu: - Procurei-a por toda a parte. Seu pai diz que adora as orquídeas e quero que visite a nossa estufa.

- Obrigada, Mistress Blackwell, mas…

- Ocupa-te dos outros convidados, Tony - indicou, sem prestar atenção às objecções da rapariga.

Ele experimentava uma fascinação especial pela maneira

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como a mãe manobrava as pessoas. Na realidade, agia com uma suavidade admirável, sem desperdiçar um único movimento. A operação principiara com a chegada dos Wyatt antes dos Hoffmann e continuara com a colocação de Lucy ao lado dele a todas as refeições e as conferências a sós com Charlie Wyatt. A filha deste era uma moça atraente e constituiria a esposa ideal para o futuro chefe da Kruger-Brent.

Meneando a cabeça num gesto de amargura, Tony perguntava-se qual seria o movimento seguinte de Kate. Na verdade, não necessitou de esperar muito tempo para se inteirar.

Encontravam-se no terraço, tomando cocktaiLs, quando ela revelou ao filho:

- Mister Wyatt convidou-nos para passar o próximo fim-de-semana no seu rancho.

Não achas uma ideia maravilhosa? - acrescentou, com uma expressão de prazer.

- Nunca estive num rancho do Texas.

Ora, a Kruger-Brent possuía um rancho no Texas que tinha provavelmente o dobro da superfície do dos Wyatt.

- Espero que também vá - interpôs o texano, dirigindo-se a Tony.

- Por favor… - sussurrou Lucy.

Parecia uma conspiração. Ao mesmo tempo, porém, era um desafio. Por conseguinte, ele decidiu enfrentá-lo.

- Com o maior prazer.

“Se Lucy tem em mente seduzir-me, perde o seu tempo”, pensou. A mágoa provocada pela mãe e por Dominique haviam-Lhe implantado uma desconfiança tão profunda nas mulheres, que a sua única associação com elas passara a manifestar-se através das prostitutas dispendiosas, sem dúvida as mais sinceras, pois só desejavam o dinheiro e mencionavam a quantia desde o princípio. Tony esportulava o preço pedido e obtinha aquilo que pagava. Sem complicações, lágrimas ou embustes.

Lucy Wyatt teria uma surpresa.

Domingo de manhã, Tony dirigiu-se à piscina para nadar um pouco e verificou que Marianne Hoffmann já se encontrava na água, com um fato de banho branco que lhe acentuava os contornos do corpo esbelto. Quando o avistou, acercou-se em braçadas graciosas e sorriu-lhe.

- Bom dia.

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- Bom dia. Nada muito bem.

- Adoro praticar desportos. Herdei-o de meu pai. Ergueu-se para a borda da piscina e ele estendeu-lhe uma toalha, ao mesmo tempo que perguntava:

- Já tomou o pequeno-almoço?

- Não. Pensei que a cozinheira não se levantava tão cedo.

- Isto é um hotel com serviço de copa permanente.

- Um sistema muito útil - Marianne voltou a sorrir.

- Onde vive?

- Na maior parte do tempo, em Munique. Possuímos um schloss, um castelo, nos arredores.

- Onde se criou?

- Isso já é mais complicado. Durante a guerra, mandaram-me para um colégio na Suíça. Depois, fui para Oxford, estudei na Sorbona e vivi alguns anos em Londres - olhou-o sem pestanejar. - E você?

- Bem, saltitei entre Nova Iorque, Maine, Suíça, África do Sul, uns anos no Pacífico durante a guerra, Paris… - Tony interrompeu-se, como se decidisse que falara de mais.

- Desculpe se me intrometo no que não devo, mas não compreendo porque desistiu de pintar.

- Contos largos - replicou secamente. - Vamos ao pequeno-almoço.

Comeram sós, no terraço sobranceiro à baía, ao mesmo tempo que conversavam despreocupadamente. Marianne parecia interessada no que lhe dizia respeito e Tony experimentava uma atracção estranha por ela.

- Quando regressa à Alemanha? - perguntou em dado momento.

- Para a semana. Vou casar.

- Ah! - a revelação apanhou-o desprevenido. - Quem é ele?

- Um médico que conheço desde criança. Obedecendo a um impulso irresistível, aventurou:

- Quer jantar comigo, em Nova Iorque?

Ela observou-o por instantes e ponderou a resposta antes de aquiescer:

- Com todo o gosto.

- Então, fica combinado - concluiu Tony, sorrindo.

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Jantaram num pequeno restaurante à beira-mar, em Long Island. Ele desejava Marianne só para si, fora do raio de acção da mãe. Embora se tratasse de um serão inofensivo, se ela o descobrisse não hesitaria em envenená-lo. Era um assunto privado entre os dois e, durante o breve lapso de tempo que perdurasse, ninguém o perturbaria. A companhia de Marianne agradava -lhe ainda mais do que previra. “Quando regressa à Alemanha?” “Para a semana. Vou casar.”

Nos cinco dias que se seguiram, viram-se com frequência. Tony cancelou a viagem ao Canadá, conquanto não soubesse explicar claramente porquê.

Supusera que se tratava de uma forma de rebelião contra o plano da mãe, uma vingança mesquinha, mas se isso correspondera à verdade, no início, tudo se alterara depois. Cada vez se sentia mais atraído pela rapariga. Admirava -lhe a sinceridade, qualidade que desesperara de voltar a encontrar.

Como ela era uma turista em Nova Iorque, ele acompanhava -a a toda a parte. Os dias sucediam-se quase sem que se apercebessem, até que chegou sexta -feira, quando Tony devia partir para o rancho dos Wyatt.

- Quando regressa à Alemanha?

- Segunda-feira de manhã - informou Marianne, sem a mínima alegria na voz.

Ele seguiu para Houston naquela tarde. Podia ter ido com a mãe num dos aviões da companhia, mas preferira evitar todas as situações que o obrigassem a ficar a sós com ela. Pela parte que lhe dizia respeito, Kate não passava de uma associada na firma: brilhante, poderosa, simulada e perigosa.

No Aeroporto William P. Hobby de Houston, aguardava -o um Rolls Royce que o conduziu ao rancho, guiado por um motorista de calça Levi's e camisa de meiamanga.

- A maior parte dos convidados prefere voar directamente para o rancho - explicou o homem. - Mister Wyatt possui um aeródromo excelente. Daqui, é cerca de uma hora até ao portão da propriedade e mais meia até à residência.

Tony pensava que ele exagerava, mas não tardou a mudar de opinião, pois o território dos Wyatt parecia mais uma cidade que um rancho. Transpuseram o portão principal por uma estrada privativa e, transcorridos trinta minutos, começaram

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a passar por edifícios de geradores, celeiros, currais, casas de hóspedes e bangalós do pessoal. A residência era uma construção imponente de um único piso, e Tony considerou-a deprimentemente hedionda.

Kate já chegara e encontrava-se sentada no terraço sobranceiro a uma piscina do tamanho de um pequeno lago, parecendo imersa em animada conversa com Charlie Wyatt. Quando avistou o recém-chegado, o texano interrompeu-se abruptamente a meio de uma frase, e Tony pressentiu que era o tópico abordado.

- Vem aí o seu rapaz! Fez boa viagem, Tony?

- Óptima, obrigado.

- Lucy esperava que viesse mais cedo.

- Ah, sim? - articulou, com um olhar de través à mãe.

- Vai haver um churrasco em vossa honra - volveu Wyatt. - Convidei praticamente todas as pessoas importantes da região.

Naquele momento, Lucy surgiu à entrada, de calça jeans e blusa branca cingidas, que lhe realçavam os inequívocos atributos físicos, como Tony não pôde deixar de admitir para consigo.

- Julgava que nunca mais aparecia! - exclamou, pegando-lhe no braço.

- Peço desculpa pelo atraso, mas tive de ultimar uns assuntos.

- Não tem importância, agora que chegou - a rapariga exibiu um sorriso cativante.

- Que lhe apetece fazer, esta tarde?

- Que tem para oferecer?

- Tudo o que quiser - proferiu num murmúrio. Entretanto, Kate e Wyatt observavam-nos com sorrisos de satisfação.

O churrasco atingiu um nível espectacular, mesmo atendendo aos padrões texanos. Apresentaram-se cerca de duzentos convidados, que se faziam transportar em aviões particulares, Mercedes ou Rolls Royce. Duas orquestras tocavam simultaneamente em diferentes áreas do recinto. Meia dúzia de bartenders serviam champanhe, uísque, refrigerantes e cerveja, enquanto quatro “chefes” preparavam a comida ao ar

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livre. Além disso, havia várias longas mesas repletas de sobremesas de quase todas as qualidades concebíveis.

Cada vez que se voltava, Tony esbarrava num empregado da casa que lhe oferecia bebidas ou aperitivos. Dava a impressão de que o pessoal doméstico igualava os convidados em número. Ao mesmo tempo, acudiam-lhe aos ouvidos fragmentos de conversas.

- O tipo veio propositadamente de Nova Iorque para me levar à certa, mas tratei de o prevenir: “Tenho muita pena, amigo. Não entro em acordos referentes a petróleo com firmas a leste de Houston…” - É preciso cuidado com os fulanos de falas mansas. Se não nos precavemos, enrolam-nos…

Em dado momento, Lucy acercou-se dele e comentou:

- Não o vejo comer - olhou-o com apreensão. - Sente-se mal?

- De modo algum. É uma reunião impressionante.

- Ainda não viu nada. Espere até à hora do fogo-de-artifício.

- Fogo-de-artifício?

- Exacto. Desculpe este ajuntamento, mas meu pai quis impressionar sua mãe.

Amanhã, já cá não estão.

“Nem eu”, pensou Tony, cada vez mais convencido de que a sua comparência no rancho constituíra um erro. Se a mãe estava tão empenhada em absorver a Wyatt Oil Tool, que arranjasse outra maneira de o conseguir. Esquadrinhou a multidão com a vista e localizou-a no meio de um grupo de admiradores. Não havia dúvida de que continuava atraente, apesar de estar quase com sessenta anos. Na realidade, Kate Black-well parecia muito divertida, mas Tony sabia que ela detestava solenemente tudo o que a circundava. “Mas não hesita em fazer todos os sacrifícios para alcançar aquilo que pretende.” Pensou em Marianne e na aversão que experimentaria por semelhante orgia insensata. Ao lembrar-se dela, todavia, sentiu um profundo desconforto. “Vou casar com um médico que conheço desde criança.”

Meia hora depois, quando Lucy voltou a procurá-lo, já ia caminho de Nova Iorque.

Telefonou a Marianne de uma cabina do aeroporto.

- Preciso falar-lhe.

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- Muito bem - foi a resposta, sem a mínima hesitação.

Tony não conseguira afastá -la do pensamento por um único instante. Separado dela, assolava -o a solidão, a sensação de que lhe faltava uma parte de si mesmo.

Tinha o pressentimento aterrador de que, se a deixasse partir, ficaria perdido para sempre. Necessitava-a como a ninguém em toda a sua vida.

Encontraram-se no apartamento dele, e quando a viu entrar, Tony sentiu um desejo que julgava extinto para sempre. Ao contemplá-la, compreendeu que a sensação era compartilhada, e não havia palavras capazes de exprimir o milagre operado.

Ela anichou-se-lhe nos braços, e a emoção de ambos assemelhava-se a uma torrente que os arrastava numa explosão gloriosa, uma erupção e um contentamento para além de qualquer descrição. Flutuavam juntos numa suavidade aveludada que não conhecia tempo nem lugar, perdidos numa glória e numa magia maravilhosas e mútuas. Mais tarde, esgotados, permaneceram deitados, mantendo-se num amplexo de profunda ternura.

- Vou casar contigo, Marianne.

- Tens a certeza? - murmurou ela, olhando-o atentamente. - Há um problema, querido.

- O teu compromisso?

- Não. Posso desfazê-lo, sem dificuldade. Refiro-me a tua mãe.

- Ela não tem nada a ver…

- Deixa-me acabar. Pretende que cases com Lucy Wyatt.

- Isso é o plano dela. O meu encontra-se aqui.

- Ficava a odiar-me. Não quero que tal aconteça.

- Não te interessa saber o que eu quero? E o milagre recomeçou.

Escoaram-se quarenta e oito horas antes de Kate Blackwell voltar a ter notícias de Tony, que desaparecera do rancho Wyatt sem se despedir, para regressar a Nova Iorque, deixando o texano perplexo e a filha furiosa. Depois de apresentar desculpas, aceites com relutância, Kate partiu igualmente e, uma vez em casa, ligou ao apartamento de Tony. No entanto, não obteve resposta em todo esse dia nem no seguinte.

Ela encontrava-se no seu gabinete, quando o telefone tocou, e adivinhou quem era mesmo antes de levantar o auscultador.

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- Estás bem, Tony?

- Perfeitamente, mãe.

- De onde falas?

- Ando em lua-de-mel. Casei com Marianne Hoffman, ontem - registou-se um longo silêncio. - Mãe?

- Sim?

- Podias dar-me os parabéns ou pronunciar uma das frases habituais nestas ocasiões - articulou Tony, com uma ponta de amargura.

- Com certeza. Desejo-te as maiores felicidades, filho.

- Obrigado - e a ligação foi cortada.

Kate conservou o aparelho na mão por um momento e acabou por pousá-lo, após o que premiu um botão do intercomunicador.

- Pode chegar aqui, Brad? - e assim que este entrou no gabinete, anunciou: - Tony telefonou agora mesmo.

- Com a breca! - bradou ele, ao observar-lhe a expressão de triunfo. - Não me diga que conseguiu!

- O trabalho foi todo dele - declarou Kate, modestamente. - Temos o império Hoffmann servido numa bandeja.

- Custa-me a crer! - Brad afundou-se numa poltrona. - Como o convenceu a casar com Marianne Hofmann?

- Foi muito simples. Empurrei-o na direcção que não me convinha.

No fundo, porém, ela sabia que se tratava da direcção acertada, pois Marianne seria uma esposa maravilhosa para o filho. Dissiparia as trevas que o consumiam.

Lucy sofrera uma histerectomia.

Marianne, por seu turno, dar-lhe-ia um filho.

Capítulo vigésimo primeiro Seis meses após o casamento de Tony e Marianne, a companhia Hoffmann foi absorvida pela Kruger-Brent, Ltd. A assinatura formal dos contratos realizou-se em Munique, num gesto de consideração para com Frederick Hoffmann, que ficaria à testa da subsidiária na Alemanha. Tony não pudera dissimular a surpresa causada pela passividade com que

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a mãe aceitara o enlace. Apesar de não costumar perder com graciosidade, mostrara-se cordial para com a nora, quando ela e Tony regressaram da lua-demel nas Baamas, e até se confessara encantada com a união. E o que mais o intrigava era a circunstância de a atitude parecer sincera. No fundo, talvez não a compreendesse como sempre supusera.

O matrimónio constituiu um êxito brilhante desde o princípio. Marianne satisfazia uma necessidade de longa data do marido, e todos os que o rodeavam se apercebiam da mudança operada nele, em particular Kate.

Quando Tony efectuava viagens de negócios, ela acompanhava -o. Observandolhes a felicidade, Kate reconhecia: “Procedi o melhor possível no interesse de meu filho.”

Foi Marianne quem se encarregou de eliminar o fosso que se cavara entre Tony e a mãe. Quando regressaram da lua-de-mel, anunciou o desejo de convidar Kate para jantar, mas ele tentou opor-se:

- Não a conheces. É capaz…

- Quero precisamente conhecê-la. Por favor, querido. Tony acabou por ceder e preparou-se para um serão difícil e mesmo tenso, mas verificou com admiração que a mãe se mostrava feliz entre eles. Na semana seguinte, foi a sua vez de os convidar e a partir de então os jantares converteram-se num ritual.

Kate e a nora tornaram-se amigas. Conversavam ao telefone diversas vezes por semana e almoçavam juntas com frequência.

Tinham combinado encontrar-se num restaurante, no dia em que Kate pressentiu algo de anormal em Marianne, ao vê -la entrar.

- Um uísque duplo - pediu esta última ao empregado. - Sem gelo.

- Que aconteceu? - inquiriu Kate, ciente de que a outra raramente consumia bebidas alcoólicas.

- Fui consultar o doutor Harley.

- Suponho que não está doente? - articulou, com uma sensação de alarme.

- Não. Simplesmente…

A verdade surgiu entrecortada por hesitações. Tudo principiara uns dias antes.

Sentira-se indisposta e procurara o médico…

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- Acho-lhe um aspecto saudável - declarou o dr. Harley. - Que idade tem, Mistress Blackwell?

- Vinte e três.

- Há algum caso de perturbação cardíaca na família?

- Não.

- Cancro? - continuou, inscrevendo anotações numa ficha.

- Tão-pouco.

- Seus pais são vivos?

- Apenas o meu pai. Minha mãe morreu num acidente.

- Teve papeira?

- Não.

- Sarampo?

- Sim, aos dez anos.

- Tosse convulsa?

- Não.

- Sofreu alguma intervenção cirúrgica?

- Apenas para extrair as amígdalas, aos nove anos.

- À parte isso, nunca esteve hospitalizada?

- Não. Ou, melhor, uma vez. Mas por pouco tempo.

- Qual o motivo?

- Pertencia à equipa feminina de hóquei do colégio e, durante uma partida, perdi os sentidos, só acordando no hospital. Estive internada dois dias. Não foi nada de importância.

- Magoou-se durante o jogo?

- Não. Fiquei inconsciente, sem motivo aparente.

- Que idade tinha?

- Dezasseis. O médico disse que devia tratar-se de alguma perturbação glandular própria da adolescência.

O dr. Harley inclinou-se para a frente e perguntou:

- Quando recuperou os sentidos, sentiu alguma impressão em qualquer dos lados do corpo?

Marianne reflectiu por um momento e inclinou a cabeça.

- Sim, no direito. Mas desapareceu passados poucos dias. Não me voltou a incomodar.

- Teve dores de cabeça? Visão enevoada?

- Sim, mas também passou - começou a sentir-se alarmada. - Parece-lhe que tenho alguma coisa grave, doutor?

- Antes de me pronunciar, gostava de proceder a uns testes… para jogar pelo seguro.

- De que género?

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- Um agiograma cerebral, por exemplo. Não é nada de especial. Podemos tratar disso imediatamente.

Três dias mais tarde, ela recebia um telefonema da enfermeira do médico, que a convocou para uma consulta.

- Solucionámos o mistério - anunciou o dr. Harley, mal a viu.

- É de facto grave?

- Nem por isso. O agiograma indica que sofreu um pequeno colapso.

Tecnicamente, chama-se aneurisma e é muito comum nas mulheres, sobretudo nas adolescentes. Um pequeno vaso do cérebro rebentou e derramou pequenas quantidades de sangue. Foi a pressão daí resultante a responsável pelas dores de cabeça e a visão enevoada. Por sorte, essas coisas curam-se espontaneamente.

Marianne escutava com apreensão crescente, até que perguntou:

- Que quer dizer, com exactidão? Pode repetir-se?

- É pouco provável - o dr. Harley esboçou um sorriso. - A menos que tencione voltar a praticar o hóquei, pode fazer uma vida absolutamente normal.

- Eu e Tony costumamos andar a cavalo e jogar o ténis. Acha que?…

- Desde que não exagere, não corre perigo. Pode entregar-se a desportos dessa natureza, assim como ao sexo, sem problemas.

- Graças a Deus - e Marianne soltou um suspiro de alívio.

No entanto, quando se levantava para sair, o médico acrescentou:

- Há só uma coisa, Mistress Blackwell. Se planeia ter filhos, sugiro que recorra a adoptivos.

- Disse que podia fazer uma vida normal - argumentou ela, estremecendo.

- Dá-se, porém, o caso de a gravidez aumentar o volume vascular enormemente e, durante as últimas seis a oito semanas, verifica-se uma elevação suplementar da tensão arte rial. Ora, em virtude do aneurisma, o risco atingiria um ponto inaceitável. Podia tornar-se não só perigoso como fatal. As adopções são fáceis, nos tempos actuais. Posso encarregar-me…

Todavia, Marianne deixara de escutar o que ele dizia. Tinha

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apenas presentes as palavras de Tony: “Havemos de ter uma filha. Uma rapariga exactamente como tu.” -… Não consegui ouvir mais - explicou Marianne. - Saí a correr do consultório e vim para aqui directamente.

Kate desenvolvia esforços prodigiosos para não deixar transparecer o que sentia.

Era um abalo demolidor, mas devia haver uma saída. Havia sempre solução para tudo.

- Bem! - exclamou com um sorriso. - Esperava muito pior.

- Mas eu e Tony desejamos tanto ter um filho!

- O doutor Harley é um alarmista. Você teve pequenos problemas, há anos, e ele pretende envolvê-los de uma importância inexistente - pegou na mão da nora. - Sente-se bem, suponho?

- Sentia, até…

- Não voltou a ter desmaios?

- Decerto que não.

- Isso significa que tudo passou. Pertence ao passado. Aliás, ele próprio afirmou que essas coisas se curavam espontaneamente.

- Também mencionou os riscos.

- Os riscos existem sempre que uma mulher engravida. Aliás, a vida está cheia deles. O essencial é decidir quais merece a pena correr, não acha?

- Talvez - admitiu Marianne, pensativamente. De súbito tomou uma decisão. - Tem razão. Não diremos nada a Tony, para lhe evitar preocupações desnecessárias. O segredo fica entre nós.

- Sem dúvida - assentiu Kate, ao mesmo tempo que reflectia: “Apetecia-me matar John Harley por a ter assustado.”

Três meses depois, Marianne engravidou, enquanto Tony ficava encantado, Kate silenciosamente triunfante e o dr. Harley horrorizado.

- Vou tomar as medidas convenientes para o aborto imediato - anunciou este último.

- Não, doutor - redarguiu ela. - Sinto-me bem e vou ter a criança.

Quando informou a sogra da sugestão do médico, esta última dirigiu-se ao consultório para o increpar:

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Que ideia foi essa de recomendar o aborto a minha nora?

- Expliquei-lhe que, se le va a gravidez até ao fim, corre o risco de morrer.

- É uma conjectura. Não pode ter a certeza. Há-de correr tudo bem. Portanto, evite alarmá-la.

Oito meses mais tarde, às quatro da madrugada de princípios de Fevereiro, Marianne entrou em parto prematuramente. Os seus gemidos acordaram Tony, que começou a vestir-se com rapidez, enquanto recomendava:

- Não te preocupes, querida. Levo-te ao hospital num instante.

- Depressa, por favor - murmurou ela, cujas dores se tornavam excruciantes.

Ao mesmo tempo, perguntava a si própria se não devia ter comunicado ao marido a natureza da conversa que tivera com o dr. Harley. Mas não. Como Kate afirmara, a decisão competia-lhe exclusivamente. A vida era tão maravilhosa que Deus não permitiria que lhe acontecesse alguma coisa.

Quando Marianne e Tony chegaram ao hospital, encontrava-se tudo preparado.

Ele acompanhou-a a uma sala de espera, de onde a levaram para os exames preliminares. O obstetra, dr. Mattson, mediu-lhe a tensão arterial, enrugou a fronte e repetiu a operação. Em seguida, voltou-se para a enfermeira a seu lado e indicou:

- Mande levá-la para a sala de partos, sem demora!

Tony acabava de recorrer à máquina que se achava no corredor, para obter um maço de tabaco, quando uma voz áspera proferiu atrás dele:

- Mas é o nosso Rembrandt!

Reconheceu o homem que vira com Dominique à entrada do apartamento desta.

Como lhe chamara? Sim, Ben. De momento, fitava -o com uma expressão de antagonismo. Ciúme? Que lhe teria ela dito? Nesse instante Dominique fez a sua aparição e comunicou a Ben:

- A enfermeira diz que Micheline não pode receber visitas. Voltaremos… - de súbito, avistou Tony e interrompeu-se. - Que fazes aqui?

- Minha mulher entrou em parto.

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- Foi sua mãe que preparou a situação? - interpôs Ben.

- Que quer dizer?

- Dominique explicou-me que ela trata de todos os seus assuntos.

- Pára com isso, Ben!

- Porquê? Não é verdade? Não foi o que disseste?

- De que está ele a falar? - inquiriu Tony, virando-se para Dominique.

- Não faças caso. Vamos, Ben.

No entanto, este parecia divertir-se com a perplexidade de Tony e prosseguiu:

- Quem me dera ter uma mãe assim. Se quer um modelo atraente para a cama, ela compra-lho. Se deseja promover uma exposição de quadros em Paris, trata disso num ápice.

- Endoideceu.

- Parece-lhe? - dirigiu-se à rapariga. - Ele não sabe?

- Não sei o quê? - bradou Tony.

- Nada.

- Ele afirma que minha mãe preparou a minha exposição em Paris. É verdade? - e vendo a expressão de Dominique, insistiu: - Responde!

- Pagou a Goerg para que me deixasse expor as telas?

- Mas gostou realmente delas.

- Explica-lhe aquilo do crítico - sugeriu Ben.

- Basta!

Dominique rodou nos calcanhares para se afastar, porém, Tony segurou-a pelo braço.

- Espera! Foi também minha mãe que providenciou para que ele aparecesse na exposição?

- Foi - e a voz dela convertera-se num murmúrio quase inaudível.

- Mas considerou os meus trabalhos horríveis.

- Não, Tony. André d'Usseau disse a tua mãe que te podias ter tornado um artista.

- Ela pagou-lhe para que me destruísse?! - vociferou ele, incrédulo.

- Estava convencida de que agia em conformidade com o teu interesse futuro.

A enormidade do acto da mãe afigurava-se-lhe esmagadora. “Tudo o que me disse era mentira. Nunca teve em mente

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permitir que vivesse a minha vida”. E André d'Usseau! Como podia deixar-se comprar um homem daqueles? Mas evidentemente que Kate conhecia o preço de toda a gente. Oscar Wilde referia-se a pessoas como ela quando descrevera alguém que estava ao corrente do preço de tudo e do valor de nada. Todos os seus manejos tinham sempre a Kruger-Brent como alvo. E a Kruger-Brent era Kate Blackwell. Por fim, Tony voltou as costas a Dominique e a Ben e afastou-se com ar desvairado.

Na sala de operações, os médicos lutavam desesperadamente para salvar a vida de Marianne, cuja tensão arterial baixara de forma alarmante, ao mesmo que as palpitações do coração se tornavam desordenadas. Administraram-lhe oxigénio e uma transfusão de sangue, mas não obtiveram o mínimo efeito. Ela estava inconsciente, em virtude de uma hemorragia cerebral, quando nasceu o primeiro bebé, e morta três minutos depois, no momento em que veio ao mundo o segundo.

Tony ouviu uma voz distante chamá-lo e voltou-se. Era o dr. Mattson, que anunciou:

- Tem duas belas e saudáveis filhas, Mister Blackwell.

- E Marianne? - a expressão do médico fê-lo estremecer. - Está bem?

O dr. Mattson respirou fundo e meneou a cabeça com lentidão.

- Lastimo, mas os nossos esforços resultaram infrutíferos. Faleceu na…

- O quê? - Tony segurou o interlocutor pelas bandas do casaco e sacudiu-o com violência. - Mente! Minha mulher não morreu!

- Mister Blackwell…

- Onde está ela? Quero vê-la!

- De momento, não é possível. Estão a prepará -la para…

- Matou-a, bastardo!

Principiou a agredir o obstetra, o que obrigou dois internos a intervir e a segurarlhe os braços com firmeza.

- Acalme-se, Mister Blackwell.

- Quero ver minha mulher! - rugia Tony, debatendo -se como um louco.

- Larguem-no - ordenou o dr. Harley, aproximando-se. - Deixem-nos sós.

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O dr. Mattson e os dois internos retiraram-se, enquanto Tony chorava como uma criança.

- Ma-mataram Marianne, John! Assassinaram-na!

- Ela morreu, Tony, e lamento-o profundamente, mas ninguém a matou. Preveni-a há meses de que, se deixasse a gravidez prosseguir, arriscaria a vida.

- Não… não compreendo.

- Marianne não lhe explicou? Sua mãe não disse nada?

- Minha mãe? - balbuciou Tony, estupefacto.

- Considerou-me alarmista e aconselhou Marianne a não fazer caso das minhas recomendações - o médico calou-se por uns segundos. - Vi as gémeas. São admiráveis. Quer que?…

Todavia, Tony afastava -se sem lhe prestar atenção.

- Bom dia, Mister Blackwell - saudou o mordomo, abrindo a porta a Tony.

- Bom dia, Lester.

- Há alguma novidade? - perguntou, apercebendo-se do aspecto desgrenhado do recém-chegado.

- Não. Está tudo em ordem. Importa-se de me trazer um café?

- Imediatamente.

Tony aguardou que o mordomo se encaminhasse para a cozinha e obedeceu à voz na sua cabeça que lhe comandava os movimentos.

Entrou na sala dos trofeus, abriu a vitrina que continha a colecção de armas de fogo e contemplou os numerosos instrumentos de morte.

Continuando a obedecer à voz íntima, pegou num revólver e examinou o tambor, para se certificar de que estava carregado.

“Ela deve estar lá em cima, Tony.”

Dirigiu-se para a escada e principiou a subi-la em passos firmes. Agora, sabia que a mãe não era culpada do mal que espalhava à sua volta. Estava possessa e ele tencionava curá-la. A Kruger-Brent arrebatara -lhe a alma e Kate não tinha a mínima responsabilidade dos seus actos. Ela e a companhia haviam-se convertido num corpo único e quando a matasse, a firma também morreria.

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Fez uma pausa diante da porta e abriu-a. A mãe vestia-se diante do espelho, quando o ouviu entrar.

- Tony! Que?…

Ele apertou o revólver e, meticulosamente, começou a puxar o gatilho.

Capítulo vigésimo segundo O direito de primogenitura - a pretensão daquele que nasce primeiro a um título ou propriedade da família - acha-se profundamente enraizado na História. Entre as famílias reais na Europa, uma entidade oficial de patente elevada encontra -se presente em cada nascimento de um possível herdeiro de uma rainha ou princesa, para que, na eventualidade de surgirem gémeos, o direito de sucessão não constitua motivo de controvérsia. Nessa conformidade, o dr. Mattson tomou a precaução de anotar qual das gémeas viera ao mundo em primeiro lugar.

Todos concordavam em que as gémeas Blackwell eram os bebés mais belos jamais vistos. Saudáveis e invulgarmente vivas, as enfermeiras do hospital invocavam o mínimo pretexto para entrar na sala e contemplá-las. Parte da fascinação, embora nenhuma delas o admitisse, residia nas histórias misteriosas que circulavam acerca da família das recém-nascidas. A mãe morrera durante o parto, o pai desaparecera e constava à boca pequena que tentara assassinar sua própria mãe, conquanto ninguém estivesse em condições de o confirmar. Os jornais guardavam silêncio sobre o assunto, à parte a breve referência ao colapso nervoso sofrido por Tony Blackwell em resultado da morte da esposa, o que motivara o seu internamento numa clínica não mencionada.

Os últimos dias tinham sido infernais para John Harley. Nunca esqueceria a cena que se lhe deparara, quando entrara no quarto de Kate Blackwell, após o telefonema histérico do mordomo. Ela encontrava-se estendida no chão, em estado de coma, com ferimentos de bala no pescoço e no peito, no meio de um charco de sangue, enquanto Tony, empunhando uma tesoura, reduzia a farrapos todos os vestidos e agasalhos da mãe contidos no roupeiro.

O médico lançou uma simples olhadela a Kate e apressou-se a chamar uma ambulância. Em seguida, ajoelhou ao lado do corpo e tomou-lhe o pulso, que era fraco e irregular, além de que as faces adquiriam uma tonalidade azulada, facto indicativo de que entrava em estado de choque. Sem perda de um segundo, deulhe uma injecção de adrenalina e bicarbonato de sódio.

- Que aconteceu? - perguntou, por fim, ao mordomo, alagado em transpiração glacial.

- Não sei ao certo. Mister Blackwell pediu-me um café, e estava na cozinha quando ouvi tiros. Corri cá acima e encontrei a senhora no chão, enquanto ele, de revólver em punho, dizia: “Já não te incomodará mais, mãe. Acabo de a matar.”

Depois, abriu o roupeiro e começou a retalhar os vestidos.

Com um suspiro de desolação, o dr. Harley voltou-se para Tony.

- Que está a fazer?

- Ajudo a mãe - foi a reposta, com uma expressão feroz. - Destruo a companhia que matou Marianne.

Kate foi transportada para a enfermaria de emergência de um hospital particular do centro da cidade pertencente à Kru-ger-Brent, Ltd., onde recebeu quatro transfusões de sangue durante a operação para extrair as balas.

Foram necessários três enfermeiros para arrastar Tony até à ambulância, e só depois de o dr. Harley lhe dar uma injecção principiou a acalmar um pouco.

No dia em que o médico visitou Kate pela primeira vez, ela apressou-se a perguntar num murmúrio:

- Onde está o meu filho?

- Cuidamos dele. Não se preocupe.

Na realidade, Tony fora levado para um sanatório particular em Connecticut.

- Porque tentou matar-me?

- Atribui-lhe a culpa da morte de Marianne.

- Mas isso é uma loucura!

O dr. Harley não comentou esta afirmação. “Atribui-lhe a culpa da morte de Marianne.” Muito depois de ele se haver retirado, Kate continuava empenhada em rejeitar estas palavras. Estimava a nora, porque

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tornara o filho feliz. “Tudo o que fiz foi por ti, Tony. Todos os meus sonhos tinhamte por alvo. Como é possível que não o soubesses?” Não obstante, odiava-a tanto que tentara matá-la. Assolava-a uma angústia tão profunda que desejava morrer.

Mas não sucumbiria. Procedera como devia. Os outros laboravam num erro. Tony era um fraco. Todos o tinham sido. O pai fora demasiado fraco para enfrentar a morte do filho e a mãe para, só, fazer face à vida. “Eu não o sou. Posso enfrentar isto e resistir. Viverei. Sobreviverei. A companhia há-de sobreviver.”

QUINTA PARTE

Eva e Alexandra 1950-1975

Capítulo vigésimo terceiro Kate convalescia em Dark Harbor, permitindo que o sol e o ar do mar a curassem.

Tony encontrava -se numa clínica de alienados particular, onde podia receber os melhores cuidados possíveis.Ela mandara chamar psiquiatras de Paris, Viena e Berlim, mas todos os diagnósticos indicavam a mesma conclusão: o filho era um esquizofrénico e paranóico homicida.

- Não reage às drogas ou ao tratamento psiquiátrico e é violento. Temos de o conservar isolado.

- De que modo? - perguntou Kate.

- Mantemo-lo numa cela almofadada. A maior parte do tempo, vemo-nos obrigados a vestir-lhe a camisa-de-forças.

- É indispensável?

- Sem ela, mataria todas as pessoas ao seu alcance.

Fechou os olhos, com uma expressão de dor. Não era do seu dócil e afável Tony que falavam. Tratava-se de um estranho, um possesso. Por fim, descerrou as pálpebras e murmurou:

- Não se pode fazer nada?

- Sem estabelecermos contacto com a mente, não. Administramos-lhe drogas, mas quando o efeito se atenua, torna a enfurecer-se. Não podemos manter o tratamento indefinidamente.

- Que sugere?

- Em casos similares, verificámos que a remoção de uma pequena porção do cérebro produziu resultados notáveis.

- Uma lobotomia?

- Exacto. Seu filho continuaria a funcionar em todos os aspectos, com a diferença de que não voltariam a registar-se manifestações de violência.

Kate conservou-se silenciosa por longos momentos, ponderando a situação, que ainda se lhe afigurava incrível. Por último, o dr. Morris, um jovem interno da Clínica Menninger, volveu:

- Compreendo como a decisão lhe deve ser difícil, Mis-tress Blackwell. Se deseja reflectir uns dias…

- Se é a única coisa que porá termo ao seu tormento, tem a minha autorização - declarou ela com firmeza.

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Frederick Hoffmann desejava ficar com as netas e levá -las para a Alemanha. Ao observá-lo, Kate tinha a impressão de que envelhecera vinte anos desde a morte da filha e compadecia-se dele, mas não estava disposta a abdicar das gémeas de Tony.

- Precisam das atenções de uma mulher. Marianne gos taria que se criassem aqui.

Pode vir vê-las sempre que queira.

E ele acabou por se deixar convencer.

As gémeas foram transferidas para a residência de Kate, a qual entrevistou várias preceptoras, até que admitiu uma jovem francesa chamada Solange Dunas.

A que nascera primeiro recebeu o nome de Eva e, a outra, Alexandra. Eram idênticas, impossíveis de distinguir. Quem as via juntas ficava com a impressão de que tinha na sua frente uma imagem num espelho, e Kate maravilhava-se com o duplo milagre criado pelo filho e Marianne. Apesar de vivas e possuidoras de reflexos rápidos, transcorridas poucas semanas Eva principiou a revelar-se mais madura do que a irmã. Foi a primeira a gatinhar, a falar e a andar, conquanto Alexandra não tardasse a seguir-lhe o exemplo. Esta última adorava -a e tentava imitá-la em tudo. Kate passava com elas tanto tempo quanto as ocupações lhe permitiam. Faziam-na sentir-se mais jovem e em breve recomeçou a sonhar. “Um dia, quando for velha e decidir afastar-me dos negócios…”

No primeiro aniversário das netas, promoveu uma festa. Mandou confeccionar dois bolos idênticos e houve dezenas de prendas de amigos, empregados da companhia e pessoal doméstico. O segundo pareceu seguir-se quase imediatamente. Kate tinha dificuldade em acreditar que o tempo passava tão depressa e as gémeas cresciam com tanta rapidez. Ao mesmo tempo, começava a distinguir claramente as diferenças nas suas personalidades. Eva, a mais forte, revelava maior arrojo, enquanto Alexandra, mais recatada, se contentava em acompanhar as iniciativas da irmã. “Sem mãe nem pai, é extraordinário que se estimem tanto”, pensava Kate com frequência.

Na véspera do seu quinto aniversário, Eva tentou assassinar Alexandra.

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Está escrito no Génese 25, 22-23: “E as crianças labutaram juntas com ela…

E o Senhor disse-lhe: Duas (nações) estão no ventre, e duas maneiras de povos serão separadas das tuas entranhas; e um (povo) será mais forte que o outro (povo); e o mais velho servirá o mais jovem.”

No caso de Eva e Alexandra, porém, a primeira não tinha a mínima intenção de servir a irmã mais nova.

Na verdade, odiava-a desde que se conhecia e enfurecia-se em silêncio, quando alguém pegava em Alexandra, a acariciava ou lhe oferecia um presente.

Afigurava-se-lhe que era ludibriada. Queria tudo para si - o afecto e as coisas bonitas que as rodeavam. Não podia sequer ter um aniversário só dela. Detestava a irmã porque se parecia com ela, vestia da mesma maneira e absorvia a parte da estima da avó que lhe pertencia. Alexandra adorava-a e Eva desprezava -a por isso. O que tinha era apenas dela, mas resultava insuficiente. À noite, sob as vistas de Solange Dunas, as duas garotas pronunciavam as suas orações juntas, mas Eva acrescentava sempre uma prece silenciosa para que Deus fulminasse Alexandra. No entanto, à medida que o tempo passava sem que fosse escutada, decidiu que devia agir por suas próprias mãos. O quinto aniversário achava-se próximo e custava-lhe aceitar a ideia de que o compartilhariam, mais uma vez.

Impunha-se que matasse Alexandra, e sem demora.

Na véspera do aniversário, Eva encontrava-se deitada, mas bem acordada, e, quando se certificou de que todos dormiam, acercou-se da cama da irmã e despertou-a.

- Vamos à cozinha ver os bolos para amanhã.

- Está toda a gente a dormir - argumentou Alexandra, esfregando os olhos.

- Não acordamos ninguém.

- Mademoiselle Dunas é capaz de não gostar. Porque não os vemos antes de manhã?

- Porque quero que seja agora. Vens ou não?

Tentou afastar o sono, reflectindo que, embora não desejasse vê-los, convinha não contrariar Eva.

- Está bem - assentiu, por fim.

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Saltou da cama, enfiou o roupão de nylon, igual ao da irmã, e calçou as pantufas.

- Não faças barulho - recomendou Eva, encaminhando-se para a porta.

Atravessaram o longo corredor, desceram a escada e entraram na ampla cozinha, que continha dois enormes fogões de gás, seis fogareiros eléctricos, três frigoríficos e uma arca congeladora.

Eva descobriu num dos frigoríficos os bolos de aniversário confeccionados pela cozinheira, Mrs. Tyler. Num deles, lia-se Parabéns, Alexandra e no outro Parabéns Eva.

“Para o ano, só haverá um”, pensou esta.

Em seguida, pegou no da irmã e colocou-o sobre o tampo de mármore da mesa, após o que abriu uma gaveta e extraiu uma embalagem de velas coloridas.

- Que vais fazer? - quis saber Alexandra.

- Quero ver como fica com as velas acesas - murmurou Eva, começando a dispôlas no bolo.

- Ainda dás cabo dele e Mistress Tyler fica fula.

- Não se importa - abriu outra gaveta e puxou de duas caixas de fósforos de cozinha. - Ajuda-me.

- Quero voltar para a cama.

- Então, volta, gata medrosa. Desenrasco-me sozinha.

- Que queres que faça? - perguntou Alexandra, depois de breve hesitação.

- Vai acendendo as velas - indicou a irmã, passando-lhe uma das caixas.

Alexandra tinha medo do fogo, em resultado das advertências da preceptora sobre os perigos de brincar com fósforos. Aliás, ambas conheciam as histórias horríveis que circulavam acerca das crianças que infringiam essa regra. Todavia, Alexandra não queria desapontar a irmã, pelo que principiou obedientemente a acender as velas.

Eva observou-a por um momento e disse:

- Esqueces as do outro lado, pateta.

Alexandra inclinou-se para a frente, a fim de chegar lá, de costas para a outra, que se apressou a acender um fósforo, aproximando-o da caixa que tinha na mão. No instante em que esta irrompeu em chamas, largou-a aos pés de Alexandra e a ponta do roupão começou a arder. Escoaram-se uns segundos, primeiro que Alexandra se apercebesse do que acontecia,

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e, ao experimentar a sensação de queimadura, soltou um grito de dor.

Eva contemplou o roupão em chamas por um momento, impressionada com a extensão do seu êxito, e acabou por exclamar:

- Não te mexas, que vou buscar um balde de água!

E precipitou-se para a copa, o coração inundado de alegria.

Foi uma película de terror que salvou a vida a Alexandra. Mrs. Tyler fora ao cinema com um sargento da Polícia, cuja cama compartilhava de vez em quando, mas o écran achava-se sulcado de tantos cadáveres e corpos mutilados, que não conseguiu suportar o suplício até ao fim e desabafou:

- Isto talvez sejam ossos do ofício para ti, Richard, mas já não aguento mais.

O sargento seguiu-a com relutância em direcção à saída e chegaram à mansão Blackwell uma hora mais cedo. No instante em que abriu a porta, a cozinheira ouviu os gritos de Alexandra e correram ambos para a cozinha. Após breves segundos de hesitação para abarcar a cena, ele arrancou o roupão do corpo da garota e verificou que apresentava queimaduras nas pernas e nas coxas, mas as chamas não haviam atingido os cabelos ou qualquer área vital. Não obstante, ela caiu, inconsciente.

- Chama uma ambulância - disse o sargento. - Mis-tress Blackwell está em casa?

- Suponho que sim.

- Vai preveni-la.

Quando Mrs. Tyler pousava o auscultador, depois de chamar a ambulância, soou um grito na copa e Eva surgiu com um balde na mão, chorando convulsivamente.

- Alexandra morreu? - balbuciou. - Está morta?

- Não, minha filha, salvou-se - e a cozinheira tomou-a nos braços, para a serenar.

- Há-de ficar boa.

- A culpa foi minha! Ela quis acender as velas do bolo de aniversário, mas eu não a devia ter deixado.

- Não se preocupe - murmurou, acariciando-lhe a cabeça. - Tudo se há-de compor.

- Os fósforos caíram-me da mão e o roupão dela começou a arder.

- Pobre criança - articulou o sargento, olhando Eva com uma expressão de pesar.

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- Tem queimaduras de segundo e terceiro graus, nas pernas e na parte inferior das costas - informou o dr. Harley. - No entanto, ficará como nova, embora pudesse registar-se uma tragédia.

- Acredito - aquiesceu Kate, horrorizada com o aspecto do corpo da neta. Após uns segundos de hesitação, acrescentou: - Mas ainda estou mais preocupada com Eva.

- Também foi atingida?

- Fisicamente não, mas atribui-se a culpa do acidente. Tem pesadelos medonhos.

Nas últimas três noites, precisei de a conservar nos braços para que voltasse a adormecer. Não quero que isto se torne mais traumático. É uma garota muito sensível.

- As crianças recompõem-se depressa de tudo. Se surgir algum problema, previna-me, para que lhe recomende um pediatra.

- Obrigada - murmurou Kate, pensativamente.

Eva sentia-se profundamente indignada, pois a festa de aniversário fora cancelada. “Alexandra privou-me deste prazer”, reflectiu com amargura.

A irmã restabeleceu-se com prontidão e as marcas das queimaduras acabaram por desaparecer. Por seu turno, Eva libertou-se da remota sensação de culpa com notável facilidade. Aliás, Kate assegurava -lhe com frequência: “Um acidente pode acontecer a qualquer pessoa. Não te consideres culpada”.

Na realidade, a garota atribuía a culpa a Mrs. Tyler. Porque regressara mais cedo do cinema, para estragar tudo? No fundo, tratava-se de um plano perfeito.

A clínica em que Tony se encontrava situava-se numa tranquila área arborizada de Connecticut e Kate visitava -o uma vez por mês. A lobotomia fora coroada de êxito, originando o desaparecimento da agressividade. Ele reconhecia a mãe e perguntava sempre polidamente por Eva e Alexandra, sem todavia manifestar o menor interesse em vê-las. Aliás, deixava transparecer escasso interesse por coisa alguma, conquanto parecesse feliz. “Feliz, não satisfeito”, cogitava Kate.

“Mas satisfeito com quê?”

Numa das visitas, procurou o director da clínica, antes de sair, e perguntou:

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- Meu filho não faz nada em todo o dia?

- Entretém-se a pintar.

Tony, que podia ter possuído virtualmente o mundo, passava os dias a pintar!

Esforçando-se por dissimular a desolação que a percorria, insistiu:

- O quê?

- Ninguém consegue compreendê-lo.

Capítulo vigésimo quarto Durante os dois anos seguintes, Kate preocupou-se seriamente com Alexandra.

Não restavam dúvidas de que a garota revelava marcada tendência para os acidentes. Nas férias de Verão passadas na propriedade das Baamas, quase pereceu afogada, quando brincava com a irmã na piscina, valendo-lhe a intervenção oportuna de um jardineiro. No ano imediato, quando efectuavam um piquenique numa área acidentada, Alexandra resvalou à beira de uma ravina e conseguiu salvar-se porque teve a presença de espírito de se agarrar a uns arbustos que se destacavam do declive.

- Deves vigiar melhor tua irmã - indicou Kate a Eva. - Parece incapaz de tomar conta dela, como tu.

- Pois é - assentiu a interpelada, com uma expressão grave. - Não a perderei de vista.

Kate estimava ambas as netas, mas de maneiras diferentes. Contavam agora sete anos e eram igualmente bonitas, com cabelos louros compridos, semblantes exóticos e olhos dos McGregor. Apesar de idênticas, possuíam personalidades muito distintas. Para Kate, a afabilidade de Alexandra recordava -lhe Tony, enquanto Eva se parecia mais com ela, em determinação e auto -suficiência.

Um motorista conduzia-as ao colégio no Rolls Royce da família, e Alexandra sentia-se embaraçada por as colegas a verem rodeada de semelhante aparato, ao passo que a irmã ficava encantada. Kate dava, a cada uma, sua mesada, com a recomendação de que mantivessem um registo de como a despendiam. Eva costumava ficar sem dinheiro no final da primeira quinzena e pedia emprestado a Alexandra,

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conseguindo depois falsear os dados inscritos no livro, para que a avó não se apercebesse. Contudo, Kate descobria a artimanha e esboçava um sorriso. Com apenas sete anos de idade e já se revelava uma conta bilista criativa!

Ao princípio acalentara o sonho secreto de que Tony acabasse por se recompor e regressar à Kruger-Brent, mas à medida que o tempo se escoava, as esperanças dissipavam-se. Foi informada de que, embora ele pudesse ausentar-se da clínica para breves visitas ao lar materno, acompanhado por um enfermeiro, jamais conseguiria voltar a participar nas actividades do mundo exterior.

Decorria o ano de 1962 e a companhia continuava a prosperar e a expandir-se, pelo que as exigências de uma direcção no va se avolumavam. Kate acabava de celebrar o septuagésimo aniversário. Tinha agora os cabelos completamente brancos, mas conservava um porte erecto e firme, pleno de vitalidade. No entanto, sabia que a acção inexorável do tempo terminaria por a dominar e a chava-se preparada para enfrentar esse dia. Impunha-se que a Kruger-Brent fosse preservada para a família. Brad Rogers, embora um gerente de excelente qualidade, não era um Blackwell. “Tenho de resistir até que as gémeas possam ocupar o meu lugar.” E Kate evocava as derradeiras palavras de Cecil Rhodes: “Tão pouco feito e tanto para fazer!”

As duas irmãs completaram doze anos, no limiar da adolescência. A avó, que lhes consagrara todo o tempo humanamente possível, redobrava de esforços para as acompanhar de perto. Aproximava-se o momento de tomar uma decisão importante.

Durante a semana da Páscoa, ela e as netas seguiram para Dark Harbor num avião da companhia. As gémeas haviam visitado todas as propriedades da família, à excepção da de Joanesburgo, e, de entre todas, Cedar Hill era a sua favorita.

Apreciavam em particular a liberdade de movimentos e o isolamento da ilha, juntamente com as oportunidades para nadar e praticar esqui aquático. Eva perguntou se podia levar umas colegas, como acontecera no passado, mas desta vez Kate não concordou. A avó, aquela figura poderosa e imponente, desejava achar-se a sós com elas. As duas irmãs pressentiam que se iria passar algo de diferente.

Entretanto, Eva e Alexandra continuavam surpreendentemente

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parecidas, dua s beldades de cabelos dourados; contudo, Kate sentia-se menos interessada nas suas similaridades que nas diferenças. Sentada no terraço, observando-as no final de uma partida de ténis, analisava-as mentalmente. Eva era a chefe e Alexandra a seguidora. A primeira possuía um temperamento voluntarioso, enquanto a segunda se revelava flexível. Uma podia considerar-se atleta natural, ao passo que a outra continuava a sofrer acidentes. Poucos dias antes, por exemplo, quando se encontravam num pequeno barco à vela, com Kate ao leme, levantara -se um golpe de vento súbito e Alexandra fora projectada no mar, escapando de perecer afogada por um triz. A tripulação de uma embarcação que se achava nas proximidades auxiliara Eva a salvar a irmã. Kate perguntava a si própria se tudo aquilo teria alguma relação com o facto de Alexandra haver nascido três minutos depois de Eva, mas as razões careciam de importância. A decisão fora tomada. Já não lhe subsistia a mínima dúvida no espírito. Apostava o seu dinheiro em Eva e tratava-se de uma aposta de dez biliões de dólares.

Encontraria o marido apropriado para ela e, na altura devida, ascenderia à direcção suprema da Kruger-Brent. Quanto a Alexandra, teria uma vida de abundância e conforto e poderia gerir alguns dos estabelecimentos de caridade que Kate fundara.

O primeiro passo para que o plano de Kate arrancasse consistia em providenciar para que Eva frequentasse o colégio conveniente.

- As minhas netas são ambas encantadoras, mas descobrirá que Eva possui mais inteligência. Posso mesmo afirmar que se trata de uma rapariga extraordinária e espero que possa apurar as suas faculdades devidamente neste estabelecimento.

- Todas as nossas alunas dispõem de meios apropriados para se aperfeiçoar.

Referiu-se apenas a Eva. E a irmã?

- Alexandra? É uma moça bonita - e a apreciação parecia pejorativa, nos lábios dela. - Inteirar-me-ei dos seus progressos com regularidade.

E a directora ficou com a impressão de que estas palavras constituíam uma advertência.

As duas gémeas adoravam o colégio, em particular Eva, que apreciava a liberdade de se encontrar longe de casa e não

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ter de prestar contas dos seus actos à avó e a Solange Dunas. O regulamento em Briarcrest era rigoroso, mas isso não a apoquentava, pois estava habituada a furtar-se às regras. A única coisa que a preocupava era a presença de Alexandra, e chegara a rogar à avó que a matriculasse apenas a ela, mas deparara-se-lhe uma negativa firme e irrevogável.

Manifestava sempre prontidão em acatar as disposições dela, pois sabia onde se situava o poder. O pai era um louco, internado numa clínica, e a mãe morrera. Por conseguinte, o controlo do dinheiro encontrava-se nas mãos da avó. Eva sabia que a família dispunha de larga fortuna e, conquanto ignorasse o quantitativo exacto, ou mesmo aproximado, compreendia que bastava para lhe proporcionar tudo o que ambicionava. Subsistia unicamente um problema: Alexandra.

Uma das actividades favoritas das gémeas em Briarcrest consistia na aula matinal de equitação. A maior parte das raparigas possuíam calção de montar, e Kate não descurara esse pormenor quando lhes fornecera o equipamento para o colégio. O instrutor, Jerome Davis, observava as evoluções das suas pupilas, e reconhecia que uma das novas, Eva Black-well, reunia as condições para se tornar perita na matéria. Não necessitava pensar no que fazia, na maneira de pegar nas rédeas ou na posição a adoptar na sela. Ela e a montada constituíam um bloco único admirável de contemplar.

Por seu turno, o moço de estrebaria, Tommy, inclinava -se para Alexandra.

Naquela manhã, Davis aguardava que ela iniciasse a sua actuação, e via-a selar o cavalo. Sabia que se tratava de Alexandra e não da irmã, porque usavam fitas de cores diferentes na manga da blusa. Em dado momento, Eva acudiu para a auxiliar, enquanto Tommy se ocupava com outra aluna e o instrutor era chamado ao edifício principal do colégio, a fim de atender um telefonema.

O que aconteceu a seguir revestiu-se de grande confusão. Segundo Davis conseguiu apurar mais tarde, em face das versões escutadas das testemunhas, Alexandra subiu para a montada, descreveu uma volta no picadeiro e partiu em direcção ao primeiro obstáculo. Todavia, o cavalo estacou imediatamente e principiou a erguer-se nas patas anteriores, atirando-a contra a parede. A rapariga perdeu os sentidos e foi por escassos centímetros que os cascos do animal excitado não lhe

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atingiram o rosto. Tommy apressou-se a transportá-la à enfermaria, onde o médico diagnosticou uma simples concussão.

- Não há nada partido, nem grave - declarou. - Amanhã, estará capaz de outra..

- Mas podia ter morrido! - exclamou Eva, a qual se recusava a sair de junto da irmã, numa manifestação de devoção como Mrs. Chandler, a directora, nunca observara.

Quando finalmente Davis conseguiu serenar o cavalo e retirar-lhe a sela, descobriu a manta manchada de sangue. Ergueu-a e deparou-se-lhe um fragmento de lata de cerveja que emergia do dorso, onde fora comprimido pela sela. Apressou-se a comunicar o facto a Mrs. Chandler, que mandou promover um inquérito, em resultado do qual foram interrogadas todas as raparigas que se encontravam nas proximidades do estábulo.

- Estou certa de que a culpada pensou que se tratava de uma brincadeira inofensiva, mas podia ter consequências funestas - declarou com firmeza. - Quero conhecer o nome da responsável.

Em face da inutilidade da advertência, interrogou-as individualmente no seu gabinete, mas todas afirmaram ignorância absoluta do assunto. Todavia, quando foi a vez de Eva, mostrou-se curiosamente embaraçada.

- Tens alguma suspeita de quem fez aquilo à tua irmã?

- Prefiro não dizer - murmurou, com os olhos fixos na carpeta.

- Então, viste alguma coisa!

- Por favor, Mistress Chandler…

- Alexandra podia ter sofrido ferimentos graves. A autora da brincadeira, chamemos-lhe assim, deve ser castigada, para que o incidente não se repita.

- Não foi nenhuma das minhas colegas.

- Que queres dizer?

- Foi Tommy.

- O moço?

- Sim. Eu vi-o e, na altura, pensei que apertava a cilha. Mas tenho a certeza de que não o fez por mal. Alexandra costuma embirrar com ele e calculo que pretendeu dar-lhe uma lição. Mas preferia que não me obrigasse a dizer isto, Mistress Chandler! - balbuciou a pobre moça, dominada pelo pavor. - Não quero prejudicar ninguém.

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- Não te apoquentes, minha filha - e a directora contornou a secretária, pousando o braço nos ombros da aluna. - Procedeste como devias. Esquece o assunto. O resto é comigo.

Na manhã seguinte, quando entraram no picadeiro, as raparigas viram que o moço fora substituído.

Alguns meses depois, registou-se novo incidente desagradável. Várias alunas foram surpreendidas a fumar marijuana e uma delas acusou Eva de lhes vender a droga. Esta mostrou-se profundamente indignada, e a busca mandada efectuar por Mrs. Chandler descobriu marijuana oculta no compartimento de Alexandra, no vestiário.

- Não acredito que seja a culpada - proclamou Eva, corajosamente. - Tenho a certeza de que alguém a colocou lá.

Kate recebeu um relatório do ocorrido e admirou a lealdade de Eva ao proteger a irmã. Não havia dúvida de que se tratava de uma McGregor.

No décimo quinto aniversário das netas, Kate levou-as à propriedade da Carolina do Sul, onde promoveu uma festa em sua honra. Não se lhe afigurava prematuro providenciar para que Eva começasse a conviver com os jovens apropriados.

Embora os rapazes convidados se achassem na idade ingrata em que ainda não se interessavam prioritariamente pelas raparigas, ela desenvolveu os esforços necessários para que se estabelecessem os contactos convenientes. Um dos presentes podia ser o homem do futuro da neta, o futuro da Kruger-Brent, Ltd.

Alexandra não apreciava as festas, mas fingia sempre que se divertia, para não desapontar a avó. Na realidade, preferia a leitura e a pintura e passava horas na contemplação das telas do pai em Dark Harbor, lamentando não o ter conhecido antes de adoecer. Aparecia em casa aos domingos, acompanhado por um enfermeiro, mas ela não conseguia estabelecer comunicação. Era um estranho amável e dócil, sem nada de especial para dizer. O avô, Frederick Hoffmann, vivia na Alemanha, mas estava adoentado e as gémeas raramente o viam.

No seu segundo ano no colégio, Eva engravidou. Durante várias semanas, apresentara-se pálida e abatida, tendo faltado

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a algumas aulas da manhã, e quando começou a sofrer de frequentes acessos de náuseas foi enviada à enfermaria e examinada. Em resultado disso, o médico contactou imediatamente Mrs. Chandler.

- Eva está grávida.

- Mas… é impossível! Como pode ter acontecido uma coisa dessas?

- Da maneira habitual, sem dúvida - foi o comentário cáustico.

- Não passa de uma criança.

- Pois essa criança vai ser mãe.

Interrogada, a rapariga principiou por se negar a falar, alegando que não queria comprometer ninguém.

- Tens de me contar o que se passou - insistiu Mrs. Chandler, enternecida com o habitual estoicismo de Eva.

Por fim, surgiu a revelação entre soluços:

- Fui violada.

A directora ficou positivamente petrificada e, após a perturbação inicial, ordenou:

- Quero saber o nome dele!

- Mister Parkinson.

Era o professor de inglês.

Se a confissão proviesse de outros lábios, Mrs. Chandler não acreditaria, pois Joseph Parkinson era um homem pacato, casado, com três filhos, que leccionava em Briarcrest há oito anos e parecia a pessoa menos indicada para praticar um acto tão ignóbil. No entanto, quando o convocou ao seu gabinete, compreendeu instantaneamente que a rapariga não mentira, pois ele enfrentava-a com inequívoco nervosismo.

- Sabe porque o mandei chamar, Mister Parkinson?

- Creio… creio que sim.

- Trata-se de Eva.

- Calculava isso mesmo.

- Diz que a violou.

- O quê? - ele arqueou as sobrancelhas, numa expressão de incredulidade. - Santo Deus! Se houve alguém violado, fui eu!

- Avalia a gravidade do que afirma? Esta criança…

- Não é uma crianç a, mas um demónio! - fez uma pausa para limpar a transpiração da fronte. - Passou todo o período sentada na primeira fila da aula, com a saia levantada. Depois

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das aulas, procurava-me para fazer uma infinidade de perguntas despropositadas, ao mesmo tempo que se roçava por mim. Ao princípio, não a tomei a sério, até que, numa altura em que estava só… - interrompeu-se com um gemido. - Não o pude evitar!

Em seguida, Mrs. Chandler mandou entrar Eva. Achavam-se igualmente presentes a subdirectora e o che fe da Polícia da pequena localidade onde o colégio se situava.

- Quer explicar-nos o que aconteceu? - perguntou este último, com brandura.

- Sim, senhor - ela exprimia-se com serenidade. - Mister Parkinson disse que queria trocar impressões comigo sobre o meu ponto de inglês e sugeriu que aparecesse em sua casa, um domingo à tarde. Quando entrei, vi que estava só.

Passado pouco tempo, atraiu-me ao quarto, a pretexto de me mostrar uma coisa interessante, empurrou-me para a cama e…

- É falso! - bradou Parkinson. - Não foi assim que as coisas se passaram!

A directora mandou chamar Kate e explicou-lhe a situação, ficando decidido que, no interesse de todos, convinha manter o incidente em segredo. Parkinson foi despedido, com a determinação de abandonar o estado dentro de quarenta e oito horas. Em seguida, Eva teve um aborto discreto.

Por seu turno, Kate adquiriu a hipoteca do colégio, em poder de um banco local, e mandou executá-la.

Quando se inteirou, Eva soltou um suspiro.

- Tenho muita pena, avó. Gostava realmente do colégio.

Algumas semanas mais tarde, recuperada da operação, ela e Alexandra eram matriculadas no Instituto Fernwood, um colégio suíço nas proximidades de Lausana.

Capítulo vigésimo quinto O fogo que ardia no íntimo de Eva era tão intenso que não o conseguia dominar.

Não estava apenas envolvido o sexo, mas uma fúria de viver, uma necessidade de fazer tudo, ser tudo. Encarava a vida como um amante que pretendia possuir

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desesperadamente. Invejava toda a gente. Se assistia a um espectáculo de bailado, desejava encontrar-se no lugar da bailarina principal, para conquistar as aclamações da assistência. Queria ser uma cientista, uma cantora, uma cirurgiã, uma actriz de renome. Numa palavra, ambicionava tudo neste mundo e não podia esperar para o obter.

Do outro lado do vale em que se situava o Instituto Fern-wood, havia um colégio militar e, quando Eva completou os dezassete anos, virtualmente todos os alunos e grande parte dos instrutores estavam envolvidos com ela. Agora, porém, tomava as precauções apropriadas, pois não lhe interessava voltar a engravidar.

Desfrutava com a prática sexual, mas não em virtude do acto em si. Incutia-lhe um poder extraordinário, já que só cedia aos rogos dos parceiros depois de os obrigar às atitudes e, mesmo, às situações mais vexatórias. A experiência acabou por a levar a decidir que todos os homens eram imbecis.

Eva era atraente, inteligente e herdeira de uma das maiores fortunas do Globo, pelo que não surpreendia que tivesse recebido diversas propostas de casamento.

No entanto, não se achava interessada. Os únicos rapazes que a atraíam eram aqueles de quem Alexandra gostava.

Num baile de sábado à noite, esta última conheceu um jovem francês chamado René Mallot, inteligente e sensível, embora sem atractivos físicos especiais, com o qual simpatizou profundamente, e combinaram encontrar-se na cidade, na semana seguinte.

- Às sete - indicou ele.

- Serei pontual.

No quarto que compartilhavam, Alexandra referiu-se ao rapaz na presença de Eva.

- Não é como os outros. No sábado, vamos ao teatro.

- Parece que te caiu no goto.

- Acabo de o conhecer - alegou, corando. - Em todo o caso… bem, tu compreendes…

- Confesso que não - Eva reclinou-se numa poltrona, as mãos unidas sob a nuca. - Tentou levar-te para a cama?

- Não é desses! Pelo contrário, acho-o até um pouco tímido.

- Desconfio que a minha irmãzinha está apaixonada.

- Não estou nada! Já me arrependi de te ter contado.

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- Penso que fizeste muito bem - declarou com sinceridade.

Quando se apresentou à entrada do teatro, no sábado seguinte, Alexandra não vislumbrou René. Depois de esperar durante mais de uma hora, consciente dos olhares de curiosidade que os transeuntes lhe lançavam, jantou num pequeno restaurante e regressou ao instituto, desolada e decepcionada. Eva não se encontrava no quarto e ela leu até à hora do recolher, após o que apagou a luz.

Quando a irmã entrou, cerca das duas horas da madrugada, Alexandra comentou a meia voz:

- Começava a apoquentar-me contigo.

- Encontrei umas pessoas amigas. Como te correu o serão?

- Ele não se deu ao incómodo de aparecer.

- Tens de aprender a não confiar nos homens, mana.

- Só se lhe aconteceu alguma coisa…

- Que ideia! - Eva abanou a cabeça com veemência. - Deve ter-lhe surgido outra mais do seu agrado.

“Não me custa a crer”, pensou Alexandra. Na realidade, não fazia a mínima ideia de como era bonita e admirável, pois vivera sempre à sombra da irmã. Adorava-a e afigurava -se-Lhe natural que toda a gente se sentisse atraída por ela. Julgavase- lhe inferior, mas nunca l he passara pela cabeça que Eva encorajava subtilmente essa convicção desde a infância.

Houve outros encontros que não se concretizaram. Alguns rapazes dos quais Alexandra gostava pareciam reagir favoravelmente, para depois não voltarem a aparecer. Um fim-de-semana, avistou René inesperadamente numa rua de Lausana e ele aproximou-se com uma expressão ansiosa.

- Que aconteceu? Prometeste telefonar.

- Eu? Não entendo…

- Não és Eva? - perguntou, subitamente perturbado.

- Não, sou Alexandra.

- Desculpa, mas estou atrasado.

E afastou-se apressadamente, deixando-a petrificada, imersa em confusão.

Naquela noite, quando descreveu o episódio a Eva, esta encolheu os ombros e articulou com desprendimento:

- Deve estar fou. Não perdeste nada, Alex.

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Apesar da sua sensação de experiência com os homens, existia um ponto fraco no elemento masculino que ia resultando fatal para Eva. Desde o início da Humanidade que os homens gostam de se vangloriar das suas conquistas e os alunos do colégio militar não constituíam uma excepção, trocando impressões sobre Eva Blackwell com entusiasmo e admiração.

- Quando acabámos de nos rebolar, eu estava esgotado…

- Nunca pensei possuir um corpo como aquele…

- Tem um sexo que fala…

- É uma autêntica pantera na cama!…

Como pelo menos duas dezenas de rapazes e meia dúzia de professores enalteciam os talentos libidinosos dela, o assunto não tardou a tornar-se no segredo mais guardado da região. Por fim, um dos instrutores mencionou o caso a uma professora do Instituto Fernwood, que não hesitou em informar a directora, Mrs. Collins. Esta mandou promover um inquérito discreto, em resultado do qual Eva foi chamada à sua presença.

- No interesse da reputação do instituto, parece-me conveniente que o abandone imediatamente - foram as palavras introdutórias.

Eva olhou-a, como se se achasse na presença de uma demente.

- Não compreendo.

- Refiro-me ao facto de exerceres as funções de estação de serviço de metade dos alunos e instrutores do colégio militar. A outra metade deve formar bicha à espera de vez.

- É uma calúnia inconcebível! - e a voz da rapariga tremia de indignação. - Garanto-lhe que vou comunicar isto a minha avó e…

- Posso poupar-te o incómodo - atalhou Mrs. Collins. - Preferia evitar embaraços ao Instituto Fernwo od, mas se não partires sem provocar escândalo, enviarei a Mistress Blackwell uma lista de nomes que me forneceram.

- Gostava de a ver!

Entregou-a a Eva, sem uma palavra. Era extensa e, depois de a examinar, a rapariga verificou que faltavam pelo menos sete nomes. Por último, ergueu os olhos e afirmou com serenidade:

- Tudo indica que se trata de um conluio contra a minha

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família. Alguém pretende embaraçar minha avó por meu intermédio. Portanto, para que isso não aconteça, partirei.

- É uma decisão muito sensata - aprovou a directora, secamente. - Um carro conduzir-te-á ao aeroporto, de manhã. Entretanto, telegrafarei a tua avó, prevenindo-a do teu regresso. Podes retirar-te.

Eva moveu-se em direcção à porta, e de súbito, antes de a abrir, virou-se para trás e perguntou:

- E minha irmã?

- Alexandra pode ficar, se quiser.

Quando recolheu ao quarto, após a última aula, Alexandra encontrou a irmã atarefada com a bagagem.

- Que estás a fazer?

- Vou para casa.

- A meio do período?

- Ainda não chegaste à conclusão de que perdemos o nosso tempo aqui? Não aprendemos nada de novo. Limitamo -nos a gastar o dinheiro da avó, sem proveito.

- Não sabia que pensavas assim - balbuciou Alexandra, surpreendida.

- Ficaste a saber. E garanto -te que aguentei até agora só por tua causa, pois pareces satisfeita.

- Realmente, mas…

- Lamento, Alex, mas não aguento mais. Quero voltar para Nova Iorque, para o meio a que pertencemos.

- Falaste com Mistress Collins?

- Há momentos.

- Como reagiu?

- Como querias que reagisse? Ficou apavorada, com receio de que a minha saída provoque uma imagem indesejável ao instituto. Suplicou-me mesmo que ficasse.

- Confesso que não sei o que dizer - murmurou Alexandra, sentando-se na borda da cama.

- Não precisas de dizer nada. O assunto não é contigo.

- Claro que é! Se te sentes tão mal aqui… - interrompeu-se e assumiu uma expressão voluntariosa. - Talvez tenhas razão. Limitamo-nos a perder tempo. Para que precisamos de conjugar verbos latinos?

- Exacto. Ou que nos interessam as campanhas de Aníbal ou do raio do irmão Asdrúbal? - Eva fez uma pausa e sorriu

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dissimuladamente ao ver a irmã pegar na sua mala e abri-la em cima da cama. - Não queria pedir-te que me acompanhasses, mas alegra-me que venhas comigo.

- Não me interessa ficar sem ti.

- Já agora, enquanto acabo de fazer a mala, telefona à avó e previne -a de que seguimos para casa de avião, amanhã. Diz-lhe que não suportamos isto.

Importas-te?

- De modo algum - Alexandra hesitou. - Mas desconfio de que não vai ficar contente.

- Não te preocupes com a velhota. Eu trato de a tranquilizar.

Kate Blackwell tinha amigos, inimigos e associados de negócios em posições elevadas, pelo que, nos últimos meses, lhe haviam acudido aos ouvidos rumores singulares. Ao princípio, tomara-os por meras manifestações de inveja mesquinha.

Não obstante, persistiam: Eva tinha encontros de natureza inconfessável com alunos de um colégio militar na Suíça, praticara um aborto, recebera tratamento por contrair uma doença venérea…

Assim, foi com profundo alívio que se inteirou de que as netas regressavam a casa, pois tencionava aprofundar o assunto.

No dia em que as gémeas chegaram, Kate aguardava-as em casa e levou imediatamente Eva para a saleta contígua ao seu quarto.

- Contaram-me coisas desagradáveis - principiou. - Para já, quero saber porque foram expulsas.

- Não nos expulsaram - replicou a rapariga. - Decidimos vir-nos embora.

- Por causa de certos incidentes com rapazes?

- Por favor, avó - murmurou, embaraçada. - Preferia não falar nisso.

- Mas vais ter de falar. Que andaste a fazer?

- Eu, nada. Foi Alex que… - interrompeu-se e levou a mão à boca.

- Continua - insistiu Kate, implacável.

- Não lho devemos levar a mal. Deve ser mais forte que ela. Gosta de fingir que é irresistível. Eu não fazia a mínima ideia do que sucedia, até que as colegas começaram a tecer comentários. Parece que se… encontrava com muitos rapazes.

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- Porque não a convenceste a pôr termo a isso?

- Bem tentei, mas ela ameaçou matar-se. Oh, avó, penso que é um pouc o… instável. Se aludisses ao assunto na sua frente, era capaz de cometer um disparate - e os olhos de Eva humedeceram-se de lágrimas.

- Não chores - recomendou Kate, comovida. - Não lhe direi nada. Fica tudo entre nós.

- Não queria que soubesses - soluço u a rapariga. - Sabia que te desgostava.

Mais tarde, durante o chá, Kate observou Alexandra dissimuladamente. “É bonita por fora e corrupta por dentro”, pensou. O reconhecimento do facto apavorava-a.

Nos dois anos seguintes, enquanto completavam os estudos num colégio americano, Eva revelou-se particularmente discreta. O alarme registado na Suíça obrigara-a a rodear-se das maiores precauções. Impunha-se que nada afectasse as suas relações com a avó. Aliás, a velhota não podia durar muito mais - já completara setenta e nove anos! - e ela tencionava desenvolver todos os esforços para ser a sua herdeira.

Quando as gémeas fizeram vinte e um anos, Kate levou-as a Paris e comproulhes guarda-roupas completos no Coco Chanel.

Numa pequena reunião no Restaurante Lê Petit Bedouin, Eva e Alexandra foram apresentadas ao conde Alfred Maurier e esposa, Vivien. Ele era um homem de cinquenta e poucos anos, aspecto distinto, cabelos grisalhos e corpo disciplinado de atleta e a companheira ainda atraente, apesar da idade, com reputação firmada como anfitriã internacional.

Eva não lhes teria prestado atenção especial se não se apercebesse do comentário que uma componente do grupo dirigiu à condessa.

- Confesso que os invejo. São o casal mais feliz que conheço. Há quantos anos casaram? Vinte e cinco, salvo erro.

- Vinte e seis, no próximo mês - interpôs Alfred. - E talvez me possa considerar o único francês da História que nunca foi infiel à esposa.

Soou uma gargalhada geral em que Eva não participou e, durante o resto do serão, preocupou-se em observar o conde

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Maurier e a mulher. Não conseguia compreender o que ele via nela.

Provavelmente, nunca tivera ensejo de fazer amor como mandavam as regras do prazer supremo. Na realidade, considerava-o um desafio que a estimulava particularmente.

No dia seguinte, Eva telefonou a Maurier, que se encontrava no gabinete de trabalho.

- Fala Eva Blackwell. Provavelmente nem reparou em mim, mas…

- Que ideia! É uma das atraentes netas da minha amiga, Kate.

- A sua boa memória lisonjeia-me. Desculpe incomodá-lo, mas dizem que é uma autoridade em vinhos. Ora, tenciono promover uma festa-surpresa em honra de minha avó e, embora tenha ideias bem definidas sobre a ementa, gostava que me aconselhasse acerca das bebidas.

- Com o maior prazer. Depende do que for servido, claro. Se principiar com peixe, um Chablis pouco encorpado…

- Tenho uma memória horrível. Não nos podíamos reunir para trocar impressões?

Se estiver livre para o almoço, por exemplo…

- Em atenção à velha amizade com sua avó, abro uma excepção.

- Óptimo.

Eva pousou o auscultador com lentidão. Seria um almoço que o conde recordaria toda a vida.

Encontraram-se no Lasserre e a discussão respeitante aos vinhos foi breve. Ela escutou com resignação as opiniões de Maurier, até que perdeu a paciência e o interrompeu:

- Amo-o, Alfred.

Ele calou-se abruptamente a meio de uma frase.

- Perdão…

- Estou apaixonada por si. Levou o copo aos lábios e declarou:

- Excelente néctar - dando uma palmada amável na mão dela, acrescento u: - Todos os bons amigos se devem estimar.

- Não me refiro a essa espécie de afecto, Alfred.

Este fitou os olhos flamejantes de Eva e compreendeu a que espécie se referia, o que o enervou visivelmente. Ela

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tinha vinte e um anos e ele já ultrapassara a meia-idade e amava a esposa. Não entendia o que se passava com as moças actuais. Por fim, incapaz de descobrir as palavras apropriadas para manter as devidas distâncias, balbuciou:

- Nem… nem sequer me conhece.

- Sonho consigo desde a infância. Imaginava um homem de armadura reluzente, alto, bem-parecido…

- Receio que a minha armadura esteja um pouco enferrujada.

- Não troce de mim, por favor - suplicou Eva. - Quando o vi, ontem à noite, não consegui desviar mais os olhos de si. Não fui capaz de pregar olho.

- Não sei o que dizer-lhe. Sou casado, amo minha mulher e…

- Nem faz uma ideia de como a invejo! Talvez nem imagine a sorte que tem.

- Sem dúvida que imagina - e ele esboçou um sorriso amarelo, empenhado em mudar de assunto. - Lembro-lho a cada momento.

- Mas aprecia-o realmente? Compreende a sua sensibilidade? Preocupa-se com a sua felicidade?

- É uma mulher muito atraente, Eva, e um dia encontrará o seu cavaleiro de armadura reluzente… sem ferrugem.

- Já o encontrei e quero ir para a cama com ele.

O conde lançou um olhar apavorado em volta, para verificar se alguém das mesas próximas ouvira.

- Por favor!

- É a única coisa que lhe peço - volveu ela, baixando a voz e inclinando-se para a frente. - A recordação perdurará até ao fim da minha vida.

- É impossível - articulou ele com firmeza. - Tem-me nessa conta? Julga que ando por aí a engatar?…

- Conheci apenas um homem que me interessou. Estávamos para casar, quando morreu num acidente de alpinismo, a que assisti. Foi horrível.

- Lastimo profundamente.

- Parece-se tanto com ele! Quando o vi pela primeira vez, cheguei a pensar que Bill tinha ressuscitado. Se me conceder uma hora, não tornarei a importuná-lo. Por favor, Alfred!

O conde olhou a interlocutora demoradamente, ponderando os prós e os contras.

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No fundo, porém, era francês.

Passaram toda a tarde num pequeno hotel da Rue Sainte-Anne, e ele viu-se forçado a admitir que, em toda a sua experiência pré-matrimonial, nunca fora para a cama com uma mulher como Eva. Na verdade, era um furacão, uma ninfa, um demónio. Sabia demasiado. Ao anoitecer, sentia-se totalmente exausto.

- Quando nos voltamos a ver, querido? - perguntou ela, no momento em que se vestiam.

- Eu telefono-te.

Na realidade, não tencionava dar azo a que a situação se repetisse. Havia naquela rapariga algo de assustador, quase diabólico.

O assunto teria terminado aí, se não fossem vistos à saída do hotel por Alicia Vanderlake, que fizera parte de uma comissão de caridade com Kate, no ano anterior. Tratava-se de uma trepadora social e aquilo constituía uma escada fornecida pelo céu. Observara nos jornais fotografias do conde Maurier e esposa, assim como das gémeas Blackwell. Ignorava qual das duas acabava de ver, mas o pormenor carecia de importância. Por conseguinte, consultou a agenda e marcou o número do telefone de Kate.

- Bonjour - proferiu o mordomo, do outro lado do fio.

- Desejava falar com Mistress Blackwell.

- Da parte de quem?

- Alicia Vanderlake. É para um assunto de natureza pessoal. Momentos depois, a voz de Kate vibrava no auscultador.

- Estou…

- Penso que se recorda de mim, Mistress Blackwell. Participámos numa comissão, o ano passado, e…

- Se é para um donativo, contacte com o meu…

- Não se trata disso. Diz respeito a sua neta.

- Sim? - articulou, na expectativa.

- Considero meu dever revelar-lhe que acabo de a ver sair de um hotel com o conde Alfred Maurier. O motivo por que o visitaram, parece-me óbvio.

- Custa-me a crer - afirmou em tom glacial. - A qual das minhas netas se refere?

- Bem… não sei - Alicia Vanderlake soltou uma risada de nervosismo. - Não sou capaz de as distinguir.

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- Obrigada pela informação - e Kate cortou a ligação. Conservou-se imóvel por um momento, assimilando o que acabava de escutar. Conhecia Maurier de longa data e a acusação de Alicia Vanderlake afigurava -se-lhe em discordância absoluta com o seu carácter, impensável mesmo. Não obstante, os homens deixavam-se impressionar. Se Alexandra lhe preparara uma armadilha…

Por fim, voltou a pegar no telefone e indicou à telefonista:

- Quero falar para o Instituto Fernwood, em Lausana, Suíça.

Quando regressou a casa, naquela tarde, Eva sentia-se dominada por intensa satisfação. Não por ter experimentado prazer especial com o conde Maurier, mas em virtude da vitória sobre ele. “Se o conquistei com tanta facilidade, posso repetir a proeza com qualquer homem. Posso até dominar o mundo.” Em seguida, entrou na biblioteca, onde se lhe deparou Kate.

- Olá, avó. Tiveste um bom dia?

- Nem por isso - foi a resposta seca. - E tu?

- Fui comprar umas coisas, mas…

- Fecha a porta e senta -te.

O tom que ouviu indicou a Eva que se devia preparar para uma situação delicada.

No entanto, esforçou-se por deixar transparecer serenidade, quando indagou:

- Há alguma novidade?

- É o que espero escutar da tua boca. Pensei em convidar Alfred Maurier para assistir a esta conversa, mas decidi poupar-nos a humilhação.

O cérebro da rapariga começou a rodopiar, ao mesmo tempo que reflectia: “É impossível! Ninguém está ao corrente do meu encontro com ele.” - Não… não compreendo o que queres dizer.

- Nesse caso, permite-me que te elucide sem rodeios. Estiveste na cama com ele, esta tarde.

- Esperava que não descobrisse o que me fez, porque é teu amigo - as lágrimas assomaram com prontidão. - Foi horrível. Convidou-me para almoçar, embriagoume e…

- Cala-te! - a voz de Kate possuía a inflexão cortante de um chicote. - És desprezível.

Conhecera a hora mais pungente da sua vida ao abarcar a

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verdade acerca da neta. Ainda conservava bem nítidas no espírito as palavras da directora do colégio suíço: “Sabemos o que é a juventude, Mistress Blackwell, e se uma das raparigas tem uma ligação secreta, não me imiscuo. Mas Eva revelavase tão promíscua, que, no interesse da reputação deste estabelecimento…”

E Eva atribuíra a culpa a Alexandra.

Em seguida, Kate começou a evocar os acidentes. O roupão em chamas, que quase provocara a morte de Alexandra. A queda desta na ravina. O incidente na embarcação à vela, que estivera prestes a terminar no afogamento. Recordou a descrição dos pormenores da “violação” de Eva pelo professor de inglês: “Mr.

Parkinson disse que queria trocar impressões comigo sobre o meu ponto de inglês e sugeriu que aparecesse em sua casa, um domingo à tarde. Quando entrei, vi que estava só. Passado pouco tempo, atraiu-me ao quarto, a pretexto de me mostrar uma coisa interessante, empurrou-me para a cama e…”

Houve igualmente o caso de marijuana em Briarcrest, cuja responsabilidade Eva atribuíra à irmã, simulando defendê-la. Era essa a sua técnica: ser a vilã e apresentar-se como heroína. Inteligência não lhe faltava, sem dúvida.

Agora, Kate estudava o monstro de rosto de anjo na sua frente. “Construí todos os meus planos para o futuro à tua volta. Serias tu que um dia dirigirias a Kruger- Brent.”

Com um suspiro de pesar, anunciou pausadamente:

- Quero que saias desta casa. Espero jamais voltar a pôr-te a vista em cima - fez uma pausa, enquanto Eva adquiria uma lividez cadavérica. - És uma prostituta, mas suponho que poderia fechar os olhos a isso. Infelizmente, és também falsa, ardilosa e uma mentirosa psicopata, o que de modo algum desejo tolerar.

Os acontecimentos desenrolavam-se com demasiada rapidez, e a rapariga ainda tentou estender a mão para uma tábua de salvação:

- Se Alexandra te mentiu a meu respeito…

- Ela não sabe de nada. Limitei-me a ter uma longa conversa com Mistress Collins.

- Foi só isso? - tentou incutir um tom de alívio à voz. - Detesta-me, porque…

- Não percas tempo - murmurou Kate, que parecia

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repentinamente fatigada. - Terminou tudo. Já mandei chamar o meu advogado.

Vou deserdar-te.

- Não é possível! - Eva sentiu o seu mundo desmoronar-se. - De que viverei?

- Receberás uma pequena mesada. Doravante, viverás a tua própria vida. Podes dar-lhe o rumo que entenderes. No entanto, presta atenção ao seguinte - e Kate reassumiu a inflexão autoritária. - Se me chegar aos ouvidos ou ler uma palavra de escândalo a teu respeito ou manchares o nome dos Blackwell de algum modo, ficarás sem um cêntimo. Entendido?

A rapariga viu a expressão firme da avó e compreendeu que desta vez não havia saída possível. Acudiram-lhe aos lábios várias explicações, mas não passaram daí.

- Talvez te interesse saber - acrescentou Kate, agora em voz trémula -, mas é a decisão mais penosa que tive de tomar em toda a vida.

E afastou-se em passos firmes e cabeça bem erguida.

Kate permanecia sentada no quarto às escuras, tentando determinar o motivo por que tudo correra mal.

Se David não morresse no acidente na mina e Tony tivesse conhecido o pai…

Se Tony não quisesse ser um artista…

Se Marianne tivesse vivido…

“Se. Uma palavra de duas letras, símbolo de futilidade.”

O futuro era barro, a ser moldado dia a dia, mas o passado consistia em rocha granítica, imutável. “Todos os que amava me traíram. Tony. Marianne. Eva. Sartre tinha razão: "O inferno são os outros".” Ao mesmo tempo, perguntava-se quando se extinguiria a dor.

Se Kate era assolada pela dor, Eva não conseguia dominar a fúria. Limitara-se a estar na cama por umas horas com um homem, e a avó agira como se tivesse praticado um crime hediondo. “A cadela antiquada!” Antiquada, não. Senil. Isso mesmo. Estava senil. Havia de recorrer a um bom advogado, para que o novo testamento fosse contestado nos tribunais. O pai e a mãe não possuíam o funcionamento normal das faculdades mentais. Ninguém a deserdaria. A Kruger- Brent era a sua companhia. Aliás, a avó repetira numerosas vezes que um dia lhe pertenceria. E Alexandra! Consagrara todos aqueles anos a manobras para a caluniar e desacreditar

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definitivamente. Ambicionava a companhia para ela e, por ironia e crueldade do destino, tudo indicava que a irmã a conseguiria. O que acontecera naquela tarde era horrível, mas a ideia de a irmã dirigir um império quase incomensurável era -lhe insuportável. “Não posso consentir que isso aconteça. Descobrirei uma maneira de o impedir!” Por fim, parou de fazer a mala e foi procurá-la.

Alexandra encontrava-se no jardim, com um livro na mão, e ergueu os olhos quando ouviu Eva aproximar-se.

- Resolvi voltar para Nova Iorque, Alex.

- Já? A avó projecta um cruzeiro à costa da Dalmácia, na próxima semana.

- Quero lá saber disso! Reflecti maduramente e cheguei à conclusão de que é a altura de possuir um apartamento só meu - Eva exibiu um sorriso. - Procurarei um a meu gosto e, se te portares bem, deixo-te visitar-me, uma vez por outra.

“É este o tom exacto”, pensou. “Cordial, mas não aduladora, para que não desconfie de nada…”

Entretanto, Alexandra observava -a com apreensão crescente.

- A avó já sabe?

- Disse-lhe esta tarde. Ficou desolada, claro, mas compreende. Eu queria arranjar um emprego, mas insistiu em conceder-me uma mesada.

- Queres que vá contigo? “A descarada cadela de duas caras!” Primeiro, obrigava-a a sair de casa e agora fingia que desejava acompanhá-la. “Ninguém se livra de mim com essa facilidade.

Verão como elas mordem!” Encontraria um apartamento satisfatório (procuraria um decorador fabuloso para lho arranjar) e disporia de inteira liberdade de movimentos. Poderia convidar homens a passar a noite com ela. Seria verdadeiramente livre pela primeira vez na vida. A perspectiva era a todos os títulos inebriante.

Todavia, replicou:

- Agradeço a atenção, Alex, mas quero estar só por uma temporada.

Alexandra continuava a olhá -la com ar desolado. Seria a primeira vez que se separariam.

- Havemos de nos ver com frequência, hem?

- Sem dúvida - prometeu Eva. - Muito mais do que imaginas.

Capítulo vigésimo sexto Quando regressou a Nova Iorque, Eva alojou-se num hotel do centro da cidade, em conformidade com as instruções recebidas. Uma hora mais tarde, Brad Rogers telefonava -lhe.

- Sua avó contactou comigo de Paris. Parece que houve qualquer problema entre as duas.

- Nada de importância - e ela soltou uma gargalhada. - Uma pequena divergência familiar.

Preparava-se para apresentar uma defesa pormenorizada, mas apercebeu-se a tempo do perigo existente em algo do género. A partir de agora, necessitava de usar da maior prudência. Nunca tivera de se preocupar com o dinheiro. Achava -o sempre disponível. De futuro, precisava de o conservar bem presente no pensamento. Não fazia a mínima ideia do quantitativo da mesada e, pela primeira vez na vida, invadia-a um temor irresistível.

- Explicou-lhe que vai redigir novo testamento? - perguntou Brad.

- Sim, acho que tocou no assunto.

- Parece-me preferível trocarmos impressões pessoalmente. Segunda-feira às três da tarde, está bem?

- Sem dúvida.

- No meu gabinete.

- Não faltarei.

Eva entrou no edifício da Kruger-Brent, Ltd., às 15.55 e foi saudada com deferência pelo guarda de segurança, o porteiro e o ascensorista. “Todos me conhecem”, pensou. “Sou uma Blackwell.” O elevador conduziu-a ao piso da administração e, momentos depois, encontrava -se sentada no gabinete de Brad Rogers.

Este ficara surpreendido, qua ndo Kate lhe telefonara para comunicar que ia deserdar Eva, pois sabia que ela manifestava predilecção especial pela neta e a incluía em planos de grande envergadura. Não fazia a mínima ideia do motivo e, no fundo, admitia que não era de sua conta. Se Kate quisesse revelar-lho mais tarde, muito bem. Para já, o seu dever consistia em cumprir as ordens dela. Sentiu compaixão momentânea pela atraente jovem na sua frente. A avó não era muito

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mais velha quando ele a vira pela primeira vez. E o mesmo se passava consigo próprio. Agora, convertera-se num velho de cabelos grisalhos, ainda esperançado em que Kate reconhecesse que alguém a amava profundamente.

- Tenho aqui uns documentos para você assinar - informou. - Leia-os primeiro e…

- Não é necessário.- Tem de compreender a situação. Segundo o testamento de sua avó, é beneficiária de um fundo calculado em mais de cinco milhões de dólares, de que ela é a executora. Por sua determinação, o dinheiro pode ser-lhe entregue em qualquer altura entre os vinte e um e os trinta e cinco anos de idade - aclarou a voz. - Decidiu fazê-lo aos trinta e cinco. A partir de hoje, receberá duzentos e cinquenta dólares semanais.

Era impossível, uma autêntica bofetada sem mão! Um vestido decente custava mais do que isso. Nunca conseguiria manter-se com semelhante quantia. Aquele bastardo devia achar-se de conivência com a chanfrada da avó e desfrutava intimamente, refastelado atrás da secretária. Eva sentia o desejo quase irreprimível de pegar no pesa-papéis de bronze e utilizá-lo para lhe esmagar o crânio.

Entretanto, Brad prosseguia:

- Não disporá de qualquer espécie de crédito no comércio, nem deverá mencionar o nome Blackwell para o obter. Tudo o que adquirir será pago com dinheiro à vista.

O pesadelo tornava-se cada vez mais tenebroso.

- Se houver alguma notícia desagradável nos jornais ligada ao seu nome, a mesada será suspensa. Entendeu?

- Sim - foi a resposta, num murmúrio quase inaudível.

- Você e sua irmã Alexandra eram beneficiárias de um seguro de vida de vossa avó no valor de cinco milhões de dólares cada uma. A apólice em seu nome foi cancelada esta manhã. Decorrido um ano, se Mistress Balckwell estiver satisfeita com o seu comportamento, duplicará o quantitativo da mesada - e Brad hesitou, antes de acrescentar: - Existe uma estipulação final.

- Qual? - perguntou ela, ao mesmo tempo que pensava: “Quer mandar-me suspender pelos polegares em público.” - Sua avó não quer voltar a vê-la.

“Mas quero vê -la eu. Na agonia da morte.” - Se tiver algum problema, deve telefonar-me

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- continuou ele - Ela não deseja que torne a aparecer neste edifício ou visite qualquer das propriedades da família.

Enquanto pronunciava estas palavras, recordava que tentara dissuadir Kate de tomar uma medida tão drástica.

- É sua neta, que diabo! Corre-lhe o seu sangue nas veias, e trata -a como uma leprosa.

- Ela é uma leprosa.

E a discussão terminara.

Agora, proferiu, levemente embaraçado: .- penso que abordei todos os pormenores. Ocorre-lhe alguma pergunta?

- Não - articulou Eva, quase em estado de choque.

- Nesse caso, queira assinar os documentos.

Dez minutos mais tarde, encontrava-se de novo na rua, com um cheque de duzentos e cinquenta dólares na bolsa.

Na manhã seguinte, Eva telefonou a uma agência e principiou a procurar casa.

Nas suas fantasias, imaginara um belo apartamento sobranceiro ao Central Park, com decoração moderna e confortável, um ambiente próprio para receber convidados. A realidade, porém, produziu-lhe um abalo demolidor. Parecia não haver habitações dispo níveis naquela área para quem possuísse o rendimento semanal de duzentos e cinquenta dólares. Subsistia apenas um apartamento - estúdio de uma assoalhada, com um sofá -cama, um recanto que a boa vontade do funcionário da agência considerava “escritório”, uma reduzida kitchenette e uma minúscula casa de banho;

- É o melhor que me pode oferecer? - perguntou Eva, desolada.

- Não - replicou o homem, secamente. - Tenho uma casa de vinte divisões em Sutton Place por meio milhão de dólares.

”Bastardo”, pensou ela, com amargura.

No entanto, o desespero só a invadiu verdadeiramente na tarde seguinte, quando se mudou. O quarto de vestir na residência anterior era maior que todo o apartamento, e ela não pôde deixar de configurar Alexandra na vasta moradia da Quinta Avenida. “Porque não teria morrido queimada? Faltara tão pouco!” Se a irmã perdesse a vida e Eva fosse a

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única herdeira, tudo se desenrolaria de maneira diferente, pois a vó não a deserdaria.

No entanto, se Kate Blackwell supunha que ela tencionava renunciar à herança com tanta facilidade, não a conhecia. Não fazia a mínima tenção de viver com duzentos e cinquenta dólares por semana. Havia cinco milhões que lhe pertenciam, depositados no banco, e aquela mulher senil impedia-a de lhes pôr as mãos. “Tem de haver um meio de me apoderar desse dinheiro. Descobri-lo-ei, por muito que custe.”

A solução do problema apresentou-se-lhe no dia seguinte.

- Em que lhe posso ser útil, Miss Blackwell? - perguntou com deferência Alvin Seagram, vice-presidente do National Union Bank, disposto na verdade a fazer praticamente tudo para a comprazer. Que boa fada teria conduzido a jovem à sua presença? Se conseguisse assegurar a conta da Kruger-Brent, ou parte, nos seus cofres, veria a carreira descrever uma curva ascensional velo z.

- Há uma determinada quantia depositada em meu nome - principiou Eva. - Cinco milhões de dólares, mais concretamente. No entanto, em virtude das condições envolvidas, só o poderei utilizar quando completar trinta e cinco anos - esboçou um sorriso ingénuo. - Parece uma data tão distante!

- É natural que pareça, na sua idade - o banqueiro sorriu igualmente. - Tem dezanove anos, talvez?

- Vinte e um.

- E é bonita, se me permite que lho diga.

- Obrigada, Mister Seagram - e o sorriso dela acentuou-se. Afinal, tudo se desenrolaria muito mais facilmente do que supusera, pois o homem era um imbecil.

- De que modo lhe posso valer?

- Bem, gostava de saber se posso contrair um empréstimo sobre o fundo depositado em meu nome e, por assim dizer, congelado. É que preciso mais do dinheiro agora do que aos trinta e cinco anos. Tenciono casar em breve e o meu noivo trabalha na construção civil em Israel, só regressando dentro de três anos.

- Compreendo perfeitamente - afirmou Alvin Seagram, compadecido com a situação. Nada mais fácil do que satisfazer o pedido da bela moça. Os bancos concediam empréstimos sobre fundos congelados quase todos os dias. Ao mesmo

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tempo, comprazeria um membro da família Blackwell, o que decerto se reflectiria em operações financeiras futuras. - Não vejo problema algum - acrescentou com firmeza. - Trata-se de uma transacção muito simples. É claro que o banco não lhe pode emprestar a totalidade da quantia depositada, mas fornecer-lhe -á pelo menos um milhão. Acha satisfatório?

- Absolutamente - assentiu Eva, esforçando-se por dissimular a alegria.

- Nesse caso, queira revelar-me os pormenores desse fundo.

- Pode contactar com Brad Rogers, na Kruger-Brent, que lhe dará todos os elementos necessários.

- Muito bem. Telefonar-lhe-ei em seguida.

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