Terceira Rodada

— Sinto muito — disse Sebastian, depois de algum tempo. — Receio não ter sido muito acolhedor esta tarde. Brideshead costuma causar esse efeito em mim.

EVELYN WAUGH, Memórias de Brideshead

23

PERGUNTA: Estriado, cardíaco e liso são três tipos de que tecido?

RESPOSTA: Muscular.


Algumas resoluções de Ano-novo

1.

Passar mais tempo trabalhando na minha poesia. Se quiser levar a poesia a sério como forma literária, assim como uma maneira de ganhar um dinheiro extra, vou ter de trabalhar nisso, em especial se quiser descobrir meu estilo próprio. Lembre-se: T. S. Eliot trabalhava em um banco quando escreveu Quatro quartetos. Por isso, não ter tempo não é desculpa.

2.

Parar de futucar minha cara, especialmente quando estou falando com as pessoas. Se a ciência nos ensinou algo, é que futucar a cara só espalha a infecção e causa cicatrizes. Fique quieto, encontre outra coisa para fazer com as mãos, aprenda a fumar ou coisa assim. Lembre-se: ninguém quer beijar uma cara com o rosto sangrando.

3.

Seja distante. Banque o desinteressado com Alice. Ela vai respeitá-lo mais por isso.

4.

Ficar ligeiramente musculoso.


A lista acima foi escrita, mais ou menos, às 22h45 da véspera do Ano-novo, e, àquela altura, eu estava bem bêbado, o que significa que a caligrafia está um pouco tremida. Vinte minutos depois, eu estava dormindo, trocando o conceito e o clichê convencional que diz que somos obrigados a ter uma véspera de Ano-novo maravilhosa e divertida por uma noite de merda nada convencional.

As festividades começam às 20h35, quando encontrei uma chave de fenda na gaveta da cozinha e desparafusei as portas do armário de Josh para pegar sua televisão portátil. Depois, acomodei-me para assistir ao filme do James Bond na ITV, juntando-me às fileiras de velhinhas doentes e pacientes mentais e todo mundo que fica em casa na noite de Ano-novo. Mas, quanto mais bebia, mas eu pensava no meu pai, e em Alice, e os dois acabaram se misturando estranhamente na minha cabeça. Por isso quando o Agente 007 arruinou os planos malignos de Scaramanga para dominar o mundo, eu era um desastre físico e emocional, tornando-me a primeira pessoa na história a chorar assistindo a 007 contra homem com a pistola de ouro, com a possível exceção de Britt Ekland. Depois disso, me recompus e escrevi as resoluções.

E, agora, duas semanas depois, as resoluções continuam firmes. É verdade que ainda não mergulhei na poesia, mas vou fazer isso em breve, assim que tiver tempo. E mal toquei no meu rosto. E estou bem distante da Alice também, em boa parte porque não a vi ou ouvi falar dela e não faço ideia de onde ela esteja. Em Memórias de Brideshead, o primo de Charles o adverte que, em geral, passamos o segundo ano na universidade evitando as pessoas indesejáveis que conhecemos no primeiro. E estou começando a desconfiar de que sou uma dessas pessoas.

Mas vamos voltar às resoluções. A última precisa de alguma elucidação. Decidi que não me faria mal algum ter alguns músculos. Não, não estou

engolindo os conceitos fúteis baseados no que os meios de propaganda definem como masculino ou atraente, e também não é porque alguém começou a chutar areia na minha cara, pelo menos não literalmente. Só acho que levei o visual tísico à sua conclusão natural. E também porque, desde o colégio, trabalhava no princípio de que você pode ser inteligente ou sarado e que as duas coisas são opostas, mas, na verdade, não há motivo para não ser os dois. Patrick Watts, por exemplo, é inteligente e muito, muito sarado, apesar de seus problemas de personalidade. Talvez Dustin Hoffman em Maratona da morte seja um exemplo melhor. Ele é sarado e inteligente, e também tem integridade. O tipo de cara que corre 8 quilômetros carregando um monte de livros da biblioteca. Ou, no mundo real, Alice Harbinson. Alice Harbinson tem um rosto limpo, saudável e inteligente. Ou, pelo menos, tinha, da última vez que a vi. Duas semanas e três dias atrás. Há séculos.

Mas... sem problemas. Vou sublimar toda essa energia numa campanha para entrar em forma. Estou bastante comprometido com uma prática diária da Força Aérea Real Canadense, que envolve prender os pés embaixo do guarda-roupa, depois de garantir que ele não vá virar em cima de mim, e fazer abdominais, oito, e flexões, quatro. Isso é bom, mas na realidade, não me sinto como se tivesse passado por um treino completo de corpo inteiro, e acho que vou precisar de algo a mais. Talvez precise de pesos. Decido gastar meu dinheiro do Natal em equipamentos de ginástica com pesos.

Faço um saudável e nutritivo café da manhã comprado no mercadinho: uma barra de cereais coberta de chocolate e um litro de suco de abacaxi Just Juice, e sigo em marcha de escoteiro (correr trinta, andar trinta) até o centro da cidade, que, de repente, parece muito distante, ainda mais quando se está correndo de jeans e jaqueta. No entanto, continuo pelas alamedas residenciais com lixeiras cheias de esqueletos de árvores de Natal que os lixeiros se recusam a recolher, soltando, de vez em quando, pequenos arrotos de suco de abacaxi. Não demora muito para começar a sentir umas pontadas, o que sugere que, talvez, deva cuidar um pouco da saúde cardiovascular, mas isso pode vir depois. Minha prioridade é aumentar a massa corporal e melhorar a definição dos meus músculos. Não quero ficar musculoso como pugilistas ou levantadores de peso ou algo assim, só ter um físico de ginasta, como daqueles caras das barras paralelas. Se, de repente, eu começar a ficar muito musculoso, vai ser hora de parar.

Chego na Sport! pouco depois de a loja abrir, suando bastante. Talvez seja a segunda vez na vida que entro numa loja de artigos esportivos, pois, até ali, minha mãe comprou todos os meus kits de esporte. Estou bem nervoso, como se estivesse entrando numa loja de pornografia ou coisa do gênero. O clima é de vestiário masculino, enfatizado pelo gerente da loja, que tem, mais ou menos, a minha idade, é alto e forte, e que se aproxima de mim como se estivesse prestes a me dar uma surra de toalha molhada.

— Precisa de ajuda, amigo?

— Só olhando, obrigado! — respondo numa voz só um pouco mais grave que o normal e continuo percorrendo a loja, avaliando as raquetes de badminton com ar de especialista, antes de me dirigir, casualmente, até os halteres. Lá estão, dois deles, feitos de ferro e com pesos ajustáveis, que permitem aumentar a carga aos poucos até me transformar em um Adônis, mas nada além disso. Existe algo óbvio em relação a halteres, como o fato de serem pesados e feitos de ferro, em comparação a isopor pintado de cinza; sim, eu tenho dinheiro para comprar, custam 12,99 libras, e levo tudo até o vendedor. Só quando faço o pagamento e ele coloca tudo numa sacola plástica reforçada é que percebo que cometi um erro logístico básico: não vou conseguir levar aquilo para casa.

Pelos primeiros 25 metros, convenço-me de que é possível, se eu andar rápido, e mudar de mão quando a dor dos cortes da sacola plástica na pele chegar ao limite. Mas, na porta do Woolworths, o inevitável acontece, o fundo se desprende e os pesos caem no chão com um ruído industrial que chama a atenção de lojistas e jovens mães fazendo compras com os filhos. No que eu respondo com um olhar de quem enfiou esses halteres na minha sacola? O chão não sofreu danos, porém um dos pesos foi rolando até o Boots The Chemist como um pequeno tanque, e tenho de impedir isso com o pé, o que provoca alguns risos entre as jovens mães, que me apontam para os filhos como que dizendo olha que engraçado aquele magrela! Pego um peso em cada mão e me afasto rapidamente.

Chego até a Dorothy Perkins, 20 metros além, antes de ter que parar de novo para recuperar o fôlego. Garotas adolescentes veem os pesos e sorriem para mim, enquanto me apoio no vidro da loja. Decido que seguir em frente é o lance; o truque é continuar andando. Vai dar tudo certo se eu continuar andando. Afinal, faltam só uns dois quilômetros até a chegada.

Quando saio do centro de compras e entro nas ruas residenciais, fica um pouco mais fácil parar e descansar a intervalos regulares sem ser encarado. Espero minha respiração se normalizar, pego os pesos, braços pendurados como de um babuíno, e dou pequenas corridas com o corpo inclinado, como se estivesse na mira de uma metralhadora, pelo tempo que meu coração consegue aguentar. A sensação é a de ter acabado de ressuscitar. Estou suado e com o rosto vermelho, meus ombros parecem hematomas, retorcidos e doloridos, os braços parecem alongados como nos desenhos animados e o metal da barra dos pesos feriu as palmas das minhas mãos, fazendo-as parecer répteis em carne viva. Tenho uma aula particular essa tarde e ainda não estou nem perto de casa. Então, pego os halteres de novo, me abaixo e saio correndo.

Finalmente, chego à parte sul de Richmond Hill, que se estende na reta à minha frente, o topo das montanhas escondido pelas nuvens baixas. Consigo cambalear mais uns 25 metros antes de desabar e me apoiar em um muro. Sinto como se alguém tivesse pisoteado meus pulmões como um pacote de batatinha frita inflado. Estou tossindo descontrolado, o ar áspero arranha minha garganta, que está ressecada e me provoca um vômito seco. Experimento um gosto de bile doce na boca, após tossir um pouco de suco de abacaxi, e o suor escorre pelo meu rosto e pinga do meu nariz no chão, e, de repente, sinto a mão de alguém nas minhas costas e uma voz dizendo:

— Ei, tudo bem com você? — Abro os olhos e vejo Alice...

— Quer que eu chame uma... Brian?

— Alice! — tentando respirar, ofegante. — Oi... oi, Alice... — arfante. — Como vai? — engasgo.

— Eu estou bem. É você quem me preocupa. Pensei que era um velhinho tendo um infarto ou coisa assim...

— Não, não, sou só eu. Está tudo bem, mesmo...

Ela vê os halteres enganchados nos meus pés, para não rolarem morro abaixo e matar uma criança.

— O que é isso?

— Halteres...

— Isso eu sei, mas o que você está fazendo com isso?

— É uma longa história...

— Precisa de ajuda?

— Se você puder...

Ela pega um dos halteres como se fosse um cachorrinho e sai marchando ladeira acima.

24

PERGUNTA: O que foi identificado por Hegel como a tendência de um conceito passar à sua própria negação como resultado de um conflito entre seus aspectos contraditórios inerentes?

RESPOSTA: A dialética.


Deixo Alice no meu quarto ouvindo meu LP do Concerto Brandenburgo e dando notas de zero a dez aos livros nas minhas prateleiras e vou fazer um café. Para ser sincero, o quarto não está no estado ideal. Tentei não deixar meu caderno de poesia e minhas cuecas jogados no chão, mas, ainda assim, não gosto da ideia de ela estar lá sozinha. A chaleira demora uma eternidade para ferver, e me distraio correndo até o banheiro, molhando o rosto e escovando os dentes bem rápido para me livrar da bile. Quando volto para a cozinha, Josh apanha a água que acabei de ferver.

— Imagino que você sabe que tem uma gata solta no seu quarto...

— É a minha amiga Alice.

— Ora, oooooi, Alice! Tudo bem se eu participar?

— Na verdade, a gente está meio que falando de trabalho...

— Tudo bem, Bri, entendi o recado. Só diga pra ela vir falar comigo na saída, tá? E talvez seja melhor fazer alguma coisa em relação a isso... — e aponta para o canto da minha boca, duas pequenas manchas de pasta de dente.

— Bonne chance, mon ami... — diz ele, indo em direção à porta. — Ah, alguém ligou pra você... Spencer? Pediu pra você retornar.

Faço o café, pego as canecas, roubo dois biscoitos do Marcus e volto para o quarto.

Alice está recostada no futon, folheando meu exemplar do Manifesto Comunista. Entrego o café, retiro os copos de água sujos e velhas canecas incrustadas do lado da cama e tiro uma fotografia mental da cabeça dela reclinada no meu travesseiro.

— Brian, por que o estrado da cama está atrás do guarda-roupa?

— Pensei em tentar esse negócio de futon.

— Tudo bem... Futon... Legal... — Observa os postais e fotos afixados perto da cama. — É o seu pai?

— Uh-hum.

Retira a foto da parede e a examina.

— Ele é muito bonito.

Tiro a jaqueta e penduro na porta do guarda-roupa.

— É, ele era...

Alice inspeciona meu rosto, tentando compreender por que a beleza teve de pular uma geração e me dá um de seus sorrisos franzidos.

— Você não quer trocar de roupa?

Olho para o meu suéter e vejo uma mancha escura, oleosa e úmida embaixo do braço e também está com cheiro de cachorro molhado. Tenho um momento de hesitação, envergonhado.

— Não, estou bem.

— Pode se trocar. Prometo não me masturbar enquanto você faz isso.

Na atmosfera estimulante e carregada de erotismo criada por esse último comentário, eu me viro de costas e tiro a blusa.

— Então, pra que esses pesos, garotão?

— Bem, andei pensando em ficar um pouco mais saudável...

— Ter músculos não significa ser saudável. Meu último namorado tinha o corpo incrível, mas mal aguentava andar dois quarteirões...

— O que tinha o pênis enorme?

— Brian!!! Quem te contou isso?

— Você?

— Contei? Bem, sim... Esse mesmo. De qualquer modo, o seu corpo está ótimo.

— Você acha? — pergunto, cobrindo-me com o moletom, tal como uma noiva envergonhada.

— Meio esguio e anguloso. Parece uma pintura de Egon Schiele...

Viro-me de costas, visto um moletom limpo e decido que está na hora de mudar de assunto.

— Como foi o resto das suas férias de Natal?

— Ah, tudo bem... Ei, obrigada por ter ido.

— Obrigado por me receber. Conseguiu se livrar daquelas carnes numa boa?

— Numa ótima. Mingus e Coltrane ficaram muito agradecidos.

— E sua avó está bem?

— Como? Ah, sim. Sim, tudo bem.

Ela repõe a foto do meu pai na parede e diz, evitando olhar para mim:

— Foi um pouco... estranho, não foi?

— Eu fiquei um pouco estranho, você quer dizer. Acho que foi minha perda da virgindade em drogas.

— Mas não foi só isso, foi? Você estava... estranho. Como se precisasse provar alguma coisa.

— Desculpa. Fico um pouco nervoso. Principalmente perto de pessoas chiques...

— Ei, por favor... — interrompe ela.

— Como assim?

— Por favor, não me venha com essas merdas, Brian. Chique! Que palavra ridícula! Aliás, o que é chique? Isso é coisa da sua cabeça. Não faz sentido. Puxa, odeio essa obsessão com questões de classe, ainda mais nesse lugar! Você diz um olá pra alguém e todo mundo já vira um pobre coitado e começa a contar que o pai é um limpador de chaminés raquítico e com um olho só, que ainda usam banheiros fora de casa e nunca entraram num avião. Ou, sei lá, toda essa merda, que, na maior parte das vezes, é mentira, e fico pensando por que você está me dizendo isso. É para eu me sentir culpada? Você acha que a culpa é minha ou só está se sentindo satisfeito e se congratulando por fugir do seu papel social predeterminado? Ou seja, o que isso importa? Pessoas são pessoas, se você me perguntar, e elas se levantam e caem de acordo com seus talentos e méritos, com seu trabalho. E pôr a culpa em quem tem um divã em lugar de um sofá, ou quem toma chá, em vez de jantar, é só desculpa, reclamação e autopiedade de quem pensa pequeno...

O concerto de Bach segue num crescendo enquanto ela fala. Então, eu digo:

— E você vai estar conosco ao vivo na Conferência do Partido Conservador desse ano!

— Sem essa, Brian! Isso não é justo, não mesmo. Eu não julgo as pessoas por suas origens e espero que as pessoas me tratem com a mesma cortesia. — Senta-se no futon, furando o ar com o dedo. — Além do mais, o dinheiro nem é meu, é dos meus pais. E eles não conseguiram isso afanando donativos de outras pessoas nem gerenciando alguma empresa de trabalho escravo em Joanesburgo ou coisa assim. Eles trabalharam pra caralho para conseguir o que têm. Pra caralho...

— Mas nem tudo foi ganho com trabalho, não é?

— O que você quer dizer? — retruca Alice.

— Quero dizer que eles herdaram muito, dos pais deles...

— E...?

— Bem... É um privilégio, não é?

— Então, você acha que as pessoas devem ser enterradas com o dinheiro quando morrem, como no Egito Antigo? Porque sempre pensei que passar o dinheiro adiante, ajudar a família a ter segurança e liberdade é, mais ou menos, a única coisa que vale a pena fazer com dinheiro...

— Claro que é. Só estou dizendo que é um privilégio.

— Com certeza, é um privilégio, e eles sabem disso, pagam uma porrada de impostos e fazem o que podem pra retribuir alguma coisa. Mas, se você quer saber, o pior esnobe é o esnobe invertido. E sinto muito se isso não está de acordo com algum sistema de pensamento socialista aprovado pelos estudantes, mas é o que eu acho. Estou cansada de gente que tenta disfarçar a inveja como uma espécie de virtude! — Interrompe o discurso com um estremecer, o rosto vermelho, e pega a caneca de café. — Eu não estou falando necessariamente de você, claro.

— Claro que não — e tomo um gole de café, que tem um gosto amargo de pasta de dente, e faz-se uma pausa enquanto ouvimos o Concerto de Brandenburgo.

— Esse não é o tema da série Antiques roadshow?

— É... Mas eles não dizem na capa do LP.

Ela sorri, cai de volta no futon.

— Desculpe... Foi só um desabafo.

— Não, tudo bem. Até concordo com você. Em algumas partes. — Mas não consigo deixar de pensar em Mingus e Coltrane comendo tigelas de macarrão.

— Quer dizer, somos amigos, não somos? Brian... Olhe para mim. Somos amigos, não somos?

— Sim, é claro que somos amigos...

— Mesmo eu sendo a Rainha de Sabá e você o moleque que limpa chaminés?

— Claro!

— Então, vamos esquecer isso tudo? Esquecer e seguir em frente?

— Esquecer o quê?

— Tudo isso que a gente estava... Ah, entendi. Já está esquecido?

— Está esquecido.

— Que bom! — ela fala. — Que bom!

— Então, quer ir ao cinema hoje à tarde?

— Não posso. Tenho uma audição mais tarde...

— Entendi... Para quê?

— Hedda Gabler, de Ibsen.

— Em que papel?

— A epônima Hedda.

— Você seria uma ótima Hedda.

— Obrigada. Espero que sim. Mas duvido de que vá conseguir. O terceiro ano está com tudo arranjado. Se tiver sorte, posso ser escalada para — ela faz um sotaque cockney — Berte, a empregada...

— Mas você vai à reunião hoje à noite?

— Vai ser hoje à noite?

— A primeira do semestre!

— Ah, meu Deus! E eu preciso ir?

— Patrick está sendo bem rígido. Pediu que você fosse essa noite, ou está fora do time, foi o que ele disse. — Claro que ele não disse nada disso. Mas mesmo assim...

— OK, a gente se vê lá e depois tomamos alguma bebida. — Ela atravessa o quarto, enlaça os braços em mim, sinto o perfume no seu pescoço e ela sussurra no meu ouvido:

— Amigos de novo, certo?

— Claro. Amigos de novo.

Ainda estou pensando na conversa com Alice, quando o professor Morrison começa a falar:

— Diga-me uma coisa, Brian, por que exatamente você está aqui?

A pergunta me pega de surpresa. Afasto o olhar da janela e me viro para o professor Morrison, que está recostado na cadeira com os dedos entrelaçados em cima da barriguinha.

— Hã... uma aula particular? Às 14h?

— Não, quero dizer aqui na universidade, cursando letras? Por que você está aqui?

— Para... aprender?

— Para quê?

— Porque vale a pena?

— Financeiramente?

— Não, você sabe...

— Para se aperfeiçoar?

— Sim, suponho que sim. Para me aperfeiçoar. E eu gosto de tudo isso, de aprender, de conhecimento...

— Gosta?

— Adoro. Adoro livros.

— O conteúdo dos livros ou só ter um monte de livros?

— O conteúdo, claro...

— Então, você está levando seus estudos a sério?

— Quero crer que sim.

Ele não diz nada. Só volta a se recostar na cadeira, estica os braços para trás com os dedos entrelaçados e boceja.

— O senhor não acha que estou levando os estudos a sério?

— Não tenho certeza, Bri. Espero que sim. Mas a razão da minha pergunta foi sua última redação, Noções de ‗orgulho‘ e ‗preconceito‘ em Otelo. Brian, é simplesmente horrível. Tudo, a começar pelo título, é horrível, horrível, horrível...

— Bom, na verdade escrevi meio depressa...

— Eu sei disso. É visível. Mas é uma coisa tão horrível, insossa e fátua que me perguntei se você era mesmo o autor.

— Certo. E do que o senhor não gostou?

Ele suspira e se inclina para a frente, passando os dedos nos cabelos, como se estivesse prestes a dizer que quer o divórcio.

— Bem, para começar, você fala como se Otelo fosse um conhecido seu e com quem se preocupa.

— Mas isso é bom, não é? Tratar o personagem como um indivíduo real. Não é um testemunho da imaginação vívida de Shakespeare?

— Ou da sua falta de entendimento? Otelo é um personagem fictício, Brian, é uma construção, uma criação. É uma criação complexa e especialmente rica de uma extraordinária obra de arte, mas você só conseguiu dizer que é uma pena ele ter sofrido tanto por ser negro. Essa redação só me disse que você acha que intolerância é uma coisa ruim. Mas por que me dizer isso? Achou que eu poderia considerar a intolerância uma coisa boa? Qual será sua próxima redação, Brian? Hamlet, por que essa carinha triste?, ou talvez Por que os Montéquio e os Capuleto não fazem as pazes?

— É que o racismo é uma coisa que me desperta emoções fortes.

— Tudo bem, mas o que eu posso fazer em relação a isso? Ligar para a mãe do Iago e recomendar que ele se comporte melhor? Ironicamente, como discussão racial, o seu retrato de Otelo como o Nobre Selvagem irrepreensível e impecável pode até ser visto como racismo...

— Você acha que minha redação é racista?

— Não. Acho que é ignorante, e as duas coisas estão relacionadas.

Começo a dizer alguma coisa, porém não consigo formular. Sinto-me quente, corado e envergonhado, como se tivesse 6 anos de idade e tivesse feito xixi nas calças. Quero que isso termine o mais rápido possível. Então, levanto-me um pouco, estendo a mão para pegar a redação.

— OK. Talvez eu deva tentar outra coisa... — mas ele ainda não terminou e puxa as páginas de volta.

— Para mim, isso não é um trabalho de alguém que adora conhecimento. É trabalho de alguém que gosta muito de parecer adorar conhecimento. Não existe nada de original na abordagem ou no pensamento, nenhum esforço mental, é superficial, moralizador, mal-informado, intelectualmente imaturo, recheado de ideias preconcebidas, de besteiras e clichês. — ele afasta-se da cadeira e pega minha redação com a ponta dos dedos, como se fosse uma gaivota morta. — E, o pior de tudo, é decepcionante. Estou decepcionado que você tenha escrito isso, e ainda mais decepcionado por ter achado que isso merecia o meu tempo e energia para ler.

Faz uma pausa, no entanto não consigo pensar em nada para dizer. Então, fico olhando pela janela esperando aquilo acabar. Mas o silêncio é desconfortável, e, quando, afinal, volto à cena, ele está me dando um olhar que imagino poder ser interpretado como paterno.

— Brian, hoje de manhã, dei uma aula particular sobre W. B. Yeats para uma aluna, uma garota simpática, que deve se sair bem, que estudou numa das melhores escolas particulares para meninas, e, a certa altura, precisei ir até o carro pegar o meu Atlas para explicar onde fica a Irlanda do Norte. — Eu tento falar, mas ele levanta a mão. — Brian. Um ano atrás, quando o entrevistei neste escritório, você me pareceu um jovem entusiasmado, apaixonado. Um pouco sem foco talvez, um pouco gauche... Posso usar esse termo? É uma definição justa? Mas você estava dando o devido valor à sua educação. Muitos alunos, principalmente numa universidade como esta, tendem a ver seus estudos como uma espécie de subsídio do governo para uma festa de três anos de queijos e vinhos que termina com um apartamento, um carro e um bom emprego, mas achei que você não fosse assim...

— E não sou...

— Então, qual é o problema? Alguma coisa está distraindo você? Está se sentindo infeliz, deprimido...?

Meu Deus, eu não sei! Será? Será essa sensação? Talvez seja o caso. Talvez eu devesse falar sobre Alice. Será que estar apaixonado é desculpa para um comportamento irracional? Foi para Otelo, sem dúvida. Mas e para mim?

— Então... Você gostaria de conversar sobre alguma coisa?

Estou apaixonado por uma mulher linda. Mais apaixonado do que nunca. Tanto que sou incapaz de pensar em qualquer outra coisa, mas ela é inatingível. Na melhor das hipóteses, ela me acha divertido, e, na pior, repulsivo, e acho que talvez eu esteja ficando um pouco maluco...

— Não, acho que não.

— Bem, então eu não sei qual é o problema, pois o seu aproveitamento desse ano, 74%, 64%, 58% e esses 53%, sugere que você está ficando menos inteligente. O que, estranhamente, não é o objetivo de um curso superior...

25

PERGUNTA: Onde estão localizados as pontes, os fascículos arqueados, a área de Wernicke e a fissura de Rolando?

RESPOSTA: No cérebro.


É verdade. Estou ficando burro. Ou deveria dizer mais burro?

E não é só o fato de ter entrado por pouco no time do Desafio; são as aulas. Sento-me na carteira, todo entusiasmado e alerta, mas, mesmo quando o tema é algo que realmente me interessa, como poesia metafísica, o desenvolvimento do soneto ou a ascensão da classe média nos romances ingleses, percebo que, em dez minutos, estou tão perdido e confuso que, se estivesse ouvindo uma partida de futebol do rádio, daria na mesma. Entro na biblioteca da universidade, a qual quase geme em voz alta com o peso e o tamanho do conhecimento humano, e acontecem sempre as mesmas duas coisas: a) começo a pensar em sexo; b) tenho vontade de ir ao banheiro. Durmo no meio das aulas, deixo de ler um livro por estar sempre com sono, ou nem chego a entender o texto, ou não entendo as referências, fico olhando as garotas na sala de aula, e, mesmo quando entendo uma aula, não sei o que dizer a respeito, nem se concordo ou discordo do assunto. Estou tendo a oportunidade, à custa do Estado, de estudar trabalhos de arte belos, eternos e inspiradores, e minha resposta a tudo isso nunca chega a ser mais profunda do que um sinal de positivo ou negativo com o polegar. Enquanto isso, uma mocinha inteligente e de cabelos brilhantes na fileira da frente levanta a mão e diz algo como você não acha que, em termos formais, a linguagem de Ezra Pound é muito hermética e ensimesmada para ser lida em termos estruturais?, e, mesmo entendendo cada palavra, lida, formalmente, é e até hermética, não faço ideia do que querem dizer nessa ordem.

É o mesmo quando tento ler essas coisas. Tudo vira mingau na minha cabeça, fazendo com que um poema importante e profundo como Mont Blanc, de Shelley, fique, mais ou menos, assim: O Interminável Universo das Coisas/ Fluem pela mente e rolam a correnteza blá/ Agora, escuro... blá-di-dá, blá-blá-blá até desmoronar e se desintegrar. Claro que, se Shelley tivesse lançado Mont Blanc num single, eu seria capaz de recitar palavra por palavra e até dizer a posição entre os mais vendidos, mas, por ser literatura e exigir intelecto, não sei como proceder. O triste fato é que adoro Dickens, Donne, Keats, Eliot, Forster, Conrad, Fitzgerald, Kafka, Wilde, Orwell, Waugh, Marvell, Greene, Sterne, Shakespeare, Webster, Swift, Yeats, Joyce e Hardy. Adoro muito, muito mesmo. Só que eles não correspondem ao meu amor.

Quando isso começou? Por que nada está acontecendo como deveria? Afinal, o cérebro é um músculo, e pensei que um músculo bem exercitado entraria no ritmo, se tornaria um punho de proteína eletricamente carregado e bem-azeitado. Mas sinto a cabeça cheia de matéria quente e úmida, cinzenta, gordurosa e inútil, o tipo da coisa que você encontra embrulhada num saco plástico dentro de um frango de supermercado. Na realidade, agora que parei para pensar, nem tenho certeza de que o cérebro é um músculo. É um órgão? Um tecido? Uma glândula? O meu cérebro, sem dúvida, parece uma glândula.

E, nessa noite, essa atividade glandular está no auge, no treino para o Desafio no apartamento de Patrick. É o primeiro do ano, e, apenas a um mês da nossa primeira aparição na televisão, Patrick está particularmente nervoso e prestes a introduzir um novo e excitante elemento nos procedimentos. Ele passou as férias de Natal construindo campainhas — quatro aparelhos movidos à pilha feitos de luzes de natal e botões parafusados em quadrados de madeiras do tamanho de um LP pintados com esmalte vermelho. E está orgulhoso dessa inovação, pois eu mal tenho tempo de dizer olá e feliz Ano-novo para Lucy Chang, ou perguntar a Alice como foi a audição, e já estamos no sofá com as campainhas nos joelhos. Patrick se acomoda numa cadeira de escritório com um grande fichário 4 por 6, ajusta a postura e começa...

— Então, sua pergunta inicial valendo 10 pontos: qual primeiro-ministro britânico do século XVIII foi apelidado de o Grande Camponês?

Aperto o botão.

— Gladstone? — sugiro.

— Não — responde Patrick. — Alguém mais?

— Pitt, o Ancião? — arrisca Alice.

— Resposta certa. São cinco pontos a menos, Brian. Eu disse século XVIII, não disse?

— Sim, disse...

— E Gladstone foi no século dezeno...

— É, eu sei...

— Ok. Qual dos países a seguir não tem costa marítima? Nigéria, Mali, Chade ou Sudão?

Acho que essa eu sei... Aperto o botão e digo...

— Sudão!

— Não — replica Patrick.

Lucy Chang diz:

— Todos, menos o Sudão?

— Correto. São 10 pontos a menos, Brian. Ok, o nervo vestibular, o tensor do tímpano, a âmbula, o utrículo e o sáculo são partes de que órgão?

Não faço ideia, mas percebo que apertei o botão assim mesmo.

— Brian? — resmunga Patrick.

— Desculpa... Apertei por engano...

— Então, são 15 pontos a menos...

— Eu sei. Foi um engano... Meu dedo escorregou...

— Qual é a resposta, Lucy?

— O ouvido?

— Exatamente, o ouvido! O que você está cursando, Lucy?

— Medicina.

— E o que você está cursando, Brian?

— Literatura inglesa...

— Exatamente. Literatura inglesa. E não acha que, talvez, Lucy esteja mais qualificada para responder...?

— Sem dúvida, mas já disse que meu dedo escorregou. Esses botões são muito sensíveis ao toque...

— Então, a culpa é dos meus botões?

— Bem...

— Você não acha que os botões de verdade vão ser sensíveis ao toque também?

— Tenho certeza que sim, Patrick...

— Eu já estive diante desses botões uma vez, e posso dizer que é preciso ter muita, muita certeza da resposta antes de apertar...

— Será que a gente pode seguir adiante? — pergunta Alice, aborrecida. — Preciso estar em outro lugar às 21h30...

— Onde? — pergunto, de repente ansioso.

— Vou encontrar uma pessoa. Algum problema? — responde ela. Lucy e Patrick trocam um olhar.

— Claro que não. Só pensei que íamos bebericar alguma coisa depois...

— Hoje não vai dar. Tenho a segunda fase do teste da Hedda Gabler. — Consigo me conter um pouco, mas, sem querer, aperto o botão.

— Desculpa!

— Acho que o meu botão não está funcionando — diz Lucy Chang, e Patrick arranca o dispositivo como se fosse culpa da pobre Lucy Chang e começa a fuçar com o enorme canivete suíço do exército que leva no imenso chaveiro. Alice e eu olhamos um para o outro com certa apreensão, pois estamos longe de parecer um time vencedor.

Depois disso, não me dou ao trabalho de responder a mais nenhuma pergunta. Nem as que sei a resposta. Deixo quase todas para Lucy e uma ou outra para Alice, e, assim que Patrick faz seu aconselhamento final (não fiquem ansiosos para apertar o botão, sempre concedam a pergunta para a pessoa com mais experiência na área, ouçam bem a pergunta, sejam cautelosos nas interrupções), Alice pega o casaco e segue em direção à porta. Mas, pouco antes de sair, para apaziguar os ânimos, ela diz:

— A propósito, uns amigos meus vão dar uma festa amanhã na Dorchester Street, 12, às 20h. Estão todos convidados. — Sorri um pedido de desculpas para mim, acho, e vai embora.

Volto para casa com Lucy Chang, que mora um pouco mais acima na minha rua, e ela, na verdade, é muito legal. Eu me dou conta de que Lucy é a primeira pessoa chinesa com quem conversei fora de um restaurante, mas decido não dizer isso em voz alta. Conversamos sobre como é o estudo de medicina e ela é muito boa no assunto, mas fala muito baixinho e preciso me inclinar para ouvir o que diz, o que me faz sentir um pouco como o príncipe Philip.

— O que fez você querer estudar medicina?

— Meus pais. Eles sempre disseram que ser médico era a maior ambição que alguém poderia ter. Para fazer diferença, melhorar a qualidade da vida de alguém.

— E você está gostando?

— Demais! Estou adorando. E você com a literatura?

— Ah, eu gosto. Só não sei se estou melhorando a qualidade da vida de alguém.

— Você escreve?

— Na verdade, não. Meio que comecei a escrever um pouco de poesia. — Ainda estou treinando para dizer isso em voz alta, mas Lucy não sorri com desdém. Pelo menos, não em voz alta. — Soa um pouco pretensioso, não é?

— Oh, nem um pouco. Por quê?

— Não sei. Como dizia George Orwell, a primeira resposta do homem inglês à poesia foi um extremo constrangimento.

— Não sei por quê. Pode-se dizer que poesia é a forma mais pura da expressão humana.

— Sim, bem... Isso porque você não leu os meus poemas.

Ela ri baixinho e diz:

— Até que eu gostaria de ler. Acho que devem ser muito bons.

— Também gostaria de ser operado por você! — digo, e há uma pausa enquanto tentamos pensar por que isso soa meio pervertido.

— Hum, vamos torcer para que isso não aconteça! — Continuamos andando um pouco mais, tentando esquecer o comentário de ser operado por você, que ainda paira no ar entre nós como um peido numa galeria de arte.

— Então, dissecando alguma coisa boa no momento? — pergunto afinal.

— O sistema cardiovascular.

— Entendi... E está gostando? — indaga o príncipe Philip.

— Sim, estou.

— E é no que você gostaria de se especializar?

— Acho que em cirurgia, mas ainda não sei em qual área. Estou indecisa entre o coração e o cérebro.

— Não estamos todos? — comento, o que soa bem espirituoso para mim. Na verdade, digo isso antes mesmo de processar o significado, e a observação fica pairando no ar. Então, Lucy vem com um non sequitur total.

— Alice é muito legal, não é?

— Sim. Sim. Às vezes. — Foi um non sequitur, não foi?

E, depois de um tempo...

— E muito bonita.

— Hum...

E, depois de um tempo...

— Vocês parecem bem chegados.

— Bem, acho que somos. Às vezes. — Encorajado e surpreso pela recém-descoberta proximidade com Lucy, eu digo: — Patrick é um cara bem esquisito, não é? Acho que ele... — mas Lucy para de repente, encosta a mão no meu braço e aperta de leve...

— Brian, posso falar uma coisa? Uma coisa pessoal...

— É claro... — respondo, e logo já sei o que ela vai dizer...

— É um pouco constrangedor pra mim... — continua com uma careta.

Ela vai me convidar para sair!

— Vá em frente. Pode falar...

— Tuuuudo bem... — diz Lucy, tomando fôlego...

O que eu vou responder? Bem, não. Lógico que tenho de dizer não...

— Lá vai...

…Mas como dizer não de uma maneira delicada, sem magoá-la...?

— Bem... Você tem o hábito de enfatizar tudo demais quando fala comigo, como se eu fosse surda ou coisa assim...

— Ah! É mesmo?

— Uh-hum. Você se inclina e mexe a cabeça e usa palavras bem simples, como se o meu vocabulário fosse muito limitado. Não sei se é por eu ser de origem chinesa ou americana ou algo assim, mas eu nunca estive na China, não falo chinês, nem gosto muito de comida chinesa. Por isso, sou capaz de entender tudo se você falar o bom, velho, tradicional e coloquial inglês...

— Desculpa... Não percebi que estava fazendo isso...

— Tudo bem... Não é só você. Isso acontece muito comigo. Quer dizer, o tempo todo...

— Estou envergonhado...

— Não, tudo bem, mas parece um pouco condescendente, só isso.

— Na verdade, acho que você vai perceber que a pronúncia certa é condéscendente!

— Não tem graça, Brian.

— Não, certo, claro que não. — Chegamos à Richmond House. — Então, a gente se vê na festa amanhã?

— Talvez. Não sou muito de festa...

— Mas talvez...

— Talvez... — e ela começou a subir a ladeira.

— A propósito, posso perguntar uma coisa?

Ela faz pausa meio nervosa.

— Vá em frente.

— Em termos médicos, o cérebro é um músculo ou uma glândula?

— Bem, é uma concentração de vários tipos de tecidos nervosos. Todos com propósitos similares e interligados. Então, acho que, tecnicamente, é um órgão. Por quê?

— Só estava querendo saber. A gente se vê amanhã.

— Tchau! — e vejo seu panda desaparecer pelo alto da ladeira.

Quando me viro, pronto para subir os degraus até a porta, vejo uma figura agachada no escuro, encostada na porta, cabeça abaixada, barrando a entrada. Paro no meio da escada e olho para o sujeito, que passa as mãos pela cabeça raspada antes de olhar para mim. Já estou aceitando a ideia de ser assaltado quando a figura se põe em pé e diz:

— Então, Bri, quem é a gatinha asiática?

Ao sair da penumbra, reconheço os olhos intensos e sagazes de Spencer Lewis.

26

PERGUNTA: Frequentemente usada em esculturas e também conhecida como mármore florentino, qual é a variedade de gesso hidratado, de textura fina translúcida, formada pelo acúmulo de depósitos precipitados pela evaporação da água do mar?

RESPOSTA: Alabastro.


— Spencer? O que está fazendo aqui?

— Pensei em passar para uma visita, só isso. — Corro escada acima para lhe dar um abraço. Ele me dá um soco no ombro e fazemos aquela dança esquisita que garotos fazem quando se cumprimentam.

— E você me convidou, afinal...

— É, sei que convidei, mas... Ei, o que aconteceu com o seu cabelo...?

Ele passa a mão na cabeça, raspada bem rente ao couro cabeludo.

— É o visual prisioneiro foragido. Não gostou? — pergunta. E percebo a entonação grave e arrastada da voz, indicando que deve ter se embriagado no trem.

— Sim! Sim, é bem... ousado. Quem cortou?

— Eu mesmo.

— Por causa de uma aposta ou...?

— Vai se danar. Então, posso entrar ou não?

— Claro...

Eu destranco a porta, acendo a luz da entrada e nos esprememos pelas bicicletas no corredor. Spencer parece diferente de outras formas também, os olhos caídos e cansados, com manchas roxas embaixo, como hematomas. Apesar do frio cortante, veste apenas um casaco velho e amassado que me lembro de que ele usava na escola. Como bagagem, leva uma fina sacola plástica, a qual, até onde posso ver, só contém duas latas de cerveja.

— Liguei hoje de manhã. Falei com um garoto chique — comenta, enquanto subimos as escadas.

— É o cara que divide a casa comigo, Josh. Tem o Josh e o Marcus.

— Como eles são?

— Ah, são legais. Mas não fazem seu tipo.

— E fazem o seu?

— Acho que não fazem o tipo de ninguém, pra ser honesto. — Estamos do lado de fora do meu quarto. Abro a porta.

— Então, é aqui que tudo acontece? Legal...

Tiro o casaco e jogo de qualquer jeito em cima dos halteres, antes que Spencer os veja.

— Fique à vontade. Quer uma xícara de chá, café ou algo do tipo?

— Tem alguma birita?

— Acho que tem um pouco de cerveja caseira.

— Cerveja caseira?

— É do Marcus e do Josh, na verdade.

— Tem gosto de quê?

— Tem um pouco de gosto de mijo.

— Mas tem álcool?

— Tem.

— Então, manda!

Um pouco relutante, deixo Spencer sozinho no meu quarto e me apresso até a cozinha para pegar as bebidas. Também estou precisando de uma. A visita inesperada me deixou desconcertado, porque ele está sendo um pouco esquisito e malvado e também porque nunca imaginei que algum dia não ficaria feliz em vê-lo. Além disso, estou um pouco angustiado, pensando se deixei meu caderno de poesia aberto na mesa, numa tentativa de um novo soneto erótico em que estou trabalhando. A primeira linha contém as palavras seios de alabastro e, se Spencer ler isso, nunca mais vai me deixar em paz.

De repente, ouço a abertura do Concerto de Brandenburgo tocando superalto no meu quarto. Então, pego as canecas de cerveja e corro de volta para encontrá-lo sentado na minha mesa com um cigarro na boca, o álbum de Bach numa das mãos e o Manifesto Comunista na outra.

— O que você tem sido ultimamente: comunista ou socialista?

— Socialista, acho — respondo, diminuindo o volume.

— Certo... Qual é a diferença?

Eu sei que ele sabe a diferença, que estou sendo provocado, mas respondo mesmo assim.

— Um comunista se opõe à noção de propriedade privada e posse dos meios de produção, ao passo que socialismo consiste em trabalhar em prol...

— Por que seu colchão está no chão?

— É um futon.

— Certo. Um futon. Foi a gatinha asiática que te ensinou isso, é?

— Gatinha asiática, racismo e sexismo na mesma frase! — comento, deslizando o poema dos seios de alabastro para dentro da gaveta. — Na verdade, Lucy nasceu em Minneapolis. Só porque ela é de origem chinesa, não quer dizer que seja chinesa.

— Cara, você tem razão! Essa cerveja é mijo puro! Não dá pra irmos até o pub ou coisa assim?

— Não está meio tarde?

— Ainda temos meia hora.

— Tenho coisas para ler até amanhã de manhã.

— O que você tem de ler?

— O rapto da Madeixa, de Pope.

— Parece picante... Mas deixa pra amanhã de manhã, ok?

— Bem...

— Vamos lá... Só uma cervejinha...

Sei que não deveria ir, claro. Mas, de repente, o quarto parece muito pequeno e claro, e ficar bêbado começou a se tornar uma necessidade. Por isso, acabo concordando e vamos ao pub.

O Flying Dutchman ainda está cheio quando chegamos. Enquanto espero no balcão, fico observando Spencer, virando a cabeça para os lados com os olhos vermelhos e apertados, tragando o cigarro com amargura. Pego duas canecas de cerveja e uma vodca para ele.

— Então, esse é um pub de estudantes? — pergunta.

— Não sei. Suponho que seja. Vamos ver se conseguimos achar um lugar?

Andamos espremidos pelas mesas até o fundo, segurando as canecas acima da cabeça, até acharmos uma mesa vazia e nos acomodarmos. Há um momento de silêncio e, então, pergunto:

— E aí, como vão as coisas em casa?

— Ah, maravilhosas... Realmente fantásticas...

— E o que fez você vir até aqui?

— Você me convidou. Venha me visitar... Lembra?

— É claro...

Spencer fica em silêncio por um momento, parece tomar uma decisão e diz, um tanto casual demais:

— E, como disse, sou um prisioneiro foragido.

— Como assim?

— Bem, basta dizer que estou numa situação ruim. Com o sistema legal, quero dizer.

Começo a rir, mas logo paro.

— Por quê? Não é outra briga...

— Não. Me pegaram burlando o seguro-desemprego.

— Tá brincando...

— Não, Bri, não estou — diz, cansado.

— Como?

— Não sei... Alguém deve ter me delatado. Ei, não foi você, foi?

— Claro, Spencer, fui eu... Então, o que vai acontecer?

— Não dá para saber, né? Imagino que vai depender do juiz.

— Você vai ter de ir ao tribunal?

— Ah, sim. Eles andam tomando medidas enérgicas, pelo visto. Por isso, vou ter que ir ao tribunal no mês que vem. Boas notícias, não?

— O que você vai dizer?

— No tribunal? Ainda não sei. Pensei em dizer que Deus me mandou fazer isso.

— E você continua trabalhando no posto de gasolina?

— Bem... Não exatamente.

— Por que não?

— Porque me pegaram?

— Pegaram você?

Toma um generoso gole da vodca.

— Com a mão no caixa.

— Tá brincando!

— Brian, por que você fica perguntando se eu tô brincando? Acha que eu faria piada com esse tipo de coisa?

— Não... Só quis dizer...

— Tinha uma câmera escondida em cima do caixa, e eu fui pego tirando dinheiro no fim da noite.

— Quanto?

— Não sei... Uma nota de 5 libras, algumas de 10, um pouquinho aqui e ali por não registrar a venda de doces e batatinhas e coisas do tipo.

— E vão processar você?

— Não, não podem, porque não fui registrado. Mas dá pra dizer que o gerente não ficou muito feliz. Tomou um bocado do meu salário e disse que, se me visse de novo, quebraria as minhas pernas...

— Quanto ele acha que você pegou?

— Umas 200 libras?

— E quanto você pegou?

Spencer solta a fumaça.

— Duzentas libras, mais ou menos.

— Puta merda, Spencer...

— Estavam me pagando 1,80 libras a hora, Brian. Que merda eles podiam esperar?

— Eu sei, eu sei!

— De qualquer modo, você é um comunista. Pensei que não concordasse com a propriedade privada.

— Não concordo, mas Marx está falando dos meios de produção, não do conteúdo do caixa do posto de gasolina. E, além do mais, não é que eu desaprove, e, aliás, eu sou socialista. Só acho que, bem, é uma pena, só isso. O que seu pai e sua mãe disseram?

— Ah, eles estão muito orgulhosos de mim! — ele bebe, mais ou menos, meia caneca num gole só. — Mas a questão é que eu estou completamente fodido.

— Mas você arranja outro emprego, não é?

— Ah, com certeza! Um ladrãozinho desqualificado, desempregado e com ficha na polícia. Devo ser uma puta joia rara no mercado de trabalho atual. Quer outra caneca?

— Talvez meia...

— Bem, você vai ter que pagar, pois eu estou meio duro, financeiramente falando.

— Então, eu volto ao balcão, pego as cervejas e acabo me conformando em não conseguir ler O rapto da Madeixa essa noite.

Desnecessário dizer que fomos os últimos a sair do pub. Depois de anunciarem os últimos pedidos, Spencer se encarrega de despejar as bebidas deixadas pelos outros nos nossos copos, coisa que não faço desde os 16 anos, e, quando chegamos a Richmond House, estamos bem bêbados. Bebemos o resto da cerveja caseira leitosa e abrimos as duas latas da Special Brew que estão na bagagem de Spencer, além do Daily Mirror e uma tortinha de carne pela metade. Falo sobre o Ano-novo e Alice, da minha versão do encontro com a mãe nua na cozinha, e Spencer relaxa um pouco e ri pela primeira vez. É uma risada genuína, generosa, não um riso desdenhoso ou dissimulado.

Levanto, mudo o disco e coloco The Kick Inside, o notável e provocante álbum de estreia de Kate Bush. Spencer retoma o comportamento anterior, rindo durante toda a execução de The Man With The Child In His Eyes e tirando sarro da minha coleção de discos e cartões-postais na parede. Para mudar de assunto, ponho a fita cassete que ele fez para mim, Compilação para a faculdade do Bri, e nos jogamos bêbados no futon e ficamos vendo o teto se enroscar, se deformar e rodar por cima de nossas cabeças e ouvindo Gil Scott-Heron cantando The Bottle.

— Você sabe que está nessa, não sabe?

— No quê?

— Nessa música, escute... — e sai engatinhando até o sistema de som, aperta stop e rebobina. — Escuta com atenção... — e a música começa, uma

gravação ao vivo, a primeira parte apenas com órgão elétrico e percussão, até que começa um solo de flauta de jazz, e Gil Scott-Heron diz algo que não consigo ouvir direito...

— Entendeu? — pergunta Spencer, animado.

— Não...?

— Escuta de novo, surdo, preste atenção — e aperta para rebobinar, stop, play, aumenta o volume ao máximo e, dessa vez, ouço Gil Scott-Heron dizer, com toda a clareza: Brian Jackson na flauta para vocês!, e a plateia aplaudindo.

— Ouviu?

— Ouvi!

— É você!

— Brian Jackson na flauta!

— De novo...

E lá está de novo… Brian Jackson na flauta para vocês!

— Isso é incrível! Nunca tinha ouvido...

— É porque você nunca escuta as compilações que eu faço para você, seu bastardo filisteu — e engatinha de volta para o futon, deita de costas e ficamos ouvindo o jazz, ou soul, ou funk, ou seja lá o que isso for, e decido explorar o mundo da black music com mais atenção no futuro.

— Então, Alice é a garota de que você gosta? — pergunta ele.

— Eu não gosto dela, Spencer. Eu a amo...

— Você a ama...

— Aaaaaaaaamo...

— Você aaaaaaama...

— Amo de maneira absoluta, completa, total e com todo o meu coração...

— Achei que você amasse Janet Parks, a vadia volúvel...

— Janet Parks é uma vaca, se comparada a Alice Harbinson. Não é Janet Parks, mas Alice quem amo / Quem compararia um corvo a uma pomba?

— Como é que é?

— Sonho de uma noite de verão, segundo ato, cena três.

— Jackson, seu retardado... E aí? Eu vou conhecer essa Alice?

— Talvez... Tem uma festa amanhã à noite, se você ainda estiver aqui.

— Quer que eu fale bem de você?

— Não adianta, cara. Como eu disse, ela é uma deusa. E quanto a você?

— Nada, cara. Você me conhece... Eu sou um robô.

— Deve ter alguém que você ame...

— Só você, cara. Só você...

— Tudo bem, eu também te amo cara, mas não é bem um amor sexual e romântico, né?

— Ah, mas claro que é sexual. Por que você acha que eu vim de tão longe? É porque eu quero você. Me dá um beijo, garotão! — Spencer pula em cima de mim e senta-se no meu peito, fazendo barulhos estalados e molhados com a boca. Quando tento resistir, acaba virando uma luta...

— Vamos lá, Bri, desista... Você sabe que também quer...

— Sai de mim!

— Um beijo, meu amor!

— Spencer! Isso dói!

— Não lute contra isso, querido...

— Sai de cima de mim! Você sentou nas minhas chaves!

Alguém bate na porta e vemos Marcus, piscando, os olhos pequenos atrás dos óculos Ray-Ban tortos, usando seu roupão vermelho-rubi.

— Brian, são 2h15, há alguma possibilidade de você desligar o som?

— Desculpe, Marcus! — concordo, engatinhando até o som.

— Olááááá, Marcus — diz Spencer.

— Olá... — resmunga Marcus, empurrando os óculos para cima do nariz.

— Marcus é um nome adorável... Marcus...

— Marcus, esse é o Spencer, meu melhor amigo! — explico, carregando o S.

— Só não faz muito barulho, tá?

— OK, Marcus. Foi um prazer, Marcus... — E assim que ele fecha porta: — Tchau, Marcus, seu punheteeeeiro...

— Shhhhh! Spencer!

Mas, sem música, não parece mais tão divertido. Então, com alguma dificuldade e bastante barulho, tiramos o pesado estrado de ferro de trás do armário e colocamos ao lado do colchão. Há um breve debate sobre quem deve dormir onde, mas Spencer fica com o futon, afinal, ele é visita, e me deito no estrado vazio, todo vestido, debaixo de uma pilha de casacos e toalhas, com a cabeça num travesseiro de poliéster de 2cm de espessura e o chão rodando embaixo de mim, doido para voltar a ficar sóbrio.

— Então, quanto tempo você vai ficar, Spency?

— Não sei. Uns dois dias, talvez... Só até resolver as coisas na minha cabeça... Tudo bem pra você, cara?

— Claro que tudo bem. Fique quanto quiser. É pra isso que servem os amigos, não é?

— Valeu, cara!

— Valeu...

Depois de um tempo, pergunto:

— Mas você tá legal, né, cara?

— Não sei, cara. Não sei. Não tenho certeza. E você?

— Eu tô legal.

Depois de um tempo, ele diz:

— Brian Jackson na flauta!

E eu:

— Brian Jackson na flauta...

Ele:

— E a multidão vai à loucura...

E nós dois caímos no sono.

27

PERGUNTA: Como o calumet, um objeto cerimonial central na cultura dos ameríndios, costuma ser conhecido?

RESPOSTA: Cachimbo da paz.


Mais ou menos às 4h30 da manhã eu vomito.

Felizmente, consigo cambalear pelo corredor e chegar ao banheiro bem a tempo, mas, quando levanto a cabeça da pia, os lábios molhados, pálido e trêmulo e vejo meu reflexo no espelho, quase vomito de novo, pois fica claro que, durante a noite, me transformei numa espécie de homem-lagarto terrível, com escamas no formato de diamantes num só lado do rosto. Cubro a boca para conter o grito, mas logo percebo que são só as marcas do estrado de arame na minha cara e volto para a cama.

O toque do despertador, às 8h15, é como um palito de gelo no meu ouvido, e fico deitado ouvindo a chuva bater na janela. Deus sabe que já tive outras ressacas, mas essa é de um novo tipo, estranho, quase alucinógeno. É como se todo meu sistema nervoso tivesse sido reajustado, e a menor sensação, a chuva lá fora, a luz da luminária, o cheiro da lata vazia de Special Brew que rolou para baixo da cama, tudo tem um efeito pior. Cada uma das minhas terminações nervosas parece viva, desconfortável e com espasmos, até as mais internas do meu corpo. Se eu me deitar quieto e me concentrar, chego a sentir a forma e a localização dos meus órgãos: os pulmões rugindo, úmidos, a transpiração exausta da massa amarelo-cinzenta do fígado jogado contra a coluna, os rins inchados e doloridos com hematomas, o intestino grosso ardendo, agitado. Tento me mexer para tirar esta última imagem da cabeça, mas o barulho do meu cabelo farfalhando contra o travesseiro se amplifica tremendamente. Por isso, continuo deitado bem quieto de lado e olho para Spencer, a poucos metros, a boca um pouco aberta, a baba encharcando meu travesseiro. Estou perto o suficiente para sentir o cheiro do seu hálito, que é rançoso, úmido e quente. Cara! Eu tinha me esquecido do corte de cabelo skinhead. Ele parece um fascista, um fascista bonito e carismático, mas esse é o pior tipo, conforme vemos na história. E se as pessoas me virem com ele na festa hoje à noite e acharem que sou amigo de um fascista? Talvez ele não fique até a noite. Talvez volte para casa. Talvez fosse melhor.

Levantar e me sentar na beira do estrado é uma tarefa hercúlea, e consigo ouvir o conteúdo do meu estômago revirando e se acomodando, como um saco de lixo cheio de creme de ovos. A ideia de tirar as roupas de ontem parece simplesmente impossível. Então, não tiro. Não sei nem se consigo amarrar os cadarços sem vomitar neles, mas dou um jeito, e, depois, visto meu casaco/cobertor e saio de casa com Spencer ainda dormindo e ando ladeira acima, em direção ao departamento de literatura. Cai uma chuva fininha, constante, e o vento é ameaçador. Pensei que seria capaz de ler O rapto da Madeixa enquanto caminhava, mas as páginas estavam ficando ensopadas, e não dá para pedir mais do meu sistema nervoso além de andar sem cair.

Na porta do prédio, escoro-me contra a parede e esfrego as mãos no rosto para tentar alguma cor que não seja cinza. Nesse momento, vejo Rebecca Epstein saindo pelo portão. Por um segundo, imagino que havia me visto e resolvido ir embora, mas não pode ser, pois senão ela estaria me ignorando.

— Rebecca! — grito, mas ela continua descendo a rua marchando, a gola do casaco de vinil levantada, cabeça baixa contra a chuva. — Rebecca...? — seguro o saco de creme de ovos e tento correr sem mover a cabeça.

— Rebecca, é o Brian!

— É mesmo... Oi, Jackson — responde, sem entusiasmo.

— Como você está?

— Bem.

Andamos um pouco mais.

— Foi boa a aula? — pergunto.

— Uh-hum.

— Sobre o quê?

— Você quer mesmo saber ou só está puxando conversa?

— Só estou puxando conversa.

Acredito ter visto um breve sorriso, mas talvez fosse apenas imaginação, pois ela diz:

— Você não devia estar indo para a aula também?

— Bem, devia, mas não sei se estou à altura...

— É sobre o quê?

— Você quer mesmo saber, ou só está puxando...?

— Você está um lixo, a propósito.

— Estou me sentindo um lixo.

— Ótimo! Fico feliz...

Ela parece hostil. Rebecca sempre é hostil, mas, naquele momento, está mais ainda. Continuo andando um pouco atrás dela e fico me perguntando como alguém com pernas tão curtas consegue andar tão mais rápido que eu.

— Bec, você está brava comigo ou coisa assim?

— Bec? Quem é Bec?

— Tudo bem, Rebecca. Mas você está brava?

— Não brava. Só... desapontada...

— Meu Deus, você também! — Ela olha nos meus olhos pela primeira vez. — É que parece que ando desapontando todo mundo. Não sei por quê. Estou tentando não fazer isso. Sério... — Ela para ao ouvir isso, e ficamos os dois embaixo da chuva por um tempo, enquanto ela me examina de cima a baixo.

— Você sabe que está completamente cinza, não sabe?

— Sei.

— E que está com uma coisa branca no canto da boca...

Limpo com a manga do casaco e digo:

— Pasta de dente — embora não tenha certeza se é isso mesmo. — Ei, você já tomou café da manhã?

— E a sua aula?

Lembro-me da minha resolução de comparecer a todas as aulas, sempre que possível, mas Rebecca parece mais importante que as resoluções. Por isso, falo:

— Acho que vou matar essa aula.

Ela pensa um momento antes de responder:

— Então, vamos — E andamos de volta morro abaixo.

O vapor e a gordura dos pratos especiais embaçam a janela do café, condensando no vidro frio e pingando numa poça na nossa mesa de fórmica vermelha. Rebecca e eu estamos num reservado, com uma xícara de chá para ela e um café com leite, uma lata de Coca, um pãozinho de bacon crocante com salsicha e uma barra Mars para mim. Rebecca está rabiscando com o dedo no vapor da janela, enquanto estou dizendo:

— …e ele está sendo acusado de burlar o seguro-desemprego, o que acho um absurdo. Quer dizer... Se você pensar no que os barões do comércio sonegam de impostos e ninguém dá a mínima...

— ...Hum...

— Quer dizer... O que são uns míseros 23 paus por semana ou coisa assim? Ninguém consegue viver com isso. E o que eles esperam que as pessoas façam se não conseguem encontrar emprego...?

— Uh-hum...

— Queria só ver um desses conservadores canalhas sobrevivendo com esse dinheiro. Estou preocupado também que ele esteja pensando em pedir algum dinheiro emprestado, porque não posso me dar ao luxo de emprestar dinheiro a ele. Não com o que eu recebo...

E, aqui, paro de falar, quando percebo que Rebecca escreveu a palavra Socoooorro! ao contrário, na janela embaçada.

— Desculpe... Estou sendo um pouco chato, né?

— Bem, Jackson, você me conhece. Normalmente, adoraria discutir as políticas sociais do Partido Conservador pela manhã. Só que esse não é realmente o problema, é?

— Não, acho que não. — Respiro fundo. — Desculpe por aquela noite.

— E você sabe exatamente pelo que está se desculpando?

Sei?

— Não exatamente. Não.

— Então, não é um pedido de desculpas de verdade, é?

— Não... Acho que não. — Lembrando-me daquela noite, penso que foi um pouco como se envolver numa briga de bêbados na porta de um pub numa sexta à noite, algo excitante, vívido e assustador ao mesmo tempo, mas depois você não tem certeza do que fez, com quem, e nem mesmo quem começou. Penso em contar essa analogia a Rebecca, mas ninguém gosta de ouvir que um beijo pode ser igual a ser espancado na porta de um pub. Então, prefiro dizer: — Acho que foi só, sabe, o de sempre.

— O que é o de sempre?

— Você sabe... Só eu sendo um inútil.

— Ah, bom, você não é pior do que eu...

— Sou muito pior que você.

— Não é...

— Sou sim...

— Não, não é...

— Eu sou. Sou pavoroso...

— Tudo bem, Jackson, não vamos entrar numa questão dialética por causa disso, ok? — e ela beberica o chá como se estivesse mastigando. Depois disso, fala: — Olha, eu fiquei um pouco bêbada e cometi um erro, interpretei mal os sinais ou seja lá o que dizem, e não estou particularmente brava com você. Só envergonhada, na verdade. Não é sempre que me permito ficar... — dá uma risadinha amargurada — …vulnerável. É essa a palavra? — Rebecca lambe a ponta do dedo para apanhar as migalhas do pãozinho de bacon do meu prato. — Ainda assim, acho que vou conseguir amar de novo...

A conversa está claramente tomando uma intrigante dimensão pessoal. Então, inclino-me na mesa e apoio a cabeça no vidro molhado, num estilo que acredito denotar um tipo de sensibilidade melancólica, e falo em voz baixa:

— Então, você já teve, hã... experiências ruins, emocionalmente falando?

Rebecca fica estática, a caneca na metade do caminho para a boca, e olha por cima dos ombros.

— Desculpe... Você está falando comigo?

— É uma pergunta justa, não é?

— Não é da sua conta! O que você quer que eu diga? Que papai nunca me deixou ter um pônei? Fiquei bêbada e queria um pouco de contato humano, sei lá, e avancei e fui rejeitada. Não é nada demais. Não é só porque as pessoas nessa porra de lugar sofrem de uma puta incontinência emocional que eu tenha de ser assim...

— Acho que você não devia praguejar tanto.

— Praguejar? Uau...!

— Acho que praguejar o tempo todo tira a eficiência dos palavrões.

— E quem é você, a Mary Poppins? Que merda! — diz ela, sorrindo um pouquinho, que é o máximo que posso esperar, acho. Beberica o chá, olha pela janela e fala, casualmente: — Mas, se você quer saber, meu último relacionamento terminou numa clínica de aborto. Então... Bem... Não sou tão liberal e tranquila em relação a essas coisas com algumas pessoas. É só isso.

Não sei como reagir. Ou melhor, sei como reagir a partir de um ponto de vista político, mas não sei bem como reagir do ponto de vista humano. Não sei o que fazer com a minha cara. Talvez a coisa certa fosse não ficar muito sério, não fazer estardalhaço.

— Quem era ele?

— Só um cara da minha cidade, um cara com quem cometi o erro de transar. Ninguém que você conheça — afirma, fazendo furos no meu guardanapo amassado.

— E ele deixou você por causa do...?

— Não, claro que não. Bem, não exatamente. De maneira alguma. Era complicado... — ela suspira e olha de relance para mim e, depois, volta ao guardanapo. — Foi um cara chamado Gordon. Fiquei com ele no último ano do colégio. O primeiro amor... Essa bobagem... Estávamos juntos há mais ou menos seis meses e íamos viajar de trem pela Europa naquele verão, depois dos exames finais. Daí, iríamos morar um ano em algum lugar no exterior, ver como as coisas iam funcionar, se a gente queria... Sei lá... Então, percorremos a Europa, vimos as paisagens, dormimos em praias, tudo muito sonho de amor juvenil, e acabei ficando grávida a caminho da Espanha. Conversamos e decidimos o que fazer. Voltamos e tomamos as providências. Ele disse que iríamos passar por aquilo juntos, que ele ficaria ao meu lado, e ficou. Mas só por uma semana e meia. Pronto. Foi isso.

— E você... hã... o amava?

Ela faz uma careta, contorce os lábios e não responde. Só olha pela janela e volta ao guardanapo amassado. Não sei o que dizer, mas sinto que devo dizer alguma coisa.

— Bem... Acho que você fez a coisa certa na época.

Os olhos de Rebecca lampejam nos meus.

— Brian, eu sei que fiz a coisa certa. Não estava pedindo a sua aprovação...

— Não, eu sei...

— …e também não precisa ficar falando nessa voz apalermada...

— Que voz?

— Você sabe que voz. Abortos acontecem, sabe. Muito mais do que você imagina...

— Eu sei...

— …e também não é preciso se enrolar em posição fetal por causa disso, nem rastejar para um canto e ficar lendo A redoma de vidro, sabe. A maioria das mulheres segue em frente...

— Sim...

— …Então, vamos mudar de assunto, tá?

— Ok...

— Essa barra de Mars é sua? — pergunta Rebecca, e tenho um pequeno sobressalto, pois não lembro se deveríamos ou não estar boicotando o chocolate Mars.

— Uh-hum.

— Então, dê isso aqui. — Obediente, entrego o chocolate. Ela dá uma mordida e mastiga por um tempo. — Por que tudo o que a gente come e bebe é marrom? Nunca vi tanta comida marrom. Não faria mal comer umas frutas ou vegetais de vez em quando, sabe...

— Você parece minha mãe.

— Bem, ela é uma mulher sábia. Você devia escutar o que ela diz. E o que eu digo também. — Dá outra mordida. — Então, você encontrou com ela? — pergunta, com a boca cheia.

— Com quem? Com a minha mãe?

— Não. Não com a sua mãe...

— Com quem, então?

— Você sabe quem... A pantera, a Farrah Fawcett...

— Ah, só umas duas vezes...

Ela dá outra mordida e joga a barra Mars por cima da mesa, que cai com a parte aberta para baixo.

— E você ainda... gosta dela?

Reconheço um perigo bem real de eu acabar com uma colher de chá espetada no olho. Por isso, escolho as palavras com cuidado antes de responder:

— Acho que sim.

— E o que acha que ela pensa de você?

— Acho que ela me considera... interessante.

Rebecca olha para mim, ensaia dizer alguma coisa, mas olha pela janela e começa a desenhar na condensação do vidro de novo, sorrindo.

— Interessante, é? Bem, é comovente ainda ter esperança, acho. Persistência diante da indiferença. Muito... corajoso — comenta, com um sorriso nos lábios.

— É, bem... Para ser sincero, acredito que não tenho muita escolha no assunto.

— Ah, não! Sempre há uma escolha, Brian. Você sempre pode escolher entre ser ou não um total e completo imbecil.

Quando volto para casa no meio do dia, vejo Marcus saindo e trancando a porta da frente. Fico abaixado atrás de um muro, chego a cogitar sair correndo, mas ainda não tenho o controle completo das pernas, e, além do mais, ele me viu e está esperando no alto da escada, batendo na palma da mão com um rolo de macarrão invisível.

— E aí, Marcus!

— Olá, Brian.

Tento passar por ele para sair da garoa, mas ele não se mexe.

— Desculpe por ontem à noite, Marcus — digo, seu mesquinho ridículo...

— Você sabe que os convidados não podem dormir nas dependências da universidade, certo?

— Sim, eu sei... — respondo, arrancando o Ray-Ban da cara dele...

— Quer dizer... Josh e eu também poderíamos convidar pessoas para dormir, mas não fazemos isso porque respeitamos as regras da universidade...

— Eu sei, Marcus... — concordo, partindo os óculos em duas metades...

— Por quanto tempo ele vai ficar?

— Não sei. Pelos próximos dois dias? Só até ele se organizar um pouco... — e jogo os óculos quebrados no chão e esmago as lentes com o pé...

— Parece que isso pode levar mais de dois dias...

Olho para a janela do meu quarto, preocupado que Spencer ainda possa estar na cama, escutando. Então, proponho em voz baixa:

— Amanhã? Amanhã, ele já vai ter ido embora.

Marcus pesa a situação e acaba achando aceitável.

— Ok, amanhã. Mas só até amanhã — afirma, passando por mim, e eu planto o pé na bunda dele e o empurro escada abaixo para morrer.

— Tenha um bom dia, sim? — recomendo.

Na luz cinzenta do meio-dia, meu quarto está uma bagunça de estrados, capas de discos, casacos, colchões, edredons e toalhas molhadas. Paira no ar um cheiro picante e efervescente de amônia e álcool. Acho que, se eu tivesse entrado fumando, o quarto teria explodido na minha cara. Por isso, abro bem a janela, apesar da chuva, e acendo a luz para ver se Spencer ainda está morgando debaixo do edredom. Não está. Mas há um bilhete na mesa rabiscado num papel A4 pautado:

Estou no pub. Vejo você mais tarde.

O relógio em cima da lareira marca 11h55. Ao lado do relógio, há uma pilha de trocados que tirei do bolso na noite anterior. Deve somar umas 4,55 libras, mas eu conto assim mesmo, só para ter certeza.

Quatro libras e cinquenta.

E não sei o que me deixa mais triste: Spencer estar num pub tão cedo ou ter conferido para ver se ele não tinha roubado meu dinheiro.

28

PERGUNTA: Que festivais greco-romanos secretos começaram como eventos exclusivos para mulheres, passando depois a admitir homens, antes de serem banidos pelo Senado Romano em 186 a.C. sob a alegação de supostas naturezas orgíacas?

RESPOSTA: Bacanais.


Como regra geral, dá para saber que uma festa está com problemas quando começam a tocar trilhas sonoras. Quando Spencer e eu chegamos na porta da Dorchester Street, 12, escutamos Gee, Officer Krupke, do Amor, sublime amor, tocando alto no som da sala de estar, com várias vozes masculinas acompanhando a letra de cor. Adoro musicais da Broadway, como todo mundo, mas há uma hora e um lugar para esse tipo de coisa. Além do mais, nesse caso, Spencer não é como todo mundo, pois não é lá muito fã de musicais e olha para mim preocupado.

— Você tem certeza?

— Se eles puserem a trilha de Starlight Express, a gente vai embora. Tudo bem? — e Erin, a Gata, atende à porta.

— E aí, Erin! — cumprimento todo alegre.

— Olá, Brian. — Ela suspira.

Ninguém se mexe. Os olhos dela dardejam a cabeça raspada de Spencer.

— Esse é o meu amigo Spencer!

— Tudo bem? — diz ele.

— Hum... — replica Erin, claramente sem saber ao certo se está tudo bem. Aí, ergo a garrafa de vinho e as quatro latas de cerveja como um incentivo, e ela, afinal, abre a porta.

— A cozinha é por ali — orienta, antes de retornar ao West Side de Nova York, com os Jets, os machões donos do pedaço, que são interpretados por três garotos magrelas, travessos e muito animados do Departamento de Teatro. Para crédito de Erin, ela tira Amor, sublime amor da vitrola e substitui por Sly and the Family Stone. — Ah, não! A próxima música era I Feel Pretty! — reclama um dos Jets petulantes, e vejo Spencer, o Tubarão, balançar a cabeça e passar a mão onde costumava ficar seu cabelo, e tenho a nítida sensação de que cheguei a uma festa com uma espingarda engatilhada.

Quando volto do café da manhã com Rebecca, verifico se Spencer roubou algum dinheiro, e resolvo fazer algumas anotações no meu caderno de poesia. Em uma página nova, oposta ao meu poema dos seios de alabastro, escrevo:

vapor e gordura se condensam

na janela da cafeteria

janela de vidro. especialidades da casa

Logo, fico cansado e decido que deve bastar por hoje. Não estou com energia. Então, deito no futon e começo a ler A balada do velho marinheiro, chegando até Era uma antiga... antes que o calor e as emanações do aquecedor a gás me façam cair num sono devidamente narcótico.

Acordo no fim da tarde, todo vestido, suado e com a boca seca, e vejo Spencer sentado com os pés na minha mesa, lendo Coleridge.

— Tudo bem, Bela Adormecida?

— Que horas são?

— Umas 16h?

Sinto de novo aquela recorrente pontada de arrependimento por ter perdido mais um grande dia. Grandes pedaços da minha vida esvaíram-se dessa maneira, como as longas férias escolares, os supostos verões longos, quentes e idílicos. Todos evaporaram-se num torpor nebuloso de ressacas e inúteis passeios pelo Woolworths, com cochilos à tarde movidos a dor de cabeça, vídeos de sacanagem assistidos pela 50ª vez com as cortinas fechadas, bebedeiras com discussões e insultos, quentinhas e noites de sono esporádicas e ressaca de novo e, mais uma vez, de volta ao Woolworths. Eu já não tinha tomado uma resolução a respeito de tudo isso? Não era para isso já não estar mais acontecendo a essa altura? Já estou com 19 anos. Não posso me dar ao luxo de deixar a vida passar pela minha frente desse jeito. Mas por que fiz de novo? Decido botar a culpa em Spencer e me sento, de mau humor.

— Quem deixou você entrar?

— Um babaca de cabelo comprido usando um colete de veludo.

— Josh?

— Josh. Não foi muito simpático...

— Você foi simpático?

— Certamente, não. Por que eu deveria?

— Bem, eu tenho que morar com ele, então... — Spencer não diz nada. Só joga o Coleridge de volta na mesa. Sinto um bafo de cerveja, cigarro e suor. — Onde você esteve?

— Fui ao pub. Li o jornal. Passeei pelas lojas.

— Comprou alguma coisa?

— Com que dinheiro?

O mesmo que usou para comprar cerveja e cigarro, talvez?, penso, mas em vez disso falo:

— Mas a cidade é legal, não é?

— É, é legal... — passando as mãos no rosto. — Então, e agora?

— Bom, tem uma festa hoje à noite, que deve ser bem legal, mas, antes, preciso fazer uns trabalhos...

— Não, não precisa.

— Spence, eu preciso...

— Tudo bem... Só vou ficar por aqui e ler alguma coisa.

Mas eu precisava sair daquele quarto o mais rápido possível. Por isso, sugeri:

— Ou a gente podia ir ao cinema...

Então, fomos ao cinema e assistimos ao filme Amadeus na sessão das 17h15, que, para mim, pareceu uma bela e profunda exploração da natureza da genialidade, mas Spencer dormiu o tempo todo.

As coisas melhoraram, como tende a ocorrer, quando fomos ao pub. Discutimos sobre o que colocar para tocar no jukebox, gastamos 50 pence na máquina de caça-níqueis, depois sentamos num banquinho e rimos de novo. Spencer me conta que Tone entrou para o Exército Territorial.

— Você tá brincando...

— Não estou...

— Mas ele é pirado...

— Não importa. Preferem pirados...

— E vão dar uma arma pra ele?

— Acho que é inevitável.

— Muuuuuuito arrisca-do — dizemos em uníssono, e percebo que não digo muuuuuuito arrisca-do há anos.

Então, Spencer fala:

— No começo, claro, só vão treinar Tone para se sentar no peito do inimigo e peidar na cara dele...

— …Ou chegar sorrateiramente por trás e dar uns cascudos com bastante força no topo da cabeça...

— …Depois, furtar o equipamento de som dele...

— …Puta merda, sargento Tone...

— …A última linha de defesa...

— O mundo livre dorme em segurança. — Spence dá um gole na cerveja e acrescenta: — Vou falar para você... O mais engraçado é ele tentando me convencer a entrar também. Acha que preciso de um pouco de ordem e disciplina na minha vida, pelo visto.

— E você está tentado?

— Com certeza. Passar fins de semana numa tenda com cheiro de peido em Salisbury Plain com um bando de conservadores doidos por armas. É bem a mudança de que preciso.

Vejo minha oportunidade de encaixar a pergunta sem ser detectado, continuo sorrindo e digo:

— Então, já pensou em ir para a faculdade?

Mas Spencer percebe, e responde:

— Não enche, Brian... — Não de modo grosseiro, mas também não de maneira gentil, só cansada. — De qualquer jeito, a faculdade é uma espécie de Serviço Nacional para a classe média.

— Mas e eu? Eu não sou classe média.

— Você é classe média...

— Não, não sou...

— Sim, você é...

— Minha mãe ganha muito menos que os seus pais...

— Mas não é só dinheiro, não é mesmo? Também tem a atitude.

— Para ser mais exato, é sobre quem tem a posse dos meios de produção...

— Bobagem... É a atitude. Mesmo se sua mãe tivesse mandado você pra uma mina de carvão, você ainda seria classe média. São as coisas que você fala, os livros que lê, o filme que acabou de me fazer assistir. É o jeito como você ia às excursões da escola e gastava seu dinheiro em livros e cartões-postais e não em cigarro e fliperama, o jeito como você pede pimenta-do-reino na batata frita...

— Eu nunca fiz isso...

— Fez, Bri! Eu estava com você.

Na verdade, em defesa própria, a minha lembrança desse incidente é que eu não pedi pimenta-do-reino. Eu escolhi pimenta-do-reino porque estava entre as opções, mas não quero me prender a esse detalhe.

— Então, você acha que só porque alguém gosta de ler, quer aprender alguma coisa ou prefere pimenta-do-reino ou vinho, em vez de cerveja ou seja lá o que for, isso faz dele classe média?

— É, mais ou menos isso...

— Algumas pessoas podem pensar que isso é meio que um estereótipo...

— Olha, Bri, o fato é que você se considera socialista, mas, se estivesse por perto durante a Revolução Russa e Lênin mandasse executar o czar e sua família, não teria feito isso. E sabe por quê? Porque você estaria ocupado tentando se dar bem com a filha do czar...

Qualquer vestígio da ressaca daquela manhã desaparece depois da terceira caneca de cerveja, e volto a me surpreender com o poder revigorante e medicinal desse líquido. A festa de hoje é uma grande oportunidade para avançar mais com Alice, e pensei bastante e com cuidado sobre como fazer isso e decidi que o truque é ser Devastador e Distante. Por isso, é importante não ficar muito bêbado; então, comemos três pacotes de batatinhas cada um no jantar e alguns amendoins torrados como fonte de proteína e partimos para a festa.

Quando chegamos ao número 12 da Dorchester Street, percebemos que a festa estava naquele estágio de pode dar certo ou errado. Uma olhada superficial pela cozinha me diz que houve um forte favorecimento teatral em relação à lista de convidados — a maior parte do coro de As bacantes estava ali, todos falando ao mesmo tempo. Neil sei lá do quê, estrela da aclamada produção moderna de Ricardo III do semestre passado, está encostado na geladeira tendo uma amigável conversa com o Duque de Buckingham, enquanto Antígona, uma das anfitriãs, vira um saco de salgadinhos de queijo numa grande tigela. Ainda nenhum sinal de Alice, e estou muito nervoso, mas não sei se é por causa do que Spencer vai achar dela ou do que Alice vai achar dele.

De repente, lá está ela, de pé na porta da cozinha, conversando com o Ricardo III. Ainda não me viu. Então, apoio-me na pia da cozinha, Devastador e Distante, e a observo. Seu cabelo está preso no alto da cabeça de uma maneira artisticamente bagunçada, e ela está usando um vestido de festa bem justo, preto com mangas longas e feito do mesmo material dos collants de malha, cortado bem baixo na parte da frente, formando uma espécie de decote que lembra a roupa que Kate Bush costumava usar nas primeiras aparições, antes de decidir se dedicar apenas a gravações em estúdio. Na verdade, ela está igualzinha, até as marcas escuras de suor em forma de lua crescente que começam a se formar nas axilas.

— Aquela é a Alice — sussurro para Spencer.

— A dos seios de alabastro? — pergunta ele, e, antes que eu possa dizer alguma coisa, Alice vem correndo até nós gritando:

— Sal! Sal! SAL!...

— Oi, Alice — digo, de modo Devastador e Distante.

— Você viu o sal? Alguém derramou vinho tinto no tapete persa da Cathy...

— Esse é o meu melhor amigo, Spencer, da minha cidade...

— Muito prazer, Spencer. Preciso de um pano, Brian. Saia da frente, tá?! — diz, afastando-me da pia, e não consigo deixar de reparar no pedacinho da renda do seu sutiã preto aparecendo por baixo do collant...

— Achei o sal! — grita Antígona, e Alice sai correndo da cozinha com o pano molhado.

— Aquela era Alice...

— É... Existe mesmo alguma coisa entre vocês, Bri...

— Você acha?

— Tenho certeza. Só pelo jeito como ela mandou você sair da frente...

Mando ele se danar e saímos da cozinha.

No corredor, encontramos Patrick e Lucy, chegando juntos e trazendo caixas idênticas de suco de laranja, o que me parece estranho, mas acabo encarando como uma coincidência. Sinto uma pequena pontada de angústia por ainda não ter contado a Spencer sobre o Desafio, mas acho muito improvável que isso venha à tona numa conversa casual. Então, faço as apresentações com muita animação.

— E aí, como vocês conheceram o Brian? — pergunta Spencer, tentando se comportar bem.

— Ele está na equipe com a gente — responde Patrick.

— Que equipe? — quis saber Spencer, dando um gole na lata de cerveja.

— A equipe do Desafio Universitário — explica Patrick, antes de dar um passo ágil para trás, bem a tempo de evitar o jato de cerveja...

— Você está brincando! — exclama Spencer, limpando a boca com as costas da mão.

— Não... — digo, cuidadoso. — A equipe é composta por nós três e Alice...

— Você não me contou nada...

— Não tive oportunidade — respondo, pedindo desculpas a Patrick e Lucy com um sorriso.

— Puta merda! Brian Jackson no Desafio Universitário...

— É...

— Embora, tecnicamente, Brian seria apenas o reserva... — acrescenta Patrick. — Se um dos componentes do time não estivesse com hepatite...

— Você vai aparecer na televisão... — ri Spencer.

— Uh-hum.

— Quando?

— Em três semanas.

— Com Bamber Gascoigne...?

— Sim, com Bamber Gascoigne.

— Você parece achar isso engraçado — observa Patrick, com um sorriso tenso.

— Não, não, desculpe, não, é que, bem, acho que é... incrível. Muito bem, Brian, amigão. Você sabe como eu sou um grande fã do programa... — e começa a rir de novo.

Patrick funga e diz:

— Acho que vou pegar uma bebida... — pondo a caixa de suco de laranja debaixo do braço e dirigindo-se à cozinha seguido por Lucy, sorrindo envergonhada, e, quando eles saem, eu falo:

— Mandou bem, Spencer...

— O quê? O que eu fiz agora?

— Você acabou de rir na cara deles. Só isso.

— Não, não ri.

— Bem, sim, você riu.

— Bom, sinto muito, Bri, mas sempre me perguntei que espécie de louco reprimido e esquisito iria querer participar desse programa, e acabou sendo você, Brian. É... Você... — Ele ri de novo, o que me faz rir também, e mando ele ir se danar, e me pergunto se é natural melhores amigos ficarem mandando um ao outro se danar tanto assim.

Decidimos explorar o andar de cima e encontramos a porta de um quarto com uma placa de Não entre feita à mão, presa na porta com fita adesiva.

Entramos, e vemos um círculo de sete ou oito pessoas, todas sentadas no chão passando um cigarro de maconha e ouvindo Chris, com as unhas sujas, descrever sua jornada épica Cruzando o Paquistão sem um rolo de papel higiênico. Tudo acompanhado por uma das primeiras músicas de Van Morrison. Segurando o braço de Chris, está sua namorada, que, se não me engano, se chama Ruth.

— Vem, vamos embora — sussurro para Spencer. Mas Chris me escuta, e se vira:

— Aê, Brian!

— E aí, Chris! Chris está no meu grupo de estudos. Chris, esse é o meu melhor amigo, lá da minha cidade, Spencer...

— E aí, Spencer?! — diz Chris.

— …E essa é Ruth... — acrescento.

— Na verdade, meu nome é Mary — diz Mary, virando-se e sacudindo as pontas dos dedos de Spencer. — E aí, Spencer, é mesmo um prazer conhecer você... — chegando para o lado e dando um tapinha no chão, abrindo caminho, obrigando-nos a participar do círculo.

Chris passa o baseado para uma garota superpequena de nariz arrebitado com o cabelo preso para trás com uma faixa como a de Alice, encostada na cama com as pernas dobradas perfeitamente por baixo do corpo. Não sei o nome dela, mas a reconheço como a primeira esposa de Ricardo III, Lady Anne, e me recordo vagamente de um rumor segundo o qual ela é lady de verdade na vida real, e que um dia vai herdar boa parte de Shropshire. Ela pega o baseado e dá uma tragada majestosa, antes de passar para nós:

— Garotos?

— Saúde! — diz Spencer, e dá uma tragada profunda, o que é estranho, pois, em geral, ele só bebe e fuma cigarros, e costuma ser bem desdenhoso com maconheiros. — Então, sobre o que vocês estavam conversando? — pergunta.

— Índia! — respondem todos, em uníssono.

— Já esteve lá, Spencer? — pergunta Chris.

— Não, não posso dizer que estive... — responde, prendendo a respiração.

— Está tirando um ano de folga, então? — pergunta Mary/Ruth.

— Não exatamente — diz, exalando devagar.

— Então, onde você está estudando? — pergunta Chris.

— Não estou estudando — responde Spencer.

— No momento! — acrescento, alegre, e Spencer me lança um olhar e abre um sorriso de crocodilo antes de dar outra tragada ainda mais funda no baseado e passar para mim.

Eu pego, ponho na boca, tusso, tiro e passo adiante, e aí há uma breve pausa, enquanto as pessoas ficam ouvindo Van Morrison tocando e eu tossindo. Depois, Lady Anne subitamente se ajoelha e fala de maneira embaralhada.

— Já sei! Vamos jogar E se essa pessoa fosse...!

— E o que é isso? — questiona Spencer, soltando a fumaça devagar.

— Bem, a gente escolhe uma pessoa, depois sai do quarto e, então, a pessoa... Não, não está certo, não. Nós escolhemos uma pessoa pra sair do quarto e, depois, as pessoas dentro do quarto escolhem outra pessoa e a pessoa fora do quarto volta pra dentro e tem que passar pelo círculo fazendo para cada pessoa perguntas como... Hã... Se essa pessoa fosse um clima, qual clima seria? e a pessoa tem de responder alguma coisa como essa pessoa seria..., referindo-se a quem nós escolhemos secretamente, ... seria alegre como um dia ensolarado! ou uma trovoada pesada! ou coisa assim. Tem que personificar essa pessoa dependendo da maneira como a veem. E, então, a pessoa que saiu do quarto pergunta para a próxima se essa pessoa fosse um peixe, ou uma roupa íntima, digamos, que tipo de peixe ou roupa íntima ela seria?, e essa pessoa... — Ela continua explicando, lenta e detalhadamente, as regras de E se essa pessoa fosse..., pelo que parecem uns dois ou três dias, dando-me tempo suficiente para olhar para Spencer, sentado com a mandíbula relaxada, parecendo atordoado e confuso e sorrindo em silêncio para si mesmo. Escuto um ruído, olho para baixo e percebo que estou esmagando a lata de cerveja com a mão. Decido tirar a gente dali...

— Vem, Spencer, vamos pegar uma bebida — sugiro, agarrando seu braço e puxando-o para cima.

— Ah, vocês não querem jogar? — suspira Ruth, ou Mary.

— Talvez mais tarde. Estamos precisando de uma bebida — respondo, levantando minha lata de cerveja cheia. Empurro Spencer, fecho a porta e, graças a Deus, saímos do quarto e seguimos para a escada.

— Mas eu quero jogar! — reclama Spencer, dando risinhos atrás de mim.

Olho de volta e ele está se equilibrando apoiado numa parede, sorrindo e parecendo meio zonzo. Resolvo fingir que preciso usar o banheiro, aponto para a porta no patamar da escada e me escondo.

Dentro do banheiro, eu me recosto na pia e olho no espelho para o grande presunto cheio de bolhas que se passa por um rosto e me pergunto por que Spencer sempre tem que estragar tudo. Adoro Spencer, mas odeio quando ele fica desse jeito, bêbado e maldoso. Bêbado e sentimental tudo bem, mas bêbado e maldoso é de dar medo. Não que ele fique violento, a não menos que seja provocado, mas tenho que fazer com que ele pare de beber, mas não sei como fazer isso a não ser arrancando a bebida da sua mão. Poderíamos até ir embora, mas, se eu não falar com Alice, vai demorar muitos dias até a reunião da equipe na semana que vem, e não posso mesmo esperar tanto tempo. O fato é que estou achando muito difícil ser Devastador e Distante com Spencer ali.

E o pior de tudo é que preciso pensar num modo de dizer que ele tem de ir embora no dia seguinte. Claro que, enquanto eu continuar ali trancado, não tenho de lidar com nenhuma dessas coisas, porém alguém bate na porta. Então, dou descarga e percebo que a pessoa que usou o banheiro antes de mim conseguiu fazer xixi em todo o assento preto de plástico do vaso. Penso em limpar, chego até a fazer uma bola de papel higiênico, mas decido que limpar o xixi de outra pessoa é exatamente o tipo de comportamento servil e degradante que venho tentando evitar com afinco, e, além do mais, isso não é minha responsabilidade, não mesmo. Lembre-se: Devastador e Distante. Dou a descarga e saio.

Alice é a próxima na fila.

Ela está na porta, conversando com Spencer e rindo muito.

— Olá, Brian! — cumprimenta, alegre.

— Não fui eu quem fez xixi no assento do vaso — digo, Devastador e Distante.

— Ótimo, Brian, é bom saber disso! — responde ela, antes de entrar e fechar a porta.

29

PERGUNTA: Em que peça de 1594 os velhos amigos Proteus e Valentine brigam por causa do amor da beata Silvia?

RESPOSTA: Os dois cavalheiros de Verona.


— Então... Vocês andaram conversando? — pergunto a Spencer.

— Uh-hum.

— Ela é legal, né?

— É, ela parece legal. Muito sensual... — comenta, olhando de esguelha para a porta do banheiro.

— Mas não é interessante também?

— Bem, Bri... Nós só conversamos cinco minutos, mas, com certeza, não fiquei entediado. Não com ela naquela malha justa...

— Sobre o que vocês falaram, então? Quer dizer, ela falou alguma coisa? Sobre mim...?

— Bri, fica frio, cara. Ela gosta de você, mas não force a barra...

— Você acha?

— Tenho certeza.

— Certo. Vou até a cozinha. Você vem...?

— Não, eu vou esperar — e aponta a porta do banheiro com a cabeça. Tomo o caminho para o andar de baixo e, só quando chego na metade, começo a me perguntar o que ele quis dizer com vou esperar. Esperar para usar o banheiro ou esperar Alice?

Do nada, uma ideia começa a se formar na minha cabeça, e logo assume a solidez de fatos irrefutáveis: Spencer está dando em cima dela. Veio de tão longe para seduzir Alice! Depois de me ouvir falar a respeito, ele deve ter pensado: gostei dessa história. Vou querer um pouquinho. E, afinal, não seria a primeira vez — é o fiasco da Janet Parks se repetindo mais uma vez. As garotas de quem eu gosto sempre gostam de Spencer Lewis, e o fato de ele não dar a mínima só aumenta a atração. Por que isso? O que ele tem que eu não tenho? Ele é bonito, acho. Mesmo sendo heterossexual, consigo fazer uma avaliação objetiva e dizer que ele é bonito e cheio de mistério; é convencido, irresponsável, não muito asseado, todas essas coisas das quais as mulheres fingem que não gostam, mas, obviamente, gostam. E, tudo bem, ele não é Chique, mas é Maneiro, e Maneiro ganha de Chique aos olhos de Alice Harbinson, da mesma maneira que a tesoura ganha do papel. Claro... Agora, dá para entender tudo... Claro como o dia! O canalha está dando uma de Heathcliff para cima de mim. Enquanto estou pensando nisso, aposto que a mão dele já está entrando na malha dela e...

— Então, como vai esse sorriso?

Rebecca está no pé da escada.

— Ah, oi, Rebecca. O que está fazendo aqui?

— Não estou aqui de penetra. Fui convidada.

— Quem convidou você?

— A adorável Alice, na verdade — responde, pegando sua garrafinha de uísque no bolso do casaco de vinil.

— Sério?

— Uh-hum — dando um bom gole de uísque. — Cá entre nós, acho que ela começou a gostar de mim.

— Mas achei que você não gostasse dela.

— Ah, ela é legal, depois que a gente conhece melhor. — Dá risada e cutuca meu peito com a garrafinha, e percebo que ela está muito bêbada, não bêbada melancólica ou bêbada mal-humorada, mas bêbada levada, bêbada brincalhona, o que é um bom sinal, mas, ainda assim, um pouco estranho e desconfortável, algo como ver Stalin andando de skate. — Por quê? Você acha que estou sendo hipócrita? Acha que eu deveria ir embora, Brian?

— Não, de maneira alguma. É bom ver você. Só pensei que isso não fosse sua praia.

— Ah, bem, você me conhece. Não há nada que eu goste mais do que 200 alunos de teatro bêbados querendo cantar juntos — e aponta com a cabeça para a sala de estar, na qual Ricardo III, o multifacetado Neil sei lá o quê, conseguiu um violão em algum lugar e está começando a tocar The Boxer de Simon e Garfunkel.

A lenga-lenga continua por uns 45 minutos. Já deixou de ser um ruído de fundo. Agora, soa mais como uma espécie de mantra indutor de transe, com as harmonias e tudo o mais, e parece que pode durar vários dias. Rebecca e eu não nos incomodamos muito. Estamos espremidos no sofá do outro lado da sala passando a garrafa de uísque um para o outro e dando risada.

— Ah, não acredito... O merdinha do Neil MacIntyre achou um tamborim...

— De onde ele tirou um tamborim...?

— Do próprio cu, provavelmente... — diz ela, tomando um gole do uísque. — Você acha que algum dia isso vai acabar?

— Acho que, enquanto não começarem a tocar Hey, Jude, a gente está numa boa.

— Se começarem, pego um alicate e desmonto aquele violão de merda. Eu juro!

Agora, a festa está alcançando sua massa crítica. Todos os cômodos estão apinhados, e, ali na sala, as pessoas se agarram aos móveis como em A balsa de Medusa, do pintor realista francês do século XIX Gericault. Deveria sair para pegar mais uma bebida, mas Rebecca e eu estamos num lugar excelente, enfiados entre seis pessoas num sofá de dois lugares, e já deu para perceber que a bebida acabou, pois as pessoas estão trotando pela sala em busca de garrafas e segurando-as contra a luz, ou procurando latas abandonadas sem cinzas de cigarro nas bordas. Também não quero sair do lugar, pois Rebecca está bêbada e muito engraçada, e acho que também está me paquerando um pouco, bafejando seu hálito de uísque no meu ouvido, e isso me ajuda a não pensar na música do Simon e Garfunkel e em Alice e Spencer, que, neste exato momento, devem estar transando extasiados numa pilha de casacos.

— …Sabe, se eu governasse o mundo, o que a propósito tenho toda intenção de fazer um dia, a primeira coisa que faria seria proibir violões... Tudo bem... Não proibir, mas ao menos limitar o acesso, organizar um sistema de licenciamento, igual a ter uma arma de fogo ou uma empilhadeira, e implementaria regras bem draconianas: não pode tocar depois do pôr do sol, nem em praias ou perto de acampamentos com fogueiras, nada de Scarborough Fair, nada de American Pie, nada de harmonias, nunca mais de duas pessoas cantando ao mesmo tempo...

— Mas a legislação não vai servir apenas para eles passarem à clandestinidade?

— É exatamente o que deveriam fazer, meu amigo, exatamente. E proibiria a maconha também. Como se os estudantes já não fossem tolos e obcecados consigo mesmo do jeito que são. É... Com certeza, eu proibiria a maconha.

— Mas já não está proibida? — pergunto.

— É um ótimo argumento, amigo. Protesto deferido! — diz, drenando o resto do uísque da garrafa. — Agora, álcool, álcool e nicotina, são as únicas drogas apropriadas. Tem alguma coisa nessa lata de cerveja perto do seu pé?

— Só bitucas de cigarro...

— Ah, então deixa. — Ela me pega sorrindo. — Qual é a graça?

— Você...

— E o que é engraçado a meu respeito, seu moço?

— Suas opiniões. Você acha que vai relaxar? Com a idade?

— Claro que não! Vou dizer uma coisa, Brian Jackson. Sabe essa merda que falam sobre ser de esquerda até os 30 anos e depois perceber o grande erro e ficar completamente de direita? Bem... É uma grande bobagem... Isso que é. Se ainda formos amigos no ano 2000, que vai ser, o quê? Daqui a 14 anos... E espero que a gente ainda seja amigo, Brian, meu velho amigo... Se ainda formos amigos e eu tiver mudado de alguma maneira, comprometido minhas visões políticas, éticas ou morais em relação a impostos ou imigração ou ao Apartheid, ou aos sindicatos, ou se eu parar de ir a manifestações e a reuniões ou tiver me tornado o mais remotamente de direita, você tem minha permissão para dar um tiro aqui — batendo de leve no centro da testa. — Bem aqui.

— Ok. Eu atiro.

— Faça isso. Pode atirar. — Pisca os olhos devagar, lambe os lábios e tenta beber da garrafa vazia antes de dizer: — Ei, desculpe ter pesado em você hoje de manhã.

— Como assim?

— Você sabe... Ficar toda Sylvia Plath com você.

— Ah, tudo bem...

— Quer dizer... Continuo achando que você é um babaca total e tudo mais, mas sinto muito pelo incômodo.

— E por que eu sou um babaca...?

— Você sabe por quê...

— Não, vá em frente, diga...

Ela sorri para mim de soslaio, sob o peso dos cílios escuros.

— Por não ter dormido comigo quando teve a oportunidade.

— Ah, bem... — E, por um momento, penso em dar um beijo nela, mas tem gente demais olhando, e Alice está lá em cima. Então, eu digo: — Talvez... em outra ocasião?

— Ah, não, você estragou tudo, sinto informar. Foi uma única chance... — diz, empurrando meu ombro com a cabeça. — Uma. Única. Chance... — Ficamos um tempo, sem olhar um para o outro, até Rebecca dizer: — E onde está o seu amigo?

— Spencer? Não faço ideia. Lá em cima, acho.

— Achei que ele estava tendo uma espécie de colapso nervoso ou coisa do tipo...

— É, bem... Alice está ajudando ele a superar isso.

— Então, vou conhecer o seu amigo ou não?

Rebecca e Spencer são uma combinação que eu nunca imaginei, e as consequências podem ser desastrosas, mas preciso saber onde ele está e o que anda fazendo, e se já está com a mão dentro da blusa de Alice. Por isso, respondo:

— Se você quiser... — E nos içamos das profundezas do sofá e começamos a olhar em volta.

Verificamos todas as dependências, até encontramos os dois num pequeno quarto lotado no último andar da casa, num canto, a uns 5cm um do outro. Pessoas dançam ao redor, ou não dançam, porque não há espaço, mas balançam as cabeças ao som de Exodus de Bob Marley, e Alice balança os ombros, um pouco fora do ritmo, mordendo o lábio inferior, e OK, eles não estão se beijando, por assim dizer, só conversando, mas podiam perfeitamente estar se beijando, pela proximidade um do outro. Spencer está com aquela expressão irritante de garoto charmoso, como se fosse personagem de seriado de TV ou coisa assim. E Alice parece deslumbrada, um olhar fascinado e interessado, os braços cruzados em cima da malha como se estivesse fazendo um teste para o papel de meretriz do interior, empurrando o decote para a frente, no caso de ele não ter reparado.

— É ele, ali no canto — indico.

— O de cabeça raspada?

— Ele não é fascista — esclareço, mesmo sem saber por que o estou defendendo, talvez ele seja fascista, ou algo tão ruim quanto.

— Bonito ele, não?

— Ah, certo, sim, certo, obrigado, Rebecca.

— Ora, não seja ridículo. Você não tem nada com o que se preocupar nesse quesito.

Será que ela está sendo sarcástica? Não sei dizer, não consigo me concentrar, pois, naquele momento, Alice está passando a mão na cabeça de Spencer e dando risadinhas, afastando a mão num gesto patético de menininha dizendo oooh, ficou parecendo uma escovinha, e Spencer pega a mão dela e põe de volta na cabeça, dando seu estúpido sorriso de personagem de TV e dizendo não, vá em frente. Aí, ele vai mostrar as cicatrizes daquela briga com vidro. Que grande golpe raspar a cabeça para fazer os amigos pensarem que você está em crise ou em surto, quando, na verdade, é só um truque barato para fazer garotas bonitas alisarem a sua careca. Chego a me perguntar quanto tempo levaria para descer as escadas, encher uma bacia com água fria, voltar e jogar em cima deles. Graças a Deus, Patrick Watts vai até lá e faz isso por mim, começando uma conversa!

— …Ei, você está me escutando, seu maluco? — pergunta Rebecca.

— Uh-hum.

— Então, você vai me apresentar ao seu amigo ou não?

— É claro, vamos lá. Mas não vai dar em cima dele, tá?

— Ah, e por que você ligaria pra isso? — responde ela, e nós vamos até lá.

— …E Patrick é o capitão do nosso time! — Alice está anunciando com orgulho, quando chegamos.

— É, eu já ouvi dizer... — comenta Spencer, sem olhar para Patrick.

— Oi, Rebecca! — diz Alice, e, bizarramente, a envolve com os braços. Rebecca retribui o abraço, mas faz uma careta para mim por cima do ombro dela.

— Spencer, essa é a minha grande amiga Rebecca — grito por cima da música alta, e os dois se apertam as mãos.

— O famoso Spencer. Prazer em conhecê-lo, afinal — diz Rebecca. — Brian me falou muito a seu respeito.

— Ah, sim! — diz Spencer, e há uma pequena pausa enquanto nós cinco ficamos parados, balançando um pouco a cabeça, e, então, do nada me vejo gritando...

— Ei, você devia falar com a Rebecca sobre seu PROBLEMA LEGAL, Spencer!

Não sei bem por que eu digo isso, mas digo. Na verdade, acho que estou tentando ser prestativo e amigável, continuar a conversa, mas, depois de uma pequena pausa, ainda sorrindo, Spencer pergunta:

— Por quê?

— Porque ela é advogada.

— Eu estou cursando direito. Não é a mesma coisa...

— Não, mas ainda assim...

— E qual é o seu problema legal? — pergunta Patrick, interessado.

— Spencer está sendo acusado de burlar o seguro-desemprego... — explico.

— Você está brincando... — contesta Alice, toda íntegra e esquerdista de repente, apertando de leve o braço de Spencer — … Aqueles canalhas. Coitado...

— Mandou bem, Brian — Spencer gesticula com os lábios, sorrindo, mas não de verdade.

— Bom, se você não fez isso, não vai haver problema — diz Patrick, arrogante.

— Mas ele fez — continuo, só para esclarecer as coisas.

— Então, você tem um emprego? — pergunta Patrick.

— É um emprego irregular, pago em dinheiro. Num posto de gasolina... — murmura Spencer.

— Só que ele foi pego... — mas os olhos de Spencer me lançam dardos e eu paro de falar.

— Bem, nesse caso... — Patrick ri, dissimulado, dando de ombros — ...Só posso desejar boa sorte, cara.

Spencer está com o olhar fixo em mim, e Rebecca começa a discutir com Patrick:

— Não é fácil arranjar emprego.

— Bem, mas é possível arranjar trabalho...

— Não, não é...

— Acho que você vai ver que é...

— Existem quatro milhões de desempregados! — diz Rebecca, começando a ficar irritada.

— São três milhões. E não é o caso, é? Esse é o ponto. Se ele estava trabalhando irregularmente, era porque poderia arrumar um emprego, mas parece que o salário não atendia ao seu estilo de vida. Por isso, decidiu pegar dinheiro do Estado — será que Patrick vai continuar chamando Spencer de ele?, penso — , e você não pode culpar o Estado por querer algo em troca ao descobrir que foi roubado. É o meu dinheiro, afinal...

Bob Marley está cantando No Woman, No Cry, e vejo Spencer engolir sua cerveja, fuzilando Patrick todo o tempo, com os olhos semicerrados. Nossos olhares se cruzam por apenas um segundo e logo volto a olhar para Rebecca, que está cutucando o peito de Patrick com o dedo numa tentativa de arrancar seu coração ainda batendo.

— Não é o seu dinheiro. Você não paga impostos! — diz ela.

— Não, mas vamos pagar, todos vamos, e muito. E pode me chamar de antiquado, mas acho que tenho o direito de exigir que esse dinheiro não vá para pessoas desempregadas que, na verdade, não estão desempregadas...

— …Mesmo se o emprego pagar menos do que a linha da pobreza?

— Não é problema meu! Se o empregado quer um emprego melhor, há muito que pode fazer a respeito. Pode entrar para o Programa de Oportunidades para Jovens, pode se aperfeiçoar, pegar a bicicleta e ir atrás de...

— As próximas palavras ditas por Patrick são:

— POR FAVOR, TIREM ESSE CARA DE CIMA DE MIM POR FAVOR! — Spencer deu um passo adiante e, do nada, passou o braço com força por baixo do queixo de Patrick, segurando-o alto, bem alto contra a parede, e, mesmo já tendo visto Spencer se meter em brigas umas sete ou oito vezes antes, isso ainda me pega de surpresa, como de repente descobrir que ele sabe sapatear. A coisa toda acontece tão depressa e com tanta destreza que, por um momento, ninguém fora do nosso círculo chega a perceber. Todos continuam se balançando ao som de No Woman, No Cry. Mas Patrick começa a dar chutes, fazendo marcas na parede de gesso, e Spencer é forçado a firmar o corpo contra o de Patrick, enfiando a mão livre na cara de Patrick e apertando sua boca até fechar.

— Pare com isso, cara, pelo amor de Deus... — intervenho.

— Tá... Então, pergunta número um, quem é ele? — sibila Spencer, o rosto a centímetros de distância do de Patrick.

— Como assim? — gagueja Patrick.

— Bem, você fica falando sobre ele. Ele quem?

— Você, claro...

— Larga ele, Spencer — insisto.

— E qual é o meu nome?

— O quê?

— Vamos lá, por favor, pare com isso...

— Meu nome, qual é o meu nome, seu riquinho idiota...? — questiona Spencer, apertando as bochechas de Patrick para dar ênfase, empurrando sua cabeça com força contra a parede. O disco para de tocar com um arranhão, e as pessoas começam a se virar para assistir. A cara de Patrick está de um vermelho intenso agora, os dentes cerrados, os dedos do pé procurando o chão, e ele balbucia cuspindo saliva e suco de laranja: — Eu... não... me lembro...

— Parem com isso, vocês dois! — grita alguém da porta, onde uma multidão começou a se formar.

— Vamos chamar a polícia — grita mais alguém.

Spencer permanece indiferente e o escuto dizer num sussurro, a testa tocando a de Patrick:

— Bem, a resposta certa é Spencer, Patrick, e, se você quiser me aconselhar com relação à minha carreira, tenha algum respeito e diga na minha cara, seu almofadinha...

Então, há outro instante rápido quando Patrick consegue soltar um braço e dá um tapa de mão aberta na orelha de Spencer, um golpe barulhento porém

ineficiente, que só serve para fazer Spencer relaxar a pressão no pescoço de Patrick, que, de repente, começa a se debater, braços e pernas agitando-se loucamente, chiando e cuspindo como uma criança dando escândalo. As pessoas começam a gritar e se atropelar para sair do pequeno recinto, e, no meio do caos, vejo Alice segurando o braço de Spencer, tentando afastá-lo da cena, como uma heroína de cartaz de filme, porém ele dá um empurrão e ela cai de costas contra a janela, fazendo um barulho alto ao bater a cabeça. Alice franze os olhos e leva a mão à nuca para ver se está sangrando e vou até ela para ver se está bem, mas Patrick continua agitando os braços loucamente, atacando Spencer, que se abaixa e se esquiva, até que, de repente, vê o seu momento. Ergue o corpo, coloca a mão espalmada no peito de Patrick, mantendo-o afastado, leva o outro braço para trás e solta um golpe com todo seu peso no punho, acertando o rosto de Patrick com um estrondo alto e úmido, como um pedaço de carne batendo numa superfície de madeira, fazendo-o rodar duas vezes e cair de cara no chão.

Há um momento de silêncio, seguido por um repentino afluxo de pessoas correndo até Patrick, que rolou de barriga para cima e está tocando de leve no nariz e na boca para ver se há sangue, e o sangue é abundante.

— Ah, meu Deus! — murmura — Meu Deus...

Acho que está prestes a chorar quando Lucy Chang se espreme para chegar até ele e amparar sua cabeça na mão, ajudando-o a sentar-se, e, depois disso, só vejo com clareza três pessoas.

Rebecca está de pé no meio do quarto, as mãos cobrindo a boca, suspensa entre risos e lágrimas.

Alice está encostada na janela encarando Spencer de boca aberta, com uma das mãos esfregando a parte de trás da cabeça.

Spencer deu as costas para Patrick e está olhando a própria mão, examinando os dedos, ofegante. Olha para mim, solta a respiração entre os dentes cerrados e diz:

— Vamos embora, OK?

No andar de baixo, todos estão cantando With a Little Help From My Friends.

30

PERGUNTA: Em conjunto, os sintomas blefarite, ectrópio, ambliopia e heteroforia resultariam em que condição?

RESPOSTA: Uma incapacidade de enxergar claramente.


Saímos andando em silêncio pelas ruas ladeadas por terraços; Spencer um pouco atrás de mim. Ouço seus passos pelo chão molhado, mas estou com muita raiva, muito envergonhado, muito bêbado e confuso demais para falar com ele nesse momento. Por isso, mantenho a cabeça abaixada e continuo caminhando.

— Ótima festa! — diz Spencer, afinal.

Ignoro e continuo seguindo em frente, pisando duro.

— Gostei da Alice.

— É, eu notei! — respondo, sem olhar para trás.

Andamos um pouco mais em silêncio.

— Escuta, Bri, se você tem alguma coisa a me dizer, diga agora, porque isso é uma puta de uma burrice...

— E se eu não disser? Vai me bater também?

— É muito tentador — resmunga baixinho — Mas tudo bem, cara. Entendi o recado. Agora escuta, OK? — Continuo andando. — Por favor?

As palavras não saem com facilidade, e ele fala como uma criança petulante, forçada a dizer algo contra a vontade, mas paro e me viro para ouvir.

— Tudo bem, Brian. Sinto muito por... ter batido... no capitão da sua equipe do Desafio Universitário... — mas ele não consegue chegar ao fim da frase sem começar a dar risadinhas. Então me viro e continuo a andar. Depois de um tempo, eu o escuto correndo atrás de mim, e talvez me encolha um pouco, mas logo o vejo na minha frente, franzindo a testa e andando de costas.

— O que você queria que eu fizesse, Bri? Ficasse lá e ouvir aquilo sem fazer nada? Ele estava me tratando como um merda...

— E aí você resolveu bater nele?

— É...

— Porque discordava dele?

— Não, não foi só por isso...

— E não pensou em talvez argumentar com ele, debater o seu ponto de vista de maneira calma e racional?

— O que o meu ponto de vista tem a ver com isso? Ele estava tentando me fazer de idiota...

— …E, então, você recorreu à violência!

— Eu não recorri à violência. Foi minha primeira escolha.

— Ah, sim, muito bacana, você é muito durão, Spencer...

— Bom, você não estava fazendo muito pra me ajudar, estava? Ou estava com medo de ele tirar você da equipe?

— Eu estava defendendo você!

— Não, não estava. Só estava mostrando a porra da sua imensa consciência social para suas namoradas. Se não tivesse levantado o assunto...

— O que você queria que eu fizesse? Segurasse os braços dele atrás das costas? Eles são meus amigos, Spencer...

— Aquele idiota? Seu amigo? Puta merda, Brian, é pior do que eu imaginava. Ele trata você como lixo.

— Não é verdade!

— É verdade... Eu vi. O cara é um completo babaca e mereceu o que aconteceu...

— Bem... Ao menos, ele não tenta se dar bem com as garotas de quem estou a fim...

— Opa, opa, espera aí! — ele me para com a mão espalmada no meu peito, do mesmo modo como fez com Patrick antes de bater nele, e me pergunto se consegue sentir o quanto meu coração está acelerado. — Você acha que eu estava tentando me dar bem com a Alice? Você acha mesmo que eu estava fazendo isso?

— Bom, foi o que me pareceu, Spencer, com todos aqueles afagos na sua cabeça... — Tento pôr a mão na cabeça dele, mas ele agarra meu pulso com a mão livre e segura com firmeza.

— Sabe, Bri, para alguém que devia ser culto, você realmente consegue ser muito burro às vezes...

— Não fale assim comigo... — digo, soltando minha mão.

— Como?

— Desse jeito, como você sempre fala comigo! Spencer, por que essa necessidade de... destruir tudo? Sinto muito que as coisas não estejam indo bem pra você no momento. Sinto muito que não esteja feliz... Mas há coisas que você pode fazer em relação a isso, Spencer, coisas práticas, mas você prefere não fazer nada, porque é mais fácil ficar vadiando e botar pra foder e tirar sarro de pessoas que estão tentando fazer alguma diferença na vida...

— Como você, por exemplo? — ele pergunta, com um sorriso dissimulado.

— Você está com inveja, Spencer. Você sempre teve inveja de mim. Só porque trabalho duro, porque eu sou inteligente e consegui...

— Opa! Espera aí. Inteligente? É isso que você acha, sua putinha convencida? Quando a gente se conheceu você não conseguia nem amarrar os cadarços! Eu tive que ensinar a você! Você escrevia esquerdo e direito nos seus tênis de ginástica até ter 15 anos! Não conseguia assistir a uma partida de futebol sem desabar em lágrimas, seu molenga. Se você é tão inteligente, como é que não sabe o que as pessoas dizem de você pelas costas, quanto elas riem de você? Fiquei ao seu lado por anos e anos, depois que o seu pai morreu...

— O que o meu pai tem a ver com isso?

— Diga você, Brian. Diga você.

— Deixe o meu pai fora disso! — grito.

— Ou o quê? O que você vai fazer, chorar?

— Vá se foder, Spencer, seu... brutamontes!

Mas sinto uma sensação quente e irritante atrás dos olhos, um nó apertado de pânico no estômago, e, de repente, percebo que preciso me afastar, dou meia-volta e retorno pelo caminho de onde viemos.

— Aonde você está indo? — Spencer grita atrás de mim.

— Não sei!

— Você está fugindo, Brian? É isso?

— É... Que seja!

— E como é que vou conseguir voltar?

— Sei lá, Spencer. Não é problema meu, é?

Escuto ele dizer bem baixo, quase que para si mesmo:

— Vá em frente, então. Pode ir embora.

Paro e olho para trás esperando ver Spencer sorrindo ou debochando, mas ele está quieto, parado, um pouco distante, debaixo da luz de um poste, a cabeça pendendo para trás, os olhos fechados e a mão pressionada contra a testa, os dedos encolhidos.

Parece um garoto de 10 anos de idade. Sinto que deveria ir até ele, ou, ao menos, me aproximar um pouco mais, mas, em vez disso, eu grito do meio da rua:

— Você precisa ir embora, Spencer! Até amanhã de manhã. Você não pode mais ficar na casa. É contra as regras.

Ele abre os olhos, úmidos, vermelhos e cansados, e me lança um olhar impassível.

— E é por isso que você quer que eu vá, Brian? Porque é contra as regras?

— É. Em parte, sim.

— Tudo bem... Então, eu vou.

— Ok.

— Sinto muito, se eu... envergonhei você. Na frente dos seus amigos.

— Você não me envergonhou. Eu só... não quero você por perto. Só isso.

Dou as costas e me afasto depressa, sem olhar para trás, com a certeza de que deveria me sentir bem e desafiador, e forte, por afinal ter enfrentado Spencer pelo menos uma vez, mas por alguma razão não sinto nada disso. Só me sinto febril, vazio, estúpido e triste, e não faço a menor ideia de onde poderia ir.

Não sei bem quanto tempo continuo andando depois disso. Estou vagamente ciente de que tenho as únicas chaves da casa, de que a coisa sensata a fazer seria voltar e deixar Spencer entrar. Mas ele pode acordar Marcus ou Josh e pedir para entrar, e, afinal, não sou babá dele. Vou dar tempo suficiente para ele chegar em casa e dormir, fazer uma hora andando até a bebedeira e a confusão passarem, entrar em casa de fininho e resolver as coisas de manhã. Porém, depois de mais ou menos uma hora, a garoa engrossa e vai se transformando em chuva, e, embora não sendo minha intenção, pelo menos não minha intenção consciente, de repente estou na porta do alojamento de Alice e Rebecca.

Os portões da frente são fechados à 1h da manhã para quem não tiver uma chave; então, escalo o velho gradil de ferro. Consigo fazer isso sem disparar nenhum alarme nem me empalar, mas a sola lisa dos meus sapatos escoceses escorrega, e desço como num tobogã até o chão enlameado e cheio de plantas, parando embaixo de um arbusto redondo. Limpo a lama grossa das mãos num chumaço de folhas molhadas e me agacho sob os arbustos, esperando alguém passar pelo caminho de cascalho até a entrada principal.

A água gelada pinga das folhas e goteja na base do meu pescoço. Uma camada grossa de lama úmida começa a ensopar meus sapatos de camurça, e tenho a sensação de que meus pés estão embrulhados num papelão frio e úmido. Estou prestes a desistir e voltar para casa quando, enfim, vejo algumas pessoas chegando pela rua. Saio de trás dos arbustos e ando um pouco atrás delas, e, quando abrem a porta, eu grito esperem, e elas param e se viram.

— Segurem a porta! — Um homem que não reconheço olha para mim com desconfiança. — Esqueci minha chave! Dá pra acreditar? E numa noite como essa! — Ele está olhando os meus sapatos e minha calça, decorados com folhas e fungos. — Tomei um tombo! Puxa, eu estou ensopado! — mas ele não se mexe, então fuço minha carteira com os dedos sujos e dormentes e mostro meu cartão de estudante.

— Olha... Eu sou aluno — e isso parece convencê-lo, pois ele abre a porta e me deixa entrar.

Ando encharcado pelos corredores escuros, deixando um rastro de sujeira no assoalho de madeira até chegar ao quarto de Alice. Vejo uma pequena faixa de

luz laranja debaixo da porta. Por isso, sei que ela está acordada. Encosto o ouvido na porta e consigo ouvir uma música — Joni Mitchell cantando Help Me, do LP Court and Spark — e quase consigo sentir o calor e a luz pela porta de madeira, e quero desesperadamente estar do outro lado. Bato com delicadeza, delicadeza demais, pelo visto, pois ela não escuta. Então, bato de novo e sussurro seu nome.

— Quem é?

— É o Brian — respondo.

— Brian? — ela abre a porta. — Ah, meu Deus, Brian! Olha só o estado em que você está! — e pega minha mão e me puxa para dentro.

Alice me conduz para o centro do quarto e logo toma o controle da situação, adotando a conduta de uma rigorosa, mas gentil, governante eduardiana:

— Não se sente e não toque em nada até se secar, mocinho! — Começa a remexer nas gavetas até tirar um suéter verde largo feito à mão, umas calças largas de ginástica e um par de meias grossas. — Aqui, você vai também precisar disso — diz, desfazendo o cordão do roupão branco e jogando-o para mim. Por baixo, ela está usando uma camiseta cinzenta, velha e curta acabando acima do umbigo, com uma imagem do Snoopy deitado em cima de sua casinha esfarelada e desbotada como um afresco medieval, calcinha cinza e um par de meias masculinas pretas enroladas até o tornozelo, e me ocorre que é a visão mais erótica que já tive na minha vida, sem sombra de dúvida.

— Olhe só como você está... Suas mãos estão tremendo...

— É mesmo? — pergunto, e, quando abro a boca, percebo que meus dentes estão trincando.

— Vamos! Tire essa roupa antes de pegar uma pneumonia — ordena, com a mão esticada.

Estou um pouco nervoso com relação a me despir, em parte porque os halteres ainda não tiveram chance de fazer efeito, e também porque estou usando um dos coletes da minha antiga escola, o que me deixa fadado a ficar parecendo um pouco com um órfão de guerra. Mas lembro que minha cueca está em condições relativamente boas, e que estou congelando, e acabo cedendo. Alice fica ao meu lado quando começo a me despir e nota que minhas mãos estão tremendo demais para desabotoar a camisa.

— Ei, deixe eu fazer isso — diz, e começa a me desabotoar de cima para baixo. — Por que você não está com Spencer?

— Nós meio que briga-ga-gamos.

— E onde ele está? — Por que ela ainda está falando do Spencer?

— Não faço ideia, deve ter voltado para a minha casa. — Os botões estão livres e ela se afasta para eu tirar a camisa. — Sinto muito por tudo o que aconteceu...

— O quê?

— Você sabe... O Spencer, a briga...

— Ah, não se preocupe com isso. Na verdade, até que eu gostei. Quer dizer, nunca aprovei violência física, mas, no caso do Patrick, até faço uma exceção. Nossa! O seu amigo Spencer é bom de briga, né? — os olhos brilham com a lembrança. — Sei que não deveria dizer isso, mas acho que há algo excitante em homens lutando, a gente se sente atraída, sabe, como nos combates de gladiadores na Roma Antiga. — Estou sentado na beira da mesa, tentando não sujar tudo de lama, desamarrando os cadarços do sapato imundo.

— Uma vez saí um tempo com um cara que era boxeador amador, e eu adorava assistir aos treinos e às lutas. Sempre fazíamos um sexo incrível e animal depois, com todo aquele sangue e os hematomas e tudo o mais, e havia algo de muito bonito e sensual na coisa toda. O sangue no travesseiro depois...

E ela fica parada um momento, com meus sapatos cheios de musgo na mão, um pequeno involuntário tremor erótico com a lembrança. Começo a tirar a calça molhada com cuidado.

— Claro que não tínhamos nada em comum além da cama e do ringue. Por isso, a relação estava condenada desde o princípio. Não é uma boa base para uma relação, é? Quando a gente só se sente atraída quando eles estão seminus ou socando alguém... Você já bateu em alguém, Brian?

Agora, estou só de colete e cueca. Então, era de se pensar que a resposta seria óbvia.

— Eu? Deus, não.

— Ou apanhou...?

— Ah, uma ou duas vezes, sabe... De uns idiotas do jardim de infância e algumas brigas em pubs. Felizmente, sou faixa preta em me esconder debaixo da mesa.

Ela sorri, pega minhas roupas e desvia o olhar. Começa a sacudir e a dobrar tudo com todo o cuidado.

— Então, ele não machucou você? — pergunto.

— Quem?

— Spencer, na briga.

— Quando?

— Eu vi ele empurrar você contra a parede...

— Ah, não foi nada... Só um galo na cabeça. Por quê? Dá pra ver o hematoma? — ela se vira e reparte o cabelo na cabeça com uma das mãos. Eu fico atrás dela e afasto o cabelo para um lado sem prestar muita atenção, só respirando fundo. Alice cheira a vinho tinto e algodão limpo, pele quente e xampu, e sinto um desejo esmagador de beijar o alto da sua cabeça, a pequena área onde está o hematoma. Eu podia fazer isso. Podia me inclinar, dar um beijo e dizer pronto, um beijinho para sarar! ou algo assim, mas tenho um pouco de orgulho e, em vez disso, toco com cuidado o local avermelhado.

— Está sentindo alguma coisa? — ela pergunta.

Alice, você nem imagina...

— Só um pequeno hematoma. Nada demais.

— Tudo bem — diz, começando a pendurar minhas roupas no aquecedor. Ainda estou só de colete e cueca, e uma olhada rápida para baixo revela um volume suspeito. Então, visto logo a calça de ginástica e o velho suéter que ainda está com o cheiro dela.

— Eu tenho um pouco de uísque. Você quer?

— Claro que sim — respondo, depois sento na cama e observo enquanto ela lava duas xícaras de chá numa pia.

Na luz do abajur em cima da mesa, noto que a pele no alto de suas coxas é muito branca e tem umas covinhas, como massa de pão, e, quando ela se vira de lado, eu vejo, ou penso que vejo, um pequenino tufo de cabelo castanho-claro escapando pela parte de cima da calcinha, na pequena saliência macia do seu ventre.

— Então, o que você vai fazer a respeito?

Eu saio do transe.

— Em relação ao quê?

— Ao seu amigo Spencer.

E lá vai ela de novo: Spencer, Spencer, Spencer...

— Não sei... Conversar com ele amanhã, imagino.

— E por que você estava andando por aí debaixo de chuva?

— Eu só queria dar umas horas pra ele ir dormir. Vou voltar logo... — digo, fingindo um pequeno tremor.

Ela me entrega uma xícara com três dedos de uísque.

— Bem, mas você não pode voltar hoje. Vai ter que dormir aqui...

É a minha deixa para fingir alguma resistência.

— Ah, não, tudo bem, não tem problema, eu preciso voltar... — Na verdade, estou me sentindo bem quentinho agora, mas tento fazer meus dentes baterem, o que é muito mais difícil do que você imagina. Por isso, paro de forçar a barra e digo em voz baixa: — Vou tomar isso e sair.

— Brian, você não pode sair desse jeito, olha só os seus sapatos...! — Meus sapatos de camurça, arruinados, estão em cima do aquecedor como pãezinhos quentes, e dá para ouvir a chuva e o vento batendo com força na janela. — Eu me recuso a deixar você ir embora. Vai ter que dormir comigo essa noite. — A cama é de solteiro. É uma cama estreita. Muito estreita. Parece mais uma prateleira.

— Ah, bem… Já que você insiste...

31


PERGUNTA: Descoberto acidentalmente pelo físico holandês Pieter van Musschenbroek em 1746, e também pelo inventor alemão Edwald Georg von Kleistem em 1745, a jarra de Leyden é um recipiente de vidro vedado usado para armazenar o quê?

RESPOSTA: Eletricidade estática.


Há certas coisas que a gente espera de um homem aos 19 anos. Por exemplo, supõe-se que, aos 19, eu já tivesse viajado de avião, dirigido uma motocicleta, um carro, marcado um gol ou conseguido fumar um cigarro. Aos 19, Mozart já tinha composto sinfonias e óperas, tocado para os reis e rainhas da Europa. Keats já havia escrito Endymion. Até Kate Bush já tinha gravado seus dois primeiros álbuns em estúdio, enquanto eu nunca experimentei milho-verde enlatado.

Mas devo dizer que não me importo muito com essas coisas, porque, essa noite, vou conseguir realizar uma grande façanha. Pela primeira vez na vida, vou passar a noite inteira na cama com alguém.

Aliás, seria bom reformular. No verão passado, dividi uma tenda com Spencer e Tone em Canvey Island, e foi bem aconchegante. Também dormi na mesma cama que minha mãe nas duas noites depois da morte do meu pai. E, na noite anterior ao funeral, dividi minha cama de solteiro com uma prima irlandesa, Tina, mas óbvio que essa última não conta, pois, deixando de lado as circunstâncias sombrias e o tabu do incesto, a prima Tina era, e continua a ser, uma pessoa extremamente violenta. Então, para deixar claro: nunca, na minha vida adulta, dividi uma cama durante uma noite inteira com alguém do sexo oposto que não fosse um parente próximo e/ou do qual eu não tivesse medo. Até agora.

Ficamos acordados por mais ou menos uma hora, tomando uísque, sentados na cama um ao lado do outro conversando e ouvindo Tapestry e o novo álbum do Everything But The Girl. Já que ia ficar ali pelo resto da noite, relaxei um pouco e começamos a nos divertir, nos divertir de verdade, relembrando a festa, a briga, a expressão de Patrick ao tentar se lembrar do nome do Spencer. Alice se sentou bem juntinho a mim, as pernas cruzadas na frente e a camiseta cobrindo a barriga em nome do decoro, mas, quando ela não estava percebendo, consegui dar uma olhadinha em suas coxas rosadas e macias e o comecinho de cada perna.

— A propósito... — diz Alice. — Tenho algo a contar.

— O quê? — pergunto.

Espero ouvir Estou apaixonada pelo Spencer ou coisa assim.

— São boas notícias... — continua, prolongando o momento.

— Vá em frente...

— Eu... sou... Hedda Gabler!

— Parabéns! Que notícia incrível!

Para ser honesto, torci secretamente para que ela não conseguisse o papel. Em parte porque isso significa que vai passar o tempo todo estudando, e em parte porque, como muitos atores, às vezes Alice consegue ser incrivelmente chata quando entra nesse assunto. Mas que nunca seja revelado meu enorme talento para a dissimulação.

— Isso é maravilhoso! A epônima Hedda! Você vai ser o máximo! Estou tão feliz! — Dou um abraço nela e beijo sua bochecha, pois, afinal de contas, não faz mal tirar um pouco de vantagem da coisa toda.

— Ei, você ainda vai participar do Desafio Universitário, não vai?

— Com certeza. Eu verifiquei. As datas não coincidem, mesmo que a gente passe para a segunda rodada...

— O que vai acontecer.

— O que vai acontecer...

Em seguida, conversamos durante mais uma hora sobre os muitos e variados desafios no decorrer do percurso de Hedda Gabler, o que não é fácil, porque, para ser honesto, não li o livro. Então, deixei minha mente passear e aproveitei a ocasião para passar um tempo olhando para ela, e a ouvi dizendo:

— …e a melhor coisa é que Eilert Lövborg vai ser interpretado por Neil MacIntyre...

— Quem é Neil...?

— Lembra... Ele foi aquele Ricardo III incrível no último semestre...

— Ah, ele! — respondo, querendo dizer Ah, aquele imbecil com o tamborim!

Neil MacIntyre é o metido a ator que passou a maior parte do semestre passado mancando de muletas pelo bar dos estudantes para entrar no personagem. Senti vontade várias vezes de chutar a bengala, mas Alice está bastante entusiasmada com a experiência que ia ter e fica cada vez mais animada e passional, balançando as mãos pelo ar, mordendo os lábios e passando a mão na testa. Em suma, ela está repassando toda a performance, cena por cena. Por isso, tento ficar acordado descansando um pouco os olhos quando ela não estava notando e dando umas olhadas para a imagem desbotada do Snoopy na camiseta dela, na altura dos seios, levantando e descendo conforme a respiração, ou para a pele clara das coxas, tirando pequenas fotografias mentais.

312


Enfim, depois de Hedda jogar o manuscrito de seu amado Lövborg nas chamas e cometer suicídio fora do palco, Alice fala:

— Puxa, estou morrendo de vontade de fazer xixi — e sai pelo corredor em direção ao banheiro comunitário. Assim que ela sai, aproveito para, furtivamente, usar seu desodorante roll-on Cool Blue embaixo dos braços e ajustar o ângulo do despertador na mesinha de cabeceira, na esperança de impedir que ela visse que já eram três horas da manhã e começasse a ficar sonolenta. Porém, quando volta para o quarto, a primeira coisa que Alice faz é bocejar e dizer:

— Hora de dormir — e vai até a pia e começa a escovar os dentes.

— Você vai ter que usar minha escova, desculpe — comenta com a boca cheia de espuma. — Espero que não se importe.

— Não me importo, se você não se importa.

— Então, pode usar.

Pego a escova e a enxáguo embaixo da torneira, mas não muito, e ficamos lado a lado na pia enquanto eu escovo os dentes e ela tira a maquiagem com uma loção adstringente azul. Há um momento meio cômico em que eu cuspo — sem querer na sua mão quando ela vai pegar uma almofadinha de algodão do outro lado da pia. Nossos olhares se encontraram no espelho e Alice riu ao limpar minha espuma de menta do pulso. Penso haver algo de aconchegante e familiar no momento, como se estivéssemos nos preparando para dormir após receber nossos amigos mais próximos num maravilhoso e bem-sucedido jantar comemorativo, mas não digo nada disso em voz alta, pois, afinal, não sou um grande e completo cretino.

Tiro o suéter verde e a calça de moletom, tomando cuidado para não parecer muito provocante, sexualmente falando, e penso em ficar com as meias de escalada, pelo conforto. No entanto, não é um visual legal, cueca e meias. Por isso, tiro as meias e as coloco perto da cama, por via das dúvidas.

— Você quer ficar do lado da parede ou...? — pergunta ela.

— Então, eu fico do lado da parede, tudo bem?

— Tudo bem...

— Você tem um copo de água?

— Tenho. — Ela entra debaixo da colcha de retalhos feita à mão, e eu vou atrás.

No começo, não nos tocamos muito, não de propósito, e nos acotovelamos um pouco ao percebermos o quanto a cama é pequena. Enfim nos ajustamos no que parece ser uma posição funcional, que envolve nos deitarmos dobrados em paralelo, como duas aspas, mas não ouso tocar nela, como se Alice fosse uma cerca elétrica. O que, de certo modo, é verdade.

— Confortável? — pergunta ela.

— Uh-hum.

— Furma fem, Brian.

O quê?

— Furma fem?

— É uma coisa que meu pai costumava dizer, em vez de durma bem.

— Furma fem você também, Alice.

— Você apaga a luz?

— Você não quer dizer apaga a fuz? — brinco, o que considerei algo bem espirituoso de se inventar às 3h42 da manhã, porém ela não diz nada, não emite nenhum som, e, então, apago a luz. Por um momento, me pergunto se isso serve como um catalisador para perdermos as inibições e soltar nossos potentes anseios mútuos secretos, mas só deixo o quarto escuro. Deitamos exatamente como antes, em aspas, sem nos tocarmos, e logo fica claro que será impossível de aguentar ficar quieto e não tocar nela. Por isso, relaxo ligeiramente e minha coxa toca a curva da sua nádega esquerda, e ela não se encolhe nem dá uma cotovelada na minha, digamos, região pélvica; por isso, suponho que não haja problema.

Mas percebo que não sei bem o que fazer com os braços. O braço direito embaixo do meu torso começa a formigar, e, então, me mexo e bato nos rins de Alice.

— Ai!

— Desculpe!

— Tudo bem...

Só que meus braços estão meio pendurados na minha frente, em ângulos esquisitos, feito uma marionete com os fios cortados, e tento me lembrar do que costumo fazer com os braços quando estou sozinho na cama, o que, aliás, foi o caso no decorrer de toda a minha vida. Tento dobrar esses membros novos e esquisitos em cima do peito, o que também não parece muito certo, e Alice se mexe um pouco mais para perto da parede, arrastando o edredom com ela e deixando meu traseiro na beira da cama e uma corrente de ar invadindo minha cueca samba-canção. Tenho que decidir entre puxar a coberta de volta, o que pode parecer um pouco indelicado, ou arriscar chegar mais perto, que é o que faço, e fico encolhido e encostado nas costas dela, o que é maravilhoso, e acho, inclusive, que isso seja tecnicamente chamado de dormir de conchinha. Sinto o subir e descer da respiração dela e tento sincronizar com a minha, na esperança de que isso me ajudasse a adormecer, embora dormir pareça improvável, visto que meu coração está batendo muito, muito rápido.

Depois, o cabelo dela entra na minha boca. Tento afastar o chumaço contraindo toda uma variedade de músculos faciais, mas não parece funcionar; então afasto a cabeça o máximo possível, porém o cabelo continua lá, enfiando-se pelo meu nariz. Meus braços continuam dobrados em cima do peito, encostados nas costas de Alice, e preciso me curvar para trás para me libertar e afastar o cabelo, mas meu braço esquerdo fica para fora do edredom, frio, e não sei o que fazer com ele, e o braço direito começa a formigar, de câimbra ou devido a um infarto iminente, e o desodorante nas axilas está com um cheiro muito Cool and Blue, e minha samba-canção fica do lado de fora, mais uma vez sujeita à corrente de ar, meus pés estão gelados e começo a me perguntar se devia me esticar e pegar as meias ou...

— Você é bem inquieto, hein? — murmura Alice.

— Desculpe... Ainda não descobri o que fazer com os braços!

— Aqui... — e ela fez a coisa mais incrível do mundo. Pega meu braço e o puxa em volta de si, debaixo da camiseta, de modo que minha mão repousou na pele quente de sua barriga e acho que sinto a curva do seu seio encostando em mim.

— Melhor?

— Muito melhor.

— Com sono? — pergunta. É uma pergunta ridícula, considerando que ela está com seio direito roçando o meu pulso.

— Na verdade... Não.

— Eu também não. Conversa comigo.

— Sobre o quê?

— Qualquer coisa.

— OK. — E resolvo pegar o touro pelos chifres. — O que você achou do Spencer?

— Gostei dele.

— Você achou ele legal?

— Sim! Um pouco machão, um pouco arrogante... — explica, com um sotaque metido — …meio caipira, mas achei superlegal. E ele gosta muito de você.

— Bom, não sei quanto a isso...

— Não, gosta sim. Você devia ter ouvido ele elogiando você.

— Achei que ele estava dando em cima de você...

— De jeito nenhum! Foi o contrário disso... — diz ela.

O que isso quer dizer?

— Como assim? — pergunto.

Ela hesita, vira um pouco a cabeça e explicou:

— Bem... parece que ele acha que você... tem uma quedinha por mim.

— Spencer disse isso? A você, hoje à noite?

— Disse.

Aí está. Ela sabe. Não sei o que dizer, nem para onde olhar. Por isso, rolo e fico de barriga para cima e solto um suspiro.

— Bom, obrigado, Spencer, muito obrigado...

— Ele não teve intenção de te prejudicar.

— O que mais ele disse?

— Bom, ele estava bem bêbado, mas disse que você é um cara muito legal e... Bem... as palavras exatas foram que você, às vezes, pode ser meio imbecil, mas que, na verdade, é leal e decente, que não tem muitos caras como você por aí, e que, se tivesse algum juízo, eu deveria... sair com você.

— Spencer disse tudo isso?

— Disse.

A imagem de Spencer embaixo do poste, na garoa, com a mão na testa, e eu me afastando, passa pela minha cabeça.

— No que você está pensando? — pergunta Alice, voltando a olhar para a parede.

— Hum... Não sei.

— Mas imagino que seja verdade, não é? Achei que poderia ser verdade.

— E tão óbvio assim?

— Bom, acho que já notei você olhando pra mim de vez em quando. E também teve aquele nosso jantar...

— Meu Deus! Eu tenho tanta vergonha daquele jantar...

— Não. Foi legal. Só que...

— O quê?

Ela fica em silêncio por um momento, depois respira fundo e aperta a minha mão, o tipo de gesto que se faz para avisar alguém que seu hamster morreu, e me preparo para o velho discurso do vamos ser amigos. Mas ela se vira e olha para mim, põe o cabelo atrás da orelha e quase vejo seu rosto na luz alaranjada do despertador.

— Não sei, Brian... Eu sou um mau negócio, sabe...

— Não é verdade...

— Sou, sim, é verdade. Todos os relacionamentos que tive terminaram com alguém saindo magoado...

— Eu não me importo...

— Eu me importaria se fosse você. Quer dizer, você sabe como eu sou...

— Eu sei... Você me contou. Mas já falei: não me importo. Não é melhor tentar? Quer dizer, não seria melhor dar uma chance, ver como a gente se dá? Dependeria só de você, claro, porque você pode não gostar de mim...

— Bom, claro que andei pensando a respeito. Mas não é você. Não tenho tempo para esse negócio de namoro, com o papel da Hedda, a equipe e tudo o mais. Dou muito valor à minha independência...

— Eu também dou valor à minha independência! — afirmo, embora seja uma mentira de proporções épicas, claro. O que se pode fazer com independência? O que é independência? Independência é ficar encarando o teto no meio da noite com as unhas cravadas nas palmas das mãos. Independência é perceber que a única pessoa com quem você falou o dia inteiro foi o cara da loja de bebidas. Independência é comer um sanduíche no Burger King num sábado à tarde. Quando se refere à independência, Alice fala de algo bem diferente. Independência é prerrogativa de pessoas muito confiantes, ocupadas, populares e atraentes que não sentem algo tão simples e banal como a solidão.

E não se engane: a pior coisa que existe é ser solitário. Conte para alguém que você tem problemas com bebida ou algum distúrbio alimentar, ou que seu pai morreu quando era pequeno, e quase dá para ver os olhos da pessoa se iluminarem com aquele drama absoluto e fascinante e demonstrarem compaixão, porque você tem um problema, algo com o que podem se envolver, conversar e analisar, talvez até curar. Mas, se você disser que é solitário, as pessoas parecem solidárias, mas, preste bem atenção, e verá a mão sorrateira passar por suas costas e pegar a maçaneta rumo a uma súbita retirada, como se a solidão em si fosse contagiosa. Porque ser solitário é muito banal, vergonhoso, comum, e simplesmente chato e feio.

Bem, fui solitário feito uma cobra minha vida toda e estou cansado disso. Quero ser parte de um time, de uma parceria; quero sentir o murmúrio de admiração, de inveja e alívio, quando entrarmos juntos numa sala e todos disserem graças a Deus nós agora estamos bem, porque eles estão aqui. Mas também seria bom sermos um pouco assustadores, meio intimidadores, afiados como uma navalha — Dick e Nicole Diver em Suave é a noite, glamourosos e sexualmente atraídos um pelo outro, feito Burton e Taylor, ou como Arthur Miller e Marilyn Monroe, porém estáveis e sensatos e constantes, sem os surtos psicológicos, a infidelidade e o divórcio. Claro que não posso dizer nada disso em voz alta, pois nada nesse momento poderia assustar mais Alice, a não ser talvez tirar um machado do nada, e nem posso usar a palavra solitário, pois isso tende a deixar as pessoas desconfortáveis. Então é isso que eu deveria dizer? Respiro fundo, suspiro, ponho a mão na cabeça e falo, enfim:

— Tudo o que sei é que acho você absolutamente maravilhosa, Alice, e claro que muito bonita, não que isso importe, e que adoro estar com você, passar tempo com você, e acho que, bem... acho que nós deveríamos... — e, então, há uma pausa, e aí eu beijo Alice Harbinson.

E nós estamos nos beijando, mesmo, nos beijando na boca e tudo o mais. No começo, seus lábios estavam quentes, mas secos e um pouquinho rachados, e sinto um pedaço de pele rígida e morta no seu lábio inferior, que considero arrancar com os dentes, mas penso que talvez seja audacioso demais dar uma mordida logo no comecinho do beijo. Talvez eu pudesse tirar com o beijo. Será que dá? Dá para tirar pele morta com o beijo? O que seria preciso fazer? Estava prestes a tentar quando Alice afasta a cabeça, e, quando acho que talvez tenha estragado tudo, ela sorri, leva a mão à boca, arranca a pele morta do lábio, deixando-o cair ao lado da cama. Depois, limpa os lábios com as costas da mão, olha para conferir se não tem sangue, passa a língua por eles e nos beijamos de novo, e é o paraíso.

Quando se trata de beijos, obviamente não sou nenhum especialista, mas tenho certeza de que esse foi um beijo bom. Bem diferente da experiência com Rebecca Epstein. Rebecca é uma ótima pessoa, muito divertida e tudo o mais, mas seu beijo é meio áspero. A boca de Alice não tem aspereza nenhuma, só maciez e calor, e, apesar do leve bafo quente e mentolado, que deve ser meu, eu estava no paraíso, ou estaria, se, de repente, não percebesse que não sabia o que fazer com a minha língua, que resolveu ficar densa e carnuda, como se fosse embalada a vácuo. Será que uma língua ficaria bem aqui?, me pergunto. E a resposta vem com a língua dela tocando meus dentes com leveza, depois pegando uma das minhas mãos e pondo em cima do Snoopy deitado na casinha na camiseta, em seguida por dentro da camiseta, e, depois disso, confesso que tudo ficou meio turvo.

32


PERGUNTA: Qual era o nome mais conhecido do filho do rabino húngaro Eric Weisz, famoso pelos seus feitos de escapismo e desaparecimento?

RESPOSTA: Harry Houdini.


Na manhã seguinte, nos beijamos um pouco mais, mas com um impulso erótico menos ardente do que na noite anterior, já que estamos à luz do dia e ela pode ver com o que está lidando. Além do mais, Alice tem Oficina de Máscaras às 9h15. Por isso, pouco depois das 8h estou com meus sapatos enlameados nas mãos rumo à porta.

— Tem certeza de que não quer que eu acompanhe você?

— Não, não, tudo bem...

— Certeza?

— Preciso arrumar meu material, tomar um banho, essas coisas...

Eu me sentiria muito feliz em ficar para ver isso, e, de certo modo, acho até que mereço, mas é um banheiro comunitário, o que, obviamente, torna as coisas difíceis. Além do mais, tenho de me lembrar: seja distante, dê uma de desinteressado...

— Bem, obrigado por me abrigar — digo, tentando ser um pouco insolente, mas sem sucesso, e me abaixando para lhe dar um beijo. Ela se afasta um pouco rápido demais, e, por um momento, me pergunto se deveria me sentir ofendido, porém ela logo dá uma explicação perfeitamente racional:

— Desculpe, mau hálito!

— De maneira alguma — garanto, apesar de o hálito dela estar mesmo muito, muito ruim. Mas não me incomodo. Ela podia estar soltando fogo pela boca que eu não iria me importar.

— Você podia estar soltando fogo pela boca que eu não iria me importar.

Ela emite um som hummm de ceticismo e revira os olhos de um modo encantador.

— Acho melhor ir antes que alguém veja você. E você... Brian...

— Sim?

— Não é pra contar para ninguém... Promete?

— Claro!

— Nosso segredo...?

— Com certeza.

— Completamente?

— Prometo.

— OK. Pronto? — Ela abre a porta e espia o corredor para conferir se a barra estava limpa, depois me dá um empurrãozinho carinhoso, como se fosse um paraquedista que não quer saltar do avião, e me viro bem a tempo de ver seu lindo rosto desaparecendo atrás da porta, sorrindo, tenho certeza.

Sento-me no aquecedor do corredor e bato meus sapatos arruinados um no outro, jogando lama por todo o piso.

Flutuo até chegar em casa. Não como nada além de batatinhas e amendoim nas últimas 24 horas e estou morto de fome, e consegui estirar um músculo do pescoço enquanto beijava Alice, o que devia ser uma coisa boa. Também estou com aquela sensação de tontura, vazio e embriaguez que a gente sente quando fica acordado a noite toda, basicamente funcionando à base de adrenalina, triunfo e saliva de outra pessoa. Paro na lanchonete e pego uma lata de Fanta, uma barrinha de Mars e uma caixa de balas de menta para o café da manhã e começo a me sentir melhor.

Era uma bela e fria manhã de inverno, e uma multidão de crianças segurava a mão dos pais a caminho da escola. Parado, comendo minhas balas no cruzamento de pedestres, vejo uma garotinha ao meu lado me olhando com curiosidade, observando meus sapatos e a calça, ainda cobertos de lama, como se eu tivesse mergulhado em leite com chocolate. Imagino que isso devia lembrar a gravura de algum livro infantil. Então, sorrio para a garotinha, me abaixei e digo numa voz bem J. D. Salinger:

— Eu dei um mergulho em leite com chocolate!

Mas alguma coisa acontece com as palavras entre meu cérebro e a boca, e, de repente, isso soa como a coisa mais estranha e assustadora que alguém já falou a uma criança. A mãe dela também parece ter essa impressão, pois me olha com uma carranca como se eu fosse O Sequestrador de Crianças, pega a filha e atravessa a rua antes mesmo de o sinal abrir. Deixo para lá, pois decidi que nada estragaria essa manhã. Quero manter aquela sensação de júbilo inebriado pelo maior tempo possível, mas há alguma coisa me incomodando, uma coisa da qual não consigo me livrar.

Spencer. O que dizer a Spencer? Pedir desculpas, talvez. Mas nada muito solene, não faria nenhum estardalhaço, só meio que dizer ei, desculpe por ontem à noite, acho que as coisas saíram um pouco do controle, cara, e daí vamos rir e esquecer. E contaria como Alice e eu fizemos amor, exceto que não usaria esse termo, diria que transamos e as coisas voltariam ao normal. Claro que seria melhor se ele fosse embora ainda aquele dia, mas vou fazer um esforço, matar umas aulas, acertar as coisas e vou com ele até a estação do trem.

Mas, quando cheguei a Richmond House, ele não estava lá. O quarto está exatamente como o deixamos na tarde anterior — o estrado da cama, a bagunça de cobertores e toalhas frias e úmidas, o cheiro de amônia da cerveja caseira e do gás. Cheguei a me perguntar se teria deixado alguma coisa ali, mas aí me lembrei de que ele não tinha trazido nada. Só uma sacola plástica com um Daily Mirror de três dias atrás e um pastelão de carne rançoso, que ainda estava ao lado da minha mesa, onde ele deixou. Angustiado, peguei a sacola plástica e fui em direção à cozinha, na qual Josh e Marcus estavam comendo ovos poché e verificando a cotação das suas ações no The Times.

— Algum de vocês viu o Spencer ontem à noite?

— Não, não vi — respondeu Josh.

— Ele não estava com você? — resmungou Marcus.

— Não, nós nos separamos na festa. Achei que ele fosse voltar sozinho.

— Por quê? E onde você esteve, então, seu andarilho encardido? — perguntou Josh, com malícia.

— Passei a noite no alojamento de uma amiga. Minha amiga Alice — expliquei, antes de me lembrar de que não era para contar a ninguém.

— Queeeeeeeeeeeem? — os dois perguntaram, em uníssono

— Bom, sabem como. É tudo uma questão de ter charme! — esclareci.

Coloquei as coisas do Spencer na lixeira e saí. Eu não tenho charme, claro, nunca tive charme, nunca vou ter charme, nem sei bem o que é charme, mas não há razão para não deixar as pessoas achando que tenho charme, mesmo que seja só por um tempinho.

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