AGRADECIMENTO


Embora esta seja uma obra de ficção, os ambientes são autênticos, e desejo externar a minha gratidão aos que tão generosamente contribuíram para as minhas pesquisas. Se, adaptando suas informações às exigências de um romance, julguei necessário ampliar e sintetizar certos elementos de tempo, assumo plena responsabilidade por isso. Dirijo o meu mais sincero reconhecimento a:

Dra. Margaret M. McCarron, direta médica adjunta - Condado de Los Angeles, Universidade do Sul da Califórnia. Reitor Brady, Escola de Farmácia da Universidade da Carolina do Sul. Dr. Gregory A. Thompson, diretor do Centro de Informações sobre Drogas - Condado de Los Angeles, Universidade do Sul da Califórnia. Dr. Berna W. Chulé, do Centro de Informações sobre Drogas - Condado de Los Angeles, Universidade do Sul da Califórnia.

Dra. Judy Flesh. Urs. Jãggi, Hoffmann-La Roche Co., A. G., Basiléia.

Dr. Gunter Siebel, Schering A. G., Berlim. Divisões de Investigação Criminal da Scotland Yard, Zurique e Berlim.

Charles Walford, Sotheby Parke Bernet, Londres.

E a Jorja, que torna tudo possível.


LIVRO PRIMEIRO


Capítulo 1


Istambul, Sábado, 5 de Setembro. 22 horas Estava sentado sozinho e no escuro, atrás da mesa de Hajib Kafir, com os olhos voltados para as janelas empoeiradas do escritório e os minaretes intemporais de Istambul. Era um homem que se sentia bem em uma dúzia de capitais do mundo, e Istambul era uma das suas favoritas. Não a Istambul para turistas da rua Beyoglu ou do espalhafatoso Bar Lalezab do Hilton, mas a Istambul dos recantos ocultos que só os muçulmanos conheciam: os yalis, os pequenos mercados além dos souks e o Telli Baba, o cemitério onde só uma pessoa estava enterrada e aonde ia gente para rezar em sua intenção. A espera do homem era marcada por uma paciência de caçador e pela absoluta imobilidade de que domina o corpo e as emoções. Era do País de Gales e tinha a beleza enigmática e tempestuosa dos seus antepassados. Cabelos pretos, rosto forte e olhos vivos, de um azul intenso. Tinha mais de um metro e oitenta de altura e o corpo de um homem que se mantinha em boas condições físicas. Os cheiros de Hajib Kafir impregnavam a sala - o seu fumo adocicado, o seu acre café turco e o seu corpo gordo e oleoso. Rhys Williams não dava atenção a esses odores. Estava pensando no telefonema que lhe haviam dado de Chamonix uma hora antes.

- Um terrível acidente! Creia que estamos todos arrasados, Sr. Williams. Tudo aconteceu com tanta rapidez que não houve chance de salvá-lo. O Sr. Roffe morreu instantaneamente.

Sam Roffe era presidente da Roffe and Sons, a segunda companhia de produtos farmacêuticos do mundo, uma dinastia de muitos milhões de dólares que se espalhava por todo o globo.

Era impossível acreditar na morte de Sam Roffe. O homem sempre fora muito dinâmico, cheio de vida e energia, sempre em movimento, dentro de aviões que o levavam a fábricas e escritórios da companhia através do mundo, onde resolvia problemas que os outros nem podiam enfrentar, criava novos conceitos e fazia todo mundo trabalhar mais e melhor.

Embora houvesse sido casado e tivesse uma filha, seu único interesse na vida haviam sido os negócios. Sam Roffe tinha sido um homem brilhante e extraordinário.

Quem poderia substituí-lo? Quem seria capaz de governar o imenso império que ele deixava? Roffe não havia escolhido um herdeiro legítimo. Também não havia pensado em morrer aos cinqüenta e dois anos. Sempre pensara que havia tempo de sobra. E agora o tempo estava esgotado. As luzes do escritório se acenderam de repente. Rhys Williams olhou para a porta, ofuscado por um momento.

- Sr.Williams! Não sabia que havia alguém aqui. Era Sophia, uma das secretárias da companhia, que era sempre designada para servir Williams quando ele estava em Istambul.

Turca, na casa dos vinte anos, tinha um belo corpo sensual, estonteante de promessas. Fizera Rhys saber, através de sutis e antigas sugestões, que estava à sua disposição para dar-lhe os prazeres que desejasse, na hora que quisesse, mas Rhys não se interessava. Sophia disse:

- Voltei para acabar algumas cartas para o Sr. Kafir. Acrescentou, então, com uma voz bem doce:

- Quem sabe se não posso também prestar-lhe algum serviço… Quando ela se aproximou da mesa, Rhys sentiu o cheiro almiscarado de um animal selvagem no cio.

- Onde está o Sr. Kafir? Sophia abanou a cabeça com pesar.

- Já foi e não volta mais hoje. Deseja alguma coisa? Alisou com as palmas das mãos macias e hábeis à frente do vestido. Tinha olhos negros e úmidos.

- Desejo, sim. Procure-o. - Não sei onde ele pode estar… - Tente o Kervansaray ou o Mermara. Estaria decerto no primeiro desses lugares, onde uma das amantes de Hajib Kafir apresentava a dança do ventre. Mas Kafir era imprevisível. Poderia até estar em casa junto com a mulher.

- Vou tentar, mas não sei se… - murmurou Sophia. -Diga a ele que, se não estiver aqui dentro de uma hora, será despedido. A expressão do rosto dela mudou.

- Vou ver o que posso fazer, Sr. Williams. Encaminhou-se para a porta.

- Apague a luz quando sair.

De qualquer maneira, era mais fácil ficar ali no escuro em companhia dos seus pensamentos. A imagem de Sam Roffe estava presente sempre. A escalada do monte Branco deveria ter sido fácil naquela época do ano, começo de setembro. Sam tinha tentado a empreitada anteriormente mas as tempestades o haviam impedido de chegar ao cimo.

- Desta vez vou cravar lá em cima a bandeira da companhia - dissera ele a Rhys.

E então houvera o telefonema de há pouco, quando ele se preparava para deixar o Pera Palace, onde estivera hospedado. Ouvia ainda a voz nervosa ao telefone. Estavam atravessando a geleira… Roffe falseara o pé e a sua corda se partira. Caíra numa fenda profunda. Rhys podia visualizar o corpo de Sam na colisão com o gelo implacável e a sua queda no abismo. Procurou então afastar a cena do espírito. Aquilo já era passado. O presente é que surgia repleto de preocupações. Era preciso comunicar a morte às pessoas da família de Sam Roffe, e elas estavam espalhadas por várias partes do mundo.

Tinha de ser uma comunicação pela imprensa. A notícia ia percorrer os círculos financeiros internacionais como uma crise financeira, era essencial que o impacto da morte de Sam Roffe fosse reduzido ao mínimo. Cabia a Rhys conseguir isso. Rhys Williams conhecera Sam Roffe havia nove anos.

Rhys tinha então, vinte e cinco anos e era gerente de vendas de uma pequena firma de produtos farmacêuticos. Era brilhante e gostava de inovar, tendo feito a firma se expandir. Com isso, a sua reputação havia crescido. Recebera uma proposta para trabalhar na Roffe and Sons, e, logo depois de recusá-la, soube que Sam Roffe comprara a companhia em que ele trabalhava e mandara chamá-lo. Ainda se lembrava do poder dominador de Sam Roffe naquele primeiro encontro.

- O seu lugar é aqui na Roffe and Sons - havia-lhe dito Sam Roffe. - Foi por isso que comprei aquela companhia trôpega em que você trabalhava. Rhys se sentiu lisonjeado e irritado ao mesmo tempo. - E se eu não quiser continuar? Sam Roffe sorrira e respondera, cheio de confiança: - Nós temos uma coisa em comum, Rhys. Somos ambiciosos. Queremos ser donos do mundo. E eu vou mostrar-lhe como se consegue isso. Essas palavras foram mágicas. Representavam a promessa de um banquete para a fome que ardia no íntimo de Rhys. De fato, ele sabia alguma coisa que Sam Roffe desconhecia. Rhys Williams não existia. Era um mito criado pela descrença, pela pobreza e pelo desespero.

Nasceu perto das jazidas de carvão de Gwent e Carmarthen, nos retalhos vales vermelhos do País de Gales, onde camadas de arenito e depósitos de calcário e carvão em forma de pires rasgavam a terra verde. Cresceu em uma terra fabulosa, onde os próprios nomes exalavam poesias: Penderyn, Brecon, Pen-y Fan, Glyncorrwg e Maesteg.

Era uma terra de lenda, onde o carvão que se achava no fundo da terra se formara duzentos e oitenta milhões de anos antes, onde a paisagem fora, em outros tempos, coberta de tantas árvores que um esquilo poderia viajar do Farol de Brecon até o mar sem pousar as patas no chão. Mas a Revolução Industrial chegou e as belas árvores verdes foram abatidas pelos produtores de carvão vegetal para alimentar as fornalhas insaciáveis da industria do ferro. O garoto cresceu conhecendo heróis de outro tempo e de outro mundo, como Robert Farrer, queimado na fogueira pela Igreja Católica porque não quisera fazer votos de celibato e abandonar a mulher; como o rei Hywel, o Bom, que levara a lei ao País de Gales no século X; e como o destemido guerreiro Brychen, que gerara doze filhos e vinte e quatro filhas e resistira com bravura a todos os ataques ao seu reino. Era uma terra de histórias gloriosas aquela em que o garoto cresceu Mas nem tudo era glória. Os antepassados de Rhys haviam sido mineiros, e o jovem costumava ouvir os casos de sofrimentos que seu pai e seus tios contavam. Lembravam os terríveis tempos em que não havia trabalho, em que as ricas jazidas de carvão de Gwent e Carmarthen foram fechadas em consequência de uma amarga luta entre as companhias e os mineiros e em que estes foram reprimidos por uma pobreza que corroeu a ambição e o orgulho, solapando o espírito e a força dos homens até fazê-los capitular. Quando as minas foram reabertas, houve outra espécie de inferno. Quase toda a família de Rhys tinha morrido nas minas. Alguns haviam morrido nas entranhas da terra, outros consumiram, tossindo, os pulmões enegrecidos. Poucos tinham passado dos trinta anos de idade. Rhys costumava ouvir o pai e os tios falarem do passado, do desmoronamento, dos mineiros invalidados e das greves.

Falaram dos bons e dos maus tempos, e o garoto não via qualquer diferença entre uns e outros. Todos eram maus. A idéia de passar a vida dentro da escuridão da terra o apavorava, e ele sabia que tinha de fugir. Saiu de casa aos doze anos. Abandonou os vales do carvão e foi para a costa, para a baía de Sully Ranny e para Lavernock, para onde corriam os turistas ricos. Foi mensageiro, carregador, ajudava as senhoras a descerem os caminhos escarpados para a praia, carregando cestas de piquenique, dirigiu um carro de pôneis em Penarth e trabalhou no parque de diversões de Whitmore Bay.

Estava apenas a algumas horas de casa, mas a distância já era incomensurável. A gente do lugar onde ele estava parecia pertencer a outro mundo. Rhys Williams nunca imaginara que as pessoas pudessem ser tão belas ou usar roupas tão magníficas. Toda mulher lhe parecia uma rainha, e os homens eram elegantes e esplêndidos.

Era aquele o seu mundo, e não havia nada que Rhys não fosse capaz de fazer para entrar nele. Quando completou catorze anos, tinha economizado dinheiro suficiente para comprar uma passagem até Londres. Passou lá os três primeiros dias simplesmente andando pela grande cidade, olhando para tudo e avidamente embebendo-se dos fantásticos espetáculos, sons e cheiros. O seu primeiro emprego foi em uma loja de tecidos. Havia dois caixeiros, ambos seres superiores, e uma caixeira que fazia o coração do jovem galês cantar sempre que a olhava. Os caixeiros tratavam Rhys como ele devia ser tratado, isto é, como lixo. Era uma curiosidade. Vestia-se com roupas esquisitíssimas, tinha maneiras abomináveis e falava com um sotaque incompreensível. Não conseguiam sequer pronunciar-lhe o nome direito. A moça teve pena dele. Chamava-se Gladys Simpkins e morava em um pequeno apartamento em Tooting com três outras moças. Um dia, ela permitiu que o rapaz a levasse até a casa depois do trabalho e convidou-o para entrar e tomar uma xícara de chá. O jovem Rhys estava muito nervoso. Pensava que aquela ia ser a sua primeira experiência sexual, mas quando passou o braço pelo corpo de Gladys, esta olhou muito séria para ele por um momento e depois riu.

- Não vou lhe dar nada disso, mas estou disposta a dar-lhe um bom conselho. Se você quiser ser alguma coisa, compre roupas melhores, procure instruir-se mais um pouco e aprenda a ter boas maneiras. - Olhou o rosto jovem e apaixonado de Rhys, viu seus profundos olhos azuis e disse com voz suave: - Até que você vai ficar um bocado legal quando crescer… Se você quiser ser alguma coisa…

Neste momento o fictício Rhys Williams nasceu. O verdadeiro Rhys Williams era um rapaz ignorante e sem educação, sem meios, sem tradição, sem passado e sem futuro. Mas ele tinha imaginação, inteligência e ardente ambição. Isso era o bastante.

Começou a imaginar do que queria conseguir, do que queria ser. Quando se olhava ao espelho, não via o rapaz bronco e desajeitado, de sotaque estranho. A imagem refletia uma pessoa polida, delicada e bem-sucedida. Pouco a pouco, Rhys começou a responder à imagem que trazia no espírito. Freqüentava escolas noturnas e passava os fins de semana em galerias de arte. Rondava as bibliotecas públicas e ia ao teatro, sentava-se nas galerias e reparando nas boas roupas dos homens sentados nas platéias. Fazia refeições frugais para poder, uma vez por mês, ir a um bom restaurante, onde imitava cuidadosamente as maneiras dos outros à mesa. Observava, aprendia e não esquecia.

Era como uma esponja que apagava o passado e absorvia o futuro. Em menos de um ano, Rhys aprendeu o bastante para compreender que Gladys Simpkins, sua princesa, era uma mocinha cockney vulgar, que estava abaixo do seu gosto. Deixou a loja de tecidos e foi trabalhar em uma farmácia, que fazia parte de uma grande rede. Tinha quase dezesseis anos, mas parecia mais velho. Estava mais cheio de corpo e mais alto. As mulheres estavam começando a prestar atenção na sua boa aparência morena de galês e sua conversa fluente e cheia de palavras lisonjeiras. Fazia muito sucesso na farmácia, e havia freguesas que esperavam até que Rhys pudesse atendê-las. Vestia-se bem e falava com correção. Mas, embora soubesse que já estava bem longe de Gwent e Carmarthen, ainda não ficava satisfeito quando se olhava no espelho. Tinha ainda uma longa jornada pela frente. Depois de dois anos, Rhys passou a ser gerente da farmácia.

O gerente distrital da rede lhe havia dito: "Isto é apenas o começo, Williams.

Continue a trabalhar assim e um dia você será o superintendente de meia dúzia de casas". Rhys quase deu uma gargalhada.

Pensar que isso poderia ser considerado o máximo da ambição de uma pessoa!

Nunca havia deixado de estudar. Estava fazendo cursos de administração de empresas, marketing e direito comercial. Queria mais. Tinha os olhos voltados para o topo da escada e sabia que ainda não chegara nem aos primeiros degraus. Teve a sua primeira oportunidade de subir quando um vendedor de produtos farmacêuticos entrou um dia na farmácia e viu Rhys cercado de mulheres, às quais induziu vários artigos de que elas não tinham qualquer necessidade.

- Você está perdendo tempo aqui, rapaz - disse ele.

- Devia estar trabalhando em um campo maior.

- Em que está pensando? - perguntou Rhys.

- Vou falar com meu chefe a seu respeito.

Duas semanas depois, Rhys estava trabalhando como vendedor de uma pequena firma de medicamentos. Fazia parte de uma equipe de cinqüenta vendedores, mas quando se olhava no espelho, sabia que a verdade não era essa. A verdadeira competição que tinha de enfrentar era consigo mesmo. Já estava se aproximando de sua imagem, do tipo fictício que procurava criar. Um homem inteligente, culto, refinado e encantador. O que ele tentava fazer era impossível.

Qualquer pessoa sabia que era preciso trazer essas qualidades do berço. Não podiam ser criadas. Mas Rhys conseguiu o que queria. Tornou-se a imagem que havia elaborado. Viajou pelo interior, vendendo produtos da firma, falando e escutando. Voltava a Londres cheio de sugestões práticas e tratava imediatamente de ir subindo a escada.

Três anos depois de haver entrado na companhia, Rhys foi nomeado gerente-geral de vendas. Sob a sua hábil orientação, a companhia começou a expandir-se. Quatro anos depois, Sam Roffe entrou na vida de Rhys e percebeu a fome que o consumia.

- Você é como eu -disse Sam. - Nós queremos conquistar o mundo. E vou mostrarlhe como fazê-lo. Sam Roffe tinha sido um guia brilhante. Durante os nove anos em que vivera sob a direção de Sam Roffe, Rhys Williams se tornara de valor inestimável para a companhia. Com o correr do tempo, assumira responsabilidades cada vez maiores, reorganizando várias divisões, resolvendo problemas em qualquer ponto do mundo, coordenando as diversas filiais da Roffe and Sons e criando novos conceitos. No fim, Rhys Williams conhecia o funcionamento e a situação da companhia mais do que qualquer pessoa, à exceção do próprio Sam Roffe. Rhys Williams era o sucessor natural para a presidência.

Um dia, quando Rhys e Roffe voltavam de Caracas em um luxuoso Boeing 707- 320, que fazia parte da frota de oito aviões da companhia, Sam Roffe felicitou Rhys por uma transação lucrativa que ele havia fechado com o governo.

- Vai ganhar uma boa gratificação por isso, Rhys.

Rhys respondeu calmamente:

- Não quero gratificação, Sam. Prefiro algumas ações e um lugar na sua diretoria.

Merecia isso, decerto, e os dois sabiam disso. Mas Sam respondeu:

- Sinto muito, mas não vou alterar os meus princípios, nem mesmo por sua causa.

A Roffe and Sons é uma empresa privada e ninguém que não seja da família pode pertencer à diretoria ou possuir ações. Rhys sabia disso, sem dúvida. Comparecia a todas as reuniões da companhia, mas não como participante. Sam era o último elemento masculino da família Roffe. As outras pessoas da família eram todas mulheres, primas de Sam. Os homens com quem elas haviam casado tinham um lugar na diretoria da companhia: Walther Gassner, que se casara com Anna Roffe; Ivo Palazzi, casado com Simonetta Roffe; Charles Martel, casado com Hélsne Roffe e Alec Nichols, cuja mãe fora uma Roffe. Rhys fora assim forçado a tomar uma decisão. Sabia que merecia fazer parte da diretoria e que um dia dirigiria tudo. As circunstâncias atuais impediam isso, mas elas podiam ser alteradas.

Rhys tinha decidido continuar à espera, para ver o que acontecia. Sam lhe ensinara a ser paciente. E agora Sam estava morto.

As luzes do escritório acenderam-se de novo e Hajib Kafir apareceu à porta. Kafir era o gerente de vendas da Roffe and Sons na Turquia. Era um homem baixo e moreno, que usava diamantes e uma barriga gorda com atributos de prestígio pessoal. Tinha o ar desmazelado de um homem que se vestia as pressas. Sophie não o encontrara, portanto, numa boate. Outro efeito secundário da morte de Roffe, pensou Rhys: um coito interrompido.

- Rhys! -exclamou Kkafir. - Nunca imaginei que ainda estivesse em Istambul!

Quando o deixei, ia tomar o avião e, como eu tinha alguns casos para resolver…

- Sente-se, Hajib, e ouça com muita atenção. Quero que mande quatro telegramas no código da companhia. São para países diferentes. Quero que sejam levados pessoalmente para o telégrafo por mensageiros de confiança. Entendeu?

- É claro - disse Kafir, espantado. - Entendi perfeitamente.

Rhys olhou para o fino relógio de ouro Baume Mercier que tinha no pulso.

- A agência da Cidade Nova já está fechada. Passe os telegramas pelo Yeni Posthane Cad. Quero que estejam a caminho dentro de trinta minutos. -Entregou a Kafir uma cópia do telegrama que havia redigido. - Qualquer pessoa que fizer algum comentário será sumariamente despedida.

Kafir viu o telegrama, os seus olhos se arregalaram.

- Meu Deus! Meu Deus! Como pôde acontecer uma coisa dessas?

- Sam Roffe morreu em um acidente - disse Rhys.

Depois disso, pela primeira vez Rhys deixou que lhe chegasse à consciência o que ele estava reprimindo desde que recebera a notícia. Rhys tinha evitado pensar em Elizabeth Roffe, filha de Sam, que estava com vinte e quatro anos. Na primeira vez em que Rhys a vira, era uma menina de quinze anos, com aparelho nos dentes, tremendamente tímida e gorda, solitária e rebelde. Com o passar dos anos, vira Elizabeth tornar-se uma moça muito interessante, que tinha ao mesmo tempo a beleza da mãe e a inteligência e o espírito do pai. Havia se ligado muito a Sam. Rhys sabia que a notícia iria abalála profundamente e resolveu dá-la pessoalmente. Duas horas depois, Rhys Williams sobrevoava o Mediterrâneo num jato da companhia, rumo a Nova York.

Capítulo 2 Berlim. Segunda-feira, 7 de setembro. 22 horas.

Anna Roffe Gassner sabia que não devia gritar de novo, pois Walther voltaria para matá-la. Encolhida em um canto do seu quarto, tremia incontrolavelmente e esperava a morte. O que havia começado como um belo conto de fadas terminava em terror, um indescritível terror. Ela tardara muito a convencer-se da verdade: o homem com quem se casara era um louco assassino. Anna Roffe nunca tinha amado ninguém antes de conhecer Walther Gassner, nem mesmo sua mãe, seu pai ou a si própria.

Fora uma menina frágil e doente, que sofria de freqüentes desmaios. Não podia lembrar-se de um tempo em que não tivesse vivido às voltas com hospitais, enfermeiras e especialistas que eram trazidos de avião de lugares distantes. Como era filha de Anton Roffe, da Roffe and Sons, as maiores autoridades médicas eram levadas à cabeceira de Anna, em Berlim. Examinavam-na, submetiam-na a numerosos exames, e por fim partiam sem saber mais do que sabiam ao chegar. Não conseguiam fazer um diagnóstico. Anna não pôde ir à escola como as outras crianças. Tornou-se reservada e criou um mundo próprio, cheio de sonhos e fantasias, onde só ela entrava. Pintava à sua maneira os seus quadros da vida, pois as cores da realidade eram muito ásperas, e ela não podia aceitálas.

Quando Anna completou dezoito anos, os seus desmaios desapareceram tão misteriosamente quanto haviam começado.

Mas tinham lhe marcado a vida. Numa idade em que as moças em geral ficavam noivas ou se casavam, Anna nunca fora beijada por um rapaz. Convencia-se de que isso não tinha a menor importância. Estava contente em viver no seu mundo de sonhos, longe de tudo e de todos. Por volta dos seus vinte e cinco anos, os pretendentes começaram a aparecer. Anna Roffe era uma herdeira que tinha um dos mais prestigiados nomes do mundo, e muitos homens estavam ansiosos pela participação na fortuna dela. Recebeu propostas de um conde sueco, de um poeta italiano e de meia dúzia de príncipes de países pobres. Anna recusou todos. Quando ela fez trinta anos, Anton Roffe murmurou, tristonho:

- Vou morrer sem deixar netos.

No seu trigésimo aniversário, Anna foi para Kitzbehel, na Austria, e ali conheceu Walther Gassner, professor de esqui, treze anos mais moço que ela. Na primeira vez em que Anna viu Walther, perdeu literalmente o fôlego. Ele estava esquiando pela íngreme encosta do Hahnenkamm, e foi o espetáculo mais belo que os olhos de Anna já haviam contemplado. Ela chegou mais perto do final da pista a fim de vê-lo melhor. Parecia-lhe um jovem deus, e ela ficou toda feliz só de olhá-lo. Walther percebeu o olhar dela.

- Não Está esquiando, gnãdiges Frãulein?

Ela abanou a cabeça, não confiando na sua voz. Ele sorriu e disse:

- Permita-me então convidá-la para almoçar.

Anna fugiu, apavorada como uma colegial. Daí em diante, Walther Gassner passou a perseguí-la. Anna Roffe não era tola. Sabia muito bem que não era bela, nem brilhante. Era uma mulher comum e, além do seu nome, tinha muito pouco a oferecer a um homem. Mas sabia também que, por trás dessa fachada comum, escondia-se uma mulher intimamente bela e sensível, transbordante de amor, de poesia e de música.

Talvez por não ser bela, Anna tinha uma profunda veneração pela beleza. Visitava os grandes museus e passava horas a admirar quadros e estátuas. Ao ver Walther Gassner, teve a impressão de que todos os deuses estavam vivos diante dela. Anna estava fazendo a primeira refeição no terraço do Tennerhof Hotel quando Walther Gassner se aproximou dela.

Parecia, de fato, um jovem deus. Tinha um perfil clássico marcado com feições delicadas, sensíveis e enérgicas. O rosto estava bem queimado pelo sol da montanha e os dentes eram muito brancos e certos. Os cabelos eram louros e os olhos tinham um tom cinzento de ardósia. Sobre as roupas de esqui que ele vestia, Anna podia ver o movimento dos bíceps e dos músculos das coxas, o que a fazia sentir tremores pelo corpo. Tratou de esconder as mãos no colo para que ele não visse as calosidades da ceratose.

- Procurei-a ontem à tarde nas pistas - disse Walther. Anna não conseguia dizer uma palavra. - Se não sabe esquiar, terei prazer em ensinar-lhe. - E acrescentou com um sorriso: - De graça.

Ele a levou para Hausberg, a encosta dos principiantes, a fim de dar-lhe a primeira lição. Ficou logo evidente para ambos que Anna não tinha a menor aptidão para esquiar.

Perdia o equilíbrio e caía constantemente, mas insistia em tentar repetidamente, pois tinha receio de que Walther a desprezasse pelo seu fracasso. ao invés disso, depois da décima queda, ele a ajudou a levantar-se para coisas melhores e disse:

- Você foi feita para coisas melhores.

- Eu lhe direi à noite na hora do jantar.

Jantaram juntos naquela noite. Tomaram café juntos na manhã seguinte, e novamente almoçaram e jantaram juntos.

Walther se esqueceu de seus alunos. Deixou de dar lições de esqui para acompanhar Anna até à aldeia. Levou-a ao cassino em Der Gojdene Greif. Andaram de trenó, fizeram compras, andaram a pé e ficaram horas e horas conversando no terraço do hotel. Para Anna, era um tempo de encantamento. Cinco dias depois de se terem conhecido, Walther tomou-lhe as mãos e disse:

- Anna, quero casar-me com você.

Com isso, ele estragara tudo. Arrancou-a das terras de sonhos em que ela estava vivendo e a levou para a cruel realidade de quem e do que era ela. Um prêmio virginal e sem atrativos, de trinta e cinco anos, para quem estivesse disposto a dar o golpe do baú.

Tentou afastar-se, mas Walther a impediu:

- Nós nos amamos, Anna. Disso você não pode fugir. Ela o ouviu mentir, ouviu-o dizer: "Nunca amei ninguém antes de você", e facilitou as coisas porque queria desesperadamente acreditar nele. Levou-o para o quarto dela e os dois ficaram ali conversando.

Enquanto Walther contava a história de sua vida, ela de repente começou a acreditar nele e achou que a vida de Walther tinha sido muito semelhante à dela. Do mesmo modo, Walther nunca tivera a quem amar. Fora marginalizado por ser filho ilegítimo, da mesma forma que Anna pela doença. Como Anna, ele sempre sentiu necessidade de dar amor. Criado em um orfanato, quando chegou à adolescência e a sua beleza já era evidente, as mulheres do orfanato começaram a usá-lo, levando-o para os seus quartos à noite, pondo-o na cama e ensinando-lhe a dar-lhes prazer. Como recompensa, ganhava rações reforçadas, com pedaços de carne e sobremesas feitas com açúcar de verdade. Recebia tudo, menos amor. Quando Walther teve idade suficiente para fugir do orfanato, descobriu que o mundo lá fora não era diferente.

As mulheres continuavam a usá-lo, muitas vezes por vaidade, mas nunca iam além disso. Davam-lhe dinheiro, roupas e jóias, mas nunca se davam a si mesmas. Anna compreendeu que Walther era sua alma gêmea.

Casaram-se, numa cerimônia simples, na prefeitura. Anna esperava que seu pai ficasse contente. Ele se mostrou, ao contrário, exasperado.

- Você é uma tola vazia e imbecil! - gritou-lhe Anton Roffe. -Casou-se com um aventureiro que não vale nada. Já mandei fazer investigações sobre ele. Sempre viveu à custa das mulheres, mas foi a primeira vez que encontrou uma idiota a ponto de casar-se com ele.

- Pare com isso! - exclamou Anna. -Você não o compreende.

Mas Anton Roffe sabia que compreendia Walther Gassner até demais. Chamou o novo genro ao seu escritório. Walther olhou com aprovação a decoração severa do escritório e os velhos quadros pendurados nas paredes.

- Gosto disso aqui - disse ele.

- Sem dúvida alguma, é melhor de que o orfanato.

Walther olhou para ele, cheio de cautela.

- Que foi que disse?

- Vamos acabar com isso. Você cometeu um erro. Minha filha não tem dinheiro.

Os olhos cinzentos de Walther tornaram-se de pedra.

- Que está querendo me dizer?

- Não estou querendo dizer coisa alguma. Estou dizendo. Não receberá nada por intermédio de Anna, pois ela nada tem. Se você tivesse procurado saber das coisas mais a fundo, teria sabido que a Roffe and Sons é uma empresa fechada. Isto significa que nenhumas das suas ações pode ser vendida. Vivemos com conforto, mas é só. Não há de modo nenhum uma grande fortuna com que você possa se locupletar aqui. - Tirou do bolso um envelope, que jogou na mesa à frente de Walther. - Isso o compensará do trabalho que teve. Espero que esteja fora de Berlim às seis horas da noite de hoje. Anna nunca mais deve ter notícias suas.

Walther disse calmamente:

- Por acaso já lhe passou pela cabeça que eu me casei com Anna porque a amo?

- Claro que não. Já passou pela sua?

Walther olhou para ele um momento e disse:

- Vamos ver o preço que me foi atribuído. Abriu o envelope e contou o dinheiro.

Depois, olhou para Anton Roffe. - Acho que valho muito mais do que vinte mil marcos.

- Pois é só o que vai receber. E dê-se por muito feliz.

- Para dizer a verdade, dou-me por muito feliz -disse Walther. - Muito obrigado.

Guardou o dinheiro no bolso em um gesto displicente e um momento depois saiu.

Anton Roffe sentiu-se reconfortado. Experimentava um sentimento de culpa e de aborrecimento pelo que tinha feito, mas sabia que aquela era a única solução. Anna ficaria infeliz com o fato de ter sido abandonada pelo marido, mas era melhor que isso tivesse acontecido o mais rápido possível. Tentaria descobrir alguns homens da idade dela em condições, tendo a certeza de que o homem que escolhesse iria respeitá-la, ainda que não a amasse. Teria de ser alguém que se interessasse por ela e não pudesse ser comprado por vinte mil marcos. Quando Anton Roffe chegou em casa. Anna correulhe ao encontro com os olhos cheios de lágrimas. Ele a tomou nos braços e disse:

- Anna, tudo vai correr bem. Você se consolará… - Anton olhou por sobre os ombros dela e viu Walther Gassner à porta. Anna olhava para o dedo e dizia:

- Veja o que Walther comprou para mim! Já viu algum dia um anel mais bonito? Custou vinte mil marcos.

No fim, os pais de Anna foram forçados a aceitar Walther Gassner. Como presente de casamento, compraram para o casal uma bela casa senhorial no Wannsee, com algumas antiguidades, sofás e poltronas confortáveis, uma mesa Roentgen na biblioteca e as paredes revestidas de estantes de livros. O andar de cima era mobiliado com elegantes peças dinamarquesas e suecas do século


XVIII.


- Tudo isso é demais - disse Walther a Anna. - Nada quero deles, nem de você.

Gostaria de poder comprar muitas coisas belas para você, - disse-lhe ele com um sorriso forçado de menino -, mas não tenho dinheiro.

- Claro que tem - respondeu Anna. - Tudo o que tenho é seu. Walther sorriu ternamente para ela e disse:

- É mesmo?

Anna insistiu em explicar a sua situação financeira, embora Walther não se mostrasse disposto a discutir questões de dinheiro. Tinha um fundo no nome dela que lhe permitia viver com conforto, mas a base de sua fortuna era constituída de ações da Roffe and Sons. As ações não poderiam, porém, ser vendidas sem a aprovação unânime da diretoria.

- Qual é o valor total de suas ações? - perguntou Walther. Anna disse. Walther não acreditou que fosse tanto e a fez repetir a importância. - E você não pode vender as ações?

- Não. Meu primo Sam não consentiria. Ele retém as ações que asseguram o controle.

Um dia Walther manifestou o seu desejo de trabalhar na empresa da família. Anton se opôs.

- Que pode um camarada como você, que não sabe senão esquiar, dar de positivo à Roffe and Sons? - perguntou ele.

Mas acabou cedendo aos apelos da filha, e Walther começou a trabalhar na administração da companhia. Dedicou-se ao trabalho e progrediu rapidamente. Quando o pai de Anna morreu, dois anos depois, Walther passou a fazer parte da diretoria. Anna tinha orgulho dele, pois Walther era um marido perfeito e continuava a mostrar-se enamorado dela. Levava-lhe sempre flores e pequenos presentes, e parecia muito feliz em passar as noites em casa a sós com ela. A felicidade de Anna era quase excessiva, e ela costumava rezar em silêncio, agradecendo a Deus. Apreendeu a cozinhar para fazer os pratos favoritos de Walther.

Fazia chucrute com batatas, carne de porco cozida com cerveja e temperada com cominho, acompanhada de uma maça cozida, recheada com airelles, as pequenas bagas vermelhas.

- Você é a melhor cozinheira do mundo, -dizia Walther, e Anna ficava vermelha de orgulho.

No terceiro ano de casada, Anna ficou grávida. Houve algumas complicações durante os oito meses de gravidez, mas Anna tudo suportou, muito feliz. Havia, entretanto, uma coisa que a preocupava. Começou um dia, depois do almoço. Ela estava tricotando um suéter para Walther, pensando na vida, e de repente ouviu a voz de Walther que dizia:

- Que é que você está fazendo, Anna, sentada aí no escuro? A tarde tinha passado e anoitecia. Anna olhou para o suéter no colo e viu que não havia tocado nele.

Para onde fora o tempo?

Onde tinha estado seu espírito? Depois disso, Anna passou por estados semelhantes e começou a pensar que esses acessos de inconsciência, essas decidas para o nada talvez fossem um presságio, um sinal de que ela ia morrer. Na verdade, não tinha medo da morte, mas não podia tolerar a idéia de se separar de Walther. Quatro semanas antes da data prevista para o parto, Anna teve uma das suas crises de inconsciência, falseou o pé no degrau e rolou pela escada. Acordou no hospital. Walther estava sentado na cama e lhe segurava a mão.

- Que susto você me deu!

Com um pavor súbito, Anna pensou: "Meu filho! Perdi meu filho!" Levou a mão à barriga e não sentiu mais nada.

- Meu filho! Onde está meu filho?

O médico disse:

- Teve gêmeos, Sra. Gassner.

Anna voltou-se para Walther, que estava com os olhos cheios de lágrimas.

- Um menino e uma menina. Ela poderia ter morrido naquele momento de felicidade. Sentiu um desejo súbito de ter os filhos nos braços. Queria vê-los, apalpá-los, carregá-los. - Falaremos sobre isso quando você estiver mais forte - disse o médico. - Só depois que você estiver mais forte.

Asseguravam a Anna que ela estava melhorando dia após dia, mas ela se sentia apavorada. Estava acontecendo alguma coisa incompreensível com ela. Walther chegava, tomava-lhe a mão e se despedia. Ela o olhava, surpresa, e começava a dizer:

- Mas você chegou agora mesmo… Olhava então para o relógio e via que três ou quatro horas tinham se passado. Tinha a vaga lembrança de que haviam levado os filhos para ela uma noite e que no mesmo instante ela adormeceu. Não se lembrava com clareza das coisas e tinha receio de perguntar. Mas não tinha importância. Poderia ver os filhos à vontade quando Walther a levasse para casa. Afinal, o grande dia chegou. Anna saiu do hospital em uma cadeira de rodas, embora dissesse que tinha forças para caminhar.

Na realidade, sentia-se muito fraca, mas estava muito nervosa e sabia que nada mais importava senão o fato de que ia ver os filhos. Walther entrou com ela nos braços e começou a subir a escada em direção do quarto.

- Não! - exclamou ela. - Leve-me para o quarto das crianças!

- Agora, você deve descansar. Está um pouco fraca…

Ela não quis mais escutar. Saiu dos braços dele e correu para o quarto das crianças. As cortinas estavam descidas, e Anna levou algum tempo para ambientar os olhos à escuridão. Era tamanha a sua agitação que ela estava até um pouco tonta, e teve receio de desmaiar. Walther a havia acompanhado e estava falando, tentando explicar alguma coisa. Mas, fosse o que fosse, não tinha importância. Eles estavam ali, dormindo nos berços. Anna se aproximou lentamente como se não os quisesse perturbar e ficou a olhá-los. Eram as crianças mais lindas que já vira. Mesmo naquela idade, podia ver que o menino seria bonito como o pai e teria os mesmos bastos cabelos louros. A menina era como uma frágil boneca de cabelos sedosos e dourados e rosto pequeno e triangular.

Anna voltou-se para Walther e disse com voz embargada pela emoção:

- São lindos… Eu estou tão feliz…

- Vamos, Anna - murmurou Walther. Passou o braço pelo corpo dela, abraçando-a.

Havia uma fome impetuosa dentro dele, e ela começou a sentir também alguns impulsos.

Fazia tempo que não se amavam. Walther tinha razão. Havia bastante tempo para as crianças.

Deu ao menino o nome de Peter e à menina, o de Birgitta. Eram dois belos milagres que ela e Walther tinham feito, e Anna passava horas no quarto dos gêmeos, brincando e falando com eles.

Ainda que não pudessem compreendê-la, tinha certeza de que sentia o seu amor.

Às vezes, quando estava mais entretida com os filhos, voltava-se e via Walther parado à porta, de volta do escritório. Anna compreendia então que o dia inteiro passava sem que ela sentisse.

- Venha - dizia ela. - Estamos jogando.

- Já preparou o jantar? - perguntava Walther, e ela de repente se sentia culpada.

Resolvia dar mais atenção a Walther e menos às crianças, mas no dia seguinte tudo se repetia. Os gêmeos eram como um imã irresistível que a atraía. Anna ainda amava muito Walther e tentava atenuar o sentimento de culpa, convencendo-se de que as crianças eram também parte dele. Todas as noites, logo que Walther adormecia, ela saía da cama e ia para o quarto das crianças e ficava a olhá-los até que a luz da manhã começasse a encher o quarto. Apressando-se então em voltar para a cama antes que Walther acordasse. Uma vez, Walther entrou no quarto das crianças no meio da noite e surpreendeu-a.

- Quer me dizer o que está fazendo?

- Nada, querido. Estava apenas…

- Volte para a cama! Ele nunca lhe falara com tanta rispidez. Na manhã seguinte, Walther disse: - Acho que devemos tirar umas férias. Seria muito bom para nós dois.

- Mas, Walther, as crianças ainda são muito pequenas para viajar.

- Estou falando de férias para nós dois. Ela abanou a cabeça.

- Eu não poderia deixar as crianças.

Ele lhe tomou as mãos e disse:

- Quero que se esqueça das crianças.

- Esquecer-me das crianças? - perguntou ela, atônita. Walther olhou-a bem nos olhos e disse: - Anna, lembra-se de como tudo corria bem entre nós antes de você ficar grávida? Lembra-se de como vivíamos alegres e felizes, sem ninguém mais para interferir?

Foi então que ela compreendeu. Walther tinha ciúmes dos filhos. As semanas e os meses passaram rapidamente. Walther deixou de se aproximar das crianças. Nos aniversários delas, Anna lhes comprava belos presentes. Walther sempre achava um jeito de estar fora da cidade em negócios. Anna não podia continuar a iludir-se para sempre. A verdade era que Walther não tinha o menor interesse pelos filhos. Anna julgava que talvez a culpa fosse dela, pois era muito interessada neles. "Obcecada" foi uma palavra que Walther certa vez usara. Ele lhe pedira que consultasse um médico a esse respeito, e ela fora só para fazer-lhe a vontade. Mas o médico era um bobo. No momento em que começara a falar com ela, Anna o isolara, deixando seu pensamento vagar para bem longe. Por fim, ouviu o homem dizer:

- Nosso tempo está esgotado, Sra. Gassner. Poder vir na próxima semana?

- É claro.

Nunca mais voltou. Anna sentiu que o problema era tanto de Walther quanto dela.

Se ela era a culpada por amar demais as crianças, ele o era por não amá-las o quanto devia. Anna apreendeu a não falar nelas na presença de Walther, mas logo que ele saía para o escritório, corria para o quarto dos filhos. Não eram mais bebês. Tinham completado três anos, e Anna já podia ter uma idéia de como seriam quando crescessem.

Peter era alto para a sua idade e tinha um corpo forte e atlético, como o pai. Ana o tomava no colo e murmurava:

- Ah, meu Peter, o que você irá fazer com as pobres Frãuleins? Seja bom para elas, meu pobre filhinho, pois com você elas não têm chances.

Peter sorria timidamente e abraçava-a. Anna voltava-se então para Birgitta, que ficava cada dia mais linda. Não se parecia nem com Anna nem com Walther. Tinha finos cabelos dourados e uma pele delicada como porcelana. Peter tinha o temperamento do pai, e Anna de vez em quando tinha necessidade de repreendê-lo. Quando Walther não estava em casa, Anna punha discos ou lia para eles. Insistiam em que Anna lhe lesse histórias de bichos-papões, duendes e feiticeiras, repetindo-as sem parar. À noite, Anna fazia-os dormir com uma canção.

Anna rezava muito para que o tempo suavizasse a atitude de Walther, fazendo-o mudar. Mudou, sim, mas para pior. Odiava as crianças. A princípio, Anna pensara que era porque Walther queria todo o amor para si, sem dividi-lo com mais ninguém. Mas, pouco a pouco, teve consciência de que o sentimento dele não era proveniente do amor por ela.

Era de ódio. O pai dela é que estava certo. Walther se casara com ela por dinheiro. As crianças representavam para ele uma ameaça, e ele queria ver-se livre delas. Falava cada vez com mais frequência a Anna da venda das ações.

- Sam não tem o direito de nos impedir-nos. Poderíamos pegar todo esse dinheiro e ir viver em algum canto. Só nós dois. Ela o escutava, espantada.

- E ascrianças?

- Não - respondia ele, exaltado. - Escute, para o nosso bem, temos que nos livrar delas. É preciso. Foi então que Anna começou a compreender que ele era louco. Ficou apavorada. Walther tinha despedido todos os empregados, deixando apenas uma faxineira, que ia trabalhar uma vez por semana. Anna e as crianças estavam sozinhas em casa à mercê dele. Walther precisava de tratamento. Talvez não fosse muito tarde ainda.

No século XV, os loucos eram arrebanhados e mantidos presos pelo resto da vida, em grandes barcos, Narrenschiffe, os navios de loucos. Mas agora, com os recursos da medicina moderna, devia haver um meio de curar Walther.

E naquele momento, naquele dia de setembro, Anna estava encolhida em um canto do seu quarto, onde Walther a trancara, e esperava que ele voltasse. Sabia o que tinha de fazer pelo bem dele, dela e das crianças. Levantou-se e foi até o telefone.

Hesitou apenas por um instante. Depois, tirou o telefone do gancho e discou o número de emergência da polícia. Uma voz estranha atendeu:

- Alo.

- Sim! - Sua voz tremia. Alguém lhe tomou de repente o telefone da mão e desligou-o. Anna recuou.

- Por favor - disse ela em voz chorosa. - Não me faça mal…

Walther se aproximava dela com os olhos brilhantes e a voz tão macia que ela quase não podia ouvi-lo.

- Não vou lhe fazer mal. Eu amo você, não sabe disso? Tocou-a, e ela sentiu um arrepio percorrer todo o corpo. - Acontece que não queremos a polícia aqui em casa, não é mesmo?

Ela balançou a cabeça, tão aterrada que não podia falar.

- As crianças é que estão causando todo o problema. Temos de nos livrar delas.

Eu… Neste momento, a campainha da porta tocou no andar térreo. Walther parou, hesitante. A campainha tornou a tocar. -Fique aqui - ordenou ele. - Vou voltar.

Anna viu, petrificava, o marido atravessar o quarto. Bateu a porta e passou a chave. Ele tinha dito que ia voltar. Walther Gassner desceu as escadas rapidamente, foi até porta e abriu-a. Um homem com uma farda cinzenta de mensageiro tinha um envelope na mão.

- Uma correspondência urgente para o Sr. e a Sra. Walther Gassner.

- Pode entregar - disse Walther. Fechou a porta, olhou para o envelope e abriu-o.

Leu então o telegrama. "Tenho o pesar de comunicar que Sam Roffe morreu num acidente de alpinismo. Por favor, esteja em Zurique às doze horas de sexta-feira para uma reunião de emergência da diretoria". Quem assinava a mensagem era Rhys Williams.

Capítulo 3 Roma. Segunda-feira, 7 de setembro. 18 horas.

Ivo Palazzi estava de pé no meio do quarto com o sangue a escorrer-lhe do rosto.

- Mamma mia!

- Nem comecei ainda a arruinar você, miserável figlio di putana! - gritou Donatella.

Estavam ambos nus no grande quarto do seu apartamento na Via Montemignaio.

Donatella tinha o corpo mais sensual e excitante que Ivo Palazzi já conhecera, e mesmo naquele momento, quando tinha o rosto ensanguentado pelas unhadas dela, sentia um prelúdio de desejo inflamar-lhe o corpo. Dio, como era bela! Havia nela uma decadência inocente que o enlouquecia. Tinha um rosto de leopardo, com os malares salientes e os olhos amendoados, lábios cheios e sensuais que o mordiam e sugavam e… mas não devia pensar nisso naquele momento. Apanhou um pano branco em cima de uma cadeira, para estancar o sangue, e compreendeu tarde demais que se tratava de sua camisa. Donatella estava no meio da grande cama e gritava para ele:

- Só quero é que você sangre até morrer! Quando eu acabar com você, seu mulherengo imundo, não restar nada onde um gatinho possa fazer cocô!

Pela centésima vez, Ivo Palazzi ficou sem saber como chegara àquela situação impossível. Sempre se gabara de ser o mais feliz dos homens, e todos os seus amigos concordavam com ele. Todos os seus amigos? Todo mundo! Ivo não tinha inimigos. Nos seus tempos de solteiro, fora um romano despreocupado, sem um só cuidado na vida, um conquistador invejado por metade dos homens da Itália. A sua filosofia se resumia na frase: "Fasi onore Con una donna". Isso mantinha Ivo muito ocupado. Era um verdadeiro romântico. Vivia a apaixonar-se, e, a cada vez, usava seu novo amor para ajudálo a esquecer o anterior. Ivo adorava as mulheres, e para ele todas eram belas, das putanas que exerciam o seu antigo ofício ao longo da Via Appia às modelos de alta moda que se pavoneavam pela Via Condotti. As únicas mulheres a que Ivo não ligava eram as americanas. Eram muito independentes para o seu gosto. Além disso, que se poderia esperar de uma nação cuja língua era tão pouco romântica a ponto de se traduzir Giuseppe Verdi por Joe Green?

Ivo tratara sempre de ter várias mulheres em cada uma das fases de preparação.

Havia cinco fases. Na primeira, situavam-se os conhecimentos recentes. As garotas recebiam telefonemas diários, flores e pequenos volumes de poesia erótica. Na segunda fase, estavam aquelas a quem ele mandava pequenos presentes de Gucci e caixas de porcelana com bombons de Perugina. As da terceira fase recebiam jóias ou roupas, e eram levadas para jantar no El Toula ou na Taberna Flavia. As das quarta fase conheciam a cama de Ivo e apreciavam a sua notável técnica amorosa. Um encontro amoroso com Ivo era elaborado como uma produção de cinema. O belo apartamento na Via Margutta ficava cheio de flores. A música podia ser ópera, clássica ou rock, de acordo com as preferências da escolhida. Ivo era soberbo cozinheiro, e uma das suas especialidades era justamente pollo alla cacciatora, frango à caçadora.

Depois do jantar, uma garrafa de champanha gelado para beber na cama… Sim, Ivo adorava a quarta fase.

Mas a quinta era provavelmente a mais delicada de todas. Constava de uma fala emocionada de adeus, de um generoso presente de despedida e um triste arrivederci.

Mas tudo isso havia acontecido no passado. Agora, Ivo Palazzi olhava para o rosto ensangüentado e arranhado no grande espelho acima da cama e se sentia horrorizado.

Parecia que fora atacado por uma máquina enlouquecida.

- Veja o que você fez comigo! - exclamou ele. -Sei que não foi de propósito, cara!

Aproximou-se da cama a fim de tomar Donatella nos braços. Os braços macios dela cingiram-no e, quando ele começou a abraçá-la, ela cravou as longas unhas nas suas costas, e as fez correr pela carne como se fosse um animal selvagem. Ivo deu um grito de dor.

- Pode gritar! - exclamou Donatella. -Se eu tivesse aqui uma faca, cortaria o seu cazzo e o enfiaria por sua miserável garganta dentro!

- Por favor! - pediu Ivo. - As crianças podem ouvir.

- Melhor!Já é tempo de saberem que espécie de monstro é o pai delas! Ivo deu um passo na direção dela.

- Caríssima…

- Não me toque! Prefiro me entregar ao primeiro marinheiro sifilítico que encontrar no meio da rua a deixar que você se aproxime de mim. Ivo aprumou o corpo, ofendido no seu orgulho.

- Nunca esperei que a mãe dos meus filhos falasse assim comigo!

- Quer que eu fale delicadamente com você? Quer que eu deixe de trata-lo como o verme que você é? - perguntou Donatella, erguendo de novo a voz. - Então me dê o que quero!

Ivo olhou nervosamente para a porta.

- Não posso dar, caríssima, porque não tenho…

- Consiga então para mim! Você prometeu! Ela estava começando a ficar exasperada de novo, e Ivo achou que o melhor era sair dali antes que os vizinhos chamassem outra vez os carabinieri.

- Não vai ser fácil conseguir um milhão de dólares. Mas vou dar um jeito… Vestiu apressadamente as cuecas e as calças e calçou as meias e os sapatos, enquanto Donatella andava pelo quarto com os seios magníficos e firmes empinados no ar e Ivo pensava:

"Meu Deus, que mulher! Como eu a adoro!" Pegou a camisa ensangüentada. Não havia outro jeito senão vesti-la. Sentiu nas costas e no peito a umidade pegajosa do sangue. Olhou-se ainda uma vez ao espelho. Algumas gotas de sangue ainda escorriam dos profundos cortes que Donatella lhe abrira no rosto com as unhas. Murmurou então:

- Caríssima, como é que eu vou explicar isso a minha mulher?

A mulher de Ivo Palazzi era Simonetta Roffe, uma herdeira do ramo italiano da família Roffe. Quando a conheceu, Ivo era um jovem arquiteto. O escritório mandara-o supervisionar algumas reformas na Villa Roffe em Porto Ercole. No momento em que Simonetta pôs os olhos em Ivo, seus dias de solteiro estavam contados.

Ivo tinha chegado à quarta fase com ela na primeira noite e, pouco tempo depois, estava casado. Simonetta era tão decidida quanto bela, e sabia muito bem o que queria.

Queria Ivo Palazzi. Foi assim que Ivo se viu transformado de homem solteiro e despreocupado em marido de uma jovem e bela herdeira. Desistiu sem pesar dos seus sonhos como arquiteto e começou a trabalhar na Roffe and Sons, com um magnífico escritório na EUR, a parte de Roma iniciada com tantas esperanças pelo falecido e malaventurado Duce. Desde o início, Ivo fez sucesso na firma. Era inteligente, aprendia com facilidade as coisas, e todos o adoravam.

Era impossível não adorar Ivo. Estava sempre sorridente e era sempre encantador.

Os amigos invejavam-lhe a posição e não sabiam ao certo como ele conseguira. A explicação era simples. Ivo mantinha profundamente oculto o lado sombrio da sua natureza. Na realidade, era um homem violentamente emotivo, capaz de ódios explosivos, capaz até de matar. O casamento de Ivo com Simonetta deu certo. A princípio, ele receara que pudesse ser uma servidão que lhe tolhesse a liberdade, mas logo viu que os seus receios eram infundados. Submeteu-se apenas a um programa de austeridade, reduzindo o número de suas mulheres, e tudo continuou como antes. O pai de Simonetta comprou para eles uma bela casa em Olgiata, uma grande propriedade vinte e cinco quilômetros ao norte de Roma, protegida por portões fechados e vigiada por guardas fardados.

Simonetta era uma esposa maravilhosa. Amava Ivo e tratava-o como um rei, o que, na opinião de Ivo, ele merecia. Havia apenas uma leve falha em Simonetta. Quando sentia ciúmes, virava uma fera. Desconfiara certa vez que Ivo levara uma mulher do departamento de compras a uma viagem ao Brasil. Ele se mostrara indignado e ofendido com a acusação. Antes que a discussão terminasse, a casa estava em cacos.

Não havia um prato ou um móvel intacto, e quase tudo fora quebrado na cabeça de Ivo. Simonetta avançara para ele com uma faca de cozinha ameaçando matá-lo e matar-se depois. Ivo tivera que empregar toda a sua força para tomar-lhe a faca.

Terminaram brigando no chão e, aí, Ivo rasgara-lhe todas as roupas e acabara com a raiva dela. Mas, depois desse incidente, Ivo se tornou mais discreto.

Disse à moça do departamento de compras que não podia mais fazer viagens com ela, e tinha o cuidado de não deixar que nem a sombra de uma suspeita o tocasse. Sabia que era o homem mais feliz do mundo. Simonetta era jovem, bela, inteligente e rica.

Gostavam das mesmas coisas e da companhia das mesmas pessoas. Era um casamento perfeito, e Ivo, muitas vezes, ao levar uma garota da segunda para a terceira fase ou da quarta para a quinta, ficava sem saber por que era infiel. Encolhia, então, os ombros filosoficamente e dizia: Alguém tem que dar um pouco de felicidade a essas mulheres.

Ivo e Simonetta estavam casados havia três anos quando ele conheceu Donatella Spolini durante uma viagem de negócios à Sicília. Foi mais uma explosão do que um encontro. Eram dois planetas que se chocavam. Enquanto Simonetta tinha um corpo esbelto e suave de uma jovem esculpida por Manzú, Donatella tinha o corpo sensual e exuberante de uma figura de Rubens.

O rosto era excepcional, e os olhos verdes mortiços inflamavam Ivo. Foram para a cama uma hora depois de se terem conhecido, e Ivo, que sempre se vangloriava das suas proezas como amante, descobriu que era um simples aluno e Donatella, uma professora.

Ela o levou a altura que ele nunca havia atingido, e o corpo de Donatella podia fazer com ele coisas que Ivo nunca julgara possível. Ela era uma cornucópia inesgotável de prazer, e quando Ivo estava deitado na cama, de olhos fechados, saboreando sensações incríveis, convenceu-se de que seria rematado idiota se um dia abrisse mão de Donatella.

Assim, Donatella se tornara amante de Ivo. A única condição imposta por ela foi que ele se livrasse de todas as outras mulheres em sua vida, exceto a sua esposa. Ivo concordara, todo feliz.

Viviam assim haviam oito anos e durante esse tempo, ele nunca fora infiel, nem à esposa, nem à amante. Satisfazer as duas mulheres vidas seria suficiente para exaurir um homem comum, mas, no caso de Ivo acontecia exatamente o contrário. Quando amava Simonetta, pensava em Donatella e no seu corpo redondo e cheio, sentindo-se então cheio de desejo. Quando amava Donatella, pensava nos suaves seios jovens de Simonetta e no seu delicado corpo e se portava como um animal enfurecido. Com qualquer das mulheres ao seu lado, sentia que estava enganando a outra, e isso ampliava entrementes o seu prazer. Ivo comprara para Donatella um belo apartamento na Via Montemignaio e ficava com ela todos os momentos possíveis. Tomava todas as providências para uma viagem de negócios súbita e então passava o tempo todo na cama com Donatella. Parava para vê-la quando ia para o escritório e, depois do almoço, passava a hora da sesta com ela. Uma vez, quando viajava de navio para Nova York, no Queen Elizabeth II, em companhia de Simonetta, instalou Donatella em um camarote, um convés abaixo. Foram os cinco dias mais estimulantes da vida de Ivo.

Na noite em que Simonetta anunciou a Ivo que estava grávida, ele sentiu uma alegria indescritível. Uma semana depois, Donatella informou a Ivo que estava esperando um filho, e o contentamento de Ivo transbordou. Por que, perguntava ele, os deuses me cumulam de bens? Com toda a humildade, Ivo reconhecia às vezes que não merecia todos os grandes benefícios que lhe caíam nas mãos. No devido tempo, Simonetta deu à luz uma menina e, uma semana depois, Donatella deu a luz um menino. Que mais podia um homem querer?

Mas os deuses ainda não estavam satisfeitos.

Pouco tempo depois, Donatella disse a Ivo que estava de novo grávida e, uma semana depois, Simonetta ficou grávida novamente. Nove meses depois, Donatella deu a Ivo outro filho, e Simonetta presenteou o marido com outra menina. Quatro meses depois, as duas mulheres estavam novamente grávidas e, desta vez, tiveram os partos no mesmo dia. Ivo correu nervosamente do Salvator Mundi, onde Simonetta estava internada, para a clínica Santa Chiara, para onde levara Donatella. Corria de hospital para hospital, no seu carro, pelo Reccordo Anulare, acenando para as mulheres sentadas frente de suas barracas à beira da estrada, sobre guarda-sóis cor-de-rosa, à espera dos fregueses. Ivo dirigia muito depressa e não podia ver-lhes os rostos, mas amava a todas e lhes desejava felicidades.

Donatella teve outro filho, e Simonetta, outra filha. Às vezes, Ivo desejava que tivesse acontecido ao contrário. Era errado que sua mulher só lhe tivesse dado filhas, enquanto sua amante lhe dava filhos, pois ele desejava herdeiros masculinos que pudessem continuar o seu nome. Apesar disso, era um homem contente. Tinha três filhos em casa e três fora. Adorava a todos e era muito bom para eles, nunca se esquecia dos aniversários, dos dias dos seus santos e dos seus nomes. As meninas se chamavam Isabella, Benedetta e Camilla. Os meninos, Francesco, Carlo e Luca. Quando os filhos cresceram, as coisas começaram a ficar mais complicadas para Ivo.

Incluindo a mulher, a amante e seis crianças. Ivo tinha que se lembrar de oito aniversários, de oito dias de santos e de oito presentes dobrados nas festas. Providenciou para que as escolas das filhas e dos filhos fossem bem separadas. As meninas foram mandadas para o Saint-Dominique, o convento francês na Via Cassia, e os meninos foram matriculados no Massimo, o colégio dos jesuítas na EUR. Ivo conhecia e encantava todos os professores dos filhos, ajudava todos a fazer os deveres de casa e consertava os brinquedos quebrados. O esforço de manter duas famílias separadas punha à prova toda a energia de Ivo, mas ele dava um jeito. Era pai, marido e amante exemplar. No dia de Natal, ficava com Simonetta, Isabella, Benedetta e Camilla. No Dia dos Reis, a 6 de janeiro, Ivo se vestia como a Befana, a feiticeira, e distribuía presentes e carbone, a bala de açúcar-cande que as crianças adoravam, a Francesco, Carlo e Luca.

A mulher e a amante de Ivo eram belas e seus filhos eram inteligentes e bonitos.

Sentia orgulho deles. A vida era maravilhosa. Foi então que os deuses cuspiram no rosto de Ivo Palazzi. Como acontece com muitas grandes catástrofes, tudo chegou sem o menor aviso. Ivo tinha feito amor com Simonetta antes do café da manhã e depois fora diretamente para o escritório, onde fizera um bom trabalho na parte da manhã. À uma hora da tarde, disse a seu secretário - Simonetta não admitia secretárias - que ia a uma reunião, que decerto lhe tomaria o resto da tarde. Sorrindo ante os prazeres à sua espera, Ivo circundou a construção que bloqueava a rua no Lungo Tevere, onde estavam construindo o metro havia dezessete anos, atravessou a ponte para o Corso Francia e, trinta minutos depois, entrava na sua garagem na Via Montemignio.

No momento em que abriu a porta do apartamento, soube que havia algo de anormal. Francesco, Carlo e Luca rodeavam Donatella em prantos. Quando se aproximou, Donatella o olhou com tal expressão de ódio, que por um instante, Ivo teve a impressão de haver entrado em outro apartamento.

- Stronzo!- gritou ela para Ivo. Ivo correu os olhos em redor, cheio de espanto.

- Caríssima! Crianças! Que foi que houve? Que foi que eu fiz?

Donatella levantou-se e jogou-lhe um exemplar da revista Oggi.

- Está aí o que você fez. Veja!

Atônito, Ivo pegou a revista e viu na capa uma fotografia em que aparecia ele, Simonetta e suas três filhas com a legenda "Padre di famiglia" Dio! Tinha-se esquecido inteiramente daquilo. Meses antes a revista lhe pedira autorização para fazer uma reportagem sobre sua família e ele, sem dar muita atenção ao caso, concordara.

Nunca esperava que dessem tanto destaque à reportagem. Olhou para a amante e para os filhos que choravam e disse:

- Posso explicar isso…

- Os colegas deles já explicaram tudo - exclamou Donatella. - Meus filhos voltaram para casa chorando porque na escola todos os estavam chamando de bastardos!

- Cara, eu…

- Os vizinhos estão nos tratando como se fôssemos leprosos. Não podemos mais levantar a cabeça. Temos de sair daqui! Ivo olhou para ela, atordoado.

- Que é que você está dizendo?

- Vou sair de Roma com meus filhos.

- São meus filhos também, e você não pode fazer isso!

- Tente impedir-me e eu o matarei!

Era um pesadelo. Ivo ficou ali, vendo a amante e os filhos entregues a um verdadeiro acesso de desespero e pensando: "Não! Isso não pode estar acontecendo comigo"! Mas Donatella ainda não dissera tudo.

- Antes de sairmos daqui, quero um milhão de dólares. Em dinheiro. Era tão ridículo que Ivo começou a rir.

- Um milhão de dólares…

- Se não me der o dinheiro, telefonarei para sua mulher.

Isso havia acontecido seis meses antes. Donatella ainda não cumprira a sua ameaça, mas Ivo sabia que poderia cumpri-la. Todas as semanas, ela aumentava a pressão. Telefonava para o escritório dele e dizia:

- Não me interessa como vai conseguir o dinheiro, mas trate de arranjá-lo.

Havia somente um meio de conseguir uma quantia tão grande. Tinha de vender as ações da Roffe and Sons. Sam Roffe não consentiria na venda. Sam Roffe estava prejudicando a felicidade conjugal e o futuro de Ivo. Era preciso dar um jeito nisso. Se conhecesse as pessoas certas, isso poderia ser feito. O que mais machucava Ivo era que Donatella, sua querida amante apaixonada, não o deixava tocar nela. Ivo podia visitar as crianças todos os dias se quisesse, mas não podia entrar no quarto.

- Só depois que me der o dinheiro deixarei você fazer amor comigo - dizia Donatella. No seu desespero, Ivo telefonara para Donatella uma tarde e dissera:

- Vou para aí agora mesmo. Consegui o dinheiro. Pretendia amá-la primeiro e acalmá-la depois. Não poderia deixar de dar certo. Conseguiu fazê-la tirar a roupa e então disse a verdade. - Ainda não tenho o dinheiro, cara, mas dentro em breve… Foi então que ela o atacou com as unhas como um animal feroz.

Ivo estava pensando nessas coisas ao afastar-se de carro do apartamento de Donatella, como então pensara a considerá-lo, e virou para o norte na movimentada Via Cassia, de volta à sua casa em Olgiata. Olhou para o rosto no espelho. Os ferimentos não estavam mais sangrando, mas eram bem visíveis no seu rosto. Olhou para a camisa manchada de sangue. Como poderia explicar a Simonetta os arranhões no rosto e nas costas? Por um momento passou-lhe pela cabeça a idéia de contar a verdade, mas abandonou esse pensamento absurdo. Talvez pudesse confessar a Simonetta que, em um momento de aberração mental, tinha ido para a cama com uma mulher e ela ficara grávida… Sim, poderia dizer isso e escapar com vida. Mas três filhos? E no espaço de oito anos? A sua vida não valeria uma nota de cinco libras. E não podia deixar de ir para casa, pois estavam esperando convidados para jantar e Simonetta fazia questão da sua presença. Ivo estava num beco sem saída. O seu casamento estava acabado. Só San Gennaro, o santo dos milagres, poderia salvá-lo. De repente, viu um cartaz ao lado da Via Cassia. Virou o carro na direção do cartaz e freou. Trinta minutos depois, transpunha as portas de Olgiata. Sem dar atenção aos olhares dos guardas para seu rosto arranhado e a sua camisa ensangüentada, Ivo seguiu pelos caminhos da propriedade e foi parar diante da casa. Abriu a porta e entrou na sala, onde estavam Simonetta e Isabella, a filha mais velha. Simonetta ficou espantada ao olhar para o marido.

- O que aconteceu, Ivo? Ivo sorriu a contragosto, tentando dissimular a dor que estava sentindo. - Creio que fiz uma coisa completamente irrefletida, cara… Simonetta havia se aproximado e examinava os arranhões. Ivo podia ver que ela já estava apertando os olhos. Perguntou então com uma voz repassada da maior frieza:

- Quem foi que lhe arranhou o rosto desse jeito?

- Tibério - disse Ivo, tirando de trás de si um grande e feio gato cinzento que, naquele momento, soltou-se de suas mãos e fugiu. - Comprei-o para Isabella, mas o danado do bicho me atacou em um trecho da estrada em que era muito perigoso parar. - Povero amore mio!

Instantaneamente Simonetta estava ao seu lado.

- Angelo mio! Vamos subir que eu quero botar você na cama. Vou telefonar para o médico e passar iodo nisso…

- Não! Não é possível! - disse Ivo, fazendo uma careta de dor quando ela passou os braços pelos ombros dele. - Cuidado! Acho que o bicho me arranhou também as costas.

- Como você deve estar sofrendo, amore!

- Nem tanto - disse Ivo comconvicção. - Estou até me sentindo bem. A campainha da porta tocou.

- Vou ver quem é - disse Simonetta.

- Não, eu vou. Estou esperando uns papéis importantes do escritório. Foi até à porta da frente e abriu-a. - Signor Palazzi?

- Si.

Um mensageiro, vestido com um uniforme cinzento, entregou-lhe um envelope.

Dentro havia um teletipo de Rhys Williams. Ivo leu rapidamente a mensagem e ficou muito tempo parado, pensando. Depois, respirou fundo e subiu a fim de preparar-se para o jantar.

Capítulo 4 Buenos Aires. Segunda-feira, 7 de setembro. 15 horas.

O autódromo de Buenos Aires, nos arredores da capital Argentina, estava apinhado com cerca de cinqüenta mil espectadores, que tinham ido assistir às corridas do campeonato. Era uma corrida de cento e quinze voltas em um circuito de quase sete quilômetros. A corrida já se realizava havia quase cinco horas sob um sol fortíssimo e, dos trinta carros que haviam largado, restavam poucos. A assistência estava presenciando o desenrolar de um capítulo da história do esporte. Talvez aquela corrida fosse única nos anais do automobilismo. Não tinha havido antes e talvez nunca houvesse depois nada parecido. Todos os nomes que tinham se tornado lendários nas pistas estavam ali naquele dia: Chris Amon, da Nova Zelândia, e Brian Redman, de Lancashire.

Ali estavam o italiano Andrea Di Adamici num Alfa Romeo 33 e Carlos Moco, do Brasil, num Maech.

O campeão belga Jack Ickx estava presente, e Reine Wisell, da Suécia, pilotava um BRM. A pista parecia um Arco-Iris alucinado, feito dos velozes vermelho, verde, preto, branco e dourado dos Ferraris, dos Brabhams, dos M19A da McLarem e dos fórmula 3 da Lotus. À medida que as voltas se sucediam, os gigantes começavam a cair. Chris Amon estava em quarto lugar quando o carro enguiçou. Raspou no Cooper de Brian Redman, que teve de desligar a ignição para não perder o controle, mas os dois carros ficaram fora de competição. Reine Wisell estava comandando a corrida, seguido de perto por Jack Ickx. Na grande curva, o câmbio do BRM se desintegrou, e a bateria e o equipamento elétrico pegaram fogo.

O carro começou a rodar e bateu no Ferrari de Jack Ickx. A multidão delirava. Três carros se destacavam dos demais no primeiro pelotão. Eram Jorge Amandaris, da Argentina, pilotando um Surtees; Nils Nilsson, da Suécia, num Matra, e Martel, da França, num Ferrari 312 B-2.. Estavam fazendo uma corrida brilhante, acelerando nas retas, reduzindo nas curvas, avançando. Jorge Amandaris ia à frente, e os argentinos aplaudiam febrilmente o seu compatriota. Logo atrás de Amandaris, vinha Nils Nilsson, ao volante de seu Matra vermelho e branco, seguido do Ferrari preto e dourado dirigido por Martel, da França. O carro francês tinha passado quase despercebido até os últimos cinco minutos, quando começou a destacar-se. Do décimo lugar passara para o sétimo e depois para o quinto, fazendo uma corrida firme. A assistência viu então o francês avançar para disputar o segundo lugar ocupado por Nilsson. Os três carros corriam a mais de duzentos e oitenta quilômetros por hora. Era uma velocidade bastante perigosa em pistas cuidadosamente construídas como Brands Hatch ou Watkins Glen, mas numa pista como aquela da Argentina equivalia a suicídio. A um lado da pista foi afixado o sinal de que faltava cinco voltas. O Ferrari do francês tentou passar o Matra de Nilsson, mas o sueco se desviou um pouco, bloqueando a passagem. Aproximando-se rapidamente de um carro alemão retardatário. O carro de Nilsson emparelhou com ele. O carro francês avançou até ficar no estreito espaço entre o alemão e o Matra. O francês acelerou ainda mais, forçando os dois carros a dar passagem, e partiu para ocupar o segundo lugar. A multidão, de respiração suspensa, aplaudiu essa manobra brilhante e perigosa. Faltavam três voltas, e Amandaris estava em primeiro, com Martel em segundo e Nilsson em terceiro.

Amandaris tinha visto a manobra. Sabia que o francês era bom, mas não acreditava que ele pudesse ameaçar-lhe a vitória nas últimas duas voltas. Pelo canto do olho, viu o Ferrari que tentava se emparelhar com ele. Viu de relance o rosto frio e determinado do piloto sob o capacete. Amandaris lamentava o que tinha de fazer, mas as corridas não eram um jogo para desportistas, mas, sim, um jogo para vencedores. Os carros se aproximavam da extremidade norte do circuito, onde havia uma curva com uma grande rampa inclinada para fora. Era o ponto mais perigoso da pista, onde já tinha havido numerosos desastres. Amandaris lançou outro olhar rápido ao piloto francês da Ferrari e empunhou com mais força o volante. Quando os dois carros começaram a aproximar-se da curva, Amandaris levantou levemente o pé do acelerador, de modo que o Ferrari começou a avançar.

Viu o piloto lançar-lhe um olhar de espanto na sua armadilha. Jorge Amandaris esperou até que o Ferrari estivesse firmemente decidido a ultrapassá-lo por fora. Neste momento, Amandaris abriu tudo e começou a mover-se para a direita, cortando em linha reta o caminho do francês, cujo único recurso seria subir pela rampa. Amandaris viu a súbita expressão de espanto no rosto do francês e disse em silêncio: "Salud!"

Neste momento, o piloto do carro francês virou a direção para o Surtees de Amandaris. O Ferrari ia colidir com ele. Havia apenas um metro de distância entre os dois carros e, naquela velocidade, Amandaris tinha de tomar uma decisão instantânea. Como alguém podia adivinhar que aquele piloto francês era inteiramente louco? Num ato rápido e reflexo, Amandaris virou o volante para a esquerda, tentando evitar que milhares de quilos de metal se chocasse com ele e freou rápido, de modo que o carro de Jorge Amandaris derrapou. Depois, perdeu o controle e rolou pela pista em uma coluna de fogo e fumaça. Mas a atenção do público estava voltada para o Ferrari do piloto francês, que recebia a bandeirada da vitória e era imediatamente cercado por uma multidão entusiástica.

O piloto levantou-se e tirou o capacete e os óculos. Era uma mulher de cabelos cor de trigo, curtos e feições clássicas finamente modeladas. O corpo estava trêmulo não de cansaço, mas de emoção, desde o momento em que olhara para Jorge Amandaris e o fizera partir para a morte. Nos alto-falantes, um locutor dizia: "A corrida foi vencida por Hélsne Roffe-Martel, da França, pilotando um Ferrari". Duas horas depois, Hélsne e seu marido Charles estavam em sua suíte no Hotel Ritz, no centro de Buenos Aires, deitados diante da lareira. Hélsne estava nua sobre ele, na clássica posição de La diligence de Lyon, e Charles dizia:

- Oh, Deus! Por favor, não faça isso comigo! Por favor! Ele foi sentindo sua excitação crescer, e ela foi aumentando a pressão, ferindo-o, observando as lágrimas aflorarem aos seus olhos. "Estou sendo punido sem razão", pensou Charles. Ele temeu pensar no que Hélsne seria capaz de fazer-lhe se soubesse do crime que ele havia cometido. Charles Martel casara-se com Hélsne Roffe pelo nome e pelo dinheiro dela.

Depois da cerimônia, ela conservara o nome, ao qual acrescentara o dele, e Charles ficara com o dinheiro. Quando descobriu que tinha feito um mau negócio, era muito tarde.

Charles Martel era advogado em um grande escritório de advocacia em Paris quando conheceu Hélsne Roffe.

Tinham-lhe pedido que levasse alguns documentos à sala de conferências onde se realizava uma reunião. Na sala estavam os quatro sócios principais do escritório e Hélsne.

Charles já ouvira falar nela. Não havia na Europa quem a desconhecesse. Era uma das herdeiras da fortuna feita com produtos farmacêuticos da família Roffe. Rebelde, alheia às convenções, e de quem os jornais e revistas gostavam de falar, era campeã de esqui, pilotava o seu Learjet, chefiava uma expedição às montanhas do Nepal, praticava automobilismo e hipismo e trocava de homem quase com a mesma facilidade com que trocava de roupa. A fotografia dela aparecia em quase todos os números de Paris-Match e Jours de France. Tinha ido ao escritório de advocacia porque ali estava se tratando do seu divórcio, mas Martel não estava interessado em saber. Os Roffes do mundo estavam fora do seu alcance. Charles entregou os papéis. Estava um pouco nervoso não pela presença de Hélsne, que não lhe interessava, mas porque se achava diante dos chefes do escritório. Representavam a Autoridade, e Charles Martel respeitava a Autoridade. Era fundamentalmente um homem retraído que se contentava em viver modestamente em um pequeno apartamento em Passy, onde cuidava da sua coleção de selos. Charles Martel não era um advogado brilhante, mas era competente, cuidadoso e honesto. Tinha um sentimento um pouco rígido de dignidade.

Com pouco mais de quarenta anos, sua aparência física, embora simpática, pouco tinha de impressionante. Alguém havia dito que a personalidade dele era informe como areia molhada, e não havia injustiça na afirmação. Foi, então, com grande surpresa para ele que, um dia depois de ter conhecido Hélsne no escritório, Charles Martel foi chamado à sala de Michel Sachard, chefe da firma, que lhe disse:

- Hélsne Roffe deseja que você se encarregue pessoalmente da ação de divórcio dela. Charles Martel ficou estupefato.

- Mas porquê eu, Monsier Sachard?

- Nem imagino. Veja se lhe presta bons serviços.

Estando encarregado da ação de divórcio de Hélsne, Martel teve necessidade de vê-la com freqüência. Com um pouco de exagero até, na opinião dele. Hélsne lhe telefonava e o convidava para jantar em sua villa em Le Vésinet, a fim de discutirem o caso, e o levava à ópera e à sua casa em Deauville. Charles cansava-se de explicar-lhe que o caso era simples e que não havia problema em conseguir o divórcio, mas Hélsne - ela insistia em que ele a chamasse de Hélsne, com grande embaraço para ele - dizia que precisava ser tranquilizada constantemente por ele. Por fim, ele passou a pensar nisso com um interesse um tanto amargo.

Um belo dia, Charles Martel admitiu a possibilidade de que Hélsne Roffe estivesse sentimentalmente interessada nele. Não podia acreditar nisso. Não era ninguém, e Hélsne pertencia a uma das grandes famílias da Europa.

Um dia, Hélsne não lhe deixou mais dúvidas sobre suas intenções e disse:

- Vou me casar com você, Charles.

Nunca pensara em se casar. Não se sentia bem ao lado das mulheres. Além disso, não amava Hélsne e não tinha certeza nem mesmo de simpatizar com ela. A agitação e as atenções que a cercavam em todo lado aonde iam desconcertavam-no. Era atingido pela luz dos refletores voltados para ela, e isso era um papel a que ele não estava absolutamente habituado.

Tinha também plena consciência do contraste entre eles. A expansividade de Hélsne era irritante para a natureza conservadora dele. Ela ditava moda e era o próprio requinte da elegância, ao passo que ele era apenas um simples e comum advogado de meia-idade. Não podia compreender o que Hélsne Roffe via nele. E ninguém mais podia. Em vista da notória participação de Hélsne em esportes violentos que eram tidos como redutos exclusivos dos homens, havia quem dissesse que Hélsne Roffe era partidária do movimento de libertação das mulheres.

Na realidade, ela desprezava o movimento e se insurgia contra o seu conceito de igualdade.

Não via razão para que ter homens à mão, quando fossem considerados iguais às mulheres. Era bom ter homens à mão, quando fosse necessário. Não eram seres particularmente inteligentes, mas podiam ser ensinados a ir buscar e acender cigarros, a dar recados, a abrir portas e a dar satisfação na cama. Eram excelentes animais de estimação. Bem treinados, tomavam banho sozinhos e não sujavam a casa. Eram uma raça excelente.

Hélsne Roffe tinha tido playboys, aventureiros, capitães de indústria, homens elegantes. Nunca tivera um Charles Martel. Ela sabia exatamente o que ele era. Nada.

Um pedaço de barro virgem que ela podia moldar como quisesse. Depois que Hélsne Roffe tomou essa decisão, Charles Martel não teve mais chance. Casaram-se em Neuilly e passaram a lua-de-mel em Monte Carlo, onde Charles perdeu a sua virgindade e as suas ilusões.

Ele pretendia voltar ao escritório de advocacia.

- Não seja idiota! - disse-lhe a mulher. - Acha que vou querer ser casada com um advogadozinho? Você vai entrar para a firma da família e um dia vai tomar conta de tudo.

Vamos tomar, aliás.

Hélsne conseguiu que Charles trabalhasse na filial de Paris da Roffe and Sons. Ele lhe contava tudo que acontecia, e ela o orientava e ajudava, apresentando-lhe as sugestões. O progresso de Charles foi rápido. Em pouco, era chefe da filial francesa e fazia parte da diretoria. Hélsne Roffe transformou-o de um obscuro advogado em diretor de uma das maiores empresas do mundo.

Devia estar encantado. No entanto, sentia-se infeliz. Desde o primeiro momento do casamento, Charles se sentira totalmente dominado pela mulher. Ela escolhia o seu alfaiate e os homens que lhe faziam os sapatos e as camisas. Fê-lo entrar para o circulo fechado do Jockey Club.

Hélsne tratava Charles como um gigolô. O seu salário ia diretamente para as mãos dela, e Hélsne só lhe dava uma mesada embaraçosamente pequena. Se Charles precisava de um dinheiro a mais, tinha de pedi-lo a Hélsne. Ela o fazia prestar contas de todos os momentos de seu tempo e queria que ele estivesse sempre à disposição dela.

Parecia gozar com a humilhação dele. Telefonava para ele no escritório e ordenava-lhe que fosse imediatamente para casa, com um vidro de creme para a pele ou qualquer coisa insignificante. Quando ele chegava em casa, ela estava nua no quarto, à espera dele. Era insaciável como um animal.

Charles viajou com a mãe até os trinta e dois anos de idade, quando ela morreu de câncer. Foi uma inválida por tanto tempo quanto a memória de Charles alcançava, e ele cuidou dela. Nunca teve tempo para sair com moças ou de se casar. A mãe foi uma carga pesada, e, quando ela morreu, Charles pensou que ia afinal viver em liberdade. Teve, ao contrário, um sentimento de carência. Nunca se interessou por mulheres, explicou seus sentimentos a Hélsne logo que ela lhe falou em casamento.

- Minha libido não é muito forte - disse ele. Hélsne sorriu.

- Pobre Charles. Deixe a parte do sexo comigo. Garanto que você vai gostar.

Detestou. E isso só pareceu aumentar o prazer de Hélsne. Ria das fraquezas dele e o obrigava a fazer coisas revoltantes, que levava Charles a sentir-se degradado e nauseado. O ato sexual em si era suficientemente desmoralizante. Mas Hélsne vivia interessada em fazer experiências. Charles nunca sabia o que devia esperar.

Certa vez, no momento em que ele estava tendo um orgasmo, ela pusera gelo picado em seus testículos e, de outra, lhe introduzira uma haste eletrificada no ânus.

Charles vivia apavorado com Hélsne. Ela o fazia sentir-se como um elemento feminino enquanto ela o masculino. Ele tentava proteger o seu amorpróprio, mas infelizmente não havia um só ponto nela que não fosse superior a ele.

Possuía uma inteligência brilhante. Entendia tanto de direito quanto ele, e muito mais de negócios. Passava horas e horas discutindo os casos da companhia com ele.

Nunca se cansava.

- Pense em nosso poder, Charles! - dizia ela. - A Roffe and Sons poderia arruinar ou fazer prosperar mais da metade dos países do mundo. Era eu que devia estar dirigindo a companhia que meu bisavô fundou. Ela faz parte de mim!

Depois de uma dessas explosões, Hélsne se tornava sexualmente insaciável, e Charles era forçado a satisfazê-la de uma maneira em que não gostava de pensar.

Acabou por desprezá-la. O seu sonho era livrar-se dela, fugir para nunca mais vê-la. Mas, para isso, precisava de dinheiro.

Um dia, na hora do almoço, René Duchamps, um amigo dele, falou-lhe numa oportunidade de fazer fortuna. Charles não podia confessar que não tinha um franco seu, mas foi até a Borgonha para ver os vinhedos e ficou profundamente impressionado.

- Um tio meu, que possuí um grande vinhedo na Borgonha, acaba de morrer. O vinhedo vai ser posto à venda. São quatro mil hectares plantados de uvas de appellation d'origine. Eu tenho preferência porque sou da família, mas não tenho dinheiro bastante para fazer o negócio sozinho. Se quiser fazer sociedade comigo, dobraremos o capital empregado dentro de um ano. Ao menos, você poderia dar uma olhada. Cada um de nós entrará com dois milhões de francos - disse Duchamps. - Dentro de um ano, teremos quatro milhões cada um.

Quatro milhões de francos! Seria a possibilidade de fuga, a liberdade! Iria para algum lugar onde Hélsne nunca poderia encontrá-lo.

- Vou pensar nisso - disse Charles a seu amigo.

E de fato pensou. Dia e noite. Era a maior chance de sua vida.. Mas como? Seria impossível contrair algum empréstimo sem que Hélsne tomasse imediatamente conhecimento disso. Tudo estava no nome dela - a casa, os quadros, os carros, As jóias… os belos ornamentos que ela guardava em um cofre, no quarto. Pouco a pouco, a idéia tomou corpo em seu cérebro. Se ele pudesse pegar as jóias, algumas de cada vez, substituiria as peças por imitações e tomaria dinheiro emprestado sob a garantia das verdadeiras jóias. Depois, quando ganhasse nos vinhedos o dinheiro esperado, trataria de repor as jóias no cofre e teria dinheiro suficiente para desaparecer para sempre.

Telefonou para René Duchamps e disse com o coração a palpitar de emoção:

- Resolvi fazer sociedade com você.

A primeira parte do plano aterrorizou Charles. Tinha de Abrir o cofre e roubar as jóias de Hélsne. A antecipação da coisa terrível que ele ia fazer provocou tamanho nervosismo em Charles que ele mal conseguia trabalhar. Passava os dias como um autômato, sem ver nem ouvir nada do que acontecia à sua volta. Todas as vezes que via Hélsne, ficava encharcado de suor. Quase sempre as mãos lhe tremiam. Hélsne ficou preocupada com o estado dele como ficaria com um cachorro de estimação que aparecesse doente. Mandou chamar um médico para examinar Charles, mas ele não encontrou nada de anormal.

- Um pouco de tensão, talvez. Tudo deve se normalizar com dois dias de repouso.

Hélsne olhou para Charles estendido na cama e disse:

- Muito obrigada, doutor. No momento em que o médico saiu do quarto, ela começou a se despir.

- Eu… eu não estou me sentindo muito bem - murmurou Charles.

- Mas eu estou - respondeu Hélsne.

Charles nunca a odiara tanto.

A oportunidade de Charles chegou na semana seguinte. Hélsne ia a Garmisch- Partenkirchen esquiar com um grupo de amigos e resolveu deixar Charles em Paris.

- Quero que passe todas as noites em casa - disse Hélsne. - Vou lhe telefonar, ouviu?

Charles viu-a partir no seu Jensen vermelho e, no momento em que ela desapareceu, correu para o quarto onde estava o cofre. Tinha-a visto abri-lo muitas vezes e sabia quase todo o segredo.

Levou uma hora para descobrir o resto. Com os dedos trêmulos, abriu a porta do cofre. Ali, nos estojos forrados de veludo, cintilantes como estrelas em miniatura, estavam os instrumentos da sua libertação.

Havia entrado em empreendimentos com um joalheiro chamado Pierre Richaud, um mestre em imitação de jóias. Nervoso, Charles começou a longa explicação acerca dos motivos pelos quais ia mandar fazer as imitações, mas Richaud sorriu e disse:

- Monsier, estou fazendo imitações para todo mundo. Ninguém em seu juízo perfeito sai às ruas com jóias verdadeiras nos dias que correm.

Charles lhe entregava uma peça de cada vez e, quando a imitação ficava pronta, ele a deixava no cofre no lugar da jóia. Empenhava então a jóia verdadeira no Crédit Municipal, a instituição de penhores do Estado. A operação demorou mais do que o esperado. Charles só podia abrir o cofre quando Hélsne não estava em casa, e houve demoras imprevistas no trabalho de copiar as peças. Mas chegou afinal o dia em que Charles pôde comunicar a René Duchamps:

- Amanhã terei todo o dinheiro necessário para a nossa sociedade.

Havia conseguido o que queria. Era proprietário da metade do vinhedo, e Hélsne não tinha a menor suspeita do que ele havia feito. Começou a ler em segredo tudo o que podia sobre vinhas e vinhos. Por que não? Não passara a ser um vinhateiro? Ficou sabendo das diferentes uvas, da cabernet sauvignon, a principal uva usada, mas outras erram plantadas e extraídas ao lado dela, com a gros cabernet, a merlot, a malbec e a petit verdot.

Uma das gavetas de Charles no escritório vivia cheia de brochuras sobre a fabricação de vinhos. Ficou sabendo de fermentação, podas e enxertos. Soube também que o consumo mundial de vinhos continuava a aumentar. Tinha freqüentes encontros com o sócio.

- A coisa vai ser ainda melhor do que eu pensava - disse René. -Os preços dos vinhos estão subindo vertiginosamente. Devemos ganhar uns trezentos mil francos por tonneau logo nas primeiras vindimas.

Mais do que Charles havia sonhado! As uvas representavam ouro, e Charles começou a procurar folhetos de turismo sobre as ilhas do Pacífico, a Venezuela e o Brasil.

Até os nomes dos lugares tinham para ele um encanto particular. O único problema era que havia poucos lugares no mundo onde não houvesse escritórios da Roffe and Sons e onde Hélsne não pudesse descobri-lo. E, se ela o descobrisse, iria matá-lo. A não ser que ele a matasse antes. Era uma de suas fantasias prediletas.

Assassinou Hélsne repetidamente, de mil maneiras deliciosas e reconfortantes.

Começou a gozar morbidamente os desmandos de Hélsne, pensando sempre que ela o forçara a fazer coisas inconfessáveis: "Vou desaparecer daqui a pouco, imunda. Ficarei rico graças ao seu dinheiro, e você nada poderá fazer". E ela dava ordens: "Mais depressa!", ou: "Não pare agora!", enquanto ele obedecia mansamente e sorria, satisfeito.

Charles aprendeu também que, na cultura das uvas, os meses mais importantes eram os da primavera e do verão, pois os bagos eram colhidos em setembro e, para que apresentassem uma boa qualidade, era imprescindível uma temporada bem equilibrada de sol e chuva. O sol em excesso queimaria o gosto da uva, ao passo que o excesso de chuva o diluiria. Junho começou esplendidamente. Charles consultava o Serviço de Meteorologia todos os dias e, mais tarde, duas vezes por dia. Estava numa febre de impaciência, a apenas algumas semanas da realização dos seus sonhos.

Decidira-se pela baía de Montego, pois a Roffe and Sons não tinha escritório na Jamaica. Seria fácil desaparecer ali. Nem se aproximaria de Round Hill ou de Ocho Ríos, onde algum amigo de Hélsne poderia reconhecê-lo.

Compraria uma casinha nas montanhas. A vida era barata na ilha. Poderia ter até criados e comprar boa comida em sua vida modesta. Por isso, naqueles primeiros dias de Junho, Charles Mantel foi um homem muito feliz. A vida que estava levando era uma verdadeira ignomia, mas ele não estava vivendo no presente. Vivia já no futuro, numa ilha tropical, banhada de sol e batida pelos ventos do Caribe.

O tempo em junho parecia melhorar a cada dia. Havia uma mistura bem dosada de sol e chuva, excelente para as uvas ainda tenras. E, com as uvas, crescia a fortuna de Charles. Mas, no dia 15 de junho, começou a cair um chuvisco persistente na região da Borgonha. Depois, passou a chover mais forte. Choveu dias seguidos, semanas seguidas, até que Charles não teve mais coragem de olhar os boletins do tempo. René Duchamps telefonou:

- Se a chuva parar até meados de julho, a safra ainda poderá ser salva. Julho foi um dos meses mais chuvosos na história e nos registros de Serviço Meteorológico da França. A 1º de Agosto, Charles Martel havia perdido todo o dinheiro que havia roubado. Nunca havia sentido tanto medo em toda a sua vida.

- Vamos tomar um avião para a Argentina no mês que vem - disse Hélsne a Charles. - Vou participar de uma corrida de automóveis. Ele já a vira correr pela pista no Ferrari, e não pôde deixar de pensar: "Se ela sofrer um desastre, eu ficarei livre!" Mas ela era Hélsne Roffe-Martel.

A vida a favorecera com um papel de vitoriosa, do mesmo modo que o tinha rebaixado ao papel de um derrotado. O fato de ganhar a corrida havia excitado Hélsne mais do que de costume. Tinham voltado para a sua suíte do hotel em Buenos Aires, e ela imediatamente fizera Charles despir-se e estenderse de bruços no tapete. Quando ele percebeu o que ela pretendia fazer, protestou:

- Não, Hélsne! Não! Neste momento, bateram na porta.

- Merda! - exclamou Hélsne.

Esperou em silêncio, mas bateram de novo. Uma voz disse:

- Senhor Martel?

- Fique onde está! - ordenou Hélsne.

Levantou-se, passou um robe de seda pelo corpo esbelto e firme e foi até a porta.

Um homem com um uniforme cinza de mensageiro trazia um envelope.

- Tenho uma correspondência especial para o Senhor e senhora Martel.

Ela recebeu o envelope e fechou a porta. Abriu o envelope e leu a mensagem que ele continha. Depois, mais lentamente, tornou a ler.

- Que é? -perguntou Charles.

- Sam Roffe morreu - disse ela, sorrindo.

Capítulo 5 Londres. Segunda-feira, 7 de setembro. 14 horas.

O White's Club ficava no alto da St. James's Street, perto de Piccadili. Construído como um clube de jogo no século XVIII, o White's era um dos clubes mais velhos e mais fechados da Inglaterra. Os sócios inscreviam os nomes dos filhos logo que eles nasciam, pois havia uma lista de candidatos à espera há mais de trinta anos. A fachada do White's Club era um modelo de discrição. As grandes janelas que se abriam para a St. James's Street visavam mais o prazer dos sócios do que a curiosidade dos transeuntes.

Havia alguns poucos degraus à entrada, mas além dos sócios e dos convidados, raras eram as pessoas que transpunham a porta do clube. As salas eram grandes, bem decoradas e todas revestidas da escura e rica batina do tempo. Os móveis eram velhos e confortáveis -sofás de couro, estantes para jornais, mesas antigas preciosas e poltronas que tinham acomodado traseiros de meia dúzia de primeiros-ministros. Havia uma sala de gamão com uma grande lareira, por trás de uma balaustrada de bronze, e uma escadaria curva que levava ao salão de jantar, no andar superior.

O salão de jantar ocupava toda a largura do prédio e continha uma grande mesa de mogno, à qual podiam sentar-se umas trinta pessoas, e cinco mesas laterais. Na hora do almoço ou do jantar, reuniam-se ali alguns dos homens de maior prestígio do mundo.

Sir Alec Nichols, membro do Parlamento, estava sentado a uma das mesinhas de canto, almoçando com um convidado, Jon Swinton. O pai de Sir Alec havia sido um baronete, como, antes dele, seu pai e seu avô. Todos eles tinham pertencido ao White's Club. Sir Alec era um homem magro e pálido, de quase cinqüenta anos, com um rosto vivo e aristocrático e um sorriso cativante.

Chegara havia pouco de carro de sua propriedade rural em Gloucestershire e estava vestido com um paletó e calças largas de twee, com sapatos esportivos. Seu convidado usava um terno listrado, com uma camisa xadrez espalhafatosa e uma gravata vermelha, parecendo deslocado naquele ambiente calmo e distinto.

- De fato, o trabalho aqui é primoroso - disse Jon Swinton, acabando de comer a costeleta que tinha no prato.

- A cozinha é soberba. Já se foram os tempos em que Voltaire dizia que os ingleses tinham cem religiões e apenas um molho - disse Sir Alec.

- Quem é Voltaire?-perguntou Jon Swinton.

Sir Alec ficou embaraçado e murmurou:

- Ah… é um francês.

- Oh… Jon Swinton engoliu o último bocado de comida com um gole de vinho.

Depois, largou o talher, enxugou os lábios com um guardanapo e disse: - Agora, Sir Alec, creio que já é tempo de falarmos um pouco de negócios.

Alec Nichols disse com uma voz calma:

- Há duas semanas, Sr. Swinton, disse-lhe que estava calculando tudo. Tem de me dar um pouco mais de tempo.

Um garçom se aproximou da mesa com uma pilha de caixas de charutos. Com habilidade, estendeu-as em cima da mesa.

- Não leve a mal - disse Jon Swinton.

Examinou os rótulos das caixas, deu assobios de admiração, escolheu vários charutos que guardou no bolso de cima do paletó e acendeu um. Nem o garçom, nem Sir Alec deram o menor sinal de ter notado essa falta de educação do homem. O garçon comprimentou Sir Alec e levou os charutos para outra mesa.

- Meus patrões têm sido muito indulgentes, Sir Alec. Mas parece que agora estão ficando impacientes. Pegou o fósforo queimado e jogou-o dentro do copo de vinho de Sir Alec. -Aqui entre nós, eles não são nada agradáveis quando perdem a paciência. Não os vai querer atrás de si, não é? Sabe o que estou querendo dizer?

- Acontece apenas que eu não tenho o dinheiro neste momento. Jon Swinton deu uma risada.

- Não venha com essa para cima. Sua mãe era uma Roffe, certo? E tem uma propriedade de cinqüenta hectares, uma boa casa em Knightsbridge, um Rolls-Royce e, ainda por cima, em Bentley. Não me venha dizer que está na miséria, que eu não acredito.

Sir Alec olhou em torno, ressentido, e disse calmamente:

- Nada disso que acaba de mencionar constitui um ativo passível de liquidação.

Não posso… Swinton piscou o olho e disse:

- E aquela sua mulherzinha, Vivian, não é um ativo passivo de liquidação?

Sir Alec ficou rubro de raiva. O nome de Vivian nos lábios daquele homem era um sacrilégio. Alec pensou em Vivian como a deixara naquela manhã, ainda suavemente adormecida. Dormiam em quartos separados, e uma das grandes alegrias de Nichols era ir ao quarto de Vivian para uma das suas "visitas". Às vezes, quando Alec acordava cedo, ia ao quarto de Vivian, que ainda dormia, só para olhá-la. Acordada ou adormecida, era a mulher mais bela que Alec já havia visto. Ela costumava dormir nua, e seu corpo elegante e curvo se revelava a meio, encolhida na cama. Era loura, com olhos azul-claros e uma pele que parecia creme.

Vivian era uma pequena atriz quando Sir Alec a conhecera numa festa de caridade. Ficou encantado com a sua beleza, mas o que mais o atraiu foi a personalidade esfuziante e extrovertida dela. Era vinte anos mais moça do que Alec e cheia de alegria de viver. Enquanto Alec era tímido e introvertido, Vivian era gregária e vivaz. Alec não conseguiu parar de pensar nela, mas levou duas semanas até ter coragem bastante para telefonar-lhe. Com surpresa e prazer para ele, Vivian aceitou o seu convite.

Alec levou-a a uma peça do Old Vic e depois para jantar no Mirabelle. Vivian morava num modesto apartamento térreo em Notting Hill e, quando Alec a levou até a casa, perguntou:

- Não quer entrar?

Ele passou a noite lá e isso lhe transformou inteiramente a vida. Era a primeira vez que uma mulher o fazia atingir o clímax. Jamais conhecera nada que se comparasse a Vivian. Ela tinha uma língua aveludada, longos cabelos esvoaçantes e possuía profundidades úmidas e exigentes que ele explorava até se exaurir. Sentia-se excitado só de pensar nela. Havia mais algumas coisas. Ela o fazia rir e sentir-se vivo. Fazia troça de Alec por ser tímido e um tanto casmurro, e ele adorava isso.

Estava com ela sempre que Vivian permitia. Quando Alec a levava a alguma festa, Vivian era sempre o centro de todas as atenções. Alec se orgulhava disso, mas sentia ciúme dos rapazes que a cercavam e não podia deixar de pensar que muitos deles já deviam ter dormido com ela. Nas noites em que Vivian não podia estar com ele porque tinha outro compromisso, Alec se roia de ciúmes.

Ia até o apartamento dela, estacionava o carro nas vizinhanças para ver a que horas ela voltava para casa e se chegava acompanhada. Sabia que estava procedendo insensatamente, mas não conseguia agir de outro jeito. Estava enleado em laços muito difíceis de desatar. Compreendia que Vivian não servia para ele e que seria um grande erro da sua parte casar-se com ela. Era um baronete, um respeitável membro do Parlamento, com um brilhante futuro. Fazia parte da dinastia Roffe e integrava a diretoria da empresa.

Vivian não tinha meios para poder incorporar-se ao mundo em que ele vivia. Era filha de uma dupla de artistas de segunda classe de music-ball, que faziam turnês pelas províncias. Vivian não tinha instrução e o pouco que sabia aprendera nas ruas e nos bastidores dos teatros. Alec sabia que ela era promíscua e superficial. Era esperta mas não particularmente inteligente.

Apesar de tudo isso, Alec vivia obcecado por ela. Resistiu. Tentou deixar de vê-la, mas não conseguiu. Era feliz ao lado dela e quase desgraçado quando estava longe. No fim, propôs-lhe casamento porque não podia deixar de proceder assim, e, quando Vivian aceitou, ficou em êxtase. Levou a esposa para a casa da família, uma bela mansão georgiana em Gloucestershire, com colunas délficas e uma longa entrada curva para carros.

Ficava no centro de cinqüenta hectares de ricas terras de lavoura, com um parque de caça e um rio para pescar. Nos fundos da casa, havia um jardim criado por um famoso paisagista. O interior da casa era admirável. O grande hall de entrada tinha chão de pedras e paredes revestidas de madeira pintada. Havia velhas lanternas e mesas douradas com tampo de mármore. A biblioteca tinha estantes feitas ainda no século XVIII, mesas com pedestal de Henry Holland e cadeiras de Thomas Hope. A sala de estar era uma mistura de Hepplewhite e Chippendale, com um tapete Wilton e dois lustres de Waterford. Havia um grande salão de jantar com capacidade para quarenta convivas e uma sala de fumar. No segundo andar, havia seis quartos, cada qual com sua lareira Adam. No terceiro andar, ficava os alojamentos dos criados. Seis semanas depois de se mudarem para a casa, Vivian disse:

- Vamos embora daqui, Alec.

Ele a olhou, atônito.

- Quer ir passar alguns dias em Londres, é isso?

- Não. Quero me mudar para sempre.

Alec olhou através da janela para os campos verdes, onde brincara quando criança e onde se erguiam o gigantesco sicômoro e os grandes carvalhos, e murmurou com alguma hesitação:

- Mas isto aqui é tão tranqüilo!… -é justamente isso. Não suporto mais essa danada tranqüilidade…

Mudaram-se para Londres na semana seguinte. Alec tinha uma elegante casa de quatro andares em Londres, em Eilton Crescent, logo depois de Knightsbridge, com uma sala de estar, um escritório, uma grande sala de jantar e, nos fundos da casa, uma janela panorâmica, da qual se viam uma gruta, com uma cascata, estátua e alguns bancos brancos no centro de um belo jardim. No andar de cima, havia um quarto grande e quatro menores.

Vivian e Alec viveram duas semanas no quarto grande. Certa Manhã, Vivian disse:

- Gosto muito de você, Alec, mas você ronca, sabe disso? Alec não sabia. - Tenho de dormir sozinha, amor. Você não se importa, não é?

Alec se importava e muito. Gostava de sentir na cama a maciez e o calor daquele corpo jovem. Mas sabia intimamente que não podia excitar sexualmente Vivian tanto quanto outros homens. Era por isso que ela não o queria na cama.

Disse, portanto:

- É claro que compreendo, querida.

Por insistência de Alec, Vivian continuou no quarto grande e Alec se mudou para um dos quartos menores. A princípio, Vivian ia à Câmara dos Comuns e ficava na galeria dos visitantes nos dias em que Alec tinha de fazer algum discurso. Alec olhava para ela e se sentia cheio de um orgulho profundo e inefável. Vivian era sem dúvida a mulher mais bela entre todas ali presentes. Um dia, concluiu o seu discurso e, quando olhou para o alto, viu que o lugar de Vivian estava vazio. Alec se julgava culpado pelo fato de Vivian viver insatisfeita.

Todos os amigos dele eram mais velhos do que Vivian e muito conservadores para ela. Incentivou-a a convidar para a casa os jovens companheiros dela e misturou-os com os amigos dele. Os resultados foram desastrosos.

Alec vivia pensando que, quando Vivian tivesse um filho, se acomodaria. Mas, um dia - Alec nunca soube como -, ela apareceu com uma infecção vaginal e teve de fazer uma histeretomia. Alec desejava tanto um filho que o fato o abalou profundamente, mas Vivian se mostrou imperturbável.

- Não se incomode, amor. Tiraram a chocadeira, mas deixaram o galinheiro, onde a gente pode brincar.

Ele a olhou em silêncio durante algum tempo, mas depois lhe virou as costas e afastou-se.

Vivian gostava de fazer compras. Gastava indiscriminadamente em roupas, jóias e carros, e Alec não tinha ânimo de dizer-lhe que se contivesse.

Justificou-a, dizendo que ela se criara na pobreza e tinha fome de luxo. Gostaria de comprar tudo para ela. Infelizmente, não podia. O seu salário era basicamente consumido pelos impostos. A sua fortuna consistia nas ações da Roffe and Sons, mas o rendimento dessas ações era limitado. Tentou explicar isso a Vivian, mas ela não mostrou o menor interesse. As conversa sobre negócios a irritavam. E Alec deixou-a continuar gastando. A primeira vez em que soube que ela também jogava foi quando Tod Michaels, proprietário do Tod's Club, um antro de jogatina no Soho, foi procurá-lo.

- Tenho aqui uma promissória de mil libras, assinada por sua mulher, Sir Alec. Ela teve uma noite de pouca sorte na roleta.

Alec ficou atônito. Pagou a promissória e naquela noite chamou a atenção de Vivian.

- Assim não podemos agüentar, Vivian. Você está gastando mais do que eu posso ganhar. Ela se mostrou muito arrependida.

- Desculpe, meu anjo. Sua Vivian tem procedido muito mal.

Abraçou-o então, comprimiu o corpo contra o dele e Alec esqueceu sua raiva. Alec passou uma noite memorável na cama dela e ficou certo de que não haveria mais problemas. Duas semanas depois, Tod Michaels foi procurá-lo de novo. Desta vez, a promissória assinada por Vivian era de cinco mil libras. Alec ficou furioso.

- Por que você a deixa jogar com crédito?

- Ela é sua esposa, Sir Alec - respondeu Michaels com voz untuosa. -O que aconteceria se eu recusasse?

- Eu… eu terei de arranjar essa importância - disse Alec. - Não a tenho no momento.

- Considere isso como um empréstimo. Pagará quando puder. Alec sentiu um grande alívio.

- É muita generosidade da sua parte, Sr. Michaels.

Foi só um mês depois que Alec soube que Vivian tinha perdido no jogo mais de vinte mil libras e que ele pagaria sobre essa importância juros de dez por cento por semana. Ficou horrorizado. Não tinha meio algum de levantar tanto dinheiro. Nem tinha coisa alguma que pudesse vender. As casas, as belas antiguidades, os carros, tudo isso pertencia à Roffe and Sons.

A cólera que o agitava amedrontou tanto Vivian que ela prometeu nunca mais jogar. Mas era muito tarde. Alec caiu nas mãos de agiotas. Por mais dinheiro que desse, jamais conseguiria amortizar a dívida. Esta aumentava a cada mês, ao invés de diminuir, e ele vivia nessa agonia já havia um ano.

Quando os capangas de Tod Michaels começaram a exercer pressão sobre ele, cobrando dinheiro, Alec ameaçou ir à polícia.

- Tenho relações nas altas-rodas - disse ele.

O homem sorriu.

- E nós temos relações nas rodas mais baixas.

Agora, Sir Alec estava ali, no White's Club, com aquele homem terrível, tendo de rebaixar-se para pedir um pouco mais de tempo.

- Já paguei mais que o dinheiro que tomei emprestado. Não posso…

- Pagou apenas os juros, Sir Alec - replicou Swinton. - Ainda não deu nada do capital.

- Isso é uma extorsão!

O olhar de Swinton ficou mais duro. Disse, fazendo menção de levantar-se.

- Está bem. Darei o seu recado ao chefe.

- Não, não! Faça o favor de sentar-se - apressou-se em dizer Alec. Swinton sentou-se vagarosamente e disse:

- Não diga mais essas coisas. O último sujeito que falou assim acabou com os joelhos pregados no chão.

Alec lera alguma coisa a esse respeito. Os irmãos Kray tinham inventado esse castigo para as suas vítimas. E as pessoas com quem ele estava tratando eram tão perversas e tão cruéis quanto eles. Sentiu a bile subir-lhe à garganta.

- Não quis dizer isso. Só sei que não tenho mais dinheiro… Swinton bateu a cinza do charuto no copo de vinho de Alec e disse:

- Você tem uma porção de ações da Roffe and Sons, não tem, meu caro Alec?

- Tenho sim, mas não posso vendê-las, nem transferi-las. Não adianta a ninguém possuí-las, a menos que a Roffe and Sons se transforme em uma sociedade anônima.

Isso é com Sam Roffe. Bem que eu tenho tentado convencê-lo.

- Continue insistindo.

- Diga a Michaels que ele vai receber seu dinheiro. Enquanto isso, deixem de me importunar. Swinton arregalou os olhos.

- Importuná-lo? Você, meu caro patife, não sabe nem o significado da palavra.

Quando começarmos a importuná-lo, as suas cocheiras serão queimadas e você comerá carne de cavalo assada. Até sua casa ser queimada. E com sua mulher dentro. já comeu coxas de mulher assadas?

Alec estava pálido.

- Pelo amor de Deus!

- Éclaro que eu estou brincando - disse Swinton. -Tod Michaels é seu amigo. E amigos se ajudam uns aos outros. Estivemos falando a seu respeito em nossa reunião desta manhã. E sabe o que o chefe disse? "Sir Alec é um bom sujeito. Se não tiver dinheiro, conseguirá na certa outro meio de nos atender."

Alec franziu a testa.

- Que outro meio é esse?

- Ora essa, não é tão difícil assim de imaginar para um homem como você.

Trabalha numa grande companhia de produtos farmacêuticos, não é verdade? Produz coisa como cocaína, por exemplo. Aqui entre nós, particularmente, quem iria saber se você desviasse algumas sementes de vez em quando?

Alec encarou-o.

- Deve estar louco.. Eu nunca poderia fazer uma coisa dessas.

- Não imagina a facilidade com que as pessoas podem fazer as coisas desde que seja necessário. Ou nos paga o dinheiro que nos deve ou nós teremos de dizer-lhe para onde deve remeter a mercadoria. Apagou o charuto no pratinho de manteiga de Alec. - Lembranças a Vivian, Sir Alec.

E Jon Swinton saiu. Sir Alec ficou sentado sozinho, sem ver nada, cercado de todas as coisas confortáveis e amigas que tinham feito parte até então de sua vida e agora estavam ameaçadas. A única coisa estranha era aquela obscena ponta de charuto no prato.

Como pôde permitir que tais coisas lhe acontecessem? Deixara-se levar para uma posição onde ficara à mercê dos malfeitores. Sabia agora que não queriam dele apenas dinheiro. O dinheiro fora apenas uma isca com que o tinham levado a uma armadilha. O que lhes interessava era a sua relação com a companhia de produtos farmacêuticos.

Queriam forçá-lo a trabalhar com eles. Quando se soubesse que ele estava em poder daqueles criminosos, a oposição não deixaria de explorar o caso. O seu partido decerto lhe pediria que renunciasse à sua cadeira. Isso seria feito, naturalmente, com tato e discrição. Insistiriam em que ele se candidatasse a uma cadeira na Câmara dos Comuns, um posto da Coroa que pagava um salário nominal de cem libras por ano. Teria de deixar o Parlamento necessariamente, pois um parlamentar não podiareceber qualquer pagamento da Coroa ou do governo. É claro que não poderia haver sigilo sobre os motivos. Ele ficaria desmoralizado, a não ser que pudesse receber alguma quantia considerável.

Tinha falado muitas vezes com Sam Roffe, procurando convencê-lo a transformar a companhia em uma sociedade aberta e permitir que as suas ações fossem negociadas na Bolsa.

- Nem pense nisso - tinha-lhe dito Sam. - No minuto em que permitirmos a entrada de estranhos, eles começarão a querer ditar regras nos nossos negócios. Sem ninguém perceber, tomarão conta da diretoria e, depois, da companhia. Que diferença isso faz para você, Alec? Você tem um bom salário, uma conta de despesas sem limite fixo. Não precisa de dinheiro.

Por um momento, Alec teve a tentação de expor a Sam a situação desesperada em que se encontrava. Mas bem sabia que isso não adiantaria. Sam Roffe era antes de tudo um homem da companhia. Se soubesse que Alec tinha de alguma maneira comprometido o prestígio da Roffe and Sons, o demitiria sem hesitação. Não, Sam Roffe era a última pessoa a quem ele podia recorrer. Alec se via diante da ruína.

O porteiro da recepção dirigiu-se para a mesa de Alec em companhia de um homem com uma farda de mensageiro e um envelope fechado na mão.

- Perdão, Sir Alec -disse o porteiro -, mas este homem insiste em dizer que recebeu instruções para entregar-lhe pessoalmente alguma coisa.

- Obrigado - disse Alec, recebendo o envelope.

O porteiro saiu, acompanhando o homem. Alec demorou muito a estender a mão para o envelope e abri-lo. Leu e releu a mensagem. Em seguida, amassou o papel e os seus olhos se encheram de lágrimas.

Capítulo 6 Nova York. Segunda-feira, 7 de setembro.11 horas.

O Boeing 707-320 particular estava se preparando para descer no Aeroporto Kennedy, depois de sobrevoar repetidamente a pista, à espera de ordem para pouso. O vôo tinha sido longo e enfadonho, e Rhys Williams estava exausto mas não conseguira dormir durante toda a noite. Tinha viajado muito naquele avião com Sam Roffe, e a presença do amigo ainda enchia o aparelho. Elizabeth Roffe o esperava. Ele tinha lhe mandado um telegrama de Istambul, no qual dizia apenas que chegaria no dia seguinte.

Poderia ter-lhe comunicado a morte do pai pelo telefone, mas ela merecia mais do que isso. O avião tocou no solo e taxiou para o terminal.

Rhys levava muito pouca bagagem e sem demora passou pela alfândega. O céu estava cinzento e fechado, um prenúncio do inverno. Uma limusine o esperava numa das portas laterais a fim de levá-lo à propriedade de Sam Roffe, em Long Island, onde Elizabeth devia estar à espera dele.

Durante a viagem para Long Island, Rhys tentou pensar nas palavras que diria a Elizabeth logo que a visse, para suavizar o choque mas no momento em que ela abriu a porta para recebê-lo, ficou sem ter o que dizer. Sempre que Rhys via Elizabeth, a beleza dela o tomava de supressa. Herdara os traços da mãe, as mesmas feições aristocráticas e os olhos negros emoldurados pelos longos cílios. A pele era branca e fina e os cabelos, pretos e cintilantes. Estava com uma blusa creme de seda de gola aberta, uma saia pregueada de casimira cinza e sapatos marrons. Não havia nem sinal da menina desajeitada que Rhys conhecera nove anos antes.

Tornara-se uma mulher inteligente e cordial, sem qualquer afetação decorrente da sua beleza. Sorria, satisfeita de vê-lo. Tomou-o pela mão e disse, levando-o para a grande biblioteca revestida de carvalho.

- Venha, Rhys. Sam veio com você? Não havia meio de proceder suavemente. Rhys respirou fundo e disse:

- Sam sofreu um acidente, Liz.

Viu a cor fugir do rosto de Elizabeth. Ela ficou esperando que ele continuasse.

- O acidente foi grave. Morreu.

Ela ficou imóvel, como se estivesse petrificada. Quando finalmente falou, a sua voz mal pôde ser ouvida.

- Que… que foi que aconteceu?

- Não sabemos ainda dos detalhes. Ele estava escalando o monte Branco. Uma corda se partiu e ele caiu numa ravina.

- Encontraram?… Ela fechou os olhos por um momento.

- Uma ravina insondável.

Elizabeth ficou muito pálida. Rhys sentiu-se imediatamente alarmado.

- Está sentindo alguma coisa? - Ela sorriu. - Não. Estou bem. Muito obrigada. Quer tomar chá ou comer alguma coisa?

Rhys olhou para ela, surpreso, e então compreendeu. Ela se achava em estado de choque, embora estivesse agindo e falando como se nada tivesse acontecido. Tinha os olhos parados e o sorriso estava como que imobilizado em seus lábios.

- Sam era um grande atleta - disse Elizabeth. - Você já viu os troféus que ele ganhou. Sempre vencia, não é? Sabia que ele já havia escalado o monte Branco?

- Liz…

- É claro que você sabia. Foi uma vez com ele, não foi Rhys?

Rhys deixou-a falar, anestesiar-se contra a dor, criar uma couraça de palavras que seria abandonada quando ela tivesse de enfrentar a sua angústia. Por um instante, enquanto a escutava, lembrou-se da menina vulnerável que ele conhecera em outros tempos, tão sensível e tímida que não tinha qualquer proteção contra a realidade brutal.

Tinha sido, naquele momento, profundamente atingida e havia nela uma fragilidade que preocupava Rhys.

- Vou chamar um médico, Liz. Ele pode lhe dar alguma coisa e…

- Nada disso. Já lhe disse que estou bem. Se não se incomodar, creio que vou me deitar um pouco. Estou cansada.

- Quer que eu fique aqui?

- Não será preciso. Muito obrigada.

Ela o levou até a porta e, quando ele já ia entrando no carro, chamou-o.

- Rhys! - Ele se voltou. - Obrigada por ter vindo.

- Deus do céu!

Muitas horas depois de Rhys Williams ter saído, Elizabeth Roffe ainda estava deitada na cama, olhando para o teto e vendo as sombras em movimento que nele traçava o pálido sol de setembro. E a dor chegou. Não tinha tomado nenhum sedativo porque queria sentir a dor. Devia isso a Sam. Tinha de suportar tudo porque era filha dele.

Passou ali o resto do dia e a noite inteira, pensando em nada, pensando em tudo, relembrando e sofrendo.

Ria, chorava e se julgava num estado de grande depressão nervosa. Mas pouco importava. Não havia ninguém para ouvi-la. No meio da noite, sentiu de repente uma fome violenta e levantou-se para ir comer um grande sanduíche na cozinha. Vomitou logo depois. Sentiu-se melhor.

Nada podia aliviar a dor que a consumia. Parecia-lhe que todos os seus nervos estavam em fogo. Recordava incessantemente os anos que vivera com o pai. Pela janela de seu quarto, viu o sol nascer. Algum tempo depois, uma das empregadas bateu à porta, e Elizabeth mandou-a embora. Houve uma hora em que o telefone tocou e ela sentiu um baque no coração. É Sam! Mas logo caiu na realidade e deixou o telefone tocar.

Sam nunca mais lhe telefonaria. Ela nunca mais ouviria a sua voz. Nunca mais o veria. Uma ravina insondável. Insondável. Elizabeth deixou-se ficar ali, submersa no passado na saudade.

Capítulo 7 O nascimento de Elizabeth Rowane Roffe foi uma dupla tragédia.

A tragédia menor foi a mãe de Elizabeth ter morrido no parto. A tragédia maior foi o fato de Elizabeth ter nascido mulher.

Durante nove meses, até que ela emergisse das profundezas escuras do útero materno, tinha sido a criança mais ansiosamente esperada do mundo, destinada a herdar um colossal império, a empresa gigantesca e multimilionária que era a Roffe and Sons.

Patrícia, a mulher de Sam Roffe, era uma criatura de cabelos pretos, dotada de excepcional beleza. Muitas mulheres tinham tentado se casar com Sam Roffe, fascinadas pela posição, pelo prestígio e pela riqueza dele. Patrícia quis casar com ele porque o amava. Depois se viu que esse era o pior dos motivos. Sam Roffe tinha desejado apenas um acordo comercial, e Patrícia havia correspondido plenamente às suas exigências.

Sam não tinha nem tempo nem temperamento para ser um homem de família Não havia espaço em sua vida para qualquer coisa estranha à Roffe and Sons. Era fanaticamente dedicado à companhia e não esperava senão a mesma dedicação dos que o cercavam.

A importância de Patrícia em sua vida residia exclusivamente na contribuição que ela pudesse dar para a imagem da companhia. Quando compreendeu a espécie de casamento que tinha feito, era muito tarde.

Sam lhe deu um papel para representar e ela o representava brilhantemente. Era uma anfitriã perfeita, uma Sra. Sam Roffe impecável. Não recebia amor do marido e, pouco a pouco, aprendeu a não lhe dar qualquer espécie de amor. Servia Sam e trabalhava para a Roffe and Sons tanto quanta a mais humilde secretária. Estava de plantão vinte e quatro horas por dia, pronta a tomar o avião para qualquer lugar que Sam julgasse necessário, capaz de receber um pequeno grupo de líderes mundiais ou de servir um jantar de gourmet a cem convidados com um aviso de um dia de antecedência, em toalhas de mesa bordadas, resplandecentes cristais Baccarat e uma pesada baixela do ativo não arrolado da Roffe and Sons.

Lutava para conservar-se bela e submetia-se a exercícios e regimes como uma espartana. O seu corpo era perfeito, e os seus vestidos eram desenhados para ela por Norell em Nova York, Chanel em Paris, Hartnell em Londres e a jovem Sybil Connolly em Dublim. As jóias que Patrícia usava eram criadas para ela por Jean Schlumberger e Bulgari. Levava uma vida atarefada e dinâmica, mas vazia e sem alegria.

A sua gravidez modificou tudo isso. Sam Roffe era o último herdeiro masculino da dinastia Roffe, e Patrícia sabia com que ansiedade ele desejava um filho. Tudo dependia dela e ela passou a ser a rainha-mãe, em cujo seio se criava o jovem príncipe que um dia herdaria o reino.

Quando levaram Patrícia para a sala de parto, Sam apertou-lhe a mão e disse fervorosamente:

- Muito obrigado!

Patrícia morreu de uma embolia trinta minutos depois, e a única felicidade para ela foi morrer sem ter sabido que falhara ao marido. Sam Roffe achou tempo no seu programa repleto para enterrar a mulher e voltou então a atenção para resolver o problema: o que fazer com a filha recém-nascida.

Com uma semana de idade, Elizabeth foi levada para casa e entregue a uma babá, a primeira de uma longa série. Durante os primeiros cinco anos de sua vida, Elizabeth viu muito pouco o pai. Era pouco mais que um vulto mal definido, um estranho que estava sempre chegando ou saindo.

Viajava constantemente, e Elizabeth era um problema, pois tinha que ser levada como uma peça de bagagem a mais. Em um mês, Elizabeth se viu na propriedade de Long Island, com as suas pistas de boliche, as suas quadras de tênis, a sua piscina e a sua quadra de squash. Poucas semanas depois, a babá fazia as malas com as roupas de Elizabeth e esta era levada de avião para a villa em Biarritz. Nos seus cinqüenta quartos e nos seus doze hectares de terreno, Elizabeth constantemente se perdia.

Sam Roffe possuía ainda um apartamento dúplex de cobertura em Beeckman Place e uma villa na Costa Esmeralda na Sardenha. Elizabeth viajava para todos esses lugares, arrastada da casa para o apartamento e para a villa, crescendo no meio de todo esse pródigo luxo. Mas sempre se considerou uma estranha que entrara por engano numa bela festa de aniversário dada por um desconhecido que não a amava.

Ao crescer, veio a saber o que significava ser filha de Sam Roffe. Foi como a mãe dela tinha sido, uma vítima emocional da companhia. Se não tinha vida de família era porque não havia família, mas apenas servidores assalariados e a figura distante do homem que a havia gerado e que parecia não ter o menor interesse por ela, dedicando-se exclusivamente à companhia.

Patrícia tinha conseguido aceitar essa situação, mas para a criança aquilo era um tormento. Elizabeth se sentia indesejada e mal-amada. Não sabia o que fazer no seu desespero e acabou convencida de que era a culpada, por ser incapaz de inspirar amor.

Fez tudo o que era possível para ganhar a afeição do pai. Quando chegou à idade escolar, fazia coisas para ele na aula, desenhos infantis, aquarelas esquisitas e cinzeiros tortos, coisas que ela guardava cuidadosamente.

Quando ele voltasse de uma das suas viagens, far-lhe-ia a surpresa do presente e o ouviria dizer: "Gostei muito, Elizabeth. Você é muito talentosa". As vezes, Elizabeth acordava no meio da noite, descia a longa escadaria circular do apartamento de Beekman Place e seguia o longo e cavernoso corredor que levava ao escritório do pai. Entrava na sala vazia como se estivesse chegando a um santuário.

Aquela era a sala dele, onde ele assinava papéis importantes e de onde governava o mundo. Elizabeth aproximava-se da grande mesa forrada de couro e passava lentamente as mãos por ela. Depois, parava atrás da mesa e se sentava na grande cadeira de couro. Sentia-se ali mais perto do pai. Era como se, estando onde estava, sentando-se onde ele se sentava, pudesse tornar-se uma parte dele.

Mantinha conversações imaginárias com ele, que escutava, interessado e atento, enquanto ela expunha os seus problemas. Uma noite, Elizabeth estava sentada no escuro na cadeira do pai, as luzes da sala foram de repente acesas e o pai apareceu à porta.

Olhou para Elizabeth, sentada na cadeira da mesa, e perguntou:

- Que é que você está fazendo aqui sozinha no escuro?

Tomou-a então nos braços e carregou-a para a cama dela no andar de cima.

Elizabeth ficou acordada quase a noite inteira, pensando na alegria de ser carregada pelo pai. Depois disso, descia todas as noites e se sentava na cadeira do escritório, esperando que ele chegasse e tornasse a carregá-la, mas isso nunca mais aconteceu.

Ninguém falava com Elizabeth sobre a mãe dela, mas havia um belo retrato de corpo inteiro de Patrícia Roffe na sala de recepções e Elizabeth ficava muito tempo a olhá-lo. Em seguida, ia olhar-se ao espelho. Como era feia! Tinham lhe colocado um aparelho nos dentes e ela parecia um monstro. Não era de admirar que o pai não se interessasse por ela.

Adquiriu de repente um apetite insaciável e começou a engordar. Havia chegado a uma conclusão admirável. Se fosse gorda e feia, ninguém iria esperar que ela se parecesse com a mãe. Quando Elizabeth completou doze anos, foi matriculada em uma escola particular no East Side de Manhattan, freqüentada pela aristocracia. Chegava num Rolls-Royce com chofer, caminhava até sua sala de aulas e ali ficava sentada, retraída e calada, sem dar atenção a ninguém. Nunca respondia espontaneamente a uma pergunta.

E, quando era chamada, parecia nunca saber o que dizer.

As professoras em pouco tempo tomaram o hábito de deixá-la de lado.

Conversavam particularmente sobre o caso de Elizabeth e tinham a opinião unânime de que ela era a criança mais mimada que tinham conhecido. Num relatório anual confidencial à direta da escola, a professora de classe de Elizabeth disse o seguinte:

"Não foi possível qualquer espécie de progresso com Elizabeth Roffe. Ela se conserva afastada das colegas e se nega a participar de qualquer atividade de grupo. Não tem amigas na escola. As suas notas não são satisfatórias, mas é difícil dizer se isso acontece porque ela não faz qualquer esforço ou porque não tem capacidade de aprender a matéria. É arrogante e egoísta. Se o pai dela não fosse um dos grandes benfeitores desta escola, eu recomendaria a exclusão desta aluna".

Esse relatório estava a muitos anos-luz da realidade. A verdade era que Elizabeth Roffe não tinha um escudo protetor, nem qualquer espécie de couraça contra a terrível solidão que a engolfava.

Consciente de sua desvalia, tinha medo de fazer amizades para não revelar que não tinha méritos, nem era simpática. Não era arrogante, era de uma timidez quase patológica. Julgava que não pertencia ao mundo de seu pai. Não pertencia a mundo algum. Detestava ser levada para a escola no Rolls-Royce, pois sabia que não merecia isso. Nas aulas, estava a par de todas as perguntas que as professoras faziam, mas não tinha coragem de responder, para não chamar a atenção sobre ela.

Gostava de ler e ficava acordada na cama até altas horas da noite, devorando livros. Sonhava muito e se comprazia nas suas fantasias. Estava em Paris com o pai e, depois de atravessarem o Bois de Boulogne numa carruagem, ele a levava para o escritório, uma enorme sala, mais ou menos do tamanho da Catedral de Saint Patrick. As pessoas começavam a levar papéis para o pai assinar e ele dizia: "Não vêem que estou ocupado? Estou conversando com minha filha Elizabeth". Ela e o pai estavam esquiando na Suíça, descendo uma encosta ao lado um do outro. De repente ele caía e gritava de dor porque quebrava a perna, mas ela dizia: "Não se preocupe, papai. Eu cuidarei de você". Esquiava então até o hospital, onde dizia: "Depressa! Vão socorrer meu pai, que está machucado". Uma dúzia de homens de casacos brancos levavam-no então numa ambulância cintilante, e ela ficava à cabeceira dele, dando-lhe comida na boca. (já então quebrara o braço e não a perna), e aí a mãe entrava no quarto, de algum modo viva, e ele dizia: "Não posso falar com você agora, Patrícia. Elizabeth e eu estamos conversando".

Ou então estava na bela villa de Sardenha e os empregados não estavam em casa. Ela preparava o jantar para o pai, que repetia todos os pratos e ao fim dizia: "Você é a melhor cozinheira do que sua mãe foi, Elizabeth". Todas as cenas com seu pai tinham sempre o mesmo final. A campainha da porta tocava e um homem alto, bem mais alto do que o pai, entrava e a pedia em casamento. O pai então pedia: "Não me deixe, Elizabeth. Eu preciso muito de você". E ela resolvia ficar.

De todas as casas em que Elizabeth se criou, a villa na Sardenha era sua favorita.

Não era de modo algum a maior, mas a mais pitoresca e acolhedora. A própria Sardenha encantava Elizabeth. Era uma ilha impressionante e rochosa, a cerca de cento e cinqüenta milhas marítimas da costa da It lia. Era um maravilhoso conjunto de montanhas, mar e terras verdes. Os seus enormes penhascos vulcânicos tinham irrompido havia milênios do mar primitivo, e a costa se estendia numa imensa meia-lua até onde a vista alcançava, bordada pela franja azul do mar Tirreno.

Para Elizabeth, a ilha tinha cheiros especiais e próprios, o aroma dos ventos do mar e das florestas, bem como da macchia, a flor amarela e branca que Napoleão tinha amado. Havia as moitas de corbeccola, que alcançavam quase dois metros de altura e davam uma frutinha vermelha que tinha gosto de morango, e as guarcias, os gigantescos carvalhos cuja casca era exportada para o continente, onde se faziam com elas rolhas para as garrafas de vinhos.

Gostava de ouvir os rochedos cantantes, as misteriosas e enormes pedras cheias de buracos. Quando o vento soprava nesses buracos, os rochedos emitiam sons fantasmagóricos e tristes, como lamentos de almas penadas. Os ventos sopravam, e Elizabeth ficou conhecendo todos eles: o mistral e o ponente, a tramontana, o grecate e o levante. Havia ventos brandos, ventos impetuosos. O mais temido era o siroco, o vento quente que soprava do Saara.

A Villa Roffe ficava na Costa Esmeralda, acima do Porto Cervo, no alto de um penhasco sobre o mar, escondida entre zimbros e as oliveiras selvagens da Sardenha, que davam azeitonas amargas. Havia uma vista empolgante da baía muito abaixo, em torno da qual se espalhavam pelos montes verdes casas de alvenaria numa mistura desordenada de cores que lembravam um desenho de criança. A villa era de alvenaria, com grandes traves de zimbro, no seu interior. Era construída em vários níveis, com grandes quartos confortáveis, cada qual com sua lareira e a sua varanda. As salas de estar e de jantar tinham grandes janelas que permitiam visão panorâmica da ilha. Uma escada irregular levava aos quatro quartos do andar de cima. A mobília combinava perfeitamente com o ambiente. Havia mesas e bancos rústicos de refeitório e poltronas macias. Diante das janelas, havia cortinas franjadas de la branca, tecidas à mão na ilha.

O piso era revestido de vistosos ladrilhos ceresarda da Sardenha e de outros ladrilhos da Toscana. Nos banheiros e quartos, haviam tapetes de lã da ilha coloridos tradicionalmente com tintas vegetais. A casa era cheia de quadros, uma mistura de impressionistas franceses, grandes mestres italianos e primitivos sardos.

Na entrada, havia retratos de Samuel Roffe e Terenia Roffe, trisavós de Elizabeth.

O que mais agradava a Elizabeth era a sala da torre, sob o telhado inclinado. Subia-se para o segundo andar por uma estreita escada, e a sala servia de escritório a Sam Roffe.

Havia uma grande mesa de trabalho e uma confortável cadeira giratória estofada. Nas paredes viam-se estantes e mapas, muito destes pertencentes ao império Roffe.

Portas envidraçadas se abriam para uma pequena varanda sobre um penhasco abrupto e dali se tinha uma vista deslumbrante. Foi nessa casa, aos treze anos de idade, que Elizabeth descobriu as origens de sua família e pela primeira vez sentiu que era de casa, que era parte de alguma coisa.

Tudo começou no dia em que Elizabeth encontrou o Livro. O pai havia ido a Olbia, e Elizabeth subiu a escada para a sala da torre. Não se interessava pelos livros das estantes, pois sabia havia muito que eles versavam sobre farmacologia e farmacognosia, empresas multinacionais e direito internacional. Tudo era muito pesado e chato. Havia um volume médico em latim intitulado Circa instans, escrito na Idade Média, e outro chamado De matéria médica.

Elizabeth estava estudando latim e teve curiosidade de ver um daqueles volumes.

Ao puxar os livros, viu que havia outro embaixo. Apanhou-o. Era grosso, encardenado em couro e sem título. Mais curiosa ainda, Elizabeth abriu-o. Foi como se abrisse uma porta para outro mundo. Era uma biografia de seu trisavô, Samuel Roffe, impressa em inglês numa edição particular em pergaminho. Não havia o nome do autor, nem a data, mas era evidente que o livro devia ter mais de cem anos. Algumas páginas estavam desbotadas, outras amareladas ou já começando a desfazer-se de velhice. Mas nada disso tinha importância. O importante era a história que dava vida aos retratos pendurados na parede embaixo da escada. Elizabeth tinha visto muitas vezes esses retratos de um homem e de uma mulher de outros tempos, vestidos com roupas estranhas. O homem não era belo, mas havia em seu rosto energia e inteligência. Tinha cabelos louros, os malares salientes dos eslavos e olhos azuis muito vivos. A mulher era uma beleza. Cabelos negros, pele impecável e olhos negros como carvão. Usava um vestido de seda branca com um casaquinho e um corpete de brocado. Dois estranhos que nada significavam para Elizabeth. Mas naquele dia em que, sozinha na sala da torre, Elizabeth abriu o Livro e começou a ler, Samuel e Terenia Roffe readquiriam vida. Elizabeth se sentiu transportada no tempo e começou a viver no gueto de Cracóvia, no ano de 1853, em companhia de Samuel e Terenia. E, ao ler o Livro, ficou sabendo que seu trisavô, Samuel, fundador de Roffe and Sons, fora romântico e aventureiro. E também assassino.

Capítulo 8 De acordo com o Livro, uma das mais antigas lembranças de Samuel, era a do assassinato de sua mãe. Samuel tinha cinco anos de idade. Ele fora escondido na adega da pequena casa de madeira em que os Roffes moravam, com outras famílias, no gueto de Cracóvia. Quando a desordem finalmente terminara, depois de horas terríveis de angústia e sofrimento, e o único som que se ouvia era o choro dos sobreviventes, Samuel deixou cautelosamente seu esconderijo e saiu às ruas do gueto à procura da mãe.

Parecia ao garoto que o mundo inteiro estava em chamas. O céu mostrava-se avermelhado com o incêndio de inúmeras casas de madeira, e nuvens de espessa fumaça negra se erguiam por toda a parte. As pessoas andavam freneticamente à procura dos parentes e amigos ou tentavam salvar o que ainda fosse possível das casas e bens.

Eram meados do século XIX, Cracóvia possuía um corpo de bombeiros, que estava, proibido de prestar socorro aos judeus. Ali no gueto, nos arredores da cidade, o povo era forçado a debelar os incêndios com as próprias mãos, tirando água dos poços.

Dezenas de pessoas formavam cadeias de passagem de baldes no esforço de combater o fogo. Samuel via a morte por onde quer que olhasse, nos corpos mutilados de pessoas estendidas no chão como bonecos quebrados, de mulheres nuas e violentadas e de crianças ensangüentadas que pediam socorro.

Samuel encontrou a mãe estendida na rua, ainda consciente, o rosto coberto de sangue. O menino se ajoelhou ao lado dela, com o coração batendo descompassadamente.

- Mamãe!

Ela abriu os olhos, viu-o, tentou falar, e Samuel compreendeu que ela estava morrendo. Queria desesperadamente salvá-la, mas não sabia como, e quando lhe enxugou o sangue, ela morreu. Mais tarde, Samuel assistiu ao sepultamento e viu os homens cavarem cuidadosamente o chão em que ela caíra, pois, de acordo com as Escrituras, ela teria de ser enterrada com todo o seu sangue para aparecer inteira diante de Deus. Foi nesse momento que Samuel Roffe resolveu ser médico.

A família Roffe morava numa estreita casa de três andares, com mais oito famílias.

O jovem Samuel vivia num pequeno quarto com o pai e com a tia Rachel, e nunca em sua vida tivera um quarto só seu, nunca dormira ou comera sozinho. Nunca tinha havido um só momento em que não ouvisse as vozes dos outros, mas não era uma vida isolada e privada que Samuel desejava, pois nem sabia que isso existia. Vivera sempre no meio de uma confusão de gente.

Todas as tardes, Samuel e seus parentes e amigos eram trancados no gueto pelos gentios, e os judeus tratavam de guardar cabras, vacas e galinhas. Ao anoitecer, as pesadas portas do gueto eram fechadas e trancadas com uma chave de ferro. Quando amanhecia, as portas eram abertas, e os mercadores judeus tinham permissão de ir a Cracóvia negociar com os gentios, mas antes de escurecer deviam estar todos de novo dentro dos muros do gueto.

O pai de Samuel viera da Rússia, fugindo de um pogrom em Kiev, e fora parar em Cracóvia, onde conhecera sua noiva. Era um homem encurvado e grisalho, com rosto encarquilhado. Empurrava um carrinho, apregoando as miudezas, quinquilharias e utensílios que vendia, através das estreitas e tortuosas ruas do gueto.

O Jovem Samuel gostava de vaguear pelas ruas atravancadas, movimentadas e calçadas de pedras irregulares. Gostava do cheiro do pão recém-saído do forno misturado com os cheiros de peixe seco, queijo, frutas maduras, serragem e couro. Gostava de ouvir os pregões dos vendedores e as discussões com as freguesas que se fingiam escandalizadas com os preços. Era assombrosa a variedade de artigos que os ambulantes vendiam: roupas e rendas, pano de chão, lã, couro, carnes, verduras, agulhas, sabonete, galinhas depenadas, bombons, botões, xaropes e sapatos.

No dia em que Samuel completou doze anos, o pai levou-o à cidade de Cracóvia pela primeira vez. A idéia de passar pelos portões proibidos e de ver Cracóvia, a terra dos gentios, provocou no garoto uma ansiedade quase insuportável. Às seis horas da manhã vestido com uma única roupa boa que tinha, Samuel esperava no escuro, ao lado do pai, diante dos grandes portões fechados, no meio de uma barulhenta multidão de homens com carros de toda a espécie ao alcance das mãos.

Fazia frio, e Samuel se embrulhou mais no seu velho e gasto capote de pele de carneiro. Depois de uma espera que pareceu de muitas horas, o sol surgiu no horizonte e houve um tremor de expectativa entre os homens ali reunidos. Momentos depois, os grandes portões de madeira foram abertos. Todos passaram por eles e seguiram na direção da cidade como um bando de formigas diligentes. Quando se aproximavam da cidade admirável e terrível, o coração de Samuel começou a bater mais forte. Já avistava as fortificações que dominavam o Fístula.

Samuel agarrou-se com mais força ao pai. Estava de fato em Cracóvia, cercado pelos temidos goyim, a gente que os trancava durante a noite. Lançava olhares furtivos e medrosos para as pessoas que passavam e se espantava de que fossem tão diferentes.

Não usavam payves, cabelos encaracolados em cima das orelhas, nem bekeches, os longos casacos pretos, e muitos deles não tinham barba no rosto. Samuel e seu pai caminharam pelo Plante em direção ao Ryneck, a movimentada praça do mercado, onde passaram pelo Pavilhão dos Tecidos e pela Igreja de Santa Maria com as suas torres gêmeas. Samuel jamais imaginara tanta magnificência. O novo mundo era cheio de maravilhas. Havia principalmente uma sensação embriagadora de liberdade e de espaço que deixava Samuel sem fôlego.

As casas nas ruas eram separadas e não grudadas umas nas outras. Quase todas tinham na frente um pequeno jardim. Com certeza, pensou Samuel, todos em Cracóvia são milionários. Samuel acompanhou o pai a meia dúzia de fornecedores, aos quais o pai comprou mercadorias que jogou dentro do carro. Quando este ficou cheio, ele e o filho voltaram para gueto.

- Não podemos ficar mais um pouco? - perguntou Samuel.

- Não, meu filho. Temos de ir para casa.

Samuel não queria ir para casa. Transpusera os portões do gueto pela primeira vez em sua vida e estava dominado por uma emoção tão forte que quase o sufocava.

Havia gente que podia viver assim, podendo ir para onde bem quisesse, fazer o que bem entendesse… Por que é que ele não nascera do outro lado dos portões? Quase no mesmo instante, envergonhou-se desses pensamentos desleais. Naquela noite, ao deitarse, Samuel ficou pensando durante muito tempo em Cracóvia e nas belas casas com as suas flores e os seus jardins. Tinha de encontrar um meio de libertar-se. Queria conhecer alguém que sentisse o mesmo que ele sentia, mas não havia ninguém que o compreendesse.

Elizabeth interrompeu a leitura do Livro e fechou os olhos, imaginando então a solidão, as emoções e as frustrações de Samuel. Foi nesse momento que ela começou a identificar-se com ele, a sentir-se uma parte dele, como ele era uma parte dela. O sangue dele lhe corria nas veias. Era um sentimento admirável e perturbador de participação.

Ouviu o barulho do carro do pai que voltava e escondeu prontamente o Livro. Não teve mais oportunidade de lê-lo na Sardenha, mas quando voltou para Nova York levou-o escondido no fundo da mala.

Capítulo 9 Depois do sol quente de inverno da Sardenha, Nova York lhe pareceu uma Sibéria.

As ruas estavam cheias de neve e lama. O vento que soprava do rio East era enregelante. Mas Elizabeth não se importava. Estava vivendo na Polônia em outro século, participando das aventuras de seu trisavô.

Todas as tardes, depois da escola, corria para o seu quarto, trancava a porta e pegava o Livro. Pensara em falar dele ao pai, mas tivera medo de que este o tomasse e lhe proibisse a leitura do resto. De uma maneira admirável e inesperada, foi o velho Samuel quem animou Elizabeth. Afinal de contas, eram muito parecidos. Ele vivia isolado da mesma maneira que ela e do mesmo modo não tinha ninguém com quem pudesse falar. E, como eram quase da mesma idade, com um século de diferença, Elizabeth conseguia identificar-se com ele.

Samuel queria ser médico. Só três médicos tinham permissão para atender aos milhares de pessoas amontoadas nos limites insalubres e sujeito a epidemias do gueto.

Dos três, o mais próspero era o Dr. Zenon Wal. A casa dele se destacava entre as de seus vizinhos mais pobres como um castelo entre pardieiros. Tinha três andares e por trás de suas janelas viam-se cortinas de renda brancas, sempre lavadas e engomadas, e alguns móveis polidos e brilhantes. Dentro de casa, Samuel imaginava o médico atendendo aos seus pacientes, tratando deles, ajudando-os e curando-os.

Fazia tudo o que Samuel desejava um dia fazer. Sem dúvida, se um homem como o Dr. Wal se interessasse por ele, poderia ajudá-lo a estudar para ser médico. Mas, no que se referia a Samuel, O Dr. Wal era tão inacessível quanto qualquer dos gentios que viviam em Cracóvia, fora dos muros proibidos.

De vez em quando, Samuel via de relance o grande Dr. Zenon Wal quando este se empenhava em animar conversa na rua com algum colega. Um dia, quando Samuel passava pela frente da casa do Dr. Wal, a porta da rua se abriu e o médico saiu em companhia da filha. Ela era mais ou menos da idade de Samuel, e este nunca vira criatura mais linda.

No momento em que Samuel a viu, teve certeza de que ia casar-se com ela. Não sabia como conseguir esse milagre, mas estava certo de que era isso o que ia acontecer.

Depois desse dia, Samuel nunca mais deixou de passar diariamente pela casa do Dr.

Wal, na esperança de vê-la. Numa tarde, ia fazer alguma coisa que lhe haviam pedido e passou pela casa. Ouviu um piano e compreendeu que era ela que estava tocando. Tinha de vê-la.

Olhou para um lado e para o outro, para certificar-se de que ninguém o observava, e encaminhou-se para a casa. A música vinha de um lado da casa. No andar superior, bem acima de sua cabeça. Recuou um pouco e examinou a parede. Havia muitos lugares onde poderia apoiar as mãos e os pés. Sem um momento de hesitação, começou a escalada.

O segundo andar era mais alto do que ele havia pensado e, antes que chegasse à janela, estava três metros acima do chão. Olhou para baixo e teve um princípio de vertigem. A música lhe chegava aos ouvidos com mais força, e ele teve a impressão de que ela tocava para ele. Estendeu a mão à procura de um ponto de apoio e se agarrou à janela. Ergueu lentamente a cabeça para olhar acima do peitoril. Viu diante dos seus olhos uma sala luxuosamente mobiliada. A moça estava sentada diante de um piano branco e dourado a tocar e, atrás dela, lendo um livro numa poltrona, estava o Dr. Wal.

Samuel nem o notou. Tinha olhos apenas para a linda visão a alguns metros dele. Como a amava! Queria fazer alguma coisa espetacular e corajosa para que ela também o amasse.

Tão envolvido ficou Samuel nos seus devaneios que se distraiu, perdeu o ponto de apoio e começou a rolar no espaço. Deu um grito e viu dois rostos assustados que o olhavam da janela no momento em que chegou ao chão. Acordou numa mesa do consultório do Dr. Wal.

Era uma sala espaçosa, cheia de armários e material cirúrgico. O Dr. Wal estava com um chumaço de algodão que tinha um cheiro horrível encostado ao nariz de Samuel.

Este tossiu e sentou-se na mesa.

- Muito bem - disse o Dr. Wal. - Devia ter-lhe tirado o cérebro, mas fiquei em dúvida, sem saber se ia encontrar alguma coisa dentro da sua cabeça. O que você queria roubar, garoto?

- Nada - respondeu Samuel com indignação.

- Como é seu nome?

- Samuel Roffe.

O médico examinou com os dedos o pulso direito de Samuel, e o garoto deu um grito de dor.

- Hum… Você luxaçou o pulso, Samuel Roffe. Talvez seja melhor chamar a polícia para dar um jeito nesse pulso.

Samuel gemeu. Pensava no que poderia acontecer se a polícia levasse a desmoralização à casa dele. O coração de sua tia Rachel se partiria de dor e seu pai seria capaz de matá-lo. Mas o pior de tudo seria que, depois disso, poderia perder toda a esperança de ganhar o coração da filha do Dr. Wal. Seria um criminoso, um homem marcado. Samuel sentiu de repente uma dor estonteante no pulso e levantou os olhos para o médico numa desalentada surpresa.

- Está tudo certo - disse o Dr. Wal. - Vou colocar agora algumas talas nesse pulso.

Você vive aqui por perto, Samuel Roffe?

- Não, Dr. Wal.

- Já não o vi aqui por perto?

- Deve ter visto.

- Por quê? Sim, por quê?

Se dissesse, o médico iria com certeza rir dele.

- Porque eu quero ser médico - exclamou Samuel, sem mais poder guardar o seu segredo. O Dr. Wal o olhava, descrente.

- Efoi por isso que subiu pelas paredes da minha casa, como se fosse um gatuno?

Samuel então, contou-lhe tudo. Falou de sua mãe morta no meio da rua, da luta de seu pai, de sua primeira visita a Cracóvia e da sua frustração de passar as noites trancado dentro dos muros do gueto como se fosse um animal. Disse também o que sentia pela filha do Dr. Wal. Disse tudo o que pensava, e o médico o escutava em silêncio. Até a Samuel o que ele dizia parecia de um ridículo atroz. Quando chegou ao fim, só pôde dizer num sussurro:

- Desculpe…

O Dr. Wal olhou-o durante muito tempo e por fim disse?

- Todo homem é um prisioneiro, e o pior é ser prisioneiro de outro homem. Samuel murmurou:

- Não compreendo, Dr. Wal.

- Um dia você compreenderá.

O médico levantou-se, escolheu um cachimbo em cima de sua mesa e o encheu de fumo.

- Infelizmente, o dia de hoje vai ser muito triste para você, Samuel Roffe. Acendeu o cachimbo, saltou a primeira baforada e continuou: - Não em virtude do pulso luxado.

Isso vai sarar. Mas tenho alguma coisa para lhe dizer, na qual você não se curará com muita facilidade. São poucas as pessoas que sonham. Você tem dois sonhos. E sou obrigado a destruir a ambos.

- Não…

- Escute com muita atenção, Samuel. Você nunca poderá ser médico, ao menos em nosso mundo. Só três médicos podem exercer a profissão no gueto. Há dezenas de médicos competentes aqui à espera que algum de nós morra para que possa tomar nosso lugar. Não há chance para você, nenhuma chance. Você nasceu em época imprópria e em lugar impróprio. Está compreendendo, meu jovem?

- Estou, Dr. Wal.

O médico hesitou um pouco e continuou:

- Quanto ao seu segundo sonho, é tão impossível quanto ao outro. Não há chance de espécie alguma de você se casar com Terinia.

- Por quê?

- Por quê? Pelas mesmas razões que o impedem de ser médico. Vivemos de acordo com as regras impostas pelas nossas tradições. Minha filha tem de casar-se com alguém da mesma classe dela, alguém que possa mantê-la no mesmo estilo de vida em que foi criada. Terá de casar-se com um advogado, um médico ou um rabino. É melhor esquecer-se dela.

- Mas…

O médico levou-o até a porta do consultório.

- Mande alguém examinar essas talas dentro de alguns dias. Conserve limpas as ataduras.

- Está bem. Muito obrigado, Dr. Wal.

O médico olhou o garoto louro e o rosto inteligente que estava diante dele e murmurou:

- Adeus, Samuel Roffe.

Na tarde do dia seguinte, Samuel tocou a campainha da casa do Dr. Wal. O médico viu-o pela janela e pensou que devia dizer que não estava. Mas disse à empregada.

- Faça-o entrar.

Depois disso, Samuel passou a freqüentar a casa do Dr. Wal duas ou três vezes por semana. Dava recados e ia comprar coisas para o médico e este, em troca, deixava-o olhar enquanto ele atendia a clientes no consultório ou preparava medicamentos no laboratório. O garoto observava, aprendia e guardava tudo na memória. Tinha um talento natural, e o Dr. Wal experimentava um crescente sentimento de culpa, sabendo que estava erradamente incentivando Samuel a ser alguma coisa que ele nunca poderia ser.

Entretanto, não tinha ânimo de dissuadi-lo.

Fosse por acaso ou propositadamente, Terinia quase sempre ficava por perto quando Samuel estava presente. Quase sempre ele a via de relance passando pela porta do laboratório ou saindo de casa. Houve um dia em que esbarrou nela na cozinha e sentiu uma emoção tão forte que pensou que fosse desmaiar. Ela o olhou demoradamente, com um brilho de indagação nos olhos. Depois, teve um gesto frio de assentimento e afastouse, ao menos ela o havia notado! Era o primeiro passo. O resto seria apenas uma questão de tempo. Não havia a menor dúvida a esse respeito no espírito de Samuel. Era inevitável. Terinia participava agora dos sonhos de Samuel quanto ao futuro.

Antigamente, sonhava por ele mesmo; passou a sonhar pelos dois. De qualquer modo, sairia com ela daquele terrível gueto, daquela prisão imunda e atravancada. E seria um sucesso. Mas o sucesso não seria para ele apenas, e sim para os dois.

Ainda que tudo isso fosse impossível.

Elizabeth adormeceu lendo a história do velho Samuel. Quando acordou de manhã, escondeu cuidadosamente o Livro e começou a vestir-se para ir à escola. Mas não podia esquecer-se de Samuel. Como ele se casara com Terinia? Como conseguira sair do gueto? Como se tornara famoso?

Elizabeth estava empolgada com o Livro e se afligia com as lições que a levavam a abandoná-lo e a forçavam a voltar ao século XX. Entre as aulas que Elizabeth freqüentava, havia o balé, que ela detestava. Metia-se em sua malha cor-de-rosa e olhava-se no espelho, tentando convencer-se de que tinha um corpo voluptuoso. Mas a verdade estava ali diante de seus olhos. Era muito gorda e nunca seria uma bailarina.

Logo depois do décimo quarto aniversário de Elizabeth, Madame Netturova, a professora de balé, anunciou que dali a duas semanas as alunas dariam o seu recital anual de dança no auditório. As moças deviam convidar os pais, e, ao ouvir isso, Elizabeth ficou em estado de pânico. A simples idéia de aparecer em um palco diante do público enchia-a de medo. Nunca poderia fazer isso.

Uma criança estava atravessando a rua à frente de um carro. Elizabeth viu tudo, correu e salvou a menina das garras da morte. Infelizmente, minhas senhoras e meus senhores, os dedos dos pés de Elizabeth Roffe foram esmagados pelas rodas do carro e ela não poderá dançar no espetáculo desta noite. Uma empregada negligente deixou um pedaço de sabão no alto da escada. Elizabeth escorregou no sabão e rolou pela escada, luxando um osso do quadril. O médico diz que não é grave. Dentro de três semanas, estará inteiramente curada. Mas não teve essa sorte.

No dia do recital, Elizabeth gozava de boa saúde e estava num tremendo nervosismo. Mais uma vez, foi o velho Samuel que a ajudou. Lembrou-se de como, apesar de seu medo, ele tinha voltado para enfrentar o Dr. Wal. Ela não poderia fazer outra coisa que desmoralizasse seu trisavô. Preparou-se para enfrentar a tortura que a esperava. Nem falara ao pai sobre o recital. Todas as vezes que ela lhe havia falado em festa e reuniões da escola para as quais os pais eram convidados, ele alegara sempre que estava muito ocupado e não podia ir. Na noite em que Elizabeth se preparava para o recital de dança, ele voltou para casa.

Passara dez dias ausente da cidade. Passou pela porta do quarto dela, viu-a e disse:

- Boa noite, Elizabeth. Sabe que engordou mais um pouco?

- Sim, papai - disse ela, ficando vermelha e tentando encolher a barriga. Ele ia dizer alguma coisa, mas mudou de idéia.

- Tudo bem na escola?

- Tudo.

- Algum problema?

- Não, papai.

- Ótimo.

Era um diálogo que se havia repetido mais de cem vezes através dos anos, uma troca de palavras sem significado que parecia ser a única forma de comunicação entre eles. Era como dois desconhecidos que falassem do tempo, sem o menor interesse pela opinião um do outro.

Desta vez, porém, Sam Roffe olhou para a filha pensativamente. Estava habituado a lidar com problemas concretos e, embora sentisse que havia algum problema, não tinha idéia do que fosse. Se alguém lhe abrisse os olhos, limitaria-se a dizer: "Está muito enganado. Elizabeth tem tudo".

Quando o pai ia saindo, Elizabeth disse quase sem querer:

- Minha turma de balé vai dar um recital esta noite e eu vou dançar. Não quer ir ver?

Logo que disse as palavras, sentiu-se horrorizada. Não queria que o pai fosse ver sua falta de jeito. Por que falara? Bem sabia por quê. Ela seria a única aluna da turma cujos pais não estariam presentes no auditório. Aliás, o convite não tinha qualquer importância, pois ele ia dizer que não podia. Sacudiu a cabeça com raiva de si mesma e já ia se afastando quando ouviu atrás dela estas palavras do pai:

- Gostarei muito de ir.

O auditório estava cheio de pais, parentes e amigos, vendo as mocinhas dançarem ao som de dois grandes pianos de cauda, colocados um de cada lado do palco. Madame Netturova estava um pouco à frente, marcando o compasso em voz alta enquanto as alunas dançavam, chamando a atenção dos pais para ela própria. Algumas alunas eram muito graciosas e davam mostras de talento verdadeiro. As outras faziam os movimentos determinados, substituindo a competência pelo entusiasmo. O programa mimeografado anunciava trechos musicais de Copélia, Cinderela e O lago dos cisnes. A piéce de resistance seriam os solos, em que cada aluna teria sozinha o seu momento de glória.

Nos bastidores, Elizabeth estava tomada de verdadeira agonia. Esticando um pouco o corpo, podia ver a platéia, e, sempre que avistava o pai sentado no centro da segunda fila, pensava em como tinha sido tola em convidá-lo.

Até então, durante o recital, Elizabeth conseguira ficar em segundo plano entre as colegas que dançavam. Mas a hora do seu solo se aproximava. Ela se sentia enorme em sua malha como se fosse uma personagem de circo. Tinha certeza de que provocaria risos quando aparecesse no palco. E tinha convidado o pai para presenciar a sua humilhação!

O único consolo de Elizabeth era o fato de seu solo não durar mais de que um minuto. Madame Netturova não era louca. Tudo acabaria tão rapidamente que ninguém prestaria atenção nela. Bastaria que o pai de Elizabeth olhasse um instante para o lado e seu número teria terminado.

Elizabeth olhava as outras dançarem e todas lhe pareciam iguais a Markova, a Maximova, a Margot Fonteyn. Assustou-se ao sentir a mão fria em seus braços nus. Era Madame Matturova.

- Prepare-se, Elizabeth. é a sua vez. Elizabeth tentou dizer: "Sim, madame", mas estava com a garganta tão seca que não conseguiu articular as palavras.

As duas pianistas iniciaram os compassos conhecidos do solo de Elizabeth. Ela ficou no mesmo lugar, paralisada, sem poder se mover, enquanto Madame Netturova lhe sussurrava:

- Vamos! Comece!

Sentiu um leve empurrão nas costas e foi sair no palco, quase nua, diante de uma centena de pessoas estranhas e hostis. Não tinha coragem de olhar para o pai. Queria apenas livrar-se daquele tormento o mais depressa possível e fugir. O que tinha de fazer era simples: alguns pliés e saltos. Começou a dar os passos, acompanhando o compasso da música e tentando imaginar-se esbelta, elegante e ágil. Quando terminou, houve algumas palmas esparsas e formais. Elizabeth olhou para a segunda fila e viu que o pai batia palmas e sorria, contente. Ao ver que o pai aplaudia, alguma coisa se desprendeu dentro de Elizabeth. A música tinha cessado. Mas Elizabeth continuou a dançar, fazendo jetés, pliés, batteries e piruetas, transportada além de si mesma. As pianistas, confusas, tentaram acompanhá-la, primeiro uma, depois a outra. Nos bastidores, Madame Netturova, rubra de raiva, fazia desesperados sinais a Elizabeth para encerrar tudo e sair do palco. Mas Elizabeth, toda feliz, nem tomava conhecimento dela e continuou a dançar.

O que importava apenas era que ela estava no palco, dançando para o pai.

- Tenho certeza de que compreende, Sr. Roffe, que esta escola não pode tolerar esse tipo de comportamento. - A voz de Madame Netturova tremia de raiva. - Sua filha desprezou todas as pessoas presentes e tomou conta do palco… como se fosse uma estrela!

Elizabeth sentiu o pai voltar-se para ela e teve medo de olhá-lo. Sabia que o que fizera era imperdoável, mas não conseguira se conter. Por um momento, tentara criar no palco algumas coisas belas para o pai, a fim de que ele a visse e tivesse orgulho dela, dando-lhe então o seu amor. Ouviu o pai dizer:

- Tem toda a razão, Madame Netturova. Vou tomar providências para que Elizabeth seja devidamente punida. Madame Netturova envolveu Elizabeth num olhar de triunfo e disse:

- Muito obrigada, Sr. Roffe. Deixo-a em suas mãos.

Elizabeth e o pai saíram da escola. Ela não dissera uma só palavra desde que tinha deixado a sala de Madame Netturova. Elizabeth estava à procura de palavras com que pudesse pedir desculpas, mas o que poderia fazer? Como poderia seu pai compreender por que ela fizera aquilo? O pai era um estranho, e ela sentiu medo dele.

Ouvira repetidas vezes o pai descarregar a sua cólera nos empregados por enganos ou desobediências. Não podia esperar senão uma manifestação dessa mesma cólera.

- Elizabeth - disse finalmente o pai, voltando-se para ela -, acha que podemos passar pelo Rumpelmayer's e tomar um sorvete de chocolate com soda?

Elizabeth desatou a chorar. Estendeu-se na cama naquela noite com os olhos abertos, tão excitada que não conseguia dormir. Recordava sem cessar todos os acontecimentos daquela noite. A sua agitação era realmente excessiva. Nada daquilo era produto da sua imaginação. Tinha acontecido, era uma realidade.

Viu-se de novo sentada com o pai a mesa do Rumpelmayer's, cercada pelos grandes e pitorescos ursos, elefantes, zebras e leões empalhados. Pedira banana split, e, quando aquela coisa imensa chegara à mesa, o pai não havia feito a menor crítica. E, depois, conversava com ela, sem os monossílabos habituais. Falara da sua viagem a Tóquio, dissera que haviam servido, como pratos especiais, gafanhotos e formigas cobertos de chocolate e que ele tivera de fazer um grande esforço para comer aquilo e não ofender o seu anfitrião. Quando Elizabeth acabara o sorvete, o pai de repente perguntara:

- Por que você fez aquilo, Liz?

- Quis ser melhor do que todas as outras -dissera ela, mas não tivera coragem de acrescentar: "Por sua causa". Ele olhara para ela durante muito tempo, rira e dissera com uma nota de orgulho na voz:

- Você certamente surpreendeu todo mundo.

Elizabeth sentiu o sangue subir-lhe ao rosto e perguntou:

- Não ficou então zangado comigo?

Havia nos olhos dele um brilho que Elizabeth nunca tinha visto.

- Por querer ser melhor que os outros? Foi sempre isso que nós, Roffes, fizemos.

E apertara carinhosamente a mão dela. Os últimos pensamentos de Elizabeth antes de adormecer foram: "Meu pai gosta de mim, gosta mesmo de mim. De agora em diante, vamos viver sempre juntos. Ele me levará nas suas viagens. Conversaremos sobre todas as coisas e seremos bons amigos".

Na tarde seguinte, a secretária de seu pai informou-a de que tinham sido iniciados entendimentos para mandá-la para um internato na Suíça.

Capítulo 10 Elizabeth foi matriculada no International Château Lemand, uma escola para moças situada na aldeia de Saint-Blaise, às margens do lago de Neuchâtel. A idade das moças variava entre catorze e dezoito anos. Era uma das melhores escolas do excelente sistema educacional suíço.

Elizabeth odiou-a do princípio ao fim. Sentia-se exilada. Fora mandada para longe de casa e estava sofrendo um cruel castigo por um crime que não cometera. Aquela noite mágica parecera o início de alguma coisa maravilhosa, da descoberta recíproca do pai e dela, de uma amizade estreita com ele. Mas agora ele parecia mais distante que nunca.

Elizabeth seguia a vida do pai por intermédio dos jornais e revistas. Havia freqüentes notícias e fotografias dele, sendo recebido por um primeiro-ministro ou por um presidente, inaugurando uma nova fábrica de produtos farmacêuticos em Bombaim, escalando uma montanha ou jantando com o Xá do Ira.

Elizabeth colava tudo num caderno de recortes que constantemente olhava.

Guardava-o ao lado do Livro de Samuel. Elizabeth se mantinha afastada das outras alunas. Algumas viviam em quartos com duas ou três, mas Elizabeth pedira um quarto só para si. Escrevia longas cartas ao pai e depois rasgava as que revelava seus sentimentos. De vez enquanto recebia um bilhete dele e havia sempre alguns embrulhos vistosos de presentes de lojas caras no dia do seu aniversário, mandados pela secretária de seu pai. Elizabeth tinha muitas saudades dele. Iria vê-lo no Natal na villa de Sardenha, e, à medida que a época se aproximava, a espera se tornava quase intolerável. Chegara a passar mal de tanto nervosismo. Fez uma lista de suas resoluções, disposta a cumprilas fielmente: Não seja inoportuna. Procure ser interessante. Não se queixe de coisa alguma, especialmente da escola. Não o deixe saber que você se sente sozinha. Não o interrompa quando ele estiver falando. Tenha sempre boas maneiras, especialmente na hora do café da manhã. Ria muito para ele pensar que você é feliz.

Essas notas eram como uma prece, uma oferenda aos deuses. Se ela fizesse todas essas coisas, talvez… talvez… As resoluções de Elizabeth se esfumavam em fantasias. Ela teria profundas observações do Terceiro Mundo e os dezenove países em desenvolvimento, e o pai dela diria: "Não sabia que você era tão interessante (regra número 2). Você é brilhante, Elizabeth". Então, ele se voltaria para a secretária e diria:

"Não creio que Elizabeth precise voltar para a escola. Vai ficar aqui comigo". Uma prece, uma oferenda.

Um Learjet da companhia pegou Elizabeth em Zurique e transportou-a até o aeroporto de Olbia, onde uma limusine estava à sua espera. Elizabeth sentouse no carro em silêncio, com os joelhos bem juntos para não tremer. Aconteça o que acontecer, ele não me ver chorar, pensou Elizabeth. Nunca vai saber como tive saudades dele! O carro subiu pela longa e sinuosa estrada de montanha que levava à Costa Esmeralda, tomando então a pequena estrada que conduzia até ao topo. Aquela estrada sempre amedrontava Elizabeth. Era muito estreita e íngreme, com a montanha de um lado e um abismo do outro. O carro parou diante da casa, e Elizabeth saltou, começando a caminhada em direção à casa, e depois correu tanto quanto lhe permitiam as pernas. A porta se abriu e Margherita, a cozinheira, apareceu, sorridente.

- Alô, Senhorita Elizabeth.

- Onde está meu pai? - perguntou Elizabeth.

- Teve de ir à Austrália para resolver um caso urgente. Mas deixou belos presentes.

Vai ser um Natal muito feliz.

Capítulo 11 Elizabeth havia levado o Livro. Um dia, ficou diante dos retratos de Samuel e Terinia Roffe, sentindo-lhes a presença como se tivessem voltado à vida. Depois de algum tempo, subiu a escada para a sala de torre, levando o Livro. Ficava ali durante horas todos os dias, lendo e relendo as suas páginas. De cada vez, sentia-se mais perto de Samuel e Terinia, como se não houvesse um século de intervalo entre eles.

Elizabeth leu que nos anos que se seguiram Samuel passou muitas horas no laboratório do Dr. Wal, ajudando o médico a preparar ungüentos e outros medicamentos e apreendendo enquanto trabalhavam. E sempre no fundo de tudo estava Terinia, obsecante, linda. Vê-la era o bastante para alimentar o sonho de Samuel de que um dia ela lhe pertenceria. Samuel se entendia muito bem com o Dr. Wal, mas com a mãe de Terinia a história era bem diferente. Tratava-se de uma mulher irascível, ferina e esnobe.

Detestava Samuel e ele procurava manter-se o mais afastado possível dela.

Samuel ficava fascinado pelas muitas substâncias terapêuticas usadas através dos tempos. Fora encontrado um papiro que relacionava oitocentas e onze receitas usadas pelos egípcios no ano 1550 antes de Cristo. A expectativa de vida nessa época era de quinze anos, e Samuel compreendeu a razão desses números ao ler algumas receitas: excremento de crocodilo, carne de lagarto, sangue de morcego, saliva de camelo, fígado de leão, patas de rã e pó de unicórnio. O sinal Rx1 usado em muitas receitas era uma invocação antiga a Hórus, o deus egípcio da saúde. A própria palavra "química" derivada do antigo nome Egito, a terra de Kahmi ou Chemi. Os sacerdotes médicos eram chamados de magos.

As farmácias no gueto e na própria Cracóvia eram primitivas. Quase todos os vidros e potes continham medicamentos que nunca tinham sido analisados e devidamente experimentados. Alguns eram inúteis, outros, nocivos. Samuel conhecia todos. Havia óleo de rícino, calomelanos, ruibarbos, composto de iodo, codeína e ipecacuanha.

Compravam-se panacéias para coqueluche, cólicas e tifo.

Como não havia precauções higiênicas, era comum encontrar ungüentos e gargarejos cheios de insetos mortos, baratas, excremento de ratos e pedaços de pernas e peles. Quase todos os doentes que tomavam esses remédios morriam ou das doenças ou dos remédios. Havia várias revistas dedicadas a assuntos farmacêuticos, e Samuel lia-as todas com avidez.

Discutia as suas teorias com o Dr. Wal. - é claro - dizia ele com voz vibrante de convicção - que deve haver uma cura para cada doença. A saúde é natural, a doença, não.

- Pode ser - dizia o Dr. Wal -, mas os meus clientes não me permitem experimentar novos medicamentos neles. E acho que estão certos.

Samuel devorou os poucos livros do Dr. Wal sobre farmacologias. Depois de ler e reler esses livros, sentiu-se frustrado diante da falta de resposta para as questões suscitadas. Samuel ficou entusiasmado com uma revolução que se vinha verificando.

Alguns cientistas pensavam que era possível combater as causas das doenças criando uma resistência do organismo contra elas. O Dr. Wal tentou isso uma vez. Extraiu sangue de um doente com difteria e injetou em um cavalo. Quando o cavalo morreu, o Dr. Wal abandonou a experiência. Mas o jovem Samuel estava convencido de que o Dr. Wal havia tomado o caminho certo. O Dr. Wal sacudiu a cabeça.

- Você fala assim porque tem dezessete anos, Samuel. Quando chegar à minha idade, não terá mais certeza de coisa alguma. Não pense mais nisso.

Essas palavras não convenceram Samuel. Queria prosseguir nas experiências, mas para isso precisava de animais e poucos havia à sua disposição, salvo os gatos e ratos que conseguia apanhar. Todos eles morriam, por menores que fossem as doses que Samuel lhes aplicasse. Os animais eram muito pequenos, pensava Samuel.

Precisava de um maior, um cavalo, um boi ou um carneiro. Mas onde encontrá-lo?

Uma tarde, quando Samuel voltou para casa, encontrou um velho cavalo atrelado a uma carroça em frente à porta. Num dos lados da carroça estava pintado com letras toscas o letreiro: Roffe and Sons. Samuel olhou para tudo sem acreditar, e correu para dentro de casa, onde estava o pai.

- Aquele cavalo lá fora… onde o conseguiu?

O pai dele sorriu todo orgulhoso.

- Fiz uma compra. Podemos cobrir mais território com um cavalo. Talvez daqui a quatro ou cinco anos possamos comprar outro cavalo. Imagine só. Teremos dois cavalos!

Era até onde iam as ambições de seu pai. Queria possuir dois cavalos velhos e cansados para arrastar carroças com mercadorias pelas ruas sujas e atravancadas do gueto de Cracóvia. Samuel teve vontade de chorar. Naquela noite, quando todos dormiam, Samuel foi até a estrebaria e examinou o cavalo, a que tinham dado o nome de Fred.

Em matéria de cavalos, aquele era sem dúvida um dos mais fracos da espécie.

Era muito velho, desancado e com tumores nas pernas. Talvez não pudesse andar muito mais depressa que o pai de Samuel. Mas nada disso importava.

O essencial era que Samuel já dispunha de uma cobaia. Podia fazer as suas experiências sem se preocupar em apanhar gatos vadios e ratos. É claro que teria de ter cuidado. Seu pai nunca poderia saber o que ele estava fazendo. Samuel afagou a cabeça de Fred e informou-lhe:

- Você vai entrar no negócio de farmácia.

Samuel improvisou o seu laboratório em um canto da estrebaria onde Fred era guardado. Desenvolveu uma cultura de germes de difteria em um prato fundo. Quando o caldo ficou denso, transferiu-o para outro recipiente, diluindo-o e em seguida aquecendo-o ligeiramente. Encheu a seringa e aproximou-se de Fred.

- Lembra-se do que eu lhe disse? Hoje é o seu grande dia.

Samuel injetou o líquido na espádua do cavalo, como virá o Dr. Wal fazer. Fred voltou para ele os olhos tristes e respingou-o de urina. Samuel estimou que a cultura levaria setenta e duas horas para desenvolver-se em Fred. Ao fim desse tempo, lhe daria uma dose mais forte. Se a teoria dos anticorpos fosse correta, cada dose criaria uma resistência maior do sangue à doença, e Samuel teria a sua vacina. Mais tarde, teria de encontrar um ser humano em que pudesse experimentar a vacina, mas isso não seria difícil. Qualquer vítima da temida doença experimentaria pressurosamente qualquer coisa capaz de salvarlhe a vida.

Nos dois dias seguintes, Samuel passou com Fred quase todos os momentos em que esteve acordado.

- Nunca vi ninguém gostar tanto de um animal! - disse-lhe o pai. - Não consegue deixar Fred, não é?

Samuel murmurou uma resposta inteligente. Tinha um sentimento de culpa a respeito do que estava fazendo, mas sabia o que iria acontecer se mencionasse o caso a seu pai. Tudo o que Samuel tinha de fazer era extrair sangue de Fred para encher um ou dois vidros de soro, e ninguém saberia de nada. Na manhã do terceiro dia, que era decisivo, Samuel foi despertado pela voz do pai diante da casa. Samuel levantou-se e correu para a janela. O pai estava no meio da rua, com sua carroça, berrando com toda força de seus pulmões. Não havia nem sinal de Fred. Vestiu-se de qualquer maneira e saiu.

- Momser! - gritava o pai. - Tratante! Mentiroso! Ladrão!

Samuel passou por entre a multidão que começava a reunir-se em torno de seu pai.

- Onde está Fred? - perguntou Samuel.

- Ainda me pergunta? Morreu. Morreu na rua como um cachorro. Samuel sentiu um baque no coração.

- Nós íamos bem calmamente. Eu estava tratando dos meus negócios, sem fazer o bichinho correr, sem bater nele, nem maltratá-lo, como fazem outros ambulantes que conheço. E o que foi que aconteceu? Caiu morto de repente. Quando eu pegar o gonif que me vendeu o cavalo, vou matá-lo.

Samuel afastou-se, desolado. Junto com Fred, morrera também os seus sonhos.

Com Fred desaparecia a esperança de fugir do gueto e de libertar-se, de ter uma bela casa para Terinia e seus filhos. Mas uma calamidade ainda maior estava por acontecer.

No dia seguinte ao da morte de Fred, Samuel soube que o Dr. Wal e a mulher tinham combinado o casamento de Terinia com um rabino. Samuel não acreditou. Era a ele que Terinia pertencia! Correu para a casa do Dr. Wal. Encontrou o médico e sua mulher na sala de espera. Encaminhou-se para eles, respirando fundo e disse:

- Há um erro em tudo, no que diz respeito a Terinia. Ela vai se casar comigo! - Os dois olharam-no atônitos. - Sei muito bem que não estou à altura dela - disse então. - Mas ela não será feliz, casada com outro homem qualquer. Esse tal rabino é muito velho e…

- Nebbich! Rua! Rua! - gritou a mãe de Terinia, à beira de um ataque de apoplexia.

Sessenta segundos depois, Samuel estava no meio da rua, proibido de tornar a pôr os pés naquela casa. No meio da noite, Samuel teve uma longa conversa com Deus.

- Que está querendo de mim? Se eu não posso ter Terinia, por que me fez amá-la?

Não tem sentimentos? - Ergueu a voz na sua frustração e gritou: -Ser que está me ouvindo?

Na casinha cheia de gente, todos gritaram:

- Estamos ouvindo, sim, Samuel! Pelo amor de Deus, veja se cala a boca e nos deixa dormir!

Na tarde seguinte, o Dr. Wal mandou chamar Samuel. Foi recebido na sala de espera, onde estavam reunidos o Dr. Wal, a mulher e Terinia.

- Parece que temos um problema - disse o Dr. Wal. - Nossa filha está irredutível.

Por alguma razão que desconheço, tomou-se de um capricho por você. Não posso chamar isso de amor, Samuel, até porque não acredito que uma mocinha da idade dela saiba o que é amor. De qualquer maneira, ela não quer casar-se com o rabino Rabinowitz. Acha que deve casar-se com você.

Samuel olhou rapidamente para Terinia, e esta sorriu para ele. Sentiu uma explosão de alegria, que, entretanto, durou pouco. O Dr. Wal continuou:

- Você diz que ama nossa filha.

- É v-v-verdade - gaguejou Samuel e procurou falar com mais firmeza. - é isso mesmo, Dr. Wal.

- Muito bem, Samuel. Acha que Terinia poder passar o resto da vida casada com um vendedor ambulante?

Samuel percebeu no mesmo instante a armadilha, mas não viu jeito de livrar-se dela. Tornou a olhar para Terinia e disse:

- Não, Dr. Wal.

- Compreende então o problema, não é? Nenhum de nós quer que Terinia se case com um vendedor ambulante. E você é um vendedor ambulante, Samuel.

- Mas não serei sempre, Dr. Wal - disse Samuel, com voz forte e segura.

- E que vai ser então? -perguntou a mãe de Terinia. - Você pertence a uma família de vendedores ambulantes, que nunca serão mais que isso. E eu não vou consentir que minha filha se case com um vendedor ambulante.

Samuel olhou para as três pessoas reunidas naquela sala, com apreensão e desespero, vira-se elevado às culminâncias da alegria e, naquele momento, era de novo mergulhado em um torvo abismo. O que queriam dele?

- Vamos fazer um trato - disse o Dr. Wal. - Nós lhe daremos um prazo de seis meses para provar que não é apenas um vendedor ambulante. Se não o provar, ao fim desse tempo, ela se casará com o rabino Rabinowitz.

Samuel olhou-o, atarantado.

- Seis meses? Ninguém poderia ter sucesso em seis meses, principalmente vivendo no gueto de Cracóvia.

- Estamos entendidos? - disse o Dr. Wal.

- Perfeitamente. Sim, Samuel entendia tudo muito bem. Sentia uma contração dolorosa no estômago. Não precisava de uma solução, mas de um milagre. A família de Terinia só se contentaria com um genro que fosse médico, rabino ou rico. Samuel examinou prontamente todas as possibilidades. A lei impedia-o de ser médico. Ser rabino? Começava-se a estudar para ser rabino aos treze anos de idade, e Samuel já estava com quase dezoito. Rico? Era uma coisa fora de cogitação. Se trabalhasse vinte e quatro horas por dia vendendo suas mercadorias como ambulante pelas ruas do gueto, até aos noventa anos, não deixaria de ser um homem pobre. Os Wals lhe haviam proposto uma tarefa impossível. Tinham aparentemente cedido a Terinia, concordando em adiar o casamento dela com o rabino, impondo, porém, condições que sabiam que Samuel não poderia cumprir. Terinia era a única pessoa que acreditava nele. Confiava em que ele conseguisse de algum modo a fama ou a fortuna dentro de seis meses. É mais louca do que eu, pensou desesperadamente Samuel.

O tempo começou a correr. Samuel passava os dias como vendedor ambulante, ajudando o pai. Mas no momento em que as sombras do poente começavam a cair sobre os muros do gueto, ele corria para casa, comia alguma coisa depressa e ia trabalhar no seu laboratório. Preparava centenas de frascos de soro e o injetava em coelhos, gatos, cães e pássaros, mas todos morriam.

São muito pequenos, pensava Samuel. Preciso de um animal maior. Mas não o conseguia, e o tempo ia passando. Duas vezes por semana, Samuel ia a Cracóvia para renovar o estoque de mercadorias que ele e o pai vendiam. Chegava ao amanhecer diante dos portões fechados e ali ficava à espera, cercado pelos outros ambulantes. Mas não os via nem ouvia uma voz áspera que lhe dizia:

- Vamos, judeu! Vá andando!

Samuel levantou os olhos. Os portões tinham sido abertos, e sua carroça estava impedindo a passagem. Um dos guardas, muito zangado, lhe ordenava que prosseguisse.

Havia sempre dois guardas em serviço diante dos portões. Usavam fardas verdes com insígnias especiais e andavam armados de pistolas e pesados cassetetes. Numa corrente pendurada na cintura, um deles levava a chave dos portões. ao lado do gueto, corria um pequeno rio sobre o qual havia uma velha ponte de madeira. Do outro lado da ponte, estava o posto de polícia, onde os guardas ficavam estacionados.

Samuel vira mais de uma vez um judeu infortunado ser arrastado pela ponte. Era sempre uma viagem sem volta. Os judeus tinham de estar no interior do gueto ao escurecer, e qualquer judeu surpreendido fora dos portões depois que a noite caísse era capturado e deportado para um campo de trabalho, Todos os judeus viviam apavorados com a perspectiva de serem encontrados fora do gueto depois do anoitecer. Os dois guardas eram obrigados a passarem as noites diante dos portões, em serviço de patrulha. Mas todos os habitantes do gueto sabiam que, logo que os judeus eram trancados, um dos guardas saía dali e ia passar a noite divertindo-se na cidade. Pouco antes do amanhecer, voltava para ajudar o companheiro a abrir os portões para um novo dia.

Os dois guardas habitualmente postados nos portões chamavam-se Paul e Aram.

Paul era um homem agradável e sempre de bom humor. Aram era inteiramente diferente dele. Homem rude, robusto e forte, com braços vigorosos e um corpo que parecia um barril de cerveja, odiava os judeus. Sempre que estava de serviço, todos os judeus que se achavam fora do gueto faziam questão de voltar a tempo, pois nada encantava mais Aram do que encontrar um judeu do lado de fora, espancá-lo até fazê-lo perder os sentidos e então levá-lo através da ponte para o temido quartel da polícia. Era Aram que estava gritando com Samuel para que tirasse sua carroça do caminho.

Samuel passou pelos portões e dirigiu-se para a cidade, sentindo o olhar de ódio de Aram.

O período de seis meses concedidos a Samuel minguou rapidamente para cinco meses, depois para quatro, e três. Não havia um só dia, não havia sequer uma hora em que Samuel não pensasse em uma solução para o seu problema, mesmo quando estava trabalhando febrilmente no seu diminuto laboratório. Tentou falar com alguns negociantes ricos do gueto, mas poucos tinham tempo para recebê-lo e os que o recebiam só estavam dispostos a darlhe conselhos inúteis.

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