Num instante estava dormindo, no seguinte tinha acordado.
Kyra aninhava-se contra seu corpo, com um braço dobrado levemente sobre o dele, os seios roçando em suas costas. Conseguia ouvir sua respiração, suave e regular. O lençol estava emaranhado em volta deles. Era noite fechada. O quarto encontrava-se escuro e sossegado.
O que foi? Será que ouvi alguma coisa? Alguém?
O vento suspirava levemente contra as venezianas. Em algum lugar, a distância, ouviu os miados de uma gata no cio. Nada mais. Dorme, Greyjoy, disse a si mesmo. O castelo está em paz, e tem guardas em posição. Em sua porta, nos portões, no armeiro.
Poderia ter atribuído aquilo a um pesadelo, mas não se lembrava de ter sonhado. Kyra tinha-o deixado exausto. Até Theon ter mandado buscá-la, vivera todos os seus dezoito anos na vila de Inverno sem nunca pôr os pés dentro das muralhas do castelo. Veio até ele úmida, ardente e flexível como uma doninha, e havia certo tempero inegável em foder uma moça qualquer de taberna na cama de Lorde Eddard Stark.
Kyra murmurou sonolentamente quando Theon deslizou de debaixo de seu braço e se pôs em pé. Ainda havia algumas brasas incandescentes na lareira. Wex dormia no chão, aos pés da cama, enrolado dentro de seu manto e morto para o mundo. Nada se movia. Theon atravessou o quarto até a janela e escancarou as venezianas. A noite tocou-o com dedos frios, e a pele nua arrepiou-se. Encostou-se no parapeito de pedra e olhou para fora, para torres escuras, pátios vazios, céu negro e mais estrelas do que um homem poderia contar, mesmo se vivesse até os cem anos. Uma meia-lua flutuava acima da Torre do Sino e projetava seu reflexo na cobertura dos jardins de vidro. Não ouviu alertas nem vozes, nem sequer um passo.
Está tudo bem, Greyjoy. Ouve o silêncio? Devia estar bêbado de alegria. Tomou Winterfell com menos de trinta homens, um feito digno de canções. Theon dirigiu-se de volta à cama. Iria fazer Kyra rolar sobre as costas e fodê-la de novo, isso deveria banir aqueles fantasmas. Os gemidos e risinhos dela seriam uma pausa bem-vinda naquele silêncio.
Parou. Acostumara-se tanto aos uivos dos lobos gigantes que quase já não os ouvia… Mas uma parte dele, um instinto qualquer de caçador, tinha ouvido sua ausência.
Urzen estava em pé junto à porta, fora do quarto, um homem vigoroso com um escudo redondo atirado sobre as costas.
– Os lobos estão calados – disse-lhe Theon. – Vá ver o que estão fazendo, e volte logo – pensar nos lobos gigantes soltos o deixou nervoso. Lembrava-se do dia no bosque dos lobos em que os selvagens tinham atacado Bran. Verão e Vento Cinzento tinham-nos feito em pedaços.
Quando cutucou Wex com a ponta da bota, o rapaz sentou-se e esfregou os olhos.
– Verifique se Bran Stark e o irmão mais novo estão na cama. Depressa!
– Senhor? – Kyra chamou sonolentamente.
– Durma, isto não lhe diz respeito – Theon serviu-se de uma taça de vinho e bebeu. Estava o todo tempo à escuta, esperando ouvir um uivo. Homens de menos, pensou amargamente. Tenho homens de menos. Se Asha não vier…
Wex foi o mais rápido a voltar, balançando a cabeça de um lado para outro. Praguejando, Theon apanhou a túnica e os calções do lugar onde os tinha deixado cair no chão, na pressa de se atirar sobre Kyra. Sobre a túnica vestiu um justilho de couro com rebites de ferro, e prendeu uma espada e um punhal na cintura. O cabelo estava desordenado como a floresta, mas tinha preocupações maiores.
Àquela altura, Urzen tinha retornado.
– Os lobos estão desaparecidos.
Theon disse a si mesmo que tinha de ser tão frio e cauteloso como Lorde Eddard.
– Acorde o castelo – ordenou. – Reúna-os no pátio, todos, veremos quem falta. E diga a Lorren para fazer uma ronda pelos portões. Wex, comigo.
Perguntou a si mesmo se Stygg já teria chegado a Bosque Profundo. O homem não era um cavaleiro tão bom como dizia ser; nenhum dos homens de ferro era grande coisa sobre a sela, mas já havia passado bastante tempo. Asha podia perfeitamente estar a caminho. E se souber que perdi os Stark… Não era bom pensar nisso.
O quarto de Bran estava vazio, tal como o de Rickon, meia-volta de escada abaixo. Theon amaldiçoou-se. Devia ter colocado um guarda vigiando-os, mas tinha achado mais importante ter homens patrulhando as muralhas e protegendo os portões do que servindo de amas a um par de crianças, uma delas aleijada.
Ouviu soluços lá fora quando as pessoas do castelo foram sendo arrancadas das camas e levadas para o pátio. Vou lhes dar motivos para soluçar. Usei-os com gentileza, e é assim que me pagam. Até tinha ordenado que dois de seus homens fossem chicoteados até sangrar, por terem violado a garota dos canis, para lhes mostrar que pretendia ser justo. Mas ainda me culpam pelo estupro. E pelo resto. Achava aquilo injusto. Mikken matara-se por causa da boca, tal como Benfred. Quanto a Chayle, tinha de oferecer alguém ao Deus Afogado, era o que seus homens esperavam.
– Não o quero mal – tinha dito ao septão antes de atirarem-no ao poço –, mas você e os seus deuses já não têm lugar aqui – era de se pensar que os outros ficariam gratos por não ter escolhido um deles, mas não. Gostaria de saber quantos deles teriam feito parte daquela conspiração contra si.
Urven regressou com Lorren Negro.
– O Portão do Caçador – Lorren falou. – É melhor que venha ver.
O Portão do Caçador estava convenientemente situado perto dos canis e das cozinhas. Abria-se diretamente para campos de cultivo e florestas, permitindo aos cavaleiros ir e vir sem terem de passar primeiro pela vila de Inverno, e por isso era o favorito dos grupos de caçadores.
– Quem tinha a guarda aqui? – Theon quis saber.
– Drennan e Squint.
Drennan era um dos homens que tinha violado Palla.
– Se deixaram os garotos fugir, juro que dessa vez arrancarei mais do que um pedaço de pele das costas deles.
– Não vai ser preciso – Lorren Negro disse concisamente.
E não era. Encontraram Squint flutuando no fosso, de barriga para baixo, com as entranhas boiando atrás dele como um ninho de serpentes brancas. Drennan jazia seminu na guarita, na sala compacta onde se manobrava a ponte levadiça. Sua garganta tinha sido cortada de orelha a orelha. Uma túnica esfarrapada escondia as cicatrizes meio saradas de suas costas, mas suas botas estavam espalhadas pelo chão e os calções embaralhados em volta dos pés. Havia queijo numa pequena mesa perto da porta, ao lado de um jarro vazio, e duas taças.
Theon pegou uma e cheirou as borras de vinho no fundo.
– Squint estava lá em cima, nas ameias, não?
– Sim – Lorren respondeu.
Theon atirou a taça dentro da lareira.
– Diria que Drennan estava puxando os calções para baixo para enfiar na mulher quando ela enfiou nele. Ao que parece, sua própria faca do queijo. Alguém vá buscar uma lança para pescar o outro idiota do fosso.
O outro idiota estava num estado bastante pior do que Drennan. Quando Loren Negro o tirou da água, viram que um de seus braços tinha sido arrancado pelo cotovelo, faltava metade de seu pescoço, e havia um buraco irregular onde ficava o umbigo e a virilha. A lança rasgou suas tripas quando Lorren o puxou. O fedor era horrível.
– Os lobos gigantes – Theon falou. – Os dois, ao que parece – enojado, voltou para a ponte levadiça. Winterfell era cercado por duas sólidas muralhas de granito, com um fosso largo entre ambas. A muralha exterior erguia-se a vinte e quatro metros de altura, e a interior a mais de trinta. Faltando-lhe homens, Theon tinha sido forçado a abandonar as defesas exteriores e a colocar os guardas ao longo das muralhas interiores, mais altas. Não se atrevera a correr o risco de tê-los do lado errado do fosso, caso o castelo se rebelasse contra ele.
Devem ter sido dois ou mais, concluiu. Enquanto a mulher entretinha Drennan, os outros libertaram os lobos.
Theon pediu uma tocha e subiu à frente dos outros os degraus que conduziam à muralha. Movia a chama baixa à sua frente de um lado para o outro, à procura de… Ali. No interior do parapeito, na larga ameia que separava dois grandes merlões maciços.
– Sangue – ele anunciou. – Limpo sem cuidado. Suponho que a mulher tenha matado Drennan e descido a ponte levadiça. Squint ouviu o tinir das correntes, veio ver o que se passava e chegou até aqui. Empurraram o cadáver para o fosso através da ameia para não ser encontrado por outra sentinela.
Urzen espreitou ao longo das muralhas.
– Os outros torreões de vigia não estão longe. Vejo archotes ardendo…
– Archotes, não guardas – disse Theon de mau humor. – Winterfell tem mais torreões do que eu tenho homens.
– Quatro guardas no portão principal – disse Lorren Negro –, e cinco patrulhando as muralhas, além de Squint.
Urzen retrucou:
– Se ele tivesse tocado o berrante…
Sou servido por idiotas.
– Tente imaginar que quem estava aqui era você, Urzen. Está escuro e frio. Está há horas de sentinela, ansiando pelo fim de seu turno. Então, ouve um ruído e dirige-se ao portão, e de repente vê olhos no topo das escadas, brilhando, verdes e dourados, à luz do archote. Duas sombras correm para você mais depressa do que julgaria possível. Tem um vislumbre de dentes, começa a levantar a lança e eles esbarram em você e abrem sua barriga, rasgando o couro como se fosse pano para queijos – ele deu um forte empurrão em Urzen. – E agora está caído de costas, com as entranhas se derramando, e um deles tem os dentes em volta de sua garganta – Theon agarrou o pescoço magro do homem, apertou os dedos e sorriu. – Diga lá, em que momento durante tudo isso você para para soprar a merda do berrante? – empurrou Urzen rudemente, atirando-o aos tropeções contra uma das paredes. O homem esfregou a garganta. Devia ter mandado matar aqueles animais no dia em que tomamos o castelo, pensou, zangado. Já os tinha visto matar, sabia como eram perigosos.
– Temos de ir atrás deles – disse Lorren Negro.
– No escuro, não – Theon não apreciava a ideia de perseguir lobos selvagens na floresta à noite; os caçadores podiam facilmente se transformar em caça. – Esperaremos pela luz do dia. Até lá, é melhor que vá ter uma conversa com meus leais súditos.
No pátio, uma multidão inquieta de homens, mulheres e crianças tinha sido empurrada contra a muralha. A muitos não fora dado tempo para se vestirem; cobriam-se com mantas de lã, ou amontoavam-se nus sob mantos ou roupões. Uma dúzia de homens de ferro os rodeava, com tochas numa mão e armas na outra. O vento soprava em rajadas, e a oscilante luz alaranjada refletia-se de forma baça em elmos de aço, barbas espessas e olhos que não sorriam.
Theon caminhou de um lado para o outro diante dos prisioneiros, estudando seus rostos. Todos lhe pareciam culpados.
– Seis – Fedor surgiu atrás dele, cheirando a sabão, com o cabelo longo mexendo ao vento. – Os dois Stark, aquele rapaz dos pântanos e a irmã, o atrasado dos estábulos e a sua selvagem.
Osha. Suspeitara dela desde o momento em que viu a segunda taça. Devia ter sabido que não era boa ideia confiar naquela mulher. É tão desnaturada como Asha. Até os nomes são parecidos.
– Alguém deu uma olhada nos estábulos?
– Aggar diz que não faltam cavalos.
– A Dançarina continua na cocheira?
– Dançarina? – Fedor franziu a testa. – Aggar diz que os cavalos estão todos lá. Só falta o atrasado.
Então estão a pé. Era a melhor notícia que tinha ouvido desde que acordara. Bran estaria sentado no cesto às costas de Hodor, sem dúvida. Osha teria de carregar Rickon; suas pequenas pernas não o levariam longe por conta própria. Theon sentia-se confiante de que os teria novamente nas mãos em breve.
– Bran e Rickon fugiram – disse às pessoas do castelo, observando seus olhos. – Quem sabe para onde foram? – ninguém respondeu. – Não podem ter escapado sem ajuda – Theon prosseguiu. – Sem alimentos, roupas, armas – trancara todas as espadas e machados de Winterfell, mas não havia dúvidas de que algumas lâminas tinham sido escondidas dele. – Quero o nome de todos os que os ajudaram. Todos aqueles que fingiram não ver – o único som era o do vento. – À primeira luz do dia, pretendo trazê-los de volta – enfiou os polegares no cinto da espada. – Preciso de caçadores. Quem quer uma boa pele de lobo quentinha para ajudar a passar o Inverno? Gage? – o cozinheiro sempre o saudara alegremente quando voltava da caça, perguntando se teria trazido alguma peça de primeira para a mesa, mas agora não tinha nada a dizer. Theon virou-se e caminhou para o outro lado, perscrutando os rostos em busca do mínimo indício de um conhecimento culposo. – A floresta não é lugar para um aleijado. E Rickon, novo como é, quanto tempo durará lá fora? Ama, pense em como ele deve estar assustado – a velha tinha tagarelado com ele durante dez anos, contando suas infindáveis histórias, mas agora olhava-o de boca aberta como se fosse um estranho. – Podia ter matado todos os seus homens e dado suas mulheres aos meus soldados para que fizessem com elas o que bem entendessem, mas, em vez disso, os protegi. É esse o agradecimento que me dão? – Joseth, que cuidara de seus cavalos; Farlen, que lhe ensinara tudo o que sabia sobre cães de caça; Barth, a mulher do cervejeiro que tinha sido a sua primeira… nem um deles o encarava. Odeiam-me, compreendeu.
Fedor aproximou-se:
– Arranque suas peles – exortou, com os lábios grossos brilhando. – Lorde Bolton costumava dizer que um homem nu tem poucos segredos, mas um homem esfolado não tem nenhum.
Theon sabia que o homem esfolado era o símbolo da Casa Bolton; muito tempo antes, alguns de seus senhores chegaram até a usar a pele de inimigos mortos como manto. Alguns Stark tinham terminado assim. Supostamente, tudo aquilo terminara havia mil anos, quando os Bolton dobraram os joelhos a Winterfell. Pelo menos é o que dizem, mas os velhos hábitos custam a morrer, como eu sei muito bem.
– Não haverá esfolamentos no Norte enquanto eu governar Winterfell – disse Theon em voz alta. Sou sua única proteção contra gente como ele, quis gritar. Não podia ser tão claro, mas talvez alguns fossem suficientemente inteligentes para aprender a lição.
O céu estava se tornando cinzento sobre as muralhas do castelo. A alvorada não devia estar distante.
– Joseth, sele o Sorridente e um cavalo para você. Murch, Gariss, Poxy Tym, vocês vêm também – Murch e Gariss eram os melhores caçadores no castelo, e Tym era um bom arqueiro. – Aggar, Rednose, Gelmarr, Fedor, Wex – precisava dos seus para defender a retaguarda. – Farlen, vou querer cães de caça, e vou querê-lo para cuidar deles.
O grisalho mestre dos canis cruzou os braços.
– E por que eu me preocuparia em ir à caça de meus senhores legítimos, e ainda por cima crianças?
Theon se aproximou.
– Agora sou eu o seu senhor legítimo, e o homem que mantém Palla a salvo.
Viu o desafio morrer nos olhos de Farlen.
– Sim, senhor.
Dando um passo para trás, Theon olhou em volta para ver quem mais poderia acrescentar.
– Meistre Luwin – anunciou.
– Eu não sei nada de caça.
Não, mas não confio em você o suficiente para deixá-lo no castelo em minha ausência.
– Então já é mais que hora de aprender.
– Deixe-me ir também. Quero esse manto de pele de lobo – um garoto, que não era mais velho do que Bran, deu um passo adiante. Theon precisou de um momento para se lembrar dele. – Já cacei um monte de vezes – disse Walder Frey. – Veados vermelhos e alces, e até javalis.
O primo riu dele.
– Ele acompanhou o pai numa caçada ao javali, mas nunca o deixaram chegar perto do animal.
Theon olhou o garoto com uma expressão de dúvida.
– Venha se quiser, mas se não conseguir nos acompanhar, não pense que vou servir de ama-seca – voltou-se novamente para Lorren Negro. – Winterfell é seu na minha ausência. Se não voltarmos, faça com ele o que quiser – é melhor que isso os faça rezar pelo meu sucesso.
Reuniram-se junto ao Portão do Caçador no momento em que os primeiros raios pálidos de sol roçaram o topo da Torre do Sino, com o hálito congelando no frio ar da manhã. Gelmarr se equipara com um machado de cabo longo, cujo alcance lhe permitiria atacar antes que os lobos caíssem sobre ele. A lâmina era suficientemente pesada para matar com um único golpe. Aggar usava caneleiras de aço. Fedor chegou trazendo uma lança para javalis e uma sacola de lavadeira cheia até estourar com só os deuses sabiam o quê. Theon tinha seu arco; não precisava de mais nada. Uma vez salvara a vida de Bran com uma flecha. Esperava não ter de roubá-la com outra, mas, se precisasse, faria.
Onze homens, dois garotos e uma dúzia de cães atravessaram o fosso. Para lá da muralha exterior, os rastros eram fáceis de ler no terreno macio; as pegadas dos lobos, o passo pesado de Hodor, as marcas menos profundas deixadas pelos pés dos dois Reed. Uma vez debaixo das árvores, o solo pedregoso e as folhas caídas tornavam o rastro mais difícil de ver, mas aí a cadela vermelha de Farlen já tinha o cheiro. O resto dos cães seguia logo atrás, com os de caça farejando e ladrando e um par de monstruosos mastins fechando a retaguarda. Seu tamanho e ferocidade poderiam fazer toda a diferença contra um lobo gigante encurralado.
Teria pensado que Osha correria para sul, em busca de Sor Rodrik, mas os vestígios seguiam para norte-noroeste, em direção ao coração da mata de lobos. Theon não gostava nada daquilo. Seria uma amarga ironia se os Stark se dirigissem a Bosque Profundo e caíssem justamente nas mãos de Asha. Preferia vê-los mortos, pensou com amargura. É melhor ser visto como cruel do que como idiota.
Filetes de névoa pálida abriam caminho por entre as árvores. Árvores-sentinela e pinheiros-marciais cresciam densos por ali, e não havia nada tão escuro e sombrio como uma floresta de vegetação perene. O terreno era irregular, e as agulhas caídas disfarçavam a fofura da turfa e tornavam o chão traiçoeiro para os cavalos, por isso eram obrigados a avançar devagar. Mas não tão devagar como um homem carregando um aleijado, ou uma vadia ossuda com um garoto de quatro anos nas costas. Disse a si mesmo para ser paciente. Teria todos eles nas mãos antes de o dia acabar.
Meistre Luwin trotou até junto dele enquanto seguiam uma trilha de caça ao longo da borda de uma ravina:
– Até agora, a caçada parece não se distinguir de andar a cavalo pela floresta, senhor.
Theon sorriu.
– Há semelhanças. Mas na caçada há sangue no fim.
– Terá de ser assim? Essa fuga foi uma grande loucura, mas não será misericordioso? Aqueles que procuramos são seus irmãos adotivos.
– Nenhum Stark, a não ser Robb, agiu fraternalmente comigo, mas Bran e Rickon têm mais valor para mim vivos do que mortos.
– O mesmo se aplica aos Reed. Fosso Cailin fica no limite dos pântanos. Lorde Howland pode transformar a ocupação de seu tio numa visita ao inferno se decidir fazê-lo, mas enquanto você tiver os seus herdeiros, terá de segurar a mão.
Theon não pensara naquilo. A bem da verdade, quase não tinha pensado nos homens de lama, além das vezes que olhou Meera e pensou se ainda seria donzela.
– Pode ter razão. Vamos poupá-los se pudermos.
– E também a Hodor, espero. O rapaz é um simplório, bem sabe. Faz o que lhe é dito. Quantas vezes cuidou do seu cavalo, ensaboou sua sela, poliu sua cota de malha?
Hodor não era nada para ele.
– Se não lutar conosco, vamos deixá-lo viver – Theon apontou um dedo para ele. – Mas se disser uma palavra acerca de poupar a selvagem, poderá morrer com ela. Prestou-me um juramento e cagou nele.
O meistre inclinou a cabeça:
– Não arranjo desculpas para perjuros. Faça o que tiver de fazer. Agradeço-lhe a misericórdia.
Misericórdia, pensou Theon quando Luwin ficou para trás. Eis uma maldita armadilha. Em excesso, e chamam-no de fraco, muito pouca e é monstruoso. Mas sabia que o meistre lhe tinha dado bons conselhos. Seu pai pensava apenas em termos de conquista, mas de que servia tomar um reino se não se conseguisse mantê-lo? A força e o medo só serviam até certo ponto. Uma pena que Ned Stark tivesse levado as filhas para o sul; de outro modo, Theon poderia ter solidificado a posse de Winterfell através do casamento com uma delas. E Sansa era uma coisinha bonita, e àquela altura era até provável que já estivesse pronta para dormir com um homem. Mas encontrava-se a mil léguas de distância, nas garras dos Lannister. Uma pena.
A floresta tornou-se mais selvagem. Os pinheiros e árvores-sentinela deram lugar a enormes carvalhos escuros. Emaranhados de espinheiros escondiam ravinas e fendas traiçoeiras. Colinas pedregosas erguiam-se e desapareciam. Passaram pela cabana de um camponês, deserta e coberta de vegetação, e rodearam uma pedreira inundada onde as águas paradas tinham um reflexo cinza como aço. Quando os cães começaram a ladrar, Theon pensou que os fugitivos se encontravam por perto. Esporeou Sorridente e seguiu a trote, mas o que encontrou foi apenas a carcaça de um jovem alce… ou o que dela restava.
Desmontou para examiná-la melhor. A morte era ainda recente e claramente obra de lobos. Os cães farejaram os arredores da carcaça, avidamente, e um dos mastins enterrou os dentes num quadril, mas Farlen o afastou aos gritos. Nenhuma parte deste animal foi cortada com uma faca, Theon percebeu. Os lobos comeram, mas os homens não. Mesmo que Osha não quisesse se arriscar a fazer uma fogueira, deveria ter cortado algumas fatias. Não fazia sentido deixar tanta carne boa apodrecer.
– Farlen, tem certeza de que estamos no rastro certo? Não será possível que seus cães andem atrás dos lobos errados?
– Minha cadela conhece o cheiro do Verão e do Felpudo bastante bem.
– Espero que sim. Para o seu bem.
Menos de uma hora mais tarde, o rastro desceu uma encosta na direção de um córrego lamacento, cheio pelas chuvas recentes. Foi ali que os cães perderam o cheiro. Farlen e Wex atravessaram o curso d’água com os cães e voltaram a sacudir as cabeças, enquanto os animais percorriam a outra margem para cima e para baixo, farejando.
– Eles entraram na água, senhor, mas não estou vendo onde podem ter saído – disse o mestre dos canis.
Theon desmontou e ajoelhou-se na margem do córrego. Mergulhou uma mão nele. A água estava fria.
– Eles não devem ter ficado nesta água por muito tempo. Leve metade dos cães para baixo. Eu vou para cima...
Wex bateu palmas ruidosamente.
– O que foi? – Theon perguntou.
O rapaz mudo apontou.
O terreno junto à água encontrava-se encharcado e lamacento. Os vestígios que os lobos tinham deixado eram bastante evidentes.
– Pegadas de lobo, oras. E daí?
Wex enfiou o calcanhar na lama e mexeu o pé para um lado e para o outro, deixando um buraco profundo.
Joseth compreendeu.
– Um homem do tamanho de Hodor devia ter deixado uma pegada profunda nesta lama – ele disse. – Ainda mais com o peso de um garoto nas costas. Mas as únicas pegadas de botas que há aqui são as nossas. Veja com os seus olhos.
Consternado, Theon percebeu que era verdade. Os lobos tinham entrado sozinhos nas túrgidas águas marrons.
– Osha deve ter seguido outro caminho lá para trás. Antes do alce, provavelmente. Enviou os lobos adiante sozinhos, na esperança de que os seguíssemos – virou-se para os caçadores. – Se vocês dois tiverem me enganado…
– Só há um rastro, senhor, juro – Gariss disse defensivamente. – E os lobos gigantes nunca se separariam daqueles garotos. Não por muito tempo.
É verdade, Theon pensou. Verão e Cão Felpudo podiam ter se afastado para caçar, mas mais cedo ou mais tarde voltariam para junto de Bran e Rickon.
– Gariss, Murch, levem quatro cães e voltem, encontrem o local onde os perdemos. Aggar, vigie-os, não quero truques. Farlen e eu seguiremos os lobos gigantes. Um sopro no berrante quando encontrar o rastro. Dois sopros se vir os animais. Depois de descobrirmos para onde foram, vão nos levar até seus donos.
Levou Wex, o garoto Frey e Gynir Rednose para procurar a jusante. Ele e Wex seguiam a cavalo de um lado do córrego, Rednose e Walder Frey do outro, cada um com um par de cães de caça. Os lobos podiam ter saído do córrego em qualquer uma das margens. Theon ficou de olho atento em pegadas, rastros, galhos quebrados, qualquer pista que indicasse onde os lobos gigantes poderiam ter saído da água. Viu com bastante facilidade pegadas de veados, alces e texugos. Wex surpreendeu uma raposa bebendo do córrego, e Walder fez três coelhos saírem da vegetação rasteira e conseguiu atingir um deles com uma flecha. Viram marcas de garras no local em que um urso tinha rasgado a casca de uma grande bétula. Mas dos lobos gigantes não havia qualquer sinal.
Um pouco mais adiante, dizia Theon a si mesmo. Para lá daquele carvalho, do outro lado daquela elevação, depois daquela curva no córrego, encontraremos algo lá. Continuou avançando muito tempo depois de saber que devia voltar, com uma crescente sensação de ansiedade roendo sua barriga. Era meio-dia quando virou com um puxão o cabresto de Sorridente e desistiu.
De algum modo, Osha e os malditos garotos escapavam dele. Não devia ter sido possível, não a pé, carregando um aleijado e uma criança pequena. A cada hora que passava, a probabilidade de a fuga ser bem-sucedida aumentava. Se chegarem a uma aldeia… O povo do norte nunca renegaria os filhos de Ned Stark, irmãos de Robb. Teriam montarias para apressar sua viagem, e alimentos. Os homens lutariam pela honra de protegê-los. Todo o maldito norte se reuniria em torno deles.
Os lobos seguiram para jusante, é tudo. Agarrou-se a essa ideia. Aquela cadela vermelha irá detectar o local onde saíram da água, e retomaremos seu encalço.
Mas, quando se juntaram ao grupo de Farlen, bastou um olhar no rosto do mestre dos canis para deixar em cacos todas as esperanças de Theon:
– Esses cães só prestam para uma luta com ursos – ele disse, zangado. – Bem que gostaria de ter um urso.
– Os cães não têm culpa – Farlen ajoelhou-se entre um mastim e a sua preciosa cadela vermelha, com uma mão pousada em cada um dos animais. – A água corrente não guarda cheiros, senhor.
– Os lobos tiveram de sair do córrego em algum lugar.
– Com certeza. Para cima ou para baixo. Se continuarmos, encontraremos esse lugar, mas, para que lado?
– Nunca ouvi falar de nenhum lobo que subisse o leito de um córrego ao longo de milhas – Fedor interveio. – Um homem podia fazer isso. Se soubesse que vinham atrás dele, podia fazer isso. Mas um lobo?
Mas Theon não tinha tanta certeza. Aqueles animais não eram como os outros lobos. Devia ter esfolado as malditas criaturas.
A história foi a mesma quando se juntaram a Gariss, Murch e Aggar. O caçador recuara sobre seus passos até meio caminho de Winterfell sem encontrar nenhum sinal do lugar onde os Stark pudessem ter se separado dos lobos gigantes. Os cães de Farlen pareciam tão frustrados como seus donos, farejando desoladamente as árvores e as pedras, e mordendo-se irritadamente uns aos outros.
Theon não se atrevia a admitir a derrota.
– Voltaremos ao córrego. Vamos procurar novamente. Dessa vez iremos tão longe quanto for preciso.
– Não conseguiremos encontrá-los – o garoto Frey disse de repente. – Pelo menos enquanto os papa-rãs estiverem com eles. Os homens de lama são traiçoeiros, não lutam como gente decente, escondem-se e usam flechas envenenadas. Nunca se deixam ver, mas eles nos veem. Aqueles que entram nos pântanos em busca deles se perdem, e nunca mais saem. Suas casas se mexem, até os castelos como a Atalaia da Água Cinzenta – lançou o olhar vago e nervoso ao verde que os cercava por todos os lados. – Podem estar ali agora mesmo, ouvindo tudo o que dizemos.
Farlen riu para mostrar o que pensava daquela ideia.
– Meus cães cheirariam qualquer coisa que estivesse naqueles arbustos. Cairiam em cima deles antes de você conseguir soltar um peido, rapaz.
– Os papa-rãs não cheiram como homens – Frey insistiu. – Têm um fedor pantanoso, como rãs, árvores e água podre. Cresce musgo debaixo dos braços deles, em vez de pelos, e sobrevivem sem nada para comer além de lama, e respiram a água do pântano.
Theon já se preparava para lhe dizer o que devia fazer com a fábula da ama de leite quando o Meistre Luwin interveio.
– As histórias dizem que os cranogmanos se tornaram próximos dos filhos da floresta nos dias em que os videntes verdes tentaram fazer o martelo das águas cair sobre o Gargalo. Pode ser que possuam conhecimentos secretos.
De repente a floresta pareceu ficar bem mais escura do que estava um momento antes, como se uma nuvem bloqueasse o sol. Uma coisa era ter um garoto bobo cuspindo bobeiras, mas esperava-se que os meistres fossem sábios.
– Os únicos filhos de alguma coisa que me preocupam são Bran e Rickon – Theon respondeu, e ordenou: – De volta ao córrego. Já.
Por um momento não lhe pareceu que fossem obedecer, mas, por fim, o velho hábito prevaleceu. Seguiram-no carrancudos, mas seguiram. O garoto Frey estava muito irrequieto como os coelhos que tinha espantado de manhã. Theon colocou homens em ambas as margens e seguiu a corrente. Cavalgaram ao longo de milhas, lenta e cuidadosamente, desmontando para levar os cavalos por terreno traiçoeiro, deixando que os cães bons de faro buscassem em cada arbusto. Onde uma árvore caída represava a corrente, os caçadores eram forçados a rodear uma lagoa profunda e verde, mas se os lobos gigantes tinham feito o mesmo, não deixaram nem pegadas nem rastros. Parecia que os animais tinham ganhado o gosto por nadar. Quando pegá-los, terão toda a natação que conseguirem aguentar. Vou dar os dois ao Deus Afogado.
Quando a floresta começou a escurecer, Theon Greyjoy soube que fora derrotado. Ou os cranogmanos realmente conheciam a magia dos filhos da floresta, ou então Osha os enganara com um truque qualquer dos selvagens. Obrigou-os a continuar até o crepúsculo, mas, quando a última luz se desvaneceu, Joseth finalmente ganhou coragem para dizer:
– Isso é inútil, senhor. Vamos aleijar um cavalo ou quebrar uma perna.
– Joseth tem razão – Meistre Luwin concordou. – Atravessar a floresta tateando à luz das tochas não nos trará nenhum proveito.
Theon sentia o gosto da bílis no fundo da garganta, e o estômago era um ninho de cobras que se entrelaçavam e mordiam umas às outras. Caso se arrastasse de volta a Winterfell de mãos vazias, o melhor que faria era, daí em diante, passar a se vestir de retalhos e usar um chapéu com pontas; o norte inteiro iria reconhecê-lo como um bobo. E quando meu pai souber, e Asha…
– Senhor príncipe – Fedor fez o cavalo se aproximar. – Pode ser que os Stark não tenham vindo por aqui. Se eu fosse eles, iria pra norte e pra leste, talvez. Pros Umber. São bons homens dos Stark. Mas as terras deles ficam longe. Os garotos vão se abrigar em algum lugar mais perto. Talvez eu saiba onde.
Theon olhou-o com suspeita.
– Diga.
– Conhece aquele velho moinho isolado no Água de Bolotas? Paramos lá quando eu tava sendo levado preso pra Winterfell. A mulher do moleiro vendeu forragem pros cavalos, enquanto aquele velho cavaleiro cacarejava com os fedelhos dela. Pode ser que os Stark estejam escondidos lá.
Theon conhecia o moinho. Até se enrolara com a mulher do moleiro uma vez ou duas. Nada havia de especial no moinho ou nela.
– Por que lá? Há uma dúzia de aldeias e castros a mesma distância.
Divertimento brilhou naqueles olhos claros.
– Por quê? Ora, isso não sei. Mas eles tão lá, tenho um pressentimento.
Estava ficando farto das respostas dissimuladas do homem. Seus lábios parecem dois vermes fodendo.
– O que você está dizendo? Se me escondeu alguma coisa que sabia…
– Senhor príncipe? – Fedor desmontou, e fez sinal a Theon para imitá-lo. Quando ficaram ambos apeados, abriu o saco de pano que trouxera de Winterfell. – Olhe aqui.
Estava ficando difícil enxergar. Theon enfiou impacientemente a mão no saco, apalpando peles suaves e lã áspera. Uma ponta afiada furou sua pele, e seus dedos fecharam-se em torno de algo frio e duro. Tirou do saco um broche em forma de cabeça de lobo, de prata e azeviche. O entendimento veio na hora. Sua mão fechou-se num punho.
– Gelmarr – disse, perguntando-se em quem poderia confiar. Em nenhum deles. – Aggar, Rednose. Conosco. O resto de vocês pode retornar a Winterfell com os cães. Não vou precisar mais deles. Agora sei onde se escondem Bran e Rickon.
– Príncipe Theon – rogou Meistre Luwin –, vai se lembrar de sua promessa? Falou de misericórdia.
– A misericórdia era para hoje de manhã – Theon respondeu. É melhor ser temido do que motivo de troça. – Antes de terem me irritado.