As cabeças tinham sido mergulhadas em alcatrão a fim de abrandar o apodrecimento. Todas as manhãs, quando Arya se dirigia ao poço para tirar água fresca para a bacia de Roose Bolton, tinha de passar por baixo delas. Estavam viradas para fora, por isso nunca via os rostos, mas gostava de fingir que uma delas pertencia a Joffrey. Tentava imaginar como sua cara bonita ficaria mergulhada em alcatrão. Se eu fosse um corvo, podia pousar nela e arrancar à bicada seus estúpidos lábios gordos e mal-humorados.
Nunca faltava público para as cabeças. As gralhas pretas voavam em círculos por cima da guarita, em roufenha rudeza, e disputavam nas muralhas por cada olho, guinchando e crocitando umas às outras e levantando voo sempre que uma sentinela passava pelas ameias. Às vezes os corvos do meistre também juntavam-se ao festim, descendo da colônia em grandes asas negras. Quando os corvos chegavam, as gralhas afastavam-se, retornando no momento em que as aves maiores partiam.
Será que os corvos se lembram do Meistre Tothmure?, perguntou Arya a si mesma. Estarão tristes por ele? Quando lhe gritam quorc, será que se interrogam por que é que ele não responde? Talvez os mortos soubessem falar com eles em alguma língua secreta que os vivos não eram capazes de ouvir.
Tothmure tinha sido sentenciado ao machado por enviar aves para Rochedo Casterly e Porto Real na noite em que Harrenhal caíra; o armeiro Lucan por fazer armas para os Lannister; a Governanta Harra por dizer ao pessoal da Senhora Whent para servi-los; o intendente por dar a Lorde Tywin as chaves do cofre do tesouro. O cozinheiro fora poupado (alguns diziam que por ter feito a sopa de doninha), mas tinham sido construídas armações para prender a bonita Pia e as outras mulheres que tinham partilhado os seus préstimos com soldados Lannister. Nuas e raspadas, foram deixadas no pátio intermediário ao lado da arena dos ursos, para o uso de qualquer homem que as quisesse.
Três homens de armas Frey estavam usando-as naquela manhã quando Arya se dirigiu ao poço. Tentou não olhar, mas conseguia ouvir os homens rindo. O balde era muito pesado depois de cheio. Estava se virando para levá-lo para a Pira do Rei quando a Governanta Amabel pegou em seu braço. A água derramou-se sobre as pernas de Amabel.
– Fez isso de propósito – a mulher guinchou.
– O que é que você quer? – Arya torceu-se, tentando se soltar. Amabel andava meio louca desde que tinham cortado a cabeça de Harra.
– Está vendo aquilo? – apontou para o outro lado do pátio, para Pia. – Quando este nortenho cair, você vai estar onde ela está.
– Largue-me – Arya tentou se libertar puxando, mas Amabel limitou-se a fechar melhor os dedos.
– Ele também vai cair, Harrenhal acaba por puxar todos para baixo. Lorde Tywin agora ganhou, vai marchar de volta com todo seu poder, e depois será a vez dele de punir os desleais. E não pense que ele não saberá o que você fez! – a velha soltou uma gargalhada. – Posso até também eu dar uma também, a Harra tinha uma velha vassoura, vou guardá-la para você. O cabo está quebrado e cheio de lascas…
Arya girou o balde. O peso da água fez com que se virasse em suas mãos, e não atingiu Amabel na cabeça como quis, mas a mulher a soltou mesmo assim quando a água a ensopou.
– Nunca me toque – Arya gritou –, senão mato-a. Vá embora.
Encharcada, a Governanta Amabel balançou um dedo fino na direção do homem esfolado no peito da túnica de Arya.
– Acha que está segura com esse homenzinho sangrento em suas tetas, mas não está! Os Lannister vêm aí. Vai ver o que acontece quando chegarem aqui.
Três quartos da água tinham se derramado no chão, e Arya teve de voltar ao poço. Se contasse a Lorde Bolton o que ela disse, a cabeça dela estaria ao lado da de Harra antes de cair a noite, pensou enquanto puxava o balde. Mas não o faria.
Uma vez, quando só estavam lá metade das cabeças, Gendry surpreendera Arya olhando para elas.
– Admirando o seu trabalho? – ele perguntara.
Ela sabia que ele estava zangado porque gostava de Lucan, mas mesmo assim não era justo.
– É trabalho de Walton Pernas-d’Aço – ela disse em tom defensivo. – E dos Saltimbancos, e de Lorde Bolton.
– E quem nos trouxe todos eles? Você e a sua sopa de doninha.
Arya esmurrou-lhe o braço.
– Era só caldo quente de carne. Você também odiava Sor Amory.
– Odeio mais esses tipos. Sor Amory lutava por seu senhor, mas os Saltimbancos são mercenários e vira-casacas. Metade nem sequer sabe falar o Idioma Comum. O Septão Utt gosta de garotinhos, Qyburn faz magia negra, e seu amigo Dentadas come gente.
O pior era que nem podia dizer que ele não tinha razão. Os Bravos Companheiros cuidavam da maior parte do abastecimento de Harrenhal, e Roose Bolton atribuíra-lhes a tarefa de exterminar homens dos Lannister. Vargo Hoat dividira-os em quatro bandos, para visitar o máximo possível de aldeias. Ele próprio liderava o grupo maior, e tinha dado os outros aos seus capitães mais confiáveis. Arya ouvira Rorge rindo sobre a maneira que Lorde Vargo tinha de encontrar traidores. Tudo o que fazia era retornar aos locais que visitara antes sob o estandarte de Lorde Tywin e apanhar aqueles que o tinham ajudado. Muitos tinham sido comprados com prata dos Lannister, e era também frequente que os Saltimbancos regressassem com sacos de moedas além dos cestos de cabeças.
– Uma adivinha! – gritava jovialmente Shagwell. – Se a cabra de Lorde Bolton come os homens que alimentaram a cabra de Lorde Lannister, quantas cabras há?
– Uma – tinha dito Arya quando ele lhe perguntara.
– Ora, aí está uma doninha esperta que nem uma cabra! – falou o bobo com um risinho abafado.
Rorge e Dentadas eram tão maus quanto os outros. Sempre que Lorde Bolton fazia uma refeição com a guarnição, Arya via-os lá, entre os soldados. Dentadas exalava um fedor de queijo podre, e os Bravos Companheiros obrigavam-no a se sentar ao fundo da mesa, onde podia grunhir e silvar para si próprio e dilacerar a carne com os dedos e os dentes. Farejava Arya quando ela passava, mas era Rorge quem mais a assustava. Sentava-se junto ao Fiel Ursywck, mas ela sentia seus olhos percorrendo seu corpo enquanto estava cuidando de suas tarefas.
Às vezes desejava ter partido para lá do mar estreito com Jaqen H’ghar. Ainda tinha a estúpida moeda que ele lhe dera, um pedaço de ferro que não era maior do que um centavo, e estava enferrujado na borda. De um lado tinha coisas escritas, estranhas palavras que ela não conseguia ler. O outro mostrava uma cabeça de homem, mas tão desgastada que todos os seus traços tinham desaparecido. Ele disse que esta moeda era de grande valor, mas isso provavelmente também foi uma mentira, como seu nome e até sua aparência. Aquele pensamento deixou-a tão zangada que jogou a moeda fora, mas uma hora depois sentiu-se mal e foi à procura dela, mesmo que não valesse nada.
Pensava na moeda enquanto atravessava o Pátio das Lâminas, lutando com o peso da água no balde.
– Nan – chamou uma voz. – Ponha esse balde no chão e venha me ajudar.
Elmar Frey não era mais velho do que ela, e ainda por cima era baixo para a idade. Tinha rolado um barril de areia pela pedra irregular e seu rosto estava vermelho de exaustão. Arya foi ajudá-lo. Juntos, empurraram o barril até a muralha e de novo para trás, e depois puseram-no de pé. Arya ouviu a areia lá dentro movendo-se de um lado para o outro quando Elmar abriu o tampo e tirou para fora um camisão.
– Acha que está suficientemente limpo? – na qualidade de escudeiro de Roose Bolton, era sua responsabilidade manter a cota de malha do seu senhor tinindo de limpo.
– Tem de sacudir a areia. Ainda há pontos de ferrugem. Está vendo? – ela apontou. – É melhor fazer tudo mais uma vez.
– Faça você – Elmar podia ser amigável quando precisava de ajuda, mas depois lembrava-se sempre de que era um escudeiro e ela apenas uma criada. Gostava de se gabar de ser filho do Senhor da Travessia, não um sobrinho, bastardo ou neto, mas um filho legítimo, e de que, por causa disso, ia se casar com uma princesa.
Arya não se interessava por sua preciosa princesa, e não gostava que lhe desse ordens.
– Tenho de levar água ao senhor para a bacia. Ele está no quarto sendo sangrado. Não com as sanguessugas normais, pretas, mas com as grandes e claras.
Os olhos de Elmar ficaram do tamanho de ovos cozidos. As sanguessugas aterrorizavam-no, especialmente as grandes e claras que pareciam geleia até se encherem de sangue.
– Tinha me esquecido, você é magricela demais para empurrar um barril tão pesado.
– Tinha me esquecido, você é burro – Arya pegou o balde. – Talvez também devesse ser sangrado. No Gargalo há sanguessugas do tamanho de porcos – e deixou-o lá com seu barril.
O quarto do senhor estava cheio de gente quando entrou. Qyburn encontrava-se presente, bem como o severo Walton com seu camisão e grevas, além de uma dúzia de Frey, todos eles irmãos, meios-irmãos e primos. Roose Bolton estava na cama, nu. Sanguessugas aderiam à parte de dentro de seus braços e pernas e espalhavam-se por seu peito pálido, longas coisas translúcidas que se tornavam de um cor-de-rosa cintilante quando se alimentavam. Bolton não prestava mais atenção nelas do que em Arya.
– Não podemos permitir que Lorde Tywin nos encurrale aqui em Harrenhal – Sor Aenys Frey estava dizendo enquanto Arya enchia a bacia de banho. Um homem grisalho, gigantesco e curvado para a frente, com olhos aguados e avermelhados e enormes mãos nodosas, Sor Aenys trouxera mil e quinhentas espadas Frey para Harrenhal, mas parecia frequentemente incapaz de comandar até os próprios irmãos. – O castelo é tão grande que precisa de um exército para defendê-lo, e uma vez cercados não podemos alimentar um exército. Nem podemos ter esperança de armazenar suprimentos suficientes. O campo está transformado em cinzas, as aldeias foram entregues aos lobos, a colheita foi queimada ou roubada. O Outono está aí, mas não há comida em armazém e nada a ser plantado. Vivemos da pilhagem, e se os Lannister nos negarem isso, ficaremos reduzidos a ratazanas e couro de sapatos em uma volta de lua.
– Não pretendo ser cercado aqui – a voz de Roose Bolton era tão baixa que os homens tinham de se esforçar para ouvi-lo, por isso seus aposentos estavam sempre estranhamente silenciosos.
– Então, qual é o plano? – quis saber Sor Jared Frey, que era magro, estava perdendo cabelo e tinha o rosto marcado pelas espinhas. – Estará Edmure Tully tão ébrio com sua vitória que pensa em dar batalha a Lorde Tywin em campo aberto?
Se fizer isso, ganhará, pensou Arya. Ganhará como no Ramo Vermelho, vocês vão ver. Sem que reparassem nela, foi até junto a Qyburn.
– Lorde Tywin está a muitas léguas daqui – Bolton disse calmamente. – Ainda tem muitos assuntos a resolver em Porto Real. Não marchará sobre Harrenhal tão depressa.
Sor Aenys sacudiu teimosamente a cabeça:
– Não conhece os Lannister tão bem como nós, senhor. Rei Stannis também pensou que Lorde Tywin estivesse a mil léguas de distância, e isso acabou com ele.
O homem pálido na cama deu um tênue sorriso enquanto as sanguessugas se alimentavam de seu sangue.
– Eu não sou homem para ser acabado, sor.
– Mesmo se Correrrio reunir todas as suas forças e o Jovem Lobo regressar do oeste, como podemos esperar igualar os números que Lorde Tywin pode enviar contra nós? Quando vier, chegará com muito mais poder do que o que comandava no Ramo Verde. Recordo-lhe que Jardim de Cima se juntou à causa de Joffrey!
– Não me esqueci disso.
– Já fui prisioneiro de Lorde Tywin – disse Sor Hosteen, um homem rude com rosto quadrado, do qual se dizia que era o mais forte dos Frey. – Não tenho qualquer desejo de voltar a desfrutar da hospitalidade dos Lannister.
Sor Harys Haigh, que era Frey pelo lado da mãe, concordou vigorosamente com a cabeça.
– Se Lorde Tywin conseguiu derrotar um homem experiente como Stannis Baratheon, que chance tem nosso rei rapaz contra ele? – olhou para os irmãos e primos à sua volta, em busca de apoio, e vários dentre eles resmungaram em concordância.
– Alguém precisa ter a coragem de dizer isso – disse Sor Hosteen. – A guerra está perdida. Alguém tem de fazer com que o Rei Robb compreenda.
Roose Bolton estudou-o com olhos claros.
– Sua Graça derrotou os Lannister todas as vezes que os enfrentou em batalha.
– Ele perdeu o norte – insistiu Hosteen Frey. – Ele perdeu Winterfell! Seus irmãos estão mortos…
Por um momento, Arya esqueceu-se de respirar. Mortos? Bran e Rickon, mortos? O que ele quer dizer? O que ele quer dizer sobre Winterfell? Joffrey nunca poderia ter tomado Winterfell, nunca, Robb nunca permitiria. Então lembrou-se de que Robb não estava em Winterfell. Estava longe, no oeste, e Bran era aleijado e Rickon tinha só quatro anos. Precisou de todas as suas forças para permanecer imóvel e silenciosa, como Syrio Forel lhe ensinara, para ficar ali como uma parte da mobília. Sentiu lágrimas juntando-se em seus olhos, e afastou-as à força. Não é verdade, não pode ser verdade, é só uma mentira dos Lannister.
– Se Stannis tivesse ganhado, tudo poderia ter sido diferente – disse melancolicamente Ronel Rivers. Era um dos bastardos de Lorde Walder.
– Stannis perdeu – disse sem meias-palavras Sor Hosteen. – Desejar que tivesse sido de outro modo não fará com que tenha sido. Rei Robb tem de fazer a paz com os Lannister. Precisa pôr a coroa de lado e dobrar o joelho, por menos que goste da ideia.
– E quem lhe dirá tal coisa? – Roose Bolton sorriu. – É ótimo ter tantos irmãos valentes nestes tempos conturbados. Refletirei sobre tudo o que disseram.
Seu sorriso era uma despedida. Os Frey fizeram suas cortesias e saíram, arrastando os pés, deixando apenas Qyburn, Walton Pernas-d’Aço e Arya. Lorde Bolton a chamou.
– Já sangrei o suficiente. Nan, pode remover as sanguessugas.
– Imediatamente, senhor – era melhor nunca obrigar Roose Bolton a pedir duas vezes. Arya queria lhe perguntar o que Sor Hosteen quisera dizer a respeito de Winterfell, mas não se atrevia. Perguntarei a Elmar, pensou. Elmar vai me contar. As sanguessugas contorceram-se suavemente entre seus dedos enquanto as arrancava com cuidado da pele do senhor, com os corpos pálidos úmidos ao toque e dilatados devido ao sangue. São só sanguessugas, lembrou a si mesma. Se fechasse a mão, as esmagaria entre os dedos.
– Há uma carta da senhora sua esposa – Qyburn tirou um rolo de pergaminho da manga. Embora usasse vestes de meistre, não havia corrente em volta de seu pescoço; segredava-se que a teria perdido por envolver-se com necromancia.
– Pode lê-la – Bolton respondeu.
A Senhora Walda escrevia das Gêmeas quase todos os dias, mas as cartas eram sempre iguais: “Rezo por você de manhã, à tarde e à noite, meu querido senhor... e conto os dias até que volte a dividir a minha cama. Regresse para mim em breve, e darei muitos filhos legítimos para tomar o lugar de seu querido Domeric e governar o Forte do Pavor depois do senhor”. Arya imaginava um bebê cor-de-rosa e rechonchudo num berço, coberto de sanguessugas rosadas e rechonchudas.
Levou a Lorde Bolton um pano úmido para limpar seu corpo mole e sem pelos.
– Enviarei uma carta – disse ele ao homem que antes fora meistre.
– À Senhora Walda?
– A Sor Helman Tallhart.
Um mensageiro de Sor Helman chegara havia dois dias. Os homens de Tallhart tinham tomado o castelo dos Darry, aceitando a rendição de sua guarnição Lannister após um breve cerco.
– Diga-lhe para passar a espada nos cativos e as tochas no castelo, por ordem do rei. Depois deverá juntar forças com Robett Glover e avançar para leste em direção a Valdocaso. As terras lá são ricas, e quase não foram tocadas pela guerra. É tempo de saborearem um pouco dela. Glover perdeu um castelo, e Tallhart, um filho. Que levem a sua vingança até Valdocaso.
– Prepararei a mensagem para o seu selo, senhor.
Arya ficou contente por ouvir dizer que o castelo dos Darry seria incendiado. Foi para lá que a tinham levado quando a apanharam após sua luta com Joffrey, e foi lá que a rainha obrigara o pai a matar o lobo de Sansa. Merece arder. Mas desejava que Robett Glover e Sor Helman Tallhart voltassem a Harrenhal; tinham-se posto em marcha depressa demais, antes de ela conseguir decidir se poderia lhes confiar seu segredo ou não.
– Hoje irei à caça – anunciou Roose Bolton enquanto Qyburn o ajudava a vestir um justilho acolchoado.
– Será seguro, senhor? – Qyburn perguntou. – Há apenas três dias, os homens do Septão Utt foram atacados por lobos. Entraram bem no acampamento, a menos de cinco metros da fogueira, e mataram dois cavalos.
– São lobos que pretendo caçar. Quase não consigo dormir à noite com os uivos – Bolton afivelou o cinto, ajustando a posição da espada e do punhal. – Dizem que antigamente os lobos gigantes vagueavam pelo norte em grandes matilhas de cem ou mais animais, e não temiam nem homens nem mamutes, mas isso foi há muito tempo e em outras terras. É estranho ver os lobos comuns do sul tão ousados.
– Tempos terríveis geram coisas terríveis, senhor.
Bolton mostrou os dentes em algo que poderia ter sido um sorriso.
– Serão estes tempos tão terríveis assim, meistre?
– O verão acabou, e há quatro reis no reino.
– Um rei pode ser terrível, mas quatro? – encolheu os ombros. – Nan, meu manto de peles – Arya trouxe-lhe. – Meus aposentos estarão limpos e arrumados quando voltar – disse a ela enquanto o prendia. – E trate da carta da Senhora Walda.
– Será como diz, senhor.
O lorde e o meistre saíram do quarto sem sequer lhe dar uma olhada por cima do ombro. Depois de saírem, Arya pegou a carta e a levou para a lareira, mexendo as toras com um atiçador, para voltar a despertar as chamas. Observou o pergaminho torcer-se, enegrecer e incendiar-se. Se os Lannister fizeram mal a Bran e a Rickon, Robb vai matá-los todos. Nunca dobrará o joelho, nunca, nunca, nunca. Não tem medo de nenhum deles. Anéis de cinzas flutuaram pela chaminé acima. Arya agachou-se junto ao fogo, vendo-os subir através de um véu de lágrimas quentes. Se Winterfell está mesmo perdido, será esta a minha casa agora? Ainda serei Arya, ou só Nan, a criada, para todo o sempre?
Passou as horas seguintes cuidando dos aposentos do senhor. Varreu para fora as antigas esteiras e espalhou pelo chão novas e bem cheirosas, acendeu um novo fogo na lareira, trocou os lençóis e amaciou o colchão de penas, esvaziou os penicos pelo alçapão da latrina e esfregou-os, levou uma braçada de roupa suja às lavadeiras e trouxe da cozinha uma tigela de peras frescas de Outono. Quando acabou de limpar o quarto de dormir, desceu meio lance de escadas para fazer o mesmo com o grande aposento privado, uma frugal sala cheia de correntes de ar, tão grande quanto os salões de muitos dos castelos menores. As velas estavam reduzidas a tocos, então Arya as substituiu. Sob as janelas havia uma enorme mesa de carvalho onde o senhor escrevia suas cartas. Arrumou os livros, e ordenou as penas, tintas e cera para os selos.
Uma grande e esfarrapada pele de ovelha estava atirada sobre os papéis. Arya tinha começado a enrolá-la quando as cores chamaram sua atenção: o azul de lagos e rios, os pontos vermelhos onde se encontravam castelos e cidades, o verde dos bosques. Em vez de enrolá-la, abriu-a. AS TERRAS DO TRIDENTE, dizia a ornamentada inscrição por baixo do mapa. O desenho mostrava tudo, desde o Gargalo à Torrente da Água Negra. Ali está Harrenhal no topo do grande lago, compreendeu, mas onde fica Correrrio? Então viu. Não é tão longe assim…
A tarde ainda ia curta quando terminou, e Arya dirigiu-se ao bosque sagrado. Seus deveres eram mais leves como copeira de Lorde Bolton do que tinham sido com Weese ou até com Olho Vermelho, embora exigissem que se vestisse como um pajem e lavasse mais do que gostaria. Os caçadores ainda levariam horas para retornar, então, tinha um pouco de tempo para seu trabalho com a Agulha.
Golpeou folhas de bétula até que a ponta lascada do pau de vassoura quebrado ficou verde e pegajosa.
– Sor Gregor – murmurava. – Dunsen, Polliver, Raff, o Querido – rodopiou, saltou e se equilibrou nas pontas dos pés, precipitando-se para cá e para lá, fazendo voar pinhas. – Cócegas – proferiu de uma vez –, Cão de Caça – disse da vez seguinte. – Sor Ilyn, Sor Meryn, Rainha Cersei – o tronco de um carvalho ergueu-se na sua frente, e ela atirou-lhe estocadas, atingindo-o com a ponta, rosnando: – Joffrey, Joffrey, Joffrey – tinha os braços e as pernas salpicados pela luz do sol e pelas sombras das folhas. Uma película de suor cobria sua pele quando finalmente fez uma pausa. O calcanhar do pé direito estava ensanguentado onde o esfolara, por isso apoiou-se num pé só em frente à árvore-coração e ergueu a espada numa saudação. – Valar morghulis – disse aos velhos deuses do norte. Gostava do som que as palavras tinham quando as dizia.
Enquanto Arya atravessava o pátio até a casa de banhos, viu um corvo que descia aos círculos para a colônia, e perguntou-se de onde ele tinha vindo e que mensagem transportava. De repente é de Robb, e chegou para dizer que não é verdade o que dizem de Bran e Rickon. Mordeu o lábio, esperando que assim fosse. Se eu tivesse asas, poderia voar para Winterfell e ver com meus olhos. E se fosse verdade, voaria para longe, voaria para lá da lua e das estrelas brilhantes, e veria todas as coisas das histórias da Velha Ama, dragões e monstros marinhos e o Titã de Bravos, e talvez nunca mais voltasse, a não ser que quisesse.
O grupo dos caçadores regressou perto do cair da noite com nove lobos mortos. Sete eram adultos, grandes animais cinza-acastanhados, selvagens e poderosos, com os beiços arreganhados sobre longos dentes amarelos, por causa dos rosnidos de morte. Mas os outros dois eram apenas filhotes. Lorde Bolton ordenou que as peles fossem costuradas para fazer uma manta para sua cama.
– As crias ainda têm aquela pele suave, senhor – destacou um de seus homens. – Podem dar um bom par de luvas para sua senhoria.
Bolton olhou de relance as bandeiras que flutuavam por cima das torres da guarita.
– Como os Stark costumam nos lembrar, o Inverno está chegando. Mande fazê-las – quando viu Arya olhando, disse: – Nan, quero um jarro de vinho quente condimentado, resfriei-me na floresta. Trate de que não esfrie. Desejo jantar sozinho. Pão de cevada, manteiga e javali.
– Imediatamente, senhor – aquilo era sempre a melhor coisa a dizer.
Torta Quente estava fazendo bolinhos de aveia quando ela entrou na cozinha. Três outros cozinheiros tiravam as espinhas de peixes, enquanto um assador virava um javali sobre as chamas.
– O senhor quer o jantar, e vinho quente condimentado para empurrá-lo para baixo – Arya anunciou –, e não o quer frio – um dos cozinheiros lavou as mãos, pegou uma chaleira e encheu-a com um tinto denso e doce. Torta Quente recebeu ordens de esmagar as especiarias lá dentro enquanto o vinho aquecia. Arya foi ajudar.
– Eu sei fazer isso – ele disse, carrancudo. – Não preciso que me mostre como condimentar vinho.
Também me odeia, ou então tem medo de mim. Afastou-se, mais triste do que zangada. Quando a comida ficou pronta, os cozinheiros cobriram-na com uma tampa de prata e envolveram o jarro numa toalha espessa para mantê-lo quente. Lá fora caía o crepúsculo. Nas muralhas, os corvos resmungavam em volta das cabeças como cortesãos em torno de um rei. Um dos guardas vigiava a porta para a Pira do Rei.
– Espero que isso não seja sopa de doninha – ele gracejou.
Roose Bolton estava sentado perto da lareira, lendo um grande livro encadernado em couro, quando ela entrou.
– Acenda umas velas – ordenou-lhe enquanto virava uma página. – Está ficando escuro aqui.
Arya apoiou a comida perto dele e fez o que lhe era pedido, enchendo a sala de luz tremeluzente e cheiro de cravos. Bolton virou mais algumas páginas com o dedo, fechou o livro e o colocou cuidadosamente no fogo. Ficou vendo as chamas consumindo-o, olhos claros brilhando com a luz refletida. O velho couro seco incendiou-se com um uuch, e as páginas amarelas agitaram-se enquanto ardiam, como se algum fantasma as estivesse lendo.
– Não terei mais necessidade de você esta noite – disse, sem nunca olhá-la.
Ela devia ter ido embora, silenciosa como um rato, mas algo a segurou.
– Senhor, leva-me junto quando abandonar Harrenhal?
Ele virou-se para encará-la, e a expressão que seu rosto tomou foi como se o jantar tivesse acabado de lhe dirigir a palavra.
– Dei-lhe licença para me interrogar, Nan?
– Não, senhor – Arya abaixou os olhos.
– Então não devia ter falado. Devia?
– Não, senhor.
Por um momento ele pareceu divertido.
– Vou responder, só dessa vez. Pretendo deixar Harrenhal para Lorde Vargo quando regressar ao norte. Você ficará aqui com ele.
– Mas eu não… – ela começou.
Bolton a interrompeu.
– Não estou habituado a ser interrogado por criados, Nan. Terei de mandar cortar sua língua?
Arya sabia que ele podia fazer aquilo com a mesma facilidade com que outro homem bateria num cão.
– Não, senhor.
– Então não ouvirei nem mais uma palavra vinda de você?
– Não, senhor.
– Então vá embora. Esquecerei essa insolência.
Arya foi, mas não para a cama. Quando saiu para a escuridão do pátio, o guarda à porta acenou para ela e disse:
– Vem aí uma tempestade. Sente o cheiro no ar? – o vento soprava em rajadas, as chamas saíam rodopiando dos archotes montados no topo das muralhas ao lado das fileiras de cabeças.
A caminho do bosque sagrado, passou pela Torre dos Lamentos, onde outrora tinha vivido aterrorizada por Weese. Os Frey tinham-na tomado para si desde a queda de Harrenhal. Conseguia ouvir as vozes iradas que saíam por uma janela, muitos homens falando e discutindo ao mesmo tempo. Elmar estava sentado nos degraus lá fora, sozinho.
– O que houve? – perguntou-lhe Arya quando viu as lágrimas brilhando em seu rosto.
– A minha princesa – ele soluçou. – Aenys diz que fomos desonrados. Chegou uma ave das Gêmeas. O senhor meu pai diz que terei de me casar com outra pessoa ou tornar-me septão.
Uma estúpida princesa, Arya pensou, isso não é nada por que valha a pena chorar.
– Meus irmãos podem estar mortos – ela confidenciou.
Elmar deu-lhe um olhar de desprezo.
– Ninguém se importa com os irmãos de uma criada.
Foi difícil não bater nele quando disse aquilo.
– Espero que sua princesa morra – ela devolveu, e fugiu antes que ele conseguisse agarrá-la.
No bosque sagrado, encontrou a espada de cabo de vassoura onde a deixara e levou-a para junto da árvore-coração. Então, ajoelhou-se. Folhas vermelhas restolharam. Olhos vermelhos espreitaram seu íntimo. Os olhos dos deuses.
– Digam-me o que fazer, deuses – rezou.
Por um longo momento não se ouviu nenhum som além do vento, da água e do ranger de folhas e galhos. E então, de muito, muito longe, para lá do bosque sagrado e das torres assombradas e das imensas muralhas de pedra de Harrenhal, de algum lugar no mundo, veio o longo uivo solitário de um lobo. A pele de Arya arrepiou-se, e por um instante sentiu-se tonta. Então, muito tenuamente, pareceu que ouvia a voz do pai.
– Quando as neves caem e os ventos brancos sopram, o lobo solitário morre, mas a matilha sobrevive – ele disse.
– Mas não há matilha – ela sussurrou ao represeiro. Bran e Rickon estavam mortos, os Lannister tinham Sansa, Jon tinha ido para a Muralha. – Já nem sequer sou eu, sou Nan.
– Você é Arya de Winterfell, filha do Norte. Disse-me que podia ser forte. Tem o sangue do lobo.
– O sangue do lobo – Arya agora lembrava-se. – Serei tão forte como Robb, foi o que disse que seria – inspirou profundamente, depois ergueu o cabo de vassoura com ambas as mãos e abaixou-o contra o joelho. Quebrou-se com um sonoro crac e ela atirou os pedaços fora. Sou um lobo gigante, e acabaram-se os dentes de madeira.
Naquela noite ficou na cama estreita sobre a palha, que lhe dava comichão, escutando as vozes dos vivos e dos mortos que sussurravam e discutiam enquanto esperava que a lua nascesse. Já não confiava em outras vozes. Conseguia ouvir o som de sua respiração, e também os lobos, agora uma grande matilha. Estão mais perto do que aquele que ouvi no bosque sagrado, pensou. Estão chamando por mim.
Por fim, saiu de debaixo da manta, enfiou-se numa túnica e desceu as escadas, devagar e descalça. Roose Bolton era um homem cauteloso, e a entrada da Pira do Rei era guardada dia e noite, por isso teve de se esgueirar por uma estreita janela da cave. O pátio encontrava-se silencioso, e o grande castelo estava perdido em sonhos assombrados. Por cima, o vento entoava hinos fúnebres na Torre dos Lamentos.
Na forja encontrou os fogos apagados e as portas fechadas e trancadas. Entrou por uma janela, como já havia feito uma vez. Gendry dividia um colchão com outros dois aprendizes de ferreiro. Ficou acocorada no sótão durante bastante tempo até que os olhos se ajustassem à escuridão o suficiente para ter certeza de que ele era o da ponta. Então pôs uma mão em sua boca e o beliscou. Os olhos dele se abriram. Não podia ter estado profundamente adormecido.
– Por favor – sussurrou. Tirou a mão de sua boca e apontou.
Por um momento não lhe pareceu que ele tivesse entendido, mas depois Gendry saiu de debaixo das mantas. Nu, atravessou a sala em silêncio, enfiou-se numa larga túnica de tecido grosseiro e desceu do sótão atrás dela. Os outros rapazes não se moveram.
– O que você quer agora? – Gendry perguntou numa voz baixa e zangada.
– Uma espada.
– O Polegar Preto mantém todas as lâminas trancadas, já lhe disse mais de cem vezes. É para o Senhor Sanguessuga?
– Para mim. Quebre o cadeado com o martelo.
– Se fizer isso, quebram-me a mão – ele resmungou. – Ou pior.
– Não se fugir comigo.
– Se fugir, eles vão apanhá-la e matá-la.
– Com você farão pior. Lorde Bolton vai dar Harrenhal aos Saltimbancos Sangrentos, foi ele que me disse.
Gendry afastou os cabelos dos olhos.
– E então?
Ela o olhou nos olhos, destemida.
– E então que, quando Vargo Hoat for o senhor, vai cortar os pés de todos os criados para evitar que fujam. Dos ferreiros também.
– Isso é só uma história – ele disse em tom de escárnio.
– Não, é verdade, ouvi Lorde Vargo dizê-lo – Arya mentiu. – Vai cortar um pé de todo mundo. O esquerdo. Vá às cozinhas e acorde Torta Quente, ele fará o que você disser. Vamos precisar de pão, bolinhos de aveia ou qualquer coisa dessas. Arranje as espadas, eu cuido dos cavalos. Encontramo-nos perto da porta falsa na muralha oriental, atrás da Torre dos Fantasmas. Nunca ninguém lá vai.
– Conheço esse portão. Está guardado, como todos os outros.
– E daí? Não se esquece das espadas?
– Não disse que ia.
– Não. Mas se for, não se esquece das espadas?
Ele franziu o cenho:
– Não – respondeu, por fim –, acho que não vou me esquecer.
Arya voltou à Pira do Rei da mesma maneira que tinha saído, e esgueirou-se pela escada em caracol acima com os ouvidos à escuta de passos. Em sua cela, despiu-se por completo e vestiu-se com cuidado, duas camadas de roupa de baixo, meias quentes e a sua túnica mais limpa. Era uma farda de Lorde Bolton. Tinha seu símbolo cosido ao peito, o homem esfolado do Forte do Pavor. Amarrou os sapatos, envolveu os ombros magros num manto de lã e o atou por baixo da garganta. Silenciosa como uma sombra, voltou a descer a escada. Junto ao aposento privado do senhor, fez uma pausa para escutar à porta, abrindo-a lentamente quando só ouviu silêncio.
O mapa de pele de ovelha estava sobre a mesa, ao lado dos restos do jantar de Lorde Bolton. Enrolou-o bem e o enfiou no cinto. Ele tinha deixado o punhal sobre a mesa, e ela também o pegou, para o caso de Gendry perder a coragem.
Um cavalo relinchou baixinho quando Arya entrou silenciosamente nos estábulos escurecidos. Todos os palafreneiros dormiam. Cutucou um deles com a ponta do pé até que se sentou, grogue, e disse:
– Ahn? Quê?
– Lorde Bolton quer três cavalos selados e ajaezados.
O rapaz pôs-se em pé, sacudindo palha dos cabelos:
– Hã? A essa hora? Cavalos, você diz? – piscou os olhos ao ver o símbolo na túnica dela. – Pra que é que ele quer cavalos no escuro?
– Lorde Bolton não tem o hábito de ser interrogado por criados – e cruzou os braços.
O cavalariço ainda olhava para o homem esfolado. Sabia o que queria dizer.
– Falou em três?
– Um, dois, três. Cavalos de caça. Rápidos e de patas seguras – Arya o ajudou com os freios e as selas, para que o rapaz não precisasse acordar nenhum dos outros. Esperava que não o machucassem depois, mas sabia que era provável que o fizessem.
Levar os cavalos através do castelo era a pior parte. Permaneceu na sombra da muralha exterior sempre que pôde, para que as sentinelas em suas rondas nas ameias, lá em cima, tivessem de olhar quase diretamente para baixo a fim de vê-la. E se virem, qual o problema? Sou a copeira do senhor. Estava uma noite gelada de Outono. Nuvens vinham do leste, sopradas pelo vento, escondendo as estrelas, e a Torre dos Lamentos gritava lugubremente a cada rajada. Cheira a chuva. Arya não sabia se isso seria bom ou ruim para a fuga.
Ninguém a viu, e ela não viu ninguém, só um gato cinza e branco que caminhava ao longo do topo do muro do bosque sagrado. Parou e bufou para ela, despertando memórias da Fortaleza Vermelha, do pai e de Syrio Forel.
– Podia pegá-lo se quisesse – disse-lhe em voz baixa –, mas tenho de ir, gato – o bicho voltou a silvar e fugiu.
A Torre dos Fantasmas era a mais arruinada das cinco imensas torres de Harrenhal. Erguia-se, escura e desolada, atrás dos restos de um septo em ruínas onde apenas ratazanas vinham rezar havia quase trezentos anos. Foi ali que esperou para ver se Gendry e Torta Quente viriam. Pareceu que tinha esperado muito tempo. Os cavalos mordiscaram o mato que crescia entre as pedras rachadas enquanto as nuvens engoliam as últimas estrelas. Arya tirou o punhal e o afiou, para manter as mãos ocupadas. Longos movimentos suaves, como Syrio lhe ensinara. O som a acalmou.
Ouviu-os chegando muito antes de vê-los. Torta Quente respirava pesadamente, e uma vez tropeçou no escuro, esfolou a canela e praguejou suficientemente alto para acordar metade de Harrenhal. Gendry era mais silencioso, mas as espadas que trazia tilintavam umas nas outras com seus movimentos.
– Estou aqui – ficou em pé. – Fiquem quietos, senão vão ouvi-los.
Os rapazes abriram caminho por cima de pedras caídas até onde ela estava. Arya viu que Gendry vestia uma cota de malha oleada sob o manto, e tinha seu martelo de ferreiro a tiracolo. O rosto vermelho e redondo do Torta Quente espreitava por debaixo de um capuz. Trazia um saco de pão pendurado na mão direita e um grande queijo debaixo do braço esquerdo.
– Há um guarda naquela saída – Gendry disse em voz baixa. – Eu disse que haveria.
– Fiquem aqui com os cavalos – Arya avisou. – Eu me livro dele. Venham depressa quando eu chamar.
Gendry concordou. Torta Quente disse:
– Pie como uma coruja quando quiser que a gente vá.
– Não sou uma coruja – Arya protestou. – Sou um lobo. Uivarei.
Sozinha, deslizou pela sombra da Torre dos Fantasmas. Caminhou depressa, para se manter à frente de seu medo, e foi como se Syrio Forel caminhasse a seu lado, e também Yoren, Jaqen H’ghar e Jon Snow. Não tinha levado a espada que Gendry lhe trouxera, ainda não. Para aquilo o punhal seria melhor. Era bom e afiado. Aquela pequena porta era o menor dos portões de Harrenhal, uma porta estreita de robusto carvalho, cravejada de tachões de ferro e colocada num ângulo da muralha por baixo de uma torre defensiva. Só um homem estava destacado para guardá-la, mas sabia que também haveria sentinelas na torre, e outras por perto, patrulhando as muralhas. Acontecesse o que acontecesse, tinha de ser silenciosa como uma sombra. Ele não pode gritar. Algumas gotas de chuva tinham começado a cair. Sentiu uma atingi-la na testa e escorrer lentamente pelo nariz.
Não fez nenhum esforço para se esconder; em vez disso, aproximou-se do guarda abertamente, como se tivesse sido o próprio Lorde Bolton a enviá-la. O homem a viu chegando, curioso sobre o que poderia trazer um pajem ali naquela hora escura. Quando se aproximou, viu que era um nortenho, muito alto e magro, aconchegado num esfarrapado manto de peles. Isso era ruim. Podia ter sido capaz de enganar um Frey ou um dos Bravos Companheiros, mas os homens do Forte do Pavor tinham servido Roose Bolton a vida inteira e conheciam-no melhor do que ela. Se lhe disser que sou Arya Stark e lhe ordenar que se afaste… Não, não se atrevia. Ele era nortenho, mas não um homem de Winterfell. Pertencia a Roose Bolton.
Quando chegou até ele, puxou o manto para trás de modo que ele pudesse ver o homem esfolado em seu peito.
– Lorde Bolton mandou-me aqui.
– A essa hora? Para quê?
Conseguia ver o brilho do aço sob as peles, e não sabia se era suficientemente forte para enfiar a ponta do punhal através da cota de malha. A garganta, tem que ser na garganta, mas ele é alto demais, nunca a alcançarei. Por um momento, não soube o que dizer. Por um momento, voltou a ser uma garotinha, assustada, e a chuva que caía em seu rosto teve gosto de lágrimas.
– Disse-me para dar a todos os seus guardas uma moeda de prata, pelos seus bons serviços – as palavras pareceram sair de parte alguma.
– Prata, você diz? – não acreditava nela, mas queria acreditar; afinal de contas, prata era prata. – Então me dê.
Os dedos de Arya enterraram-se na túnica e saíram agarrando a moeda que Jaqen lhe dera. No escuro, o ferro podia passar por prata sem brilho. Estendeu a mão… e deixou a moeda cair de seus dedos.
Amaldiçoando-a em voz baixa, o homem pôs-se de joelhos para procurar a moeda na terra, tateando, e ali estava seu pescoço, bem à frente dela. Arya puxou o punhal e passou-o por sua garganta, suavemente como a seda do verão. O sangue cobriu suas mãos num jorro quente, e ele tentou gritar, mas também tinha sangue na boca.
– Valar morghulis – Arya sussurrou enquanto o homem morria.
Quando ele parou de se mexer, pegou a moeda. Fora das muralhas de Harrenhal, um lobo soltou um longo e sonoro uivo. Ela ergueu a tranca, colocou-a de lado, e abriu a pesada porta de carvalho. Quando Torta Quente e Gendry chegaram com os cavalos, a chuva estava caindo com força.
– Matou? – Torta Quente arquejou.
– O que você achava que eu ia fazer? – tinha os dedos pegajosos de sangue, e o cheiro estava deixando a égua espantadiça. Não importa, pensou, saltando para a sela. A chuva voltará a deixá-las limpas.