DAVOS

A Alegre Parteira entrou furtivamente em Porto Branco na maré da noite, com a vela remendada ondulando a cada rajada de vento.



Era uma velha coca, e mesmo na juventude nunca ninguém a achava bonita. A figura da proa mostrava uma mulher rindo e agarrando um bebê por um pé, mas as bochechas da mulher e o rabo do bebê estavam esburacados por bichos. Incontáveis camadas de monótona tinta castanha cobriam o casco; as velas eram cinzentas e esfarrapadas. Não um era navio que atraísse um segundo olhar, a menos que fosse para tentar perceber como permanecia à tona de água. Além disso, a Alegre Parteira era conhecida em Porto Branco. Durante anos realizou diligentemente um humilde comércio entre esse porto e Vilirmãs.


Não era o tipo de chegada que Davos Seaworth esperava quando zarpou com Salla e sua frota. Nessa altura, tudo aquilo parecera mais simples. Os corvos não tinham trazido ao Rei Stannis a aliança de Porto Branco, portanto, Sua Graça mandaria um emissário para negociar pessoalmente com o Lorde Manderly. Como exibição de força, Davos chegaria a bordo da galé Valiriana, de Salla, com o resto da frota lisena atrás. Todos os cascos seriam listrados: de preto e amarelo, rosa e azul, verde e branco, púrpura e ouro. Os lisenos adoravam tons vivos, e Salladhor Saan era o mais colorido de todos. Salladhor, o Esplêndido, pensou Davos, mas as tempestades escreveram o fim de tudo isso.


Em vez da entrada triunfal, ia se contrabandear para dentro da cidade, como poderia ter feito vinte anos antes. Até saber em que pé estavam às coisas, era mais prudente desempenhar o papel de marinheiro comum, não de lorde.


As muralhas de pedra caiada de Porto Branco ergueram-se na frente deles, na margem oriental, onde a Faca Branca mergulhava no golfo. Algumas das defesas da cidade tinham sido fortalecidas desde a última vez que Davos estivera lá, meia dúzia de anos antes. O quebra-mar que dividia o porto interior do exterior foi fortificado com uma longa muralha de pedra com nove metros de altura e quase uma milha de comprimento, com torres a cada cem metros. Havia também fumo erguendo-se do Rochedo das Focas, onde em tempos tinham existido apenas ruínas. Isso pode ser bom ou mau, dependendo do lado que Lorde Wyman escolher.


Davos sempre gostou daquela cidade, desde a primeira vez que viera até ali como criado a bordo do Gato da Calçada. Embora fosse pequena quando comparada com Vilavelha e Porto Real, era limpa e bem ordenada, com ruas calcetadas largas e direitas que faziam com que fosse fácil a um homem se orientar. As casas eram feitas de pedra caiada, com telhados muito inclinados de ardósia cinzenta-escura. Roro Uhoris, o velho e rabugento capitão do Gato da Calçada, costumava dizer que era capaz de distinguir um porto de outro só pelo modo como cheiravam. As cidades eram como mulheres, insistia; cada uma tinha o seu próprio e único odor. Vilavelha era tão florida como uma viúva perfumada. Lannisporto era uma ama-de-leite, fresca e terra-a-terra, com fumo de lenha no cabelo. Porto Real fedia como uma rameira por lavar. Mas o odor de Porto Branco era penetrante e salgado, e também cheirava um pouco a peixe.


— Cheira como uma sereia deve cheirar — dizia Roro. — Cheira a mar.


E ainda cheira, pensou Davos, mas também conseguia cheirar o fumo de turfa que pairava vindo do Rochedo das Focas. A pedra marinha dominava as abordagens ao porto exterior, um maciço afloramento verde acinzentado que se erguia quinze metros acima das águas. O seu topo estava coroado por um círculo de pedras gastas, um forte anelar dos Primeiros Homens que se manteve desolado e abandonado por centenas de anos. Agora não estava abandonado. Davos via balistas e catapultas de fogo por trás das pedras verticais, e besteiros a espreitar entre elas. Ali em cima deve estar frio e úmido. Em todas as suas visitas anteriores podiam se ver focas se aquecendo ao sol sobre as pedras partidas, lá em baixo. O Bastardo Cego o obrigava sempre a contá-las quando o Gato da Calçada zarpava de Porto Branco; quanto mais focas houvesse, dizia Roro, mais sorte teriam na viagem. Agora não havia focas. O fumo e os soldados as tinham espantado para longe. Um homem mais sensato veria nisso uma advertência. Se eu tivesse um dedal de bom senso, teria ido com Salla. Podia ter voltado para sul, para junto de Marya e dos filhos. Perdi quatro filhos ao serviço do rei, e o quinto serve como seu escudeiro. Devia ter o direito de dar carinho os dois rapazes que ainda restam. Passou-se muito tempo desde que os vi pela última vez.


Em Atalaialeste, os irmãos negros lhe tinham dito que não havia amizade entre os Manderly de Porto Branco e os Bolton do Forte do Pavor. O Trono de Ferro fizera ascender Roose Bolton a Protetor do Norte, pelo que fazia sentido que Wyman Manderly declarasse o seu apoio a Stannis. Porto Branco não pode resistir sozinho. A cidade precisa de um aliado, um protetor. O Lorde Wyman precisa tanto do Rei Stannis como Stannis precisa dele. Pelo menos foi o que pareceu em Atalaialeste.


Vilirmãs corroerá essa esperança. Se o Lorde Borrell falava a verdade, se os Manderly tencionavam juntar as suas forças aos Bolton e aos Frey... não, não remoeria essa ideia. Em breve conheceria a verdade. Rezava para não ter chegado tarde demais.


Aquela muralha do quebra-mar oculta o porto interior, compreendeu na altura em que a Alegre Parteira arriava a vela. O porto exterior era maior, mas o porto interior oferecia melhor ancoragem, abrigado pela muralha da cidade de um lado e pela elevada massa do Covil do Lobo do outro, e agora também pela muralha do quebra-mar. Em Atalaialeste-do-Mar, Cotter Pyke disse a Davos que Lorde Wyman estava construindo galés de guerra. Podia haver uma vintena de navios escondidos atrás daquelas muralhas, à espera apenas de uma ordem para se lançarem ao mar.


Por trás das espessas muralhas brancas da cidade, o Novo Castelo erguia-se orgulhoso e pálido na sua colina. Davos viu também o telhado abobadado do Septo das Neves, coroado por altas estátuas dos Sete. Os Manderly tinham trazido a Fé para o norte quando foram expulsos da Campina. Porto Branco possuía também o seu bosque sagrado, um melancólico emaranhado de raízes, ramos e rochas trancado por trás das arruinadas muralhas negras do Covil do Lobo, uma antiga fortaleza que agora servia apenas como prisão. Mas eram principalmente os septões a dominar ali.


O tritão da Casa Manderly estava em evidência por todo o lado, esvoaçando nas torres do Novo Castelo, por cima do Portão das Focas, e ao longo das muralhas da cidade. Em Atalaialeste, os nortenhos insistiam que Porto Branco nunca abandonaria a sua fidelidade a Winterfell, mas Davos não viu qualquer sinal do lobo gigante dos Stark. Também não há leões. Lorde Wyman não pode ter se declarado por Tommen ainda, de contrário teria içado a sua bandeira.


Os pontões estavam repletos. Um aglomerado de barcos menores estava amarrado ao longo do mercado de peixe, desembarcando pescado. Viu também três corredores de rio, barcos longos e esguios, feitos de forma resistente para enfrentar as rápidas correntes e os rápidos pedregosos da Faca Branca. Mas eram as embarcações marítimas que lhe interessaram mais; um par de carracas tão sem graça e andrajosas como a Alegre Parteira, a galé mercante Dançarina da Tempestade, as cocas Bravo Magíster e Cornucópia, um galeão de Bravos identificado pelo casco e velas de cor púrpura...


... e ali, mais atrás, o navio de guerra.


Vê-lo atravessou-lhe a esperança com uma faca. O casco era negro e dourado, a figura da proa mostrava um leão com uma pata levantada. Leostrela, diziam as letras na sua popa, por baixo de um estandarte flutuante que ostentava as armas do rei rapaz sentado no Trono de Ferro. Um ano antes, não teria sido capaz de lê-las, mas o Meistre Pylos lhe ensinou algumas das letras em Pedra do Dragão. Por uma vez, a leitura lhe deu pouco prazer. Davos rezava pela galé ter se perdido nas mesmas tempestades que tinham assolado a frota de Salla, mas os deuses não tinham mostrado essa bondade. Os Frey estavam ali, e ele teria de enfrentá-los.


A Alegre Parteira foi amarrada à ponta de um desgastado pontão de madeira no porto exterior, bem longe da Leostrela. Enquanto a tripulação a prendia aos pilares e baixava uma prancha de embarque, o capitão aproximou-se descontraidamente de Davos. Casso Mogat era um mestiço do mar estreito, gerado por um baleeiro ibbenês e por uma rameira de Vilirmãs. Com só um metro e meio de altura e muito peludo, pintava o cabelo e as suíças de um verde musgoso. Isso o fazia parecer um toco de árvore com botas amarelas. Apesar da aparência, parecia ser um bom marinheiro, embora fosse um chefe duro para a tripulação.


— Quanto tempo fica em terra?


— Pelo menos um dia. Pode ser mais. — Davos descobriu que os lordes gostavam de manter as pessoas à espera. Suspeitava de que o faziam para deixá-las ansiosas e para demonstrar o seu poder.


— A Parteira fica aqui três dias. Mais nenhum. Vão me procurar lá em Vilirmãs.


— Se as coisas correrem bem, posso estar de volta amanhã de manhã.


— E se essas coisas correrem mal?


Posso não regressar.


— Não precisa esperar por mim.


Um par de homens da alfândega estava subindo a bordo quando Davos desceu a prancha, mas nenhum lhe deu sequer um relance. Estavam ali para falar com o capitão e inspecionar o porão; marinheiros comuns não lhes diziam respeito, e poucos homens pareciam tão comuns como Davos. Tinha uma altura mediana, a sua astuta cara de camponês estava bronzeada pelo vento e pelo sol, a barba grisalha e o cabelo castanho eram bem salgados de cinzento. O vestuário era simples também: botas velhas, calças castanhas e túnica azul, uma capa de lã por tingir, presa com um pregador de madeira. Usava um par de luvas de couro manchadas pelo sal para esconder os dedos da mão que Stannis encurtou tantos anos antes. Davos quase nem parecia um lorde, muito menos a Mão de um rei. E ainda bem que era assim, até saber em que pé as coisas estavam ali.


Abriu caminho ao longo do pontão e pelo meio do mercado de peixe. O Bravo Magísteres estava embarcando hidromel. Pilhas com quatro barris de altura distribuíam-se pelo cais. Atrás de uma pilha viu três marinheiros jogando dados. Mais à frente, as peixeiras divulgavam a colheita do dia, e um rapaz estava batendo um ritmo num tambor enquanto um velho urso com um ar miserável dançava em círculo para um anel de corredores do rio. Dois lanceiros tinham sido colocados no Portão das Focas, com o símbolo da Casa Manderly no peito, mas estavam muito concentrados em namoriscar com uma rameira das docas para prestar qualquer atenção a Davos. O portão estava aberto, com a porta levadiça erguida. Juntou-se ao tráfego que o atravessava.


Lá dentro ficava uma praça empedrada com um fontanário no centro. Um tritão de pedra erguia-se das suas águas, com seis metros de altura da cauda à coroa. A sua barba encaracolada estava verde e branca de líquens, e um dos dentes do tridente partira-se antes de Davos nascer, mas mesmo assim ainda conseguia impressionar. Os indígenas o chamavam de Velho Pés-de-Peixe. A praça tinha o nome de um lorde morto qualquer, mas nunca ninguém a chamava de coisa que não fosse Praça do Pés-de-Peixe.


A praça estava cheia de gente naquela tarde. Uma mulher lavava a roupa de baixo no fontanário do Pés-de-Peixe, e a pendurava no tridente para secar. Sob os arcos da coluna dos vendedores ambulantes, os escribas e os cambistas tinham se instalado para o negócio, juntamente com um feiticeiro andante, uma ervanária e um malabarista muito ruim. Um homem vendia maçãs que trazia num carrinho de mão e uma mulher oferecia arenques com rodelas de cebola. Tropeçava em galinhas e crianças por todo o lado. As enormes portas de carvalho e ferro da Velha Casa da Moeda tinham estado sempre fechadas quando Davos estivera na Praça do Pés-de-Peixe, mas hoje encontravam-se abertas. Lá dentro vislumbrou centenas de mulheres, crianças e velhos, aglomerados no chão sobre pilhas de peles. Alguns tinham ardendo pequenas fogueiras para cozinhar.


Davos parou sob a coluna e trocou meio dinheiro por uma maçã.


— Há gente vivendo na Velha Casa da Moeda? — perguntou ao vendedor.


— Os que não têm outro lugar para viver. A maior parte é de plebeus vindos da Faca Branca. Gente dos Hornwood também. Com aquele Bastardo do Bolton à solta, toda gente quer estar dentro das muralhas. Não sei o que sua senhoria pensa fazer com todos eles. A maioria apareceu só com trapos às costas.


Davos sentiu uma pontada de culpa. Vieram para cá em busca de refúgio, vieram para uma cidade intocada pelos combates, e aqui apareço para voltá-los a se arrastar para a guerra. Deu uma dentada na maçã e sentiu-se também culpado por isso.


— Como é que comem?


O vendedor de maçãs encolheu os ombros.


— Uns pedem. Outros roubam. Montes de mocinhas a entrar pro negócio, como as moças fazem sempre quando não têm mais nada pra vender. Qualquer rapaz de metro e meio consegue arranjar lugar nas casernas de sua senhoria, desde que consiga agarrar numa lança.


Então está recrutando homens. Isso podia ser bom ou mau, dependia. A maçã era seca e farinhenta, mas Davos obrigou-se a dar outra dentada.


— O Lorde Wyman pretende juntar-se ao Bastardo?


— Bom — disse o vendedor de maçãs — da próxima vez que sua senhoria vier cá abaixo com fome de maçãs, tentarei me lembrar de lhe perguntar.


— Ouvi dizer que a filha ia casar com um Frey qualquer.


— A neta. Também ouvi dizer isso, mas sua senhoria esqueceu-se de me convidar pro casamento. Olha, vai acabar com isso? Eu aceito o resto de volta. Essas sementes são boas.


Davos atirou-lhe o caroço. Uma maçã má, mas ficar sabendo que Manderly está recrutando valeu meio dinheiro. Deu a volta ao Velho Pés-de-Peixe, passou por onde uma jovem estava vendendo xícaras de leite fresco acabado de obter da sua cabra leiteira. Estava recordando mais da cidade, agora que estava ali. Depois do lugar para onde o tridente do Velho Pés-de-Peixe apontava, ficava uma viela onde se vendia bacalhau frito, estaladiço e dourado por fora e branco e laminoso por dentro. Ali ficava um bordel mais limpo do que a maioria, onde um marinheiro podia desfrutar de uma mulher sem temer ser assaltado ou morto. Do outro lado, numa daquelas casas que se agarravam às muralhas do Covil do Lobo como cracas a um velho casco, costumava ficar uma cervejaria onde faziam uma cerveja preta tão pesada e saborosa que um barril dela podia dar tanto lucro como dourado da Árvore em Bravos e no Porto de Ibben, desde que os indígenas deixassem ao cervejeiro alguma cerveja para vender.


Mas era vinho que ele queria; amargo, escuro e muito ruim. Atravessou a praça a passos largos e desceu uma escada que levava a uma taberna chamada Enguia Preguiçosa, por baixo de um armazém cheio de peles de ovelha. Nos seus dias de contrabando, a Enguia foi renomada por oferecer as rameiras mais velhas e o vinho mais nojento de Porto Branco, além de empadões de carne cheios de toucinho e cartilagem que eram incomestíveis nos melhores dias e venenosos nos piores. Com comida daquela, a maior parte dos indígenas evitava o lugar, deixando-o para marinheiros que não conheciam outros melhores. Nunca se via um guarda da cidade na Enguia Preguiçosa, e um funcionário da alfândega também não.


Havia coisas que nunca mudavam. Dentro da Enguia, o tempo não passava. O teto abobadado estava enegrecido de fuligem, o chão era de terra batida, o ar cheirava a fumo, carne estragada e vômito rançoso. As gordas velas de sebo que havia sobre as mesas davam mais fumo do que luz, e o vinho que Davos pediu parecia mais castanho do que tinto àquela luz escassa. Quatro rameiras estavam sentadas perto da porta, bebendo. Uma deu-lhe um sorriso esperançoso quando ele entrou. Quando Davos abanou a cabeça, a mulher disse qualquer coisa que fez as companheiras rir. Depois disso, nenhuma delas lhe prestou qualquer atenção.


À parte as rameiras e o proprietário, Davos tinha a Enguia para si. A cave era grande, cheia de recantos e nichos sombrios onde um homem podia ficar sozinho. Levou o vinho para um deles e sentou-se para esperar, com as costas encostadas a uma parede.


Não muito tempo depois deu por si a fitar a lareira. A mulher vermelha conseguia ver o futuro no fogo, mas tudo o que Davos Seaworth via eram as sombras do passado: os navios ardendo, a corrente em fogo, as sombras verdes relampejando na barriga das nuvens, a Fortaleza Vermelha por cima de tudo, melancólica. Davos era um homem simples, que ascendera por sorte, pela guerra e por Stannis. Não compreendia porque os deuses haveriam de levar quatro rapazes tão jovens e fortes como os filhos, mas poupar o seu fatigado pai. Havia noites em que julgava ter sido deixado na terra para salvar Edric Storm mas, nessa altura, o filho bastardo do Rei Robert estava a salvo nos Degraus, e, no entanto, Davos ainda continuava vivo. Será que os deuses têm mais alguma tarefa para mim? perguntou a si próprio. Se tiverem, Porto Branco pode ser uma parte dela. Provou o vinho, e depois despejou metade da taça no chão ao lado do pé.


Quando o pôr-do-sol caiu lá fora, os bancos da Enguia começaram se encher de marinheiros. Davos gritou ao proprietário, pedindo mais uma taça. Quando o homem lhe trouxe, trouxe também uma vela.


— Quere comida? — perguntou. — Temos empadões de carne.


— Que tipo de carne está lá dentro?


— O tipo do costume. É bom.


As rameiras riram.


— O que ele quer dizer é que é cinzenta — disse uma delas.


— Fecha a porra dessa boca. Você come.


— Eu como todos os tipos de merda. Não quer dizer que goste.


Davos apagou a vela assim que o proprietário se afastou e recostou-se nas sombras. Os marinheiros eram os maiores mexeriqueiros do mundo quando o vinho fluía, mesmo vinho tão barato como aquele. Bastava escutar.


A maior parte do que ouviu já soubera em Vilirmãs, através do Lorde Godric ou dos indígenas da Barriga da Baleia. Tywin Lannister estava morto, assassinado pelo filho anão; o seu cadáver federa tanto que depois ninguém conseguiu entrar no Grande Septo de Baelor durante dias; a Senhora do Ninho de Águia foi assassinada por um cantor; quem governava agora o Vale era Mindinho, mas Bronze Yohn Royce jurava derrubá-lo; Balon Greyjoy também morrera, e os irmãos combatiam pela Cadeira da Pedra do Mar; Sandor Clegane tornara-se fora-da-lei e andava saqueando e matando nas terras ao longo do Tridente; Myr, Lys e Tyrosh estavam enredados em outra guerra; uma revolta de escravos enfurecia-se a leste.


Outras novas eram mais interessantes. Robett Glover estava na cidade e andava tentando recrutar homens, com pouco sucesso. Lorde Manderly virou um ouvido surdo às suas suplicas. Dizia-se que afirmava que Porto Branco estava fatigado de guerra. Isso era mau. Os Ryswell e os Dustin tinham surpreendido os homens de ferro no Rio Febre e passaram os seus dracares pelo archote. Isso era pior. E agora o Bastardo de Bolton estava cavalgando para sul com Hother Umber para se juntar e desencadear um ataque contra Fosso Cailin.


— O Terror das Rameiras em pessoa — afirmou um homem do rio que acabava de trazer uma carga de peles e madeira pelo Faca Branca abaixo — com trezentos lanceiros e cem arqueiros. Alguns homens de Hornwood juntaram-se a eles, e também homens dos Cerwyn. — Isso era o pior de tudo.


— É melhor que o Lorde Wyman mande alguns homens para combater se sabe o que é bom para ele — disse o velhote na ponta da mesa. — O Lorde Roose é agora o Protetor. Porto Branco está obrigado pela honra a responder às suas convocatórias.


— Que soube alguma vez algum Bolton sobre honra? — disse o proprietário da Enguia, enquanto lhes enchia as taças com mais vinho castanho.


— O Lorde Wyman não vai a lugar nenhum. É gordo demais.


— Ouvi dizer que está doente. Não faz nada a não ser dormir e chorar, dizem. Tá doente demais pra sair da cama quase todos os dias.


— Gordo demais, quer dizer.


— Gordo ou magro nada tem nada a ver com a coisa — disse o proprietário da Enguia. — Os leões têm o filho dele.


Ninguém falou do Rei Stannis. Ninguém sequer parecia saber que Sua Graça viera para norte ajudar a defender a Muralha. Em Atalaialeste só se falava de selvagens, criaturas e gigantes, mas ali ninguém parecia dedicar-lhes sequer um pensamento.


Davos inclinou-se para a luz.


— Julgava que os Frey tinham matado o filho. Foi o que ouvimos dizer em Vilirmãs.


— Mataram Sor Wendel — disse o proprietário. — Os ossos dele repousam no Septo Nevado com velas a toda a volta, se quiser dar uma olhada. Mas Sor Wylis ainda é cativo.


Cada vez pior. Davos soube que Lorde Wynian teve dois filhos, mas julgara que ambos estivessem mortos. Se o Trono de Ferro tem um refém... O próprio Davos foi pai de sete filhos, e perdeu quatro na Água Negra. Sabia que faria qualquer coisa que os deuses ou os homens lhe exigissem para proteger os outros três. Steffon e Stannis estavam a milhares de léguas dos combates e em segurança, mas Devan estava em Castelo Negro, era um escudeiro do rei. O rei cuja causa pode erguer-se ou cair com Porto Branco.


Os que bebiam com ele estavam agora conversando sobre dragões.


— É um doido varrido — disse um remador da Dançarina da Tempestade. — O Rei pedinte está morto há anos. Um senhor qualquer dos cavalos dothraki lhe cortou a cabeça.


— É o que nos dizem — disse o velho. — Mas se calhar estão mentindo. Ele morreu a meio mundo de distância, se é que morreu mesmo. Quem saberá? Se um rei me quisesse morto, podia ser que eu lhe fizesse a vontade e fingisse ser cadáver. Nunca nenhum de nós viu o corpo dele.


— Eu nunca vi o cadáver de Joffrey, nem o de Robert — rosnou o proprietário da Enguia. — Se calhar também estão vivos. Se calhar Baelor, o Abençoado, esteja só tirando uma soneca durante todos estes anos.


O velho fez uma careta.


— O Príncipe Viserys não era o único dragão, pois não? Temos a certeza de que mataram o filho do Príncipe Rhaegar? Era um bebê.


— Não havia também uma princesa qualquer? — perguntou uma rameira. Era a mesma que disse que a carne era cinzenta.


— Duas — disse o velho. — Uma era filha de Rhaegar, a outra irmã dele.


— Daena — disse o homem do tio. — A irmã. Daena de Pedra do Dragão. Ou seria Daera?


— Daena era a mulher do velho Rei Baelor — disse o remador. — Eu em tempos remei num navio batizado em honra dela. O Princesa Daena.


— Se era mulher de um rei, era uma rainha.


— Baelor nunca teve uma rainha. Era santo.


— Não quer dizer que nunca tenha se casado com a irmã — disse a rameira. — Nunca dormiu com ela, nem nada. Quando o fizeram rei, trancou-a numa torre. E às outras irmãs também. Haviam três.


— Daenela — disse ruidosamente o proprietário. — O nome dela era esse. Da filha do Rei Louco, hã? não do raio da mulher do Baelor.


— Daenerys — disse Davos. — Foi batizada em honra da Daenerys que casou com o Príncipe de Dorne durante o reinado de Daeron Segundo. Não sei o que foi feito dela.


— Eu sei — disse o homem que começou com a conversa dos dragões, um remador bravosiano com uma escura brigantina de lã. — Quando estivemos lá em baixo, em Pentos, ancoramos ao lado de um navio mercante chamado Donzela de Olhos Amendoados, e andei bebendo com o criado do capitão. Ele me contou uma bela história sobre uma miudinha franzina que tinha vindo a bordo em Qarth, para tentar arranjar passagem para Westeros para si e para três dragões. Tinha cabelo prateado e olhos púrpura. "Fui eu próprio a levá-la ao capitão," jurou-me este criado, "mas ele não quis saber daquilo. Há mais lucro em cravinho e açafrão, ele me disse, e as especiarias não te dão fogo às velas."


Gargalhadas varreram a cave. Davos não se juntou a eles. Sabia o que acontecera à Donzela de Olhos Amendoados. Os deuses eram cruéis por permitirem que um homem velejasse por meio mundo e depois o levarem a perseguir uma falsa luz quando estava quase em casa. Aquele capitão era um homem mais corajoso do que eu, pensou, enquanto se dirigia à porta. Uma viagem ao oriente, e um homem podia viver rico como um lorde até ao fim dos seus dias. Quando foi mais jovem, Davos sonhava em fazer tais viagens, mas os anos passaram dançando como traças em volta de uma chama, e de algum modo a altura nunca pareceu certa. Um dia, disse a si próprio. Um dia, depois que a guerra terminar e o Rei Stannis estiver sentado no Trono de Ferro e não ter mais necessidade de cavaleiros das cebolas. Levarei Devan comigo. Steffe e Stanny também, se tiverem idade para isso. Veremos esses dragões, e todas as maravilhas do mundo.


Lá fora, o vento soprava em rajadas, fazendo as chamas tremerem nas candeias que iluminavam a praça. Ficou frio desde que o Sol se pôs, mas Davos lembrava-se atravessando até o manto mais quente para congelar o sangue de um homem nas veias. Porto Branco era um banho quente por comparação.


Havia outros lugares onde podia encher as orelhas; uma estalagem famosa pelos seus empadões de lampreia, a cervejaria onde os fatores de lã e os homens da alfândega costumavam beber, uma sala de saltimbancos onde se podia obter divertimentos devassos por algum dinheiro. Mas Davos sentia que já ouvira o suficiente. Cheguei tarde demais. Um velho instinto o fez levar a mão ao peito, onde em tempos guardava os ossos de seus dedos num pequeno saco pendurado com um fio de couro. Nada aí se encontrava. Perdeu a sorte nos incêndios da Água Negra, quando perdeu o navio e os filhos.


O que devo fazer agora? Aconchegou melhor a capa. Subo a colina e me apresento aos portões do Castelo Novo, para fazer uma súplica fútil? Regresso a Vilirmãs? Volto para junto de Marya e dos rapazes? Compro um cavalo e cavalgo pela estrada do rei, para dizer a Stannis que não tem amigos em Porto Branco e também não tem esperança?


A Rainha Selyse deu um banquete a Salla e aos seus capitães, na véspera da frota zarpar. Cotter Pyke se juntou a eles, bem como quatro outros oficiais superiores da Patrulha da Noite. A Princesa Shireen também foi autorizada a estar presente. Enquanto o salmão era servido, Sor Axell Florent divertiu a mesa com a história de um príncipe Targaryen que tinha um macaco como animal de estimação. Este príncipe gostava de vestir a criatura com a roupa do seu filho morto e fingir que ela era uma criança, segundo afirmava Sor Axell, e de vez em quando propunha casamentos para ela. Os senhores assim honrados declinavam sempre educadamente, mas claro que declinavam.


— Mesmo vestido de seda e veludo, um macaco continua a ser um macaco — dissera Sor Axell. — Um príncipe mais sensato teria sabido que não se podia mandar um macaco fazer um trabalho de homem. — Os homens da rainha tinham rido, e vários dirigiram sorrisos a Davos. Não sou macaco nenhum, pensou. Sou tanto um senhor como vocês, e um homem melhor. Mas a recordação ainda o magoava.


O Portão das Focas foi fechado para a noite. Davos não poderia regressar à Alegre Parteira até à alvorada. Estava ali para passar a noite. Olhou para o Velho Pés-de-Peixe com o seu tridente quebrado. Atravessei chuvas, naufrágios e tempestades. Não regressarei sem fazer o que vim fazer, por mais inútil que isso possa parecer. Podia ter perdido os dedos e a sorte, mas não era nenhum macaco vestido de veludo. Era a Mão de um rei.


A Escada do Castelo era uma rua com degraus, uma larga via de pedra branca que levava do Covil do Lobo, ao rés da água, ao Castelo Novo na sua colina. Tritões de mármore iluminavam o caminho enquanto Davos subia, com tigelas de óleo de baleia ardendo aninhadas nos braços. Quando chegou ao topo, virou-se para olhar para trás. Dali conseguia olhar para baixo, para os portos. Ambos. Por trás da muralha do quebra-mar, o porto interior estava repleto de galés de guerra. Davos contou vinte e três. O Lorde Wyman era um homem gordo, mas não um homem ocioso, aparentemente.


Os portões do Castelo Novo tinham sido fechados, mas uma poterna se abriu quando ele gritou, e um guarda apareceu para lhe perguntar o que queria. Davos mostrou-lhe a fita preta e dourada que ostentava os selos reais.


— Preciso falar imediatamente com o Lorde Manderly — disse. — O que quero é com ele e só com ele.



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