JON

Quando ouviu a ordem, a boca de Sor Alliser torceu-se em algo semelhante a um sorriso, mas os olhos permaneceram tão frios e duros como pederneira.



— Então o rapaz bastardo envia-me para a morte.


— Morte — gritou o corvo de Mormont. — Morte, morte, morte.


Não está ajudando. Jon afastou a ave com uma mão.


— O rapaz bastardo envia-o para uma patrulha. Para encontrar os nossos inimigos e matá-los se for necessário. Tem perícia com uma lâmina. Foi mestre-de-armas aqui e em Atalaialeste.


Thorne tocou o cabo da sua espada.


— Sim. Desperdicei um terço da minha vida tentando ensinar os rudimentos do combate com espadas a rústicos, palermas e patifes. De pouca ajuda isso será para mim naquela floresta.


— Dywen estará com você, bem como outro patrulheiro experiente.


— A gente o ensina o que precisar de saber, sor — disse Dywen a Thorne, casquinando. — Ensina-o a limpar o seu cu bem nascido com folhas, como um patrulheiro deve de ser.


Kedge Olhobranco riu daquilo, e Jack Negro Bulwer cuspiu. Sor Alliser limitou-se a dizer:


— Gostaria que eu recusasse. Depois poderia cortar-me a cabeça, como fez com Slynt. Não lhe darei esse prazer, bastardo. Mas é melhor que reze para que seja uma lâmina selvagem a matar-me. Aqueles que os Outros matam não ficam mortos... e lembre-se. Eu volto, Lorde Snow.


— Rezo para que volte. — Jon nunca contaria Sor Alliser Thorne entre os seus amigos, mas não deixava de ser um irmão. Nunca ninguém disse que se tinha de gostar dos irmãos.


Não era coisa fácil enviar homens para território selvagem, sabendo que havia boas hipóteses de eles nunca regressarem. São todos homens experientes, disse Jon a si próprio... mas o seu tio Benjen e os seus patrulheiros também tinham sido homens experientes e a floresta assombrada engolira-os sem deixar rastro. Quando dois deles finalmente vaguearam de regresso à Muralha, foram como criaturas. Nem pela primeira vez, nem pela última, Jon deu por si a interrogar-se sobre o que tinha acontecido a Benjen Stark. É possível que os patrulheiros deparem com algum sinal deles, disse a si próprio, sem chegar a acreditar realmente nessa possibilidade.


Dywen lideraria uma patrulha, Jack Preto Bulwer e Kedge Olho- branco as outras duas. Estes, pelo menos, estavam ansiosos por esse dever.


— É bom ter outra vez um cavalo por baixo — disse Dywen ao portão, chupando os seus dentes de madeira. — Com o seu perdão, senhor, mas andávamos todos ficando com os cus cheios de lascas de ficarmos sentados por aí. — Nenhum homem em Castelo Negro conhecia a floresta tão bem como ele, as árvores e os ribeiros, as plantas que podiam comer-se, os costumes dos predadores e das presas. Thorne está em melhores mãos do que merece.


Jon viu os cavaleiros partir do alto da Muralha; três grupos, de três homens cada, levando cada um um par de corvos. De lá de cima, os garranos não pareciam maiores do que formigas, e Jon não conseguia distinguir os patrulheiros uns dos outros. Mas conhecia-os. Todos os nomes lhe estavam gravados no coração. Oito bons homens pensou, e um... bem, veremos.


Depois do último dos cavaleiros desaparecer entre as árvores, Jon Snow desceu na gaiola do guincho com Edd Doloroso. Alguns flocos de neve rarefeita estava caindo enquanto eles faziam a sua lenta descida, dançando no vento que soprava com rajadas. Um seguiu a gaiola para baixo, pairando logo para lá das barras. Estava caindo mais depressa do que eles desciam, e de vez em quando desaparecia abaixo deles. Depois uma rajada de vento apanhava-o e voltava a empurrá-lo para cima. Jon podia ter estendido a mão através das barras para apanhá-lo, se tivesse desejado.


— Tive um sonho assustador ontem à noite, senhor — confessou Edd Doloroso. — Você era o meu intendente, ía buscar a minha comida e limpava os meus restos. Eu era senhor comandante, sem um momento de paz.


Jon não sorriu.


— O seu pesadelo, a minha vida.


As galés de Cotter Pyke estavam relatando números cada vez maiores de gente livre ao longo das costas arborizadas a norte e leste da Muralha. Tinham sido vistos acampamentos, jangadas meio construídas, até o casco de uma coca quebrada que alguém começara a reparar. Os selvagens desapareciam na floresta sempre que eram vistos, sem dúvida para voltar a sair logo que os navios de Pyke passassem. Entretanto, Sor Denys Mallister continuava vendo fogueiras à noite a norte da Garganta. Ambos os comandantes pediam mais homens.


E onde vou eu arranjar mais homens? Jon enviara dez dos selvagens de Vila Toupeira a cada um deles; rapazes verdes, velhos, alguns feridos e enfermos, mas todos capazes de executar trabalho de uma forma ou de outra. Longe de ficarem contentes, Pyke e Mallister tinham ambos respondido com queixas. Quando pedi homens, tinha em mente homens da Patrulha da Noite, treinados e disciplinados, de cuja lealdade não devesse nunca ter motivos para duvidar, escrevia Sor Denys. Cotter Pyke tinha menos rodeios. Podia enforcá-los na Muralha como aviso para os outros selvagens se manterem afastados, mas não vejo nenhum outro uso a dar-lhes, escrevera o Meistre Harmune por ele. Não confiaria em gente desta para me limpar o penico e dez não são suficientes.


A gaiola de ferro deslocou-se para baixo na ponta da sua longa corrente, gemendo e retinindo, até finalmente parar com um baque trinta centímetros acima do chão na base da Muralha. Edd Doloroso abriu a porta e saltou para baixo, quebrando com as botas a crosta da última neve. Jon seguiu-o.


À porta do armeiro, no pátio, o Emmett de Ferro continuava incentivando os rapazes que tinha a cargo. A canção de aço batendo em aço despertou em Jon uma ânsia. Fez-lhe lembrar dias mais quentes e mais simples, quando foi rapaz em Winterfell e media forças com Robb sob o olhar vigilante de Sor Rodrik Cassei. Também Sor Rodrik caíra, morto por Theon Vira-Casaca e pelos seus homens de ferro quando tentara recuperar Winterfell. O grande forte da Casa Stark era uma desolação chamuscada. Todas as minhas recordações estão envenenadas.


Quando o Emmett de Ferro o viu, ergueu uma mão e o combate cessou.


— Senhor Comandante. Como podemos servir-lo?


— Com os seus três melhores.


Emmett sorriu.


— Arron. Emrick. Jace.


Cavalo e Robin Saltitão foram buscar chumaços para o Senhor Comandante, bem como uma camisa de cota de malha para vestir por cima, e grevas, gorjal e meio-elmo. Um escudo negro debruado de ferro para o braço esquerdo, uma espada embotada para a mão direita. A espada reluzia num cinzento prateado à luz da alvorada, quase nova. Uma das últimas a sair da forja de Donal Uma pena que ele não tivesse vivido o suficiente para lhe pôr um fio. A lâmina era mais curta do que Garralonga, mas era feita de aço comum, o que a tornava mais pesada. Os seus golpes seriam um pouco mais lentos.


— Servirá. — Jon virou-se para enfrentar os adversários. — Venham.


— Qual de nós quer primeiro? — perguntou Arron.


— Todos. Ao mesmo tempo.


— Três conta um? — Jace estava incrédulo. — Não seria bonito. — Pertencia ao último grupo de Conwy, um filho de sapateiro vindo da Ilha Bela. Isso talvez explicasse aquela ideia.


— É verdade. Vem cá.


Quando o fez, a lâmina de Jon atingiu-o do lado da cabeça, desequili- brando-o. Num piscar de olhos, o rapaz tinha uma bota no peito e a ponta de uma espada na garganta.


— A guerra nunca é bonita ou justa — disse-lhe Jon. — Agora são dois contra um e você está morto.


Quando ouviu gravilha a ser esmagada, soube que os gêmeos estavam arremetendo. Aqueles dois ainda vão dar patrulheiros. Girou, parando o golpe de Arron com a borda do escudo e enfrentando o de Emrick com a espada.


— Isso não são lanças — gritou. — Aproximem-se mais. — Passou ao ataque para lhes mostrar como se fazia. Primeiro Emrick. Golpeou-lhe a cabeça e os ombros, à direita, à esquerda e de novo à direita. O rapaz ergueu o escudo e tentou um contragolpe desajeitado. Jon atirou o seu próprio escudo contra o de Emrick e o fez cair com um golpe atirado à perna... e não foi cedo demais, porque Arron estava em cima dele, com um golpe esmagador atirado à parte de trás da sua coxa que o levou a apoiar-se num joelho. Isto vai deixar uma nódoa negra. Parou o golpe seguinte com o escudo, após o que se voltou a pôr em pé e empurrou Arron pelo pátio fora. Ele é rápido, pensou, enquanto as espadas se beijavam uma e duas e três vezes, mas precisa se tornar mais forte. Quando viu alívio nos olhos de Arron, compreendeu que Emrick estava atrás de si. Deu uma volta e atirou-lhe uma espadeirada contra as omoplatas que o fez colidir com o irmão. Nessa altura Jace já se voltara a levantar, portanto Jon voltou a derrubá-lo. — Detesto quando os mortos se levantam. Vais sentir o mesmo no dia em que enfrentar uma criatura. — Recuando, baixou a espada.


— O corvo grande pode dar bicadas nos pequenos — rosnou uma voz atrás dele — mas terá estômago suficiente para combater com um homem?


Camisa de Chocalho estava encostado a uma parede. Uma barba por fazer, irregular, cobria-lhe as bochechas chupadas, e finos cabelos castanhos eram-lhe soprados para frente dos pequenos olhos amarelos.


— Lisonjeie-se — disse Jon.


— Sim, mas a você limpava.


— Stannis queimou o homem errado.


— Não. — O selvagem sorriu-lhe com uma boca cheia de dentes castanhos e quebrados. — Queimou o homem que tinha de queimar para o mundo inteiro ver. Todos fazemos o que temos de fazer, Snow. Até os reis.


— Emmett, arranja-lhe uma armadura. Quero-o vestido de aço, não de ossos velhos.


Depois de vestido de cota de malha e placas de aço, o Senhor dos Ossos pareceu endireitar-se um pouco mais. Também pareceu mais alto, com os ombros mais espessos e poderosos do que Jon teria imaginado. É a armadura, não o homem, disse a si próprio. Até Sam podia parecer quase formidável, vestido da cabeça aos pés com o aço de Donal Noye. O selvagem recusou com um gesto o escudo que Cavalo lhe ofereceu. Em vez disso pediu uma espada de duas mãos.


— Ora aqui está um belo som — disse, golpeando o ar. — Esvoaça para mais perto, Snow. Quero fazer-lhe voar as penas.


Jon investiu contra ele com dureza.


Camisa de Chocalho deu um passo para trás e enfrentou a arremetida com um golpe a duas mãos. Se Jon não tivesse interposto o escudo, podia ter-lhe amolgado a placa de peito para dentro e partido metade das costelas. A força do golpe o fez cambalear por um momento, fez-lhe percorrer o braço com uma violenta sacudidela. Ele golpeia com mais força do que eu teria suposto. A rapidez do adversário era outra surpresa desagradável. Moveram-se aos círculos em volta um do outro, trocando um golpe por outro. O Senhor dos Ossos deu tantos quantos recebeu. A grande espada de duas mãos devia ter sido bastante mais pesada do que a espada longa de Jon, mas o selvagem brandia-a com tanta velocidade que cegava.


Os novatos do Emmett de Ferro aclamaram o seu Senhor Comandante a princípio, mas a implacável velocidade dos ataques de Camisa de Chocalho depressa os reduziu ao silêncio. Ele não pode continuar com isto por muito tempoy disse Jon a si próprio quando parou mais um golpe. O impacto o fez soltar um grunhido. Mesmo embotada, a grande espada fez estalar o seu escudo de pinho e dobrou o rebordo de ferro. Ele se cansará em breve. Tem de se cansar. Jon atirou uma estocada à cara do selvagem, e Camisa de Chocalho puxou a cabeça para trás. Deitou uma cutelada à barriga da perna de Camisa de Chocalho, só para vê-lo saltar habilmente por cima da lâmina. A grande espada esmagou-se no ombro de Jon, com força suficiente para lhe amolgar a espaldeira e entorpecer o braço, por baixo. Jon recuou. O Senhor dos Ossos veio atrás dele, às gargalhadas. Ele não tem escudo, fez Jon lembrar a si próprio, e aquela espada monstruosa é pesada demais para paradas. Eu devia estar a dar dois golpes por cada um dos dele.


Mas, sem que percebesse como, não estava, e os golpes que dava não estavam a fazer efeito. O selvagem parecia estar sempre a afastar-se ou a deslizar para o lado, de modo que a espada de Jon ricocheteava num ombro ou num braço. Não demorou muito tempo a dar por si a ceder mais terreno, tentando evitar os golpes esmagadores do outro e passando metade do tempo falhando. O seu escudo fora reduzido a acendalhas. Sacudiu-o para fora do braço. Tinha suor a escorrer-lhe pela cara e a picar-lhe os olhos por baixo do elmo. Ele é forte demais e muito rápido, percebeu-se, e com aquela grande espada tem vantagem de peso e alcance sobre mim. Teria sido um combate diferente se estivesse armado com Garralonga, mas...


A sua oportunidade chegou no contragolpe seguinte de Camisa de Chocalho. Jon atirou-se em frente, investindo contra o outro homem, e caíram juntos, com as pernas emaranhadas. Aço estrondeou em aço. Ambos os homens perderam as espadas enquanto rolavam no chão duro. O selvagem enfiou-lhe um joelho entre as pernas. Jon socou-o com um punho revestido de cota de malha. Sem que soubesse como, Camisa de Chocalho acabou por cima, com a cabeça de jon nas mãos. Baseu com ela no chão, depois abriu-lhe a viseira.


— Se eu tivesse um punhal, tinhas um olho a menos por esta altura — rosnou, antes do Cavalo e do Emmett de Ferro o puxarem de cima do peito do Senhor Comandante. — Largem-me, corvos de merda — rugiu.


Jon lutou por se apoiar num joelho. Tinha a cabeça a ressoar e a boca estava cheia de sangue. Cuspiu-o e disse:


— Boa luta.


— Lisonjeias-se, corvo. Nem sequer suei.


— Da próxima vez suará — disse Jon. Edd Doloroso ajudou-o a pôr-se em pé e desprendeu-lhe o elmo. Adquirira várias profundas amolgadelas que não estavam lá quando o envergara. — Liberte-o. — Jon atirou o elmo ao Robin Saltitão, o qual o deixou cair.


— Senhor — disse Emmett de Ferro — ele ameaçou a sua vida, todos o ouvimos. Disse que se tivesse um punhal...


— Ele tem um punhal. Ali mesmo no cinto. — Há sempre alguém mais rápido e mais forte, dissera um dia Sor Rodrik a Jon e a Robb. Esse é o homem que quer enfrentar no pátio antes de precisar enfrentar outros semelhantes no campo de batalha.


— Lorde Snow? — disse uma voz suave.


Virou-se para ir dar com Clydas debaixo da arcada quebrada, com um pergaminho na mão.


— De Stannis? — Jon esteve à espera de receber notícias do rei. A Patrulha da Noite não participava, bem o sabia, e não lhe devia importar qual dos reis sairia triunfante. Mas de algum modo importava. — É Bosque Profundo?


— Não, senhor. — Clydas apresentou-lhe o pergaminho. Estava muito bem enrolado e selado, com uma gota de dura cera cor-de-rosa. Só o Forte do Pavor usa cera rosada para selos. Jon descalçou a manopla, pegou na carta, quebrou o selo. Quando viu a assinatura, esqueceu o espancamento que sofrera do Camisa de Chocalho.


Ramsay Bolton, Senhor de Boscorno, lia-se nela, numa letra enorme e pontiaguda. A tinta castanha desfez-se em flocos quando Jon a esfregou com o polegar. Por baixo da assinatura de Bolton, Lorde Dustin, a Senhora Cerwyn e quatro Ryswells tinham acrescentado as suas próprias marcas e selos. Uma mão mais tosca desenhara o gigante da Casa Umber.


— Podemos saber o que diz, senhor? — perguntou Emmett de Ferro.


Jon não viu motivo para não lhe dizer.


Fosso Cailin está tomado. Os cadáveres esfolados dos homens de ferro foram pregados a postes ao longo da estrada do rei. Roose Bolton convoca todos os senhores leais a Vila Acidentada, para afirmar a sua lealdade ao Trono de Ferro e celebrar o casamento do filho com... — O coração pareceu parar-lhe por um momento. Não, isto não é possível. Ela morreu em Porto Real, com o pai.


— Lorde Snow? — Clydas olhou-o atentamente com os seus turvos olhos rosados. — Está... está se sentindo mal? Parece...


— Ele vai casar com Arya Stark. A minha irmã mais nova. — Jon quase conseguiu ve-la naquele momento, de cara comprida e desajeitada, toda com joelhos nodosos e cotovelos pontiagudos, com a sua cara suja e o cabelo emaranhado. Lavariam aquela e penteariam este, não duvidava, mas não conseguia imaginar Arya num vestido de noiva, nem na cama de Ramsay Bolton. Por mais assustada que esteja, não o mostrará. Se ele tentar pôr-lhe uma mão em cima. ela lutará.


— A sua irmã — disse o Emmett de Ferro — que idade tem...


Por esta altura deve ter onze anos, pensou Jon. Ainda é uma criança.


— Eu não tenho irmã alguma. Só irmãos. Só tenho a vocês. — A Senhora Catelyn rejubilaria se ouvisse aquelas palavras, bem o sabia. Isso não as tornava mais fáceis de dizer. Os dedos fecharam-se em volta do pergaminho. Era bom que pudessem esmagar a garganta de Ramsay Bolton com esta facilidade.


Clydas pigarreou.


— Haverá resposta?


Jon abanou a cabeça e afastou-se.


Ao cair da noite, as nódoas negras que Camisa de Chocalho lhe causara tinham-se tornado roxas.


— Tornarão amarelas antes de se desvanecerem — disse ao corvo de Mormont. — Parecerei tão macilento como o Senhor dos Ossos.


— Ossos — concordou a ave. — Ossos, ossos.


— Conseguia ouvir o tênue murmúrio de vozes que vinha lá de fora, embora o som fosse fraco demais para distinguir palavras. Parecem estar a mil léguas de distância. Era a Senhora Melisandre e os respetivos seguidores junto da sua fogueira. Todos os dias, ao ocaso, a mulher vermelha liderava os seguidores nas suas preces do pôr-do-sol, pedindo ao seu deus vermelho para acompanhá-los através da escuridão. Porque a noite é escura e cheia de terrores. Com Stannis e a maior parte dos homens da rainha longe, o rebanho da mulher estava muito diminuído; meia centena dos membros do povo livre de Vila Toupeira, a mancheia de guardas que o rei deixara com ela, talvez uma dúzia de irmãos negros que tinham adotado o deus vermelho como seu.


Jon sentia-se tão cansado como um homem de sessenta anos. Sonhos sombrios, pensou, e culpa. Os seus pensamentos não paravam de voltar a Arya. Não tenho maneira de ajudá-la. Pus de parte toda a família quando proferi as minhas palavras. Se algum dos meus homens me dissesse que a sua irmã estava em perigo, eu lhe diria que isso não era problema seu. Depois de um homem proferir as palavras, o seu sangue era negro. Negro como o coração de um bastardo. Mandara Mikken fazer uma espada para Arya em tempos, uma lâmina de espadachim, feita em ponto pequeno para lhe caber na mão. Agulha. Perguntou a si próprio se ela ainda a teria. Espeta-lhes a ponta aguçada, dissera-lhe, mas se ela tentasse espetá-la no Bastardo isso poderia custar-lhe a vida.


— Snow — resmungou o corvo do Lorde Mormont. — Snow, snow.


De súbito, deixou de conseguir aguentar nem mais um momento.


Foi encontrar Fantasma à sua porta, roendo um osso de boi para chegar ao tutano.


— Quando foi que voltou? — o lobo gigante pôs-se em pé, abandonando o osso e seguindo atrás de Jon.


Mully e Barricas estavam em pé, dentro de portas, apoiados às lanças.


— Tá um frio cruel lá fora, senhor — avisou Mully por entre a sua emaranhada barba cor de laranja. — Ficará muito tempo aqui fora?


— Não. Só preciso de respirar um pouco. — Jon saiu para a noite. O céu estava cheio de estrelas, e o vento soprava em rajadas ao longo da Muralha. Até a Lua parecia fria; todo o seu rosto estava em pele de galinha. Foi então que a primeira rajada o apanhou, cortando através das suas camadas de lã e couro para lhe pôr os dentes a bater. Atravessou o pátio a passos largos, penetrando nos dentes desse vento. O manto esvoaçava ruidosamente nos seus ombros. Fantasma vinha atrás dele. Para onde vou? O que estou eu fazendo? Castelo Negro estava imóvel e silencioso, com os corredores e as torres escuros. O meu domínio, refletiu Jon Snow. O meu palácio, o meu lar, o meu comando. Uma ruína.


A sombra da Muralha, o lobo gigante roçou-lhe nos dedos. Durante meio segundo, a noite ganhou vida com um milhar de cheiros, e Jon Snow ouviu o estalar da crosta que se quebrava numa extensão de neve velha. Percebeu-se, de súbito, de que alguém estava atrás de si. Alguém que cheirava quente como um dia de verão.


Quando se virou, viu Ygritte.


Ela estava em pé sob as pedras chamuscadas da Torre do Senhor Comandante, envolta em escuridão e em memória. Tinha o luar no cabelo, no seu cabelo ruivo beijado pelo fogo. Quando o viu, o coração de Jon saltou-lhe para a boca.


— Ygritte — disse.


— Lorde Snow. — A voz era de Melisandre.


A surpresa o fez encolher-se.


— Senhora Melisandre. — Deu um passo para trás. — Confundi-lhe com outra pessoa. — À noite, todas as vestes são cinzentas. Mas de súbito a dela era vermelha. Não compreendia como a podia ter confundido com Ygritte. Era mais alta, mais magra, mais velha, embora o luar lhe lavasse anos da cara. Névoa saía-lhe das narinas, e de mãos pálidas expostas à noite. — Vai ficar com os dedos congelados — avisou Jon.


— Se for essa a vontade de R'hllor. Os poderes da noite não podem tocar em alguém cujo coração está banhado no fogo sagrado do deus.


— O seu coração não me preocupa. Só as suas mãos.


— O coração é tudo o que importa. Não se desespere, Lorde Snow. O desespero é uma arma do inimigo, cujo nome não pode ser proferido. A sua irmã não está perdida para você.


— Não tenho nenhuma irmã. — As palavras eram facas. O que você sabe do meu coraçãot sacerdotisa? O que você sabe da minha irmã?


Melisandre pareceu divertida.


— Como se chama, esta irmã mais nova que não tem?


— Arya. — A voz de Jon soou rouca. — Minha meia-irmã, na verdade...


—... Você é de nascimento bastardo. Não me tinha esquecido. Vi a sua irmã nos meus fogos, fugindo deste casamento que lhe arranjaram. Vindo para cá, para junto de você. Uma menina de cinza montada num cavalo moribundo, vi-o tão claramente como se fosse dia. Ainda não aconteceu, mas acontecerá. — Olhou para Fantasma. — Posso tocar no seu lobo?


A ideia deixou Jon inquieto.


— É melhor não.


— Ele não me fará mal. Chama-o de Fantasma, certo?


— Sim, mas...


— Fantasma. — Melisandre fez da palavra uma canção.


O lobo gigante avançou para ela. Cauteloso, rodeou-a num círculo, farejando. Quando ela estendeu a mão também a cheirou, após o que lhe encostou o focinho aos dedos.


Jon soltou uma expiração branca.


— Ele não é sempre tão...


— ... Caloroso? O calor chama calor, Jon Snow. — Os olhos dela eram duas estrelas vermelhas, brilhando no escuro. À sua garganta o rubi cintilava, um terceiro olho que brilhava mais vivamente do que os outros. Jon viu os olhos de Fantasma ardendo, vermelhos, como ardiam quando captavam a luz da forma certa.


— Fantasma — chamou. — A mim.


O lobo gigante olhou-o como se fosse um estranho.


Jon franziu as sobrancelhas, incrédulo.


— Isto é... estranho.


— Acha que sim? — ela ajoelhou e coçou Fantasma atrás da orelha. — A sua Muralha é um lugar estranho, mas há aqui poder, se quiser usá-lo. Poder em você e neste animal. Você resiste contra ele, e é esse o seu erro. Aceite-o. Use-o.


Eu não sou um lobo, pensou.


— E como faria eu tal coisa?


— Eu posso mostrar-lhe. — Melisandre envolveu Fantasma num braço esguio, e o lobo gigante lambeu-lhe a cara. — O Senhor da Luz, na sua sabedoria, fez-nos macho e fêmea, duas partes de um todo maior. Na nossa junção existe poder. Poder para criar vida. Poder para criar luz. Poder para deitar sombras.


— Sombras. — O mundo pareceu mais escuro quando proferiu a palavra.


— Todos os homens que caminham pela terra deitam uma sombra sobre o mundo. Algumas são esguias e fracas, outras longas e escuras. Devía olhar para trás de você, Lorde Snow. A Lua beijou-lhe e lançou a sua sombra sobre o gelo a uma altura de seis metros.


Jon olhou por sobre o ombro. A sombra estava lá, tal como ela dissera, delineada em luar sobre a Muralha. Uma menina de cinza num cavalo moribundo, pensou. Vindo para cá, para você. Arya. Voltou a virar-se para a sacerdotisa vermelha. Jon conseguia sentir o calor que ela emanava. Ela tem poder. O pensamento chegou sem ser chamado, capturando-o com dentes de ferro, mas aquela não era uma mulher à qual quisesse ficar devedor, nem mesmo pela irmã mais nova.


— Dalla disse-me um dia uma coisa. A irmã de Val, a mulher de Mance Rayder. Disse que a feitiçaria era uma espada sem cabo. Não há maneira segura de lhe pegar.


— Uma sábia mulher. — Melisandre levantou-se, com as vestes vermelhas a agitarem-se ao vento. — Mas uma espada sem cabo continua a ser uma espada, e uma espada é uma bela coisa para se ter quando se está rodeado de inimigos. Escute-me, Jon Snow. Nove corvos voaram para a floresta branca para encontrar os seus inimigos. Três deles estão mortos. Ainda não morreram, mas a morte está lá fora à sua espera, e eles cavalgam ao seu encontro. Você os enviou para serem os seus olhos nas trevas, mas estarão sem olhos quando regressarem para junto de você. Vi as suas caras pálidas e mortas nas minhas chamas. Órbitas vazias, chorando sangue. — Empurrou o cabelo vermelho para trás, e os seus olhos vermelhos brilharam. — Não acredita em mim. Acreditará. O custo dessa crença será três vidas. Um pequeno preço a pagar pela sabedoria, dirão alguns... mas não um preço que terá de pagar. Lembre-se disso quando contemplar as caras cegas e devastadas dos seus mortos. E quando chegar esse dia, aceite a minha mão. — A névoa erguia-se da sua pele alva, e por um momento pareceu que chamas pálidas e feiticeiras estavam brincando entre os seus dedos. — Aceite a minha mão — voltou ela a dizer — e deixe-me salvar a sua irmã.



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