- Quer ganhar dinheiro? Trate de economizar os níqueis, meu jovem, e um dia você terá o suficiente para montar um bom negócio como o meu. Era muito fácil dizer isso, pois quase todos tinham tido pais ricos. Samuel pensou em raptar Terinia e fugir.
Mas, para onde? Ao fim de qualquer viagem que fizessem, haveria outro gueto, e ele continuaria a ser um nebbich sem dinheiro. Não, ele amava demais Terinia para fazer isso com ela. Via-se em uma armadilha da qual não era possível fugir. O tempo corria inexoravelmente, e os três meses se tornaram dois e, por fim, só restou um mês. O único consolo de Samuel era que, durante esse tempo, ele tinha permissão de ver sua adorada Terinia três vezes por semana, sempre sob a vigilância de alguém, evidentemente, e a cada vez que Samuel a via, mais a amava.
Era um prazer agridoce, pois a cada encontro ficava mais próximo o momento em que iria perdê-la para sempre.
- Eu sei que você vai achar um jeito - não se cansava de dizer Terinia. Mas faltavam apenas três semanas, e Samuel não estava mais perto de uma solução do que quando tinha começado. Em uma noite, já bem tarde, Terinia procurou Samuel na estrebaria. Abraçou-o e disse:
- Vamos fugir, Samuel.
Ele nunca a amara tanto quanto a amou nesse momento ao ver que, por amor a ele, ela estava disposta a ficar desmoralizada, a abandonar o pai e a mãe e a desistir da boa vida que levava. Tomou-a nos braços, e disse:
- Não podemos, Terinia. Para onde quer que eu vá, nunca deixarei de ser um vendedor ambulante.
- Não me importo.
Samuel pensou na bela casa onde ela morava, cheia de salas espaçosas e de empregados e se lembrou do quartinho sórdido em que ele morava com o pai e a tia.
- Mas eu me importo, Terinia.
E ela se afastou. Na manhã seguinte, encontrou-se com Isaac, que tinha sido seu colega de escola e levava uma égua por um cabresto. O animal era cego de um olho, sofria de cólicas e de esparavões, sendo ainda por cima surdo.
- Bom dia, Samuel.
- Bom dia, Isaac. Não sei para onde vai com esse animal, mas é melhor andar depressa. Ele pode morrer a qualquer momento.
- Não é preciso que viva muito. Vou levar Lottie para uma fábrica de cola. Samuel olhou a velha égua com súbito interesse.
- Não creio que vão lhe pagar muito por ela.
- Sei disso. Quero apenas dois florins para comprar uma carroça. O coração de Samuel começou a bater com mais força.
- Quem sabe eu não possa lhe poupar a viagem? Estou disposto a trocar minha carroça pela égua.
Depois disso, Samuel tinha apenas de fazer outra carroça e explicar ao pai como perdera a velha e se tornar dono de um animal que estava nas ultimas. Samuel levou Lottie para a estrebaria. Examinando a égua, viu que o estado dela era bem pior do que havia julgado, mas afagou o animal e disse:
- Não se preocupe, Lottie. Você vai entrar para a história da medicina. Poucos minutos depois, Samuel começou a trabalhar em um novo soro.
Em vista das condições insalubres e do super povoamento do gueto, as epidemias eram freqüentes. A última peste consistia em uma febre que produzia tosse sufocante, ingurgitamento dos gânglios e uma morte dolorosa. Os médicos desconheciam a sua causa, e não tinham qualquer idéia do tratamento. O pai de Isaac contraiu a doença. Logo que Samuel soube disso, foi procurar Isaac.
- O médico já esteve aqui - afirmou o rapaz, chorando. -Disse que nada pode fazer. Do alto da casa, vinha o terrível som da tosse, que parecia prolongar-se indefinidamente.
- Quero que faça uma coisa para mim, Isaac - disse Samuel. - Consigame um lenço de seu pai.
- O quê?
- Quero um lenço que ele tenha usado. Mas todo o cuidado será pouco da sua parte. O lenço dever estar cheio de germes.
Uma hora depois, Samuel estava de volta à estrebaria e despejava cuidadosamente o conteúdo do lenço em um prato cheio de caldo de cultura.
Trabalhou durante toda a noite e todo o dia seguinte, injetou pequenas doses de substâncias na paciente Lottie. Depois aumentou as doses, lutando contra o tempo para tentar salvar a vida do pai de Isaac. Para tentar salvar a própria vida.
Samuel nunca pôde ter certeza posteriormente de que Deus houvesse protegido a ele ou à velha égua, mas a verdade é que Lottie sobreviveu às doses cada vez maiores, e Samuel conseguiu a sua primeira partida de antitoxina. A tarefa seguinte era convencer o pai de Isaac a consentir na aplicação dessa substância.
Na realidade, não foi preciso convencê-lo. Quando Samuel chegou à casa de Isaac, havia muitos parentes que já esperavam a morte do homem doente no andar de cima.
- Resta-lhe pouco tempo de vida - disse Isaac a Samuel.
- Posso vê-lo?
Os dois rapazes subiram. O pai de Isaac estava estendido na cama, com o rosto afogueado pela febre. Cada acesso de tosse sacudia o corpo depauperado, levando-o a um espasmo que o enfraquecia ainda mais. Era evidente que estava morrendo, Samuel respirou fundo e disse:
- Quero falar com você e sua mãe.
Não tinham confiança alguma no pequeno vidro que Samuel tinha levado, mas, ante a iminência da morte, concordaram com a aplicação do remédio, simplesmente porque não havia mais nada a perder. Samuel injetou o soro no pai de Isaac. Esperou três horas à cabeceira da cama e não houve qualquer alteração. O soro não estava fazendo efeito. Entretanto, os acessos de tosse pareciam menos freqüentes. Por fim, Samuel saiu, evitando olhar para Isaac. Tinha de ir a Cracóvia ao amanhecer do dia seguinte, para comprar mercadorias.
Estava numa impaciência febril por voltar e ver se o pai de Isaac ainda estava vivo.
Havia muita gente em todos os mercados, e Samuel demorou muito para fazer as compras. Só no fim da tarde conseguiu afinal encher a carroça e voltar para o gueto.
Quando Samuel estava ainda a três quilômetros dos portões, houve o desastre. Uma das rodas da carroça se quebrou e as mercadorias começaram a espalhar-se pelo chão.
Samuel viu-se diante de um terrível dilema. Tinha de ir procurar uma roda para substituir a quebrada, e ao mesmo tempo, não podia deixar a carroça com as mercadorias abandonadas. Estava começando a juntar gente, e era visível o olhar de avidez que muitos lançavam para as mercadorias caídas. Samuel viu um guarda de uniforme aproximar-se, um gentio, e compreendeu que estava perdido. Iam tomar-lhe tudo. O guarda abriu caminho entre os curiosos e disse ao apavorado rapaz:
- Sua carroça precisa de uma roda nova.
- É… é verdade.
- Sabe onde encontrar uma?
- Não, senhor. O guarda escreveu alguma coisa em um pedaço de papel.
- Vá procurar este homem. Diga a ele o que precisa.
- Mas eu não posso deixar o carro aqui assim.
- Pode, sim - disse o guarda. -Eu vou ficar aqui. Ande depressa!
Samuel saiu correndo. Seguindo o endereço do papel, chegou a oficina de ferreiro.
Quando Samuel explicou a situação, o ferreiro encontrou uma roda do tamanho exato para a carroça. Samuel pagou a roda, tirando o dinheiro de uma sacola que levava.
Depois dessa despesa, ficou apenas com uma dúzia de florins. Correu para a carroça, rolando a roda pelo chão. O guarda ainda estava lá e os curiosos haviam se dispersado.
As mercadorias estavam a salvo. Com a ajuda do guarda, levou mais meia hora para colocar a nova roda e prendê-la.
Retomou o caminho de casa, pensando no pai de Isaac. Iria encontrá-lo vivo ou morto? A incerteza enchia-o de dolorosa ansiedade. Já estava apenas a um quilômetro do gueto. Podia avistar os altos muros que se erguiam contra o céu. Mas, nesse momento, o sol desapareceu no horizonte e as ruas por onde ele passava mergulharam na escuridão.
Na agitação de tudo o que havia acontecido, Samuel se esquecera da hora.
Já havia escurecido e ele ainda estava fora dos portões! Começou a correr, empurrando a pesada carroça, com o coração batendo como se fosse saltar-lhe do peito.
Os portões deviam estar fechados. Samuel pensou em todas as coisas terríveis que se contavam de judeus que tinham ficado do lado de fora dos portões. Correu mais depressa. Com certeza, só um guarda devia estar de serviço. Se fosse Paul, o bom homem, Samuel poderia ter uma oportunidade. Mas, se fosse Aram, não era bom nem pensar no que lhe poderia acontecer.
A escuridão era mais densa e o envolvia como um nevoeiro negro, ao mesmo tempo em que uma leve chuva começava a cair. Samuel se aproximava dos muros do gueto e, de repente, avistou os grandes portões. Já estavam trancados. Era a primeira vez que os via fechados do lado de fora. Foi como se de súbito a vida lhe tivesse deixado o corpo, e Samuel começou a tremer de terror. Estava separado de sua família, do seu mundo, de tudo aquilo que lhe era íntimo e familiar.
Diminuiu o passo e se aproximou dos portões cautelosamente, esperando pelos guardas. Não os via e encheu-se de uma súbita esperança delirante. Os guardas talvez tivessem sido chamados para alguma emergência. Samuel descobriria um meio de abrir os portões ou de escalar o muro sem ser visto. Ao se aproximar dos portões, viu o vulto de um guarda emergir das sombras.
- Continue a andar - ordenou o guarda. Na escuridão, Samuel não podia ver o rosto dele. Mas reconheceu a voz. Era Aram. - Venha até aqui. Aram olhava Samuel com um sorriso de satisfação no rosto. O rapaz tropeçou. - Pise firme - disse Aram para animá-lo. - Continue a caminhar.
Samuel se aproximou lentamente do gigante, com o estômago contraído e a cabeça latejando.
- Posso explicar tudo… Tive um acidente. Minha carroça…
Aram estendeu o braço forte, agarrou Samuel pela gola e suspendeu-o no ar.
- Judeu imundo! - exclamou ele. - Pensa que eu quero saber por que você ficou do lado de fora? Sabe o que é que vai acontecer com você agora? O rapaz sacudiu a cabeça cheio de terror. - Pois eu vou lhe dizer. Temos um novo decreto nesta semana. Todos os judeus capturados fora dos portões depois do escurecer serão deportados para a Sibéria.
Dez anos de trabalhos forçados. Que tal? Samuel não pôde acreditar.
- Mas… mas eu não fiz nada…
Aram deu um tapa com a mão direita na boca de Samuel, que foi ao chão, e em seguida disse:
- Vamos.
- Para… onde? -perguntou Samuel com a voz embargada de terror.
- Para o quartel. Amanhã de manhã será embarcado com o resto da ralé. Levantese.
Samuel caíra com o tapa e estava ali, incapaz de coordenar os seus pensamentos.
- Eu… eu tenho de entrar para despedir-me de minha família. Aram riu.
- Ninguém vai sentir sua falta.
- Por favor! Deixe-me ir até lá. Deixe-me pelo menos mandar um recado.
O sorriso desapareceu do rosto de Aram. Cresceu ameaçadoramente para Samuel, mas falou com voz suave:
- Mandei que você se levantasse, judeu imundo. Se eu tiver de dar-lhe a ordem outra vez, será a pontapés.
Samuel levantou-se lentamente. Aram agarrou-lhe o braço com mãos de ferro e começou a levá-lo para o quartel da polícia. Dez anos de trabalhos forçados na Sibéria!
Ninguém jamais voltara da Sibéria. Olhou para o homem que o levava pela ponte para o quartel da polícia.
- Não faça isso - disse Samuel. - Solte-me.
Aram apertou o braço de Samuel com mais força, a tal ponto que deu a impressão de que o sangue deixara de correr.
- Peça mais, implore mais! - disse Aram. - Não há nada de que eu goste mais do que ouvir as súplicas de um judeu. Sabe alguma coisa sobre a Sibéria? Vai chegar lá a tempo de passar o inverno. Não se preocupe. Dentro das minas, você vai sentir calor. Só quando seus pulmões estiverem pretos de tanto carvão, e você começar a vomitá-lo em acessos de tosse, tirarão você de lá para morrer em cima da neve.
À frente deles, do outro lado da ponte, quase invisível sob a chuva, estava a lúgubre construção, o quartel da polícia.
- Mais depressa! - gritou Aram. Samuel percebeu de repente que não podia deixar que ninguém fizesse aquilo com ele. Pensou em Terinia, em sua família, no pai de Isaac.
Ninguém iria roubar-lhe a vida. Fosse como fosse, tinha de fugir para salvar-se.
Estava atravessando a estreita ponte, sob a qual o rio corria cuidadosamente, engrossado pelas chuvas de inverno. Restavam apenas uns trinta metros. O que tivesse de ser feito deveria ser naquele momento.
Mas como seria possível fugir? Aram tinha uma pistola, e ainda que não estivesse armado, poderia matá-lo com a maior facilidade. Era quase duas vezes maior que Samuel e muito mais forte. Tinham chegado ao outro lado da ponte, e o quartel estava bem diante deles.
- Ande depressa - disse Aram, puxando Samuel pelo braço. - Tenho outras coisas para fazer.
Estavam tão perto que Samuel podia ouvir os risos dos guardas lá dentro. Aram começou a arrastar o rapaz pelo pátio calçado que ficava diante do quartel. Faltava apenas alguns segundos, e Samuel levou a mão direita ao bolso, pegando o bornal em que levava cerca de meia dúzia de florins.
Fechou-o na mão e sentiu no seu nervosismo o sangue correr-lhe mais depressa nas veias. Tirou cuidadosamente o bornal do bolso, puxando então os cordões que o fechavam, e deixou-o cair. Ele caiu sobre as pedras, fazendo tilintar as moedas. Aram parou de repente.
- Que foi isso?
- Nada - respondeu prontamente Samuel.
Aram olhou para o rapaz e riu. Sem deixar de segurar firmemente Samuel, deu um passo para trás e viu o bornal de dinheiro aberto.
- Você não precisar de dinheiro no lugar aonde vai - disse Aram. Curvou-se para apanhar o bornal e Samuel acompanhou-o.
Mas não era o bornal que Samuel queria e, sim, uma grande pedra que estava no chão. Quando Aram levantou o corpo, Samuel bateu com a pedra no olho direito de Aram com toda a força, transformando-o numa posta de sangue. Continuou a bater desesperadamente no rosto e na cabeça. Viu o nariz do guarda afundar, depois a boca e, por fim, todo o rosto virou uma massa sangrenta. Mas Aram continuava de pé como se fosse algum monstro cego. Samuel olhava-o, cheio de medo, sem coragem de bater de novo. Então, lentamente, o gigantesco corpo começou a cair.
Samuel olhou para o guarda morto, sem poder acredita no que havia feito. Ouviu vozes no quartel e compreendeu o terrível perigo em que ainda se encontrava. Se o capturassem naquele momento, não o mandariam para a Sibéria. Tratariam de esfolá-lo e enforcá-lo em praça pública. A pena por bater num policial era simplesmente a morte. E Samuel matara um deles. Tinha de fugir rapidamente. Poderia tentar atravessar a fronteira, mas, nesse caso, seria um fugitivo perseguido pelo resto da vida. Deveria haver outra solução.
Olhou para o corpo desfigurado e percebeu de repente o que devia fazer. Revistou o guarda até encontrar a grande chave que abria os portões. Depois, dominando a repulsa que sentia, agarrou as botas de Aram e começou a puxar o guarda para a margem do rio. O morto parecia pesar uma tonelada. Samuel continuou a puxar, estimulado pelo barulho que vinha do quartel. Alcançou a margem do rio. Parou um momento para recuperar o fôlego. Depois, empurrou o corpo pela ribanceira e viu-o cair nas águas tumultuosas embaixo.
Continuou inclinado sobre a margem por um tempo que lhe pareceu uma eternidade e, por fim, viu o corpo ser levado pelo rio e desaparecer.
Ali ficou algum tempo como que hipnotizado, cheio de horror pelo que havia feito.
Apanhou a pedra que tinha usado e jogou-a na água. Mas ainda corria enorme perigo.
Atravessou a ponte e voltou correndo para os grandes portões trancados no gueto. Não havia ninguém à vista. Com os dedos trêmulos, girou a chave na fechadura dos portões e empurrou-os.
Nada aconteceu. Eram pesados demais. Mas naquela noite nada era impossível para Samuel. Com uma força que parecia vir de fora dele, conseguiu por fim abri-los.
Empurrou a carroça para dentro, fechou os portões e foi correndo para casa. Todos os moradores da casa estavam reunidos na sala e, quando Samuel apareceu, olharam para ele como se fosse um fantasma.
- Deixaram você entrar!
- Não compreendo - murmurou o pai.
- Pensávamos que você…
Samuel explicou em breves palavras o que havia acontecido, e a preocupação de todos se transformou em terror.
- Meu Deus! - exclamou o pai de Samuel. - Todos nós seremos mortos!
- Nada acontecerá se me escutarem - disse Samuel, e expôs o seu plano. Quinze minutos depois, Samuel, o pai e dois vizinhos estavam juntos aos portões do gueto.
- E se o outro guarda voltar? - perguntou num sussurro o pai de Samuel.
- É um risco que temos de correr. Mas, se isso acontecer, eu assumirei toda a culpa.
Samuel abriu os portões e passou para o lado de fora. Colocou a grande chave na fechadura e deu a volta. Os portões do gueto estavam trancados pelo lado de fora.
Samuel amarrou a chave a cintura e deu alguns passos à esquerda dos portões. Um momento depois, uma corda deslizou pelo muro como uma cobra. Samuel agarrou-se a ela, enquanto do outro lado seu pai e os outros começaram a içá-lo. Quando Samuel chegou ao alto, prendeu a corda a uma escápula de ferro e desceu até o chão. Em seguida, sacudiu a corda até desprendê-la e puxou-a.
- Meu Deus! -exclamou o pai de Samuel. -Que irá acontecer amanhã cedo? - Estaremos batendo nos portões e pedindo que nos deixem sair - respondeu Samuel.
Ao amanhecer, o gueto estava cheio de polícias e soldados. Tiveram que descobrir uma chave especial para abrir os portões para os negociantes que queriam ir a Cracóvia.
Paul, o outro guarda, confessou que havia abandonado o posto para ir passar a noite em Cracóvia e foi imediatamente preso. Mas isso não resolvia o mistério do desaparecimento de Aram. Em geral, o desaparecimento de um guarda nas proximidades do gueto seria um excelente pretexto para um progrom. Mas a polícia se achava perplexa diante dos portões fechados. Como os judeus estavam trancados dentro do gueto, era evidente que nada podiam ter feito ao guarda.
Chegaram afinal à conclusão de que Aram devia ter fugido em companhia de uma das suas numerosas amiguinhas. Devia ter jogado em algum canto a pesada chave que de nada lhe servia, mas, por mais que procurassem, não a encontraram. E, nunca a encontrariam, pois estava enterrada bem fundo sob a casa de Samuel. Física e emocionalmente exausto, Samuel jogara-se e dormira quase no mesmo instante. Acordou com alguém ao lado, que gritava e o sacudia.
O primeiro pensamento de Samuel foi de que haviam encontrado o corpo de Aram e tinham ido prendê-lo. Abriu os olhos. Isaac estava diante dele, muito nervoso.
- Parou, Samuel! A tosse parou! Venha comigo até a minha casa.
O pai de Isaac estava sentado na cama. A febre havia desaparecido como por milagre e a tosse havia parado. Quando Samuel se aproximou da cama, o velho lhe perguntou:
- Não acha que posso tomar um pouco de caldo de galinha?
Samuel começou a chorar. Num só dia, tirara a vida de um homem e salvara a vida de outro. A notícia sobre o pai de Isaac se espalhou pelo gueto. As famílias das pessoas doentes cercavam a casa de Samuel, pedindo um pouco de soro mágico. Era impossível atender a todos, e ele foi procurar o Dr. Wal. O médico já sabia do feito de Samuel, mas ainda se mostrava cético.
- Tenho que ver com meus próprios olhos - disse ele. - Prepare uma partida de soro e eu aplicarei em um dos meus clientes.
Havia dezenas de doentes à disposição, e o Dr. Wal preferiu o que lhe parecia mais próximo da morte. No prazo de vinte e quatro horas, o doente estava a caminho da recuperação. O Dr. Wal foi até a estrebaria, onde Samuel trabalhava dia e noite preparando o soro, e disse:
- Dá resultado, Samuel. Você conseguiu. O que deseja como dote? Samuel olhou para ele e respondeu, exausto: - Outro cavalo.
Aquele ano de 1868 marcou o início da Roffe and Sons. Samuel e Terenia se casaram, e Samuel recebeu como dote seis cavalos e um pequeno, mas bem equipado laboratório.
Samuel expandiu as suas experiências. Começou a destilar medicamentos de ervas e, em pouco tempo, os vizinhos passaram a ir até seu pequeno laboratório comprar remédios para os males que os afligiam. Eram bem atendidos, e a reputação de Samuel cresceu. Quando alguém não podia pagar, Samuel dizia:
- Não se preocupe com isso. Pode levar. -E acrescentava, voltando-se para Terenia: - Remédio é para curar e não para dar lucro. As vendas aumentaram, e depois de algum tempo, ele disse a Terenia:
- Já é tempo de abrirmos uma pequena farmácia onde possamos vender ungüentos, pós e outras coisas além de receitas.
A farmácia foi, desde o início, um sucesso. Os homens ricos que anteriormente se haviam negado a ajudar Samuel apareceram, oferecendo-lhe dinheiro. Queriam ser sócios e propunham uma fundação de uma rede de farmácias. Samuel conversava sobre o caso com Terenia, dizendo:
- Tenho muito receio de sócios. O negócio é nosso e não me agrada a idéia de gente estranha possuir parte de nossa vida.
Terenia concordava com ele. Quando os negócios cresceram e se expandiram com a abertura de outras farmácias, as ofertas de dinheiro aumentaram. Samuel continuou a recusá-las. Quando seu sogro lhe perguntou o motivo, Samuel respondeu:
- Nunca se deve deixar uma raposa entrar num galinheiro, por mais amistosa que se mostre. Um dia, ela pode ficar com fome.
Do mesmo modo que os negócios, o casamento de Samuel e Terenia floresceu.
Tiveram cinco filhos: Abaham, Joseph, Anton, Jan e Piotr. Samuel comemorava o nascimento de cada filho abrindo uma nova farmácia, cada uma maior do que a anterior.
No começo, Samuel contratou um homem para auxiliálo. Depois, foram dois e, por fim, tinha mais de duas dúzias de empregados.
Um dia, Samuel recebeu a visita de um funcionário do governo.
- Vamos cancelar algumas restrições que pesam sobre os judeus - disse ele a Samuel. - Veríamos com muito agrado a abertura de uma de suas farmácias em Cracóvia.
E Samuel abriu a farmácia. Três anos depois, tinha prosperado tanto que construiu um prédio próprio no centro comercial de Cracóvia e comprou para Terenia uma bela casa na cidade. Samuel tinha realizado, afinal, o sonho de sair do gueto. Mas os seus sonhos não se limitavam a Cracóvia.
Quando os seus filhos cresceram, contratou professores para eles e fez cada qual aprender uma língua diferente.
- Ficou maluco - dizia a sogra de Samuel. - Todos fazem troça deles, pois Abraham e Jan estão aprendendo inglês; Joseph, alemão; Anton, francês; e Piotr, italiano.
Com quem é que eles vão falar? Ninguém aqui fala essas línguas bárbaras. Os garotos vão acabar sem ter com quem conversarem.
Samuel limitava-se a sorrir e dizia pacientemente:
- Isso faz parte da educação deles.
Quando os rapazes chegaram à adolescência, viajaram para países diferentes com o pai. Em cada uma de suas viagens, Samuel preparava-se para os seus futuros planos. Quando Abraham completou vinte e um anos, Samuel reuniu a família e anunciou que Abraham ia viver nos Estados Unidos.
- Não! - exclamou a mãe de Terenia. - é um país de índios. Não deixarei que faça isso com meu neto. O rapaz tem de ficar aqui, onde estará em segurança. Segurança…
Samuel pensou nos pogroms, em Aram e na morte de sua mãe.
- Ele vai para o estrangeiro - retrucou Samuel. - Abraham, você vai abrir uma fábrica em Nova York e se encarregar de todos os negócios por lá.
Abraham disse orgulhosamente:
- Está muito bem, papai.
Samuel voltou-se para Joseph.
- Aos vinte e um anos, você irá para Berlim.
Joseph fez um gesto de assentimento.
- E eu irei para a França - disse Anton. - Paris, assim espero.
- Exatamente - disse Samuel -, mas cuidado. Há entre os gentios algumas mulheres muito bonitas. - Olhou para Jan. - Você irá para a Inglaterra. Piotr, o mais moço, disse ansiosamente:
- É claro que irei para a Itália. Quando poderei Partir, papai?
Samuel riu e respondeu:
- Esta noite, não, Piotr. Terá de esperar até completar vinte e um anos.
E assim aconteceu. Samuel foi com os filhos ao estrangeiro e ajudou-os a abrir escritórios e fábricas. Sete anos depois, havia filiais da família Roffe em cinco países. Era já uma dinastia, e Samuel encarregou um advogado de elaborar estatutos que tornassem cada uma das companhias independente, embora ao mesmo tempo submetida à matriz.
- Nada de estranhos - disse Samuel ao advogado. -As ações nunca devem deixar de ser propriedade da família.
- Está bem - disse o advogado. - Mas, se seus filhos não puderem vender as suas ações, Samuel, como irão se arranjar? É natural que queiram viver com conforto.
- Vou tomar providências para que morem em casas esplêndidas. Ganharão excelentes ordenados e disporão de uma boa verba de representação, mas tudo o mais deverá reverter em favor da companhia. Se algum dia quiserem vender as suas ações, terão de obter a aprovação unânime dos outros sócios. A maioria das ações pertencerá sempre a meu filho mais velho e a seus herdeiros. Vamos ser uma grande empresa.
Vamos ser maiores que os Rothschilds.
Com o correr dos anos, a profecia de Samuel se tornou uma realidade. A empresa cresceu e prosperou. Embora a família estivesse vivendo dispersa, Samuel e Terenia faziam todo o possível para uni-la. Os filhos voltavam à casa paterna por ocasião dos aniversários e festas. Porém, as visitas não eram, apenas, reuniões festivas. Os filhos e os pais discutiam juntos os negócios da companhia.
Tinham a sua rede de espionagem particular. Logo que um dos filhos tinha notícia de um progresso importante na indústria farmacêutica, participava o fato aos outros, e todos começavam a fabricar o produto, de modo que estavam sempre à frente dos seus concorrentes.
Com o advento do novo século, os cinco irmãos se casaram e deram netos ao velho Samuel. Abraham fora para os Estados Unidos aos vinte e um anos, em 1891.
Casou-se com uma moça americana sete anos depois e, em 1905, ela deu à luz o primeiro neto de Samuel, Woodrow, que gerou um filho chamado Sam.
Joseph se casou com uma moça alemã, e teve um casal de filhos. O filho se casou e teve uma filha, Anna, a qual se casou com um alemão chamado Walther Gassner.
Na França, Anton se casou com uma francesa, tornando-se pai de dois filhos. Um deles cometeu suicídio. O outro se casou e teve uma filha, chamada Hélsne, que se casou várias vezes, mas não teria filhos.
Jan, em Londres, se casara com uma inglesa. Sua filha única se casara com um baronete chamado Nichols e tivera um filho, a quem batizara de Alec.
Piotr tinha se casado em Roma com uma italiana. Tiveram um filho e uma filha.
Quando o filho, por sua vez, se casou, a mulher deu-lhe uma filha, Simonetta, que se casara com Ivo Palazzi, um jovem arquiteto. Eram esses os descendentes de Samuel e Terenia Roffe.
Samuel viveu o bastante para ver os ventos da mudança soprarem pelo mundo.
Teve oportunidade de assistir transmissões de telégrafo sem fio e ao vôo dos primeiros aviões. Emocionou-se quando o casa Dreyfus ocupou as manchetes dos jornais e quando o almirante Peary chegou ao pólo norte. O modelo T de Henry Ford era produzido em massa.
Por quase toda a parte havia luz elétrica e telefones. Em medicina, os germes que causaram a tuberculose, o tifo e a malária foram isolados e debelados. A Roffe and Sons em pouco menos de meio século havia se transformado numa colossal empresa multinacional espalhada por todo mundo. Samuel e a sua velha égua Lottie haviam criado uma dinastia.
Quando Elizabeth concluiu talvez a quinta leitura do Livro, tornou a guardá-lo na sala da Torre. Não precisava mais dele. O Livro ficara incorporado à sua existência. Pela primeira vez na vida, Elizabeth sabia quem era e de onde vinha.
Capítulo 12 Foi no seu décimo quinto aniversário, ao fim do primeiro ano na escola suíça, que Elizabeth conheceu Rhys Williams. Ele havia passado pela escola para levar-lhe um presente do pai dela.
- Ele queria vir pessoalmente, mas não pôde - explicou Rhys. Elizabeth tentou dissimular sua decepção, mas Rhys não teve dificuldade em percebê-la. Era evidente nela uma sensação de abandono, uma indefesa vulnerabilidade que o comoveu. Agindo impulsivamente, perguntou: - Acha que poderemos jantar juntos?
Elizabeth não gostou da idéia. Imaginou-se entrando em um restaurante, gorda e com aquele aparelho nos dentes, em companhia daquele rapaz incrivelmente simpático e gentil.
- Muito obrigado, mas não é possível - disse Elizabeth, sem ao menos sorrir. - Tenho de preparar algumas lições.
Rhys Williams não se conformou com a recusa, pensando em todos os aniversários que passara sozinho. Obteve permissão da diretora da escola para levar Elizabeth para jantar. Entraram no carro de Rhys e este tomou imediatamente o caminho do aeroporto.
- Neuchâtel fica do outro lado - disse Elizabeth.
- E quem foi que disse que vamos para Neuchâtel?
- Para onde vamos então?
- Para o Maxim's. É o único lugar onde se pode celebrar a passagem dos quinze anos.
Voaram para Paris em um jato da companhia, e o jantar foi soberbo. Começou com patê de foie gras com trufas, seguido de bisquei de lagosta, pato com laranja e da especial salada do Maxim's. Tudo se encerrou com champanha e um bolo de aniversário.
Depois, Rhys e Elizabeth atravessaram os Campos-Elísios de carro e voltaram para a Suíça a altas horas da noite.
Fora a noite mais emocionante da vida de Elizabeth.
Rhys tinha conseguido fazê-la sentir-se interessante e bela. Quando Rhys a deixou à porta da escola, ela disse:
- Não sei como lhe agradecer. Foi o que de melhor já me aconteceu na vida.
- Agradeça a seu pai - disse Rhys, sorrindo. - Foi tudo idéia dele.
Mas Elizabeth sabia que isso não era verdade. Chegou à conclusão de que Rhys Williams era o homem mais admirável que ela já havia visto. E sem dúvida o mais bonito.
Foi dormir naquela noite pensando nele. Em dado momento, levantou-se e foi até à sua pequena mesa, em frente à janela. Pegou um pedaço de papel: "Madame Rhys Williams".
Ficou muito tempo olhando para o que escrevera.
Rhys adiou por vinte e quatro horas um encontro com uma glamourosa atriz, mas não se incomodou muito. Foi também ao Maxim's com ela e não pôde deixar de pensar que o jantar com Elizabeth fora bem mais interessante. Ela seria alguém com quem ele poderia contar um dia.
Elizabeth nunca pôde ter certeza de quem fora o maior responsável pela transformação que se operara nela, se o velho Samuel Roffe ou Rhys Williams. A verdade é que passou a ter uma nova consciência de si mesma.
Perdeu a compulsão de comer constantemente, e seu corpo foi ficando cada vez mais esbelto. Começou a gostar de esportes e a se interessar pela escola. Fazia um esforço para dar-se bem com as colegas, que não podiam acreditar nisso. Tinham sempre convidado Elizabeth para as suas festas de pijama e ela nunca fora. Compareceu inesperadamente uma noite. A festa se realizava num quarto onde dormia quatro moças, e quando Elizabeth chegou, já havia duas dúzias de alunas, todas de pijama ou roube.
Umas das moças olhoua com surpresa e disse:
- Estávamos apostando que você não viria.
- Pois estou aqui.
O ar estava cheio do aroma acre e adocicado da fumaça dos cigarros. Elizabeth percebeu que muitas garotas estavam fumando maconha, mas ela nunca havia passado por essa experiência. Uma das moças do quarto, uma francesa chamada Reneé Tocar, aproximou-se de Elizabeth fumando um toco de cigarro marrom. Deu uma longa tragada e ofereceu a Elizabeth:
- Você fuma? Era mais uma afirmação do que uma pergunta.
- Éclaro - mentiu Elizabeth. Ela pegou o cigarro, hesitou um momento, colocou-o entre os lábios e deu uma tragada. Sentiu um começo de náusea e um baque nos pulmões, mas conseguiu sorrir e murmurou: - Bom.
No momento em que Renée virou as costas, Elizabeth estendeu-se no sofá. Sentiu um começo de vertigem, mas isso passou num instante. Experimentou dar mais uma tragada. Começou a sentir a cabeça estranhamente leve. Elizabeth tinha lido alguma coisa sobre o efeito de maconha. Dizia-se que suprimia inibições e fazia a pessoa sair de si mesma. Aspirou novamente, bem fundo desta vez, e começou a ter uma sensação agradável de flutuação, como se estivesse em outro planeta. Via as moças no quarto e as ouvia falar, mas tudo estava confuso e indistinto, imagens e sons. Fechou os olhos. No mesmo instante, saiu flutuando pelo espaço. Era uma sensação deliciosa. Viu-se voando sobre os telhados da escola e depois sobre os Alpes cobertos de neve, em um mar de nuvens algodoadas. De repente, ouviu alguém chamá-la pelo nome, trazendo-a de volta à terra. Elizabeth abriu os olhos. Renée estava curvada sobre ela, com um ar de preocupação no rosto.
- Você está bem, Roffe?
Elizabeth sorriu, feliz, e murmurou:
- Estou muito bem. - E confessou na sua infinita euforia. - é a primeira vez que fumo maconha.
- Maconha? - exclamou Renée. - Mas eu lhe dei apenas um Gauloise.
Do outro lado da aldeia, havia uma escola de rapazes, e as colegas de Elizabeth aproveitavam todas as oportunidades de encontrar-se com eles. As moças falavam constantemente sobre os rapazes. Sobre os corpos deles, o tamanho de seus órgãos, o que deixavam os rapazes fazer com elas e o que faziam com os rapazes.
As vezes, Elizabeth tinha a impressão de que estava perdida dentro de uma escola cheia de ninfomaníacas delirantes. Tinham a obsessão do sexo. Uma das moças ficara completamente nua e se deitava de costas na cama, enquanto outra a acariciava dos seios às coxas. O pagamento era um doce comprado na aldeia. Dez minutos de frôlage valia um doce. Em dez minutos, a moça em geral chegava ao orgasmo, mas, quando não acontecia, a garota incumbida das frôlage podia continuar e ganhava mais um doce.
Outro divertimento sexual favorito era usufruído no banheiro.
A escola tinha grandes banheiras antigas, equipadas com chuveiros manuais flexíveis que podiam ser retirados de um gancho na parede. As moças se sentavam na banheira, ligavam o chuveiro e, quando a água quente começava a correr, colocava o chuveiro entre as pernas e o movia lentamente para cima e para baixo. Elizabeth não praticava nem as frôlage nem os jogos com o chuveiro, mas os impulsos sexuais eram cada vez mais fortes dentro dela.
Foi mais ou menos nessa época que ela fez uma descoberta que a deixou atordoada. Uma das professoras de Elizabeth era uma mulher pequena chamada Harriot Chantal. Tinha cerca de trinta anos, e era um pouco mais que uma estudante. Tinha feições atraentes e quando sorria chegava a ser bela. Era a professora mais simpática de Elizabeth, que sentia profunda atração por ela.
Sempre que se sentia infeliz, Elizabeth ia procurar Mlle Harriot e lhe contava seus problemas. A professora era uma ouvinte atenta. Quando Elizabeth acabava, ela lhe tomava amistosamente a mão, dava-lhe conselhos sensatos e depois lhe oferecia uma xícara de chocolate quente com bolinhos. Imediatamente, Elizabeth se sentia melhor.
Mlle Harriot ensinava francês e dava também aulas sobre moda, em que acentuava a necessidade de estilo e harmonia de cores, bem como do uso de acessórios convenientes.
- Não se esqueçam de que o vestido mais elegante do mundo parecerá horrível se for usado com acessórios errados.
"Acessórios" era a divisa de Mlle Harriot. Sempre que Elizabeth se encontrava na banheira quente, surpreendia-se pensando em Mlle Harriot, na expressão do seu rosto quando estavam juntas e na maneira pela qual a professora lhe acariciava a mão com delicadeza e ternura. Quando Elizabeth estava em outras aulas, o seu pensamento se voltava para Mlle Harriot e recordava as ocasiões em que a professora tinha passado os braços pelo corpo dela a fim de consolá-la e tinha tocado em seus seios.
A princípio, Elizabeth pensava que esses contatos fossem casuais, mas haviam se repetido, e, nessas ocasiões, Mlle Harriot havia olhado Elizabeth com carinho e interrogação, como se esperasse uma reação.
Em sua imaginação, Elizabeth podia ver Mlle Harriot com seios fartos e pernas brancas, e pensou em como ela pareceria nua numa cama. Foi então que teve a súbita compreensão que a deixou aturdida. Ela era lésbica. Não estava interessada nos rapazes, porque gostava das mulheres. Não das tolinhas que eram suas colegas, mas de uma mulher sensível e compreensiva como Mlle Harriot.
Elizabeth podia imaginar as duas juntas, abraçando-se e confortando-se. Elizabeth tinha lido e ouvido muitas coisas sobre as lésbicas e sabia como a vida era difícil para elas. A sociedade não aprovava o lesbianismo, considerava-o um crime contra a natureza. Mas que mal havia, pensava Elizabeth, em amar alguém profundamente? Que importância tinha que se tratasse de um homem ou de uma mulher? O importante não era o amor?
Elizabeth pensou como seu pai ficaria horrorizado quando soubesse a verdade.
Ora, era uma coisa que ela teria de enfrentar. Era preciso reajustar as suas idéias sobre o futuro. Nunca poderia ter uma vida normal como as outras moças, que iriam casar e ter filhos. Aonde quer que ela fosse, seria sempre uma mulher excluída e rebelde, que viveria longe da corrente da sociedade. Ela e Mlle Harriot Chantal viveriam num apartamento ou talvez numa casinha.
Elizabeth decoraria tudo com cores suaves, sem faltar um só acessório necessário. Teriam graciosos móveis franceses e belos quadros nas paredes. O pai poderia ajudar… Não, ela não queria nenhuma ajuda do pai. O mais provável era que ele nunca mais falaria com ela.
Elizabeth pensou no seu guarda-roupa. Poderia ser uma lésbica, mas não se vestiria como as mulheres da espécie. Nada de tweeds, calças compridas, ternos ou chapéus vagamente masculinos, que funcionariam como as campainhas advertências dos leprosos para mulheres emocionalmente aleijadas. Procuraria ser sempre tão feminina quanto possível. Resolveu aprender a ser uma grande cozinheira para fazer os pratos favoritos de Mlle Harriot Chantal.
Imaginou as duas no seu apartamento ou na casinha, jantando à luz de velas os pratos que ela havia preparado. Primeiro, haveria uma vichyssoise, seguida de uma excelente salada. Depois, camarões ou talvez lagosta, quem sabe um chateaubriand, com um gostoso sorvete de sobremesa, Depois do jantar, se sentariam no chão diante da lareira acesa, vendo a neve cair através das janelas. Neve! Seria, portanto, no inverno.
Elizabeth modificou às pressas o menu. Em lugar de uma vichyssoise fria, faria uma sopa de cebola ou talvez uma fondwe. A sobremesa seria um suflê. Teria de aprender a tempo para não falhar. Em seguida, as duas ficariam sentadas diante do fogo, lendo poesia uma para a outra. T. S. Eliot talvez. Ou V. J. Rajadhon.
"O tempo é inimigo do amor,
Ladrão que abrevia
Todas as nossas horas douradas.
Nunca pude compreender por que
Os que amam contam a sua felicidade
Em dias, noites e anos,
Quando o amor só pode ser medido pelas alegrias, suspiros e lágrimas"
Ah… Elizabeth podia ver os anos se desenrolarem diante dela até a passagem do tempo dissolver-se num clarão dourado e quente. Adormecia então.
Elizabeth estava esperando alguma coisa desse tipo, mas, quando aconteceu, colheu-a inteiramente de surpresa. Acordou uma noite ao sentir que alguém entrava no seu quarto e fechara a porta sem fazer barulho. Abriu os olhos. Viu um vulto atravessar o quarto e aproximar-se da cama dela. A luz do luar que se infiltrava pelas janelas atingiu o rosto de Mlle Harriot Chantal. O coração de Elizabeth começou a bater desordenadamente.
- Elizabeth - disse Chantal num sussurro e deixou cair o robe. Não estava usando nada por baixo.
Elizabeth sentiu a boca seca. Pensava tanto naquele momento e, quando tudo estava acontecendo, sentia apenas medo. Na verdade, não sabia ao certo o que tinha de fazer ou como proceder. Não queria parecer ridícula aos olhos da mulher que amava.
- Olhe para mim - ordenou Chantal. Elizabeth olhou. Deixou os olhos correrem pelo corpo nu da outra. Harriot Chantal não era exatamente o que Elizabeth havia imaginado.
Os seios lembravam maças enrugadas e eram um tanto caídos. Tinha uma pequena barriga arredondada e o derriére parecia -Elizabeth não encontrou outra palavra no momento - pendurado.
Mas nada disso tinha importância. O que importava era o que havia sob o exterior, a alma da mulher, a coragem que ela tinha de ser diferente, de desafiar o mundo inteiro e de querer passar o resto da vida com Elizabeth.
- Chegue para lá, mon petit ang -murmurou ela.
Elizabeth obedeceu, e a professora se deitou ao lado dela. O corpo dela tinha um forte cheiro de animal. Ela virou-se arara. Elizabeth, abraçou-a e disse:
- Oh, chérie, tenho sonhado tanto com este momento!
Beijou-a então, forçando a língua na boca de Elizabeth e dando pequenos gemidos. Foi sem dúvida a sensação mais desagradável que Elizabeth já havia experimentado. Deixou-se ficar em estado de choque, enquanto os dedos de Chantal - de Mlle Harriot -lhe percorriam o corpo, apertando seus seios, deslizando lentamente abaixo de seu estômago, em direção às suas coxas. E durante todo o tempo ela beijava Elizabeth, babando-se como um animal. Era isso então. Era esse o momento mágico. "Se fôssemos uma só pessoa, você e eu, faríamos juntamente um universo que abalaria as estrelas e moveria os céus". As mãos de Mlle Harriot estavam acariciando as coxas de Elizabeth, tentando penetrar entre suas pernas.
Rapidamente, Elizabeth procurou lembrar-se de todos os seus sonhos, dos jantares à luz de vela, dos suflês, das noites diante da lareira, dos anos de felicidade que as duas passariam juntas. Não adiantou. Havia repulsa na carne e no espírito de Elizabeth. Sentiu como se seu corpo estivesse sendo violentado. Mlle Harriot gemeu.
- Oh, chérie, quero comê-la.
E tudo o que Elizabeth conseguiu dizer foi:
- Há um problema. Uma de nós não tem os acessórios necessários.
Começou então a chorar e a rir histericamente, lamentando ver morrer a visão dos jantares à luz de velas. Ria porque compreendia que era uma mulher normal, livre afinal daquela obsessão. No dia seguinte, Elizabeth experimentou o esguicho do chuveiro.
Capítulo 13 Nas férias da Páscoa, no seu último ano na escola, aos dezoito anos de idade, Elizabeth foi passar dez dias na villa da Sardenha. Aprendera a dirigir e, pela primeira vez, tinha liberdade de explorar a ilha sozinha. Fazia longas excursões pela costa e visitava as aldeias de pescadores. Tomava banho de mar na villa, sob o sol quente do Mediterrâneo, muitas vezes ficava acordada à noite na cama, ouvindo o vento gemendo nos rochedos ocos. Foi a uma festa em Tempos e encontrou toda a aldeia vestida com trajes tradicionais.
Ocultas sob o anonimato das máscaras, as moças convidavam os rapazes para danças, e todos se sentiam estimulados a fazer coisas que não faziam em ocasiões normais.
Um rapaz podia pensar que conhecia a moça com quem fizera amor à noite, mas na manhã seguinte já não tinha tanta certeza. Era, pensou Elizabeth, como se a aldeia inteira representasse The guatdsman.
Foi até Punta Murra e viu os sardos assarem carneiros ao ar livre. Os homens da ilha lhe deram seada, um queijo de cabra, coberto de farinha de trigo e mel quente.
Elizabeth bebeu também o delicioso selememont, o vinho local, que não se podia provar em nenhum lugar do mundo, pois era muito delicado para suportar a viagem.
Um dos lugares que Elizabeth gostava de freqüentar era a Hospedaria do Leão Vermelho, em Porto Cervo. Era um pequeno restaurante localizado no porão, com dez mesas e um bar antigo.
Elizabeth deu àquelas férias o nome de Tempo dos Rapazes. Eram filhos de ricos e chegavam em grupos, convidando Elizabeth para uma ronda constante de banhos de Mar e passeios. Era isso o prelúdio do ato sexual.
- São todos muito bons partidos - assegurou-lhe o pai.
Para Elizabeth, eram todos uns grosseirões. Bebiam demais, falavam demais e apalpavam-lhe o corpo. Tinha certeza de que a procuravam não por ela mesma, nem porque ela fosse inteligente ou tivesse valor como ser humano, mas apenas porque ela era uma Roffe, herdeira da fortuna da família.
Elizabeth não tinha idéia de que havia se transformado numa bela mulher, porque era muito fácil acreditar nas suas lembranças do passado do que no que lhe dizia nessa época o espelho. Os rapazes tomavam vinho e jantavam com ela, tentando depois levá-la para a cama. Percebiam que Elizabeth era virgem e cada qual sentia, na sua vaidade masculina, que aquela virgindade lhe estava destinada e que bastaria conquistá-la para Elizabeth apaixonar-se e ser uma escrava pelo resto da vida. Não desistiam.
Fosse para onde fosse que levassem Elizabeth, sempre terminavam a noite convidando-a a ir para a cama. Ela recusava com polidez, mas com firmeza. Os rapazes não podiam compreendê-la. Achavam-na bonita e, portanto, devia ser um pouco inteligente. Nunca lhes ocorrera que ela fosse mais inteligente do que eles. Quem já ouvira falar de uma moça ao mesmo tempo bonita e inteligente? Assim Elizabeth saía com os rapazes para fazer a vontade do pai, mas aborrecia-se com todos eles.
Rhys Williams apareceu na villa, e Elizabeth ficou surpresa com o prazer que sentiu ao vê-lo. Estava ainda mais simpático do que da outra vez. Rhys Williams sentiu prazer também em vê-la.
- Que foi que houve com você? - perguntou ele.
- Como assim?
- Tem-se olhado no espelho ultimamente?
Elizabeth se voltou e respondeu:
- Não.
Ele se voltou para Sam e disse:
- A menos que todos os rapazes sejam cegos, surdos e mudos, acho que não vamos ter Elizabeth conosco por muito tempo.
Conosco! Elizabeth gostou de ouvi-lo dizer isso. Ficava com os dois homens tanto quanto podia, servindo-lhes bebidas, prestando-lhes pequenos favores, contente apenas de olhar para Rhys. Ás vezes, Elizabeth ficava em um canto da sala, enquanto eles falavam de negócios, e sentia-se fascinada. Falavam de fusões, de novas fábricas, de produtos que tinham feito sucesso e de outros que haviam falhado, debatendo as causas.
Falaram dos concorrentes e planejavam campanhas e estratégias.
Tudo isso parecia empolgante a Elizabeth. Um dia, quando Sam estava trabalhando na sala da torre, Rhys convidou Elizabeth para almoçar. Levou-a para o Leão Vermelho, jogou dados com os homens do bar, e Elizabeth se admirou de como Rhys parecia à vontade ali. Era um homem que se adaptava a qualquer ambiente. Ouvira um dia uma expressão espanhola, que não compreendera na ocasião. Mas, vendo Rhys, entendia o que os espanhóis queriam exprimir quando diziam que um homem "cabia bem dentro da sua pele". Sentaram-se a uma mesinha de canto com uma toalha vermelha e branca e comeram empadão de carneiro acompanhado de cerveja.
Rhys lhe perguntou como ia a escola.
- Não é tão ruim quanto eu pensava - disse Elizabeth. -Ao menos, tive consciência da minha ignorância.
Rhys sorriu.
- São raras as pessoas que adquirem essa consciência. Você concluirá o curso em junho, não é? Elizabeth estranhou que ele soubesse disse e respondeu:
- É verdade.
- Já sabe oque quer fazer quando sair de lá?
Pensara muito nisso e ainda não encontrara uma resposta.
- Não. Ainda não sei.
- Tem algum interesse em se casar?
Por um instante, o coração dela falhou uma batida. Compreendeu então que a pergunta tinha apenas um interesse geral.
- Não. Ainda não Encontrei ninguém.
Pensou então em Mlle Harriot e nos jantares íntimos diante da lareira com a neve caindo lá fora, e deu uma risada.
- Há algum segredo? - perguntou Rhys.
- Segredos?
Gostaria de contar tudo a ele, mas ainda não o conhecia bem. Na verdade, quase não o conhecia. Era um desconhecido elegante e simpático que um dia tivera pena dela e a levara para comemorar o seu aniversário com um jantar em Paris. Sabia que ele era brilhante no mundo dos negócios e que seu pai na verdade confiava nele. Mas nada sabia da vida particular dele ou do que ele na realidade era.
Observando-o, Elizabeth tinha a impressão de que se tratava de um homem de várias camadas, que só mostrava algumas emoções para esconder aquelas que realmente sentia. Era de duvidar que alguém o conhecesse de fato.
Rhys Williams foi responsável pela perda da virgindade de Elizabeth. A idéia de ir para a cama com um homem era a cada dia mais imperiosa para Elizabeth. Em parte, era um impulso físico que de vez em quando se apoderava dela em ondas de frustração e uma urgência necessária, difícil de desaparecer. Mas havia também a curiosidade, a vontade de saber como era. É claro que não poderia ir para a cama com qualquer homem. Tinha de ser alguém com quem ela simpatizasse e que simpatizasse com ela.
Num sábado, o pai de Elizabeth deu um jantar de gala na villa.
- Escolha o seu melhor vestido - disse ele à filha. - quero mostrá-la a todos.
Emocionada, Elizabeth pensou que seria par de Rhys. Quando Rhys chegou, estava acompanhado de uma princesa italiana loura. Elizabeth se sentiu insultada e traída, tanto que à meia-noite saiu da festa e foi para a cama com um pintor russo barbudo, chamado Vassílov. O breve caso foi um desastre. Elizabeth estava tão nervosa e o pintor, tão bêbado, que para ela não houve começo, meio, nem fim. As manobras preliminares se limitaram a Vassílov tirar as calças e se jogar na cama. A essa altura, Elizabeth só tinha vontade de fugir, mas resolveu ir até o fim para castigar Rhys por sua perfídia. Despiu-se e deitouse na cama.
Um instante depois, sem qualquer aviso, Vassílov estava a penetrá-la. Era uma sensação estranha. Não podia ser considerada desagradável, mas também não era nada de fazer a terra tremer. Sentiu o corpo de Vassílov estremecer e, um instante depois, o pintor estava estendido na cama, roncando. Elizabeth ficou ali, com nojo de si mesma.
Era difícil acreditar que tantas canções, tantos livros, tantos poemas se referissem àquilo.
Pensou em Rhys e teve vontade de chorar.
Silenciosamente, vestiu-se e voltou para casa. Quando o pintor telefonou para ela na manhã seguinte, mandou dizer que não estava. No outro dia, Elizabeth voltou para a escola.
Voou no jato da companhia, juntamente com o pai e Rhys. O avião, construído para comportar cem passageiros, fora transformado numa aeronave de luxo. Havia na calda dois camarotes bem decorados, ambos com banheiros completos, um escritório, uma sala confortável e uma cozinha totalmente equipada. Elizabeth dizia que o avião era o tapete mágico de seu pai. Os dois homens falaram de negócios a maior parte do tempo.
Quando Rhys ficou livre, jogou uma partida de xadrez com Elizabeth. A partida terminou empatada, e Rhys a elogiou, dizendo que nunca havia pensado que ela jogasse tão bem. Elizabeth corou de prazer.
Os últimos meses na escola passaram rapidamente. Era tempo de começar a pensar no futuro. A pergunta de Rhys: "Já sabe o que fazer quando sair de lá?", não lhe saía do pensamento, mas ainda não sabia. Entretanto, graças ao velho Samuel, Elizabeth ficara encantada com a empresa da família. Gostaria de trabalhar nela. Não sabia ainda o que poderia fazer. Talvez começasse ajudando o pai.
Contavam-se ainda histórias da maravilhosa anfitriã que fora sua mãe, do inestimável auxílio para Sam.
Começaria procurando ficar no lugar da mãe. Seria um bom início.
Capítulo 14 A mão do embaixador da Suécia estava apertando as nádegas de Elizabeth, e ela procurou não tomar conhecimento disso enquanto dançavam através do salão. Sorria e com os seus olhos bem-treinados inspecionava tudo, os convidados elegantemente vestidos, a orquestra, os empregados de libré, o bufe, em que se amontoavam pratos exóticos e excelentes vinhos, concluindo, satisfeita, que a festa estava muito boa.
Estavam no salão de baile da casa de Long Island. Havia duzentos convidados, todos importantes para a Roffe and Sons. Elizabeth percebeu que o embaixador apertava o corpo contra o dela, tentando excitá-la. Ele tocou com a língua a orelha dela e murmurou:
- Sabe que dança muito bem?
- E o senhor também - disse Elizabeth com um sorriso. Mas errou o passo deliberadamente e pisou no pé do embaixador, com toda força, com seu salto fino. Ele deu um grito de dor, e Elizabeth exclamou constritamente:
- Perdão, embaixador. Espere aqui que vou buscar-lhe um drinque.
Deixou-o e dirigiu-se para o bar, abrindo caminho por entre os convidados, correndo os olhos cuidadosamente pelo salão, para ver se tudo estava perfeito.
Perfeição - era tudo que o pai exigia. Elizabeth havia sido a anfitriã já numa centena de recepções de Sam, mas ainda não aprendera a descontrairse. Cada festa era um acontecimento, uma noite de estréia, com uma porção de coisas que podiam sair erradas.
Entretanto, nunca se sentira mais feliz. O seu sonho de menina de viver perto do pai, que a queria e precisava dela, havia se tornado realidade. Aprendera a ajustar-se ao fato de que as necessidades de seu pai eram impessoais e de que sua importância se limitava, para ele, à contribuição que pudesse dar à companhia. Era esse o único critério de Sam Roffe para julgar as pessoas. Elizabeth conseguira preencher a lacuna existente desde a morte de sua mãe. Passara a ser uma anfitriã.
Mas, como Elizabeth era uma moça muito inteligente, passara a ser mais que isso.
Comparecia a conferências comerciais com o pai e o acompanhava em aviões, em suítes de hotéis no estrangeiro, em fábricas, embaixadas e palácios. Via o pai exercer o seu poder, empregando os bilhões de dólares à sua disposição para comprar e vender, para derrubar e construir. A Roffe and Sons era uma vasta cornucópia, e Elizabeth via o pai dispensar as suas dádivas aos amigos e recusar qualquer concessão aos inimigos. Era um mundo fascinante, cheio de pessoas interessantes, e Sam Roffe dominava tudo.
Quando Elizabeth correu os olhos pelo salão de baile, viu Sam perto do bar, conversando com Rhys, um primeiro-ministro e um senador da Califórnia. O pai a chamou e ela se encaminhou para ele, pensando no tempo em que, três anos antes, tudo começara.
Elizabeth tinha voado para casa no dia da formatura. Sua casa, então, era o apartamento em Beekman Place, Nova York. Rhys estava lá com o pai. Ela esperava certamente encontrá-lo. Levava a imagem dele nos recantos secretos dos seus pensamentos e, sempre que estava sozinha, reconfortava-se com as recordações. A princípio, tudo tinha parecido sem esperança. Ela era uma colegial de quinze anos e ele, um homem de vinte e cinco. Esses dez anos de diferença podiam muito bem ser cem.
Mas, graças a alguma admirável alquimia matemática, aos dezoito anos a diferença de idade já parecia ter menos importância. Era como se ela estivesse amadurecendo mais depressa do que Rhys, na ânsia de alcançá-lo.
Os dois homens se levantaram quando ela entrou na biblioteca, onde estavam falando de negócios. Sam disse calmamente:
- Ah, Elizabeth… Já chegou?
- Já.
- Disse então adeus à escola?
- Disse, sim.
- Muito bem.
E não passou daí a cordialidade com que o pai a recebeu de volta para casa.
Rhys, porém aproximou-se dela com um sorriso. Parecia sinceramente satisfeito de vê-la.
- Você está ótima, Liz! Como foi a formatura? Sam queria muito ir, mas não pôde fazer a viagem.
Ele estava dizendo todas as coisas que cabia ao pai dela dizer. Elizabeth se aborreceu de ter ficado magoada. Sabia que, na verdade, o pai não deixara de amá-la, mas estava entregue a um mundo de que ela não fazia parte. Teria levado um filho para esse mundo; uma filha, era impossível. Ela não se ajustava de modo algum à mecânica da companhia.
- Vim interromper - murmurou ela, encaminhando-se para a porta.
- Espere um pouco - disse Rhys. - Ela chegou bem na hora, Sam. Pode ajudar-nos na festa de sábado à noite.
Sam olhou para Elizabeth, examinou-a objetivamente, como se quisesse aquilatar o seu valor. Parecia-se com a mãe. Tinha a mesma beleza, a mesma elegância natural.
Um lampejo de interesse brilhou nos olhos de Sam. Nunca lhe havia ocorrido a idéia de que ela pudesse dar uma contribuição positiva aos interesses da Roffe and Sons.
- Você tem um vestido adequado?
Elizabeth olhou-o, surpresa, e murmurou:
- Eu…
- Não tem importância. Compre o vestido. Sabe o que deve fazer numa festa?
- Sem dúvida. É claro que sei o que se deve fazer numa festa. - Não era essa uma das vantagens de uma boa escola suíça? Ensinam lá todos os princípios e regras da sociedade.
- Ótimo.Convidei um grupo da Arábia Saudita. Devem vir mais ou menos… - Voltou-se para Rhys, que sorriu para Elizabeth e disse: - Mais ou menos umas quarenta pessoas.
- Deixem tudo comigo - disse então Elizabeth, cheia de confiança. O jantar foi um desastre completo. Elizabeth tinha dito ao cozinheiro que preparasse coquetel de caranguejos, seguindo de cassoulets individuais, que seriam servidos com bons vinhos.
Infelizmente, os cassoulets tinham carne de porco e os árabes não tocavam nem em crustáceos, nem em carne de porco. Não tomavam, além disso, bebidas alcoólicas. Os convidados olharam para a comida, mas não provaram coisa alguma. Elizabeth, sentada à cabeceira da mesa, tendo o pai à outra cabeceira, ficou petrificada de vergonha, sentindo a sua derrota. Foi Rhys Williams que salvou a noite.
Desapareceu por um instante no escritório e telefonou. Voltou então para o salão de jantar e começou a distrair os convidados, contando histórias divertidas, enquanto os empregados tiravam os pratos da mesa. Quase no mesmo instante, segundo pareceu, uma frota de caminhões chegou ao edifício e, como por encanto, uma variedade de pratos começou a aparecer na mesa.
Cuscuz árabe e carneiro en brochete, travessas de peixe e galinha assada, seguidos de doces, queijos e frutas secas. Todos apreciaram a comida, menos Elizabeth.
Estava tão acabrunhada que não conseguia engolir um só bocado. Sempre que olhava para Rhys, este a estava observando com um brilho de cumplicidade no olhar.
Elizabeth não saberia explicar a razão, mas estava mortificada com o fato de que Rhys não só tivesse assistido à sua desmoralização, mas ainda a tivesse salvado.
Quando tudo terminou e os convidados saíram com relutância já às primeiras horas da madrugada, Elizabeth, Sam e Rhys se reuniram na sala de estar. Rhys estava servindo conhaque. Elizabeth respirou fundo e voltou-se para o pai.
- Desculpe o que houve no jantar. Se não fosse Rhys…
- Tenho certeza de que da próxima vez você se sairá melhor - disse Sam, sem maior interesse. Mas Sam acertara. Daí por diante, quando havia uma recepção, fosse para quatro ou quatrocentas pessoas, Elizabeth fazia pesquisas sobre os convidados, descobria seus gostos e preferências, e até o tipo de acolhimento que lhes agradava.
Tinha um catálogo com fichas de cada pessoa.
Os convidados se sentiam envaidecidos de encontrar sempre o vinho, o uísque ou os charutos de que gostavam, e de ter em Elizabeth uma pessoa que podia conversar com conhecimento de causa sobre o assunto que mais lhes interessava.
Rhys comparecia a quase todas as recepções, sempre acompanhado de belas mulheres. Elizabeth detestava-as todas, mas procurava imitá-las. Se Rhys aparecia com uma mulher com os cabelos penteados para trás, ela tentava o mesmo penteado.
Procurava imitá-las em tudo. Mas nada disso parecia impressionar Rhys. Ao contrário, não notava coisa alguma. Frustrada, Elizabeth resolveu afinal ser ela mesma e não imitar mais ninguém.
Na manhã do seu vigésimo primeiro aniversário, quando Elizabeth desceu para o café, o pai lhe disse:
- Encomende algumas entradas de teatro para esta noite. Depois iremos jantar no 21. Elizabeth pensou que o pai se tivesse lembrado do seu aniversário e ficou radiante.
Mas Sam acrescentou: - Seremos doze pessoas. Vamos comemorar os novos contratos bolivianos.
Ela nada disso sobre o aniversário. Recebeu alguns telegramas de antigas colegas, e foi só. Às seis da tarde recebeu um enorme buquê de flores. Elizabeth pensou que fosse o pai que as houvesse mandado. Mas o cartão que acompanhava as flores dizia: "Um belo dia para uma bela mulher. Rhys." O pai saiu de casa às sete horas para o teatro. Viu as flores e perguntou:
- Algum pretendente? Elizabeth teve vontade de dizer que se tratava de um presente de aniversário, mas de que adiantava? Quando se tem de lembrar o próprio aniversário a uma pessoa amada, então é tudo inútil.
Viu o pai sair e ficou sem saber o que iria fazer naquela noite. Os vinte e um anos sempre tinham lhe parecido um marco importante na vida. Significavam a maioridade, a liberdade, a transformação numa mulher.
Bem, o dia mágico havia chegado, e ela não se sentia diferente em nada do que tinha sido no ano anterior ou dois anos antes. Por que ele não se lembrara? Se fosse um filho, teria esquecido? O mordomo apareceu para lhe perguntar sobre o jantar. Elizabeth não estava com fome. Sentia-se sozinha e abandonada. Sabia que estava pensando demais em si mesma, mas o que podia fazer?
O que ela lamentava não era apenas aquele aniversário solitário, mas todos os outros aniversários do passado, a dor cresceu sozinha, sem ter uma mãe, um pai ou qualquer pessoa que tivesse o menor interesse por ela. Às dez horas da noite, estava vestida com um robe, sentada no escuro, diante da lareira. De repente, ouviu uma voz que dizia:
- Parabéns pra você!
As luzes se acenderam e ela viu Rhys Williams. Encaminhou-se para ela e disse:
- Isso é lá maneira de festejar o seu aniversário? Quantas vezes você pensa que vai fazer vinte e um anos?
- Pensei que você estivesse com meu pai esta noite - disse ela, agitada. - Eu estava lá. Mas saí quando ele disse que você tinha ficado em casa. Vista-se e vamos jantar.
Elizabeth abanou a cabeça. Não queria aceitar a compaixão dele.
- Agradeço muito, Rhys. Mas não estou realmente com fome.
- Mas eu estou com fome e não gosto de comer sozinho. Tem cinco minutos para se vestir. Do contrário, vou levá-la como está.
Comeram numa lanchonete, em Long Island, hambúrgueres com chili, batatas fritas e cebolas, tudo acompanhado de refrigerantes. Conversaram muito, e Elizabeth pensou que aquele jantar ainda era melhor do que o do Maxim's. Toda a atenção de Rhys se concentrava nela, e ela começou a compreender por que ele atraía tanto as mulheres.
Não se tratava apenas de sua aparência física. Era também o fato de que ele gostava realmente das mulheres e sentia prazer na companhia delas. Fez Elizabeth sentir-se como alguém especial, alguém cuja companhia ele preferia à de qualquer outra pessoa do mundo. Não era de admirar que as outras se apaixonassem por ele. Rhys contou-lhe um pouco da sua infância no País de Gales e fez tudo parecer admirável, aventuroso e alegre.
- Saí de casa, Liz porque havia em mim a fome de ver tudo e fazer tudo. Queria ser as pessoas que eu via. Eu não era bastante para mim. Pode compreender isso?
Como ela compreendia bem tudo aquilo!
- Trabalhei em parques, em praias e houve um verão em que trabalhei levando turistas em caracle pelo Rhosili…
- Espere um pouco, Rhys. O que é caracle e o que é o Rhosili?
- O Rhosili é um rio turbulento e veloz, cheio de correntezas e corredeiras. Os caracles são barcos feito de armação de madeira coberta de couro. Devem ser anteriores ao tempo dos romanos. Nunca esteve no País de Gales, não? Você adoraria aquilo. Há uma cachoeira no vale de Neath que é uma das coisas mais belas do mundo. Há tantos lugares bonitos para ver!… Aber-Eiddi, Caerbwdi, Porthclais, Kilgetty, Llangwm… E as palavras lhe rolavam dos lábios como uma cadência musical. - é uma terra ainda selvagem e primitiva, cheia de surpresas mágicas.
- Apesar disso, você deixou o País de Gales…
Rhys sorriu e disse:
- Era a fome que havia em mim. Eu queria ser dono do mundo… O que ele não disse foi que a fome ainda não se lhe aplacara no coração.
No decorrer dos três anos seguintes, Elizabeth tornou-se indispensável ao pai. Sua função era tornar a vida dele confortável para que pudesse concentrar-se naquilo que tinha exclusiva importância para ele: os negócios. Os detalhes de sua vida particular eram inteiramente confiados a Elizabeth. Ela contratava e despedia empregados, abria e fechava várias casas de acordo com as necessidades do pai e presidia às recepções para ele. Mais ainda, ela se tornou os olhos e os ouvidos de Sam. Depois de uma reunião de negócios, Sam pedia a opinião dela sobre este ou aquele homem ou lhe explicava por que motivo tinha agido desta ou daquela maneira. Ela o via tomar decisões que afetavam a vida de milhares de pessoas e envolviam centenas de milhões de dólares.
Tinha visto chefes de Estados pedirem a Sam que abrisse uma fábrica ou deixasse de fechar outra. Depois de uma dessas reuniões, Elizabeth disse ao pai:
- É incrível! É como se você estivesse governando um país.
Sam riu e replicou:
- A Roffe and Sons tem uma receita superior à de três ou quatro dos países do mundo.
Nas suas viagens com o pai, Elizabeth conheceu as outras pessoas da família Roffe, seus primos e primas e as pessoas com quem eram casados. Quando era mocinha, vira-os quando iam visitar seu pai ou quando ela ia visitálos nas breves férias da escola.
Simonetta e Ivo Palazzi, em Roma, tinham sido sempre os mais agradáveis. Eram francos e cordiais, e Ivo sempre fizera Elizabeth sentir-se mulher.
Ivo era encarregado da divisão italiana da Roffe and Sons, e sempre se saíra muito bem. As pessoas gostavam de tratar com ele. Elizabeth se lembrava do que lhe dissera uma das suas colegas depois de conhecê-lo: "Sabe por que eu gosto de seu primo? Tem calor e fervor”. Ivo era assim: calor e fervor. Havia depois Hélsne Roffe- Martel e seu marido Charles, em Paris, Elizabeth nunca havia realmente compreendido Hélsne, nem se sentia à vontade com ela. Era sempre gentil com ela, mas havia uma fria reserva que Elizabeth não conseguia romper. Charles era o chefe da filial francesa da Roffe and Sons. Era competente, embora, segundo dizia Sam, lhe faltava energia. Podia cumprir ordens, mas não tinha espírito de iniciativa. Sam nunca o substituíra porque, apesar de tudo, a filial francesa era muito rentável. Elizabeth suspeitava que Hélsne Roffe-Martel fosse em grande parte a causa desse sucesso. Elizabeth gostava da prima alemã Anna Roffe Gassner e de seu marido Walther.
Lembrava-se de ter ouvido dizer nas conversas de família que Anna se casara com um homem socialmente inferior. Walther Gassner era considerado na família uma ovelha negra, um caça-dotes, que se casara com uma mulher feia e mais velha do que ele, com os olhos no dinheiro dela. Elizabeth não julgava sua prima feia. Achara sempre que se tratara de uma pessoa tímida e sensível, reservada e um pouco apavorada diante da vida.
Elizabeth tinha gostado de Walther desde o primeiro instante. Tinha o perfil clássico de um astro de cinema, mas não se mostrava arrogante nem falso. Parecia amar sinceramente Anna, e Elizabeth não acreditava nas coisas terríveis que contavam dele.
Entre todos os seus parentes, Alec Nichols era o predileto de Elizabeth. A mãe dele tinha sido uma Roffe que se casara com Sir George Nichols, terceiro baronete.
Era a Alec que Elizabeth havia sempre recorrido quando tinha um problema.
Talvez em vista da sensibilidade e da gentileza de Alec, a menina sempre o julgara seu igual e só agora compreendia que grande elogio isso representava para Alec. Ele sempre a tratara em pé de igualdade, disposto a oferecer-lhe ajuda e conselhos. Elizabeth se lembrava de que, num momento de grande desespero, resolvera fugir de casa. Arrumou as roupas numa maleta e então, num súbito impulso, telefonou para Alec em Londres a fim de despedir-se dele. Ele estava participando de uma conferência, mas foi ao telefone e falou com Elizabeth por mais de uma hora.
Ao fim da conversa, Elizabeth resolveu perdoar o pai e dar-lhe mais uma chance.
Assim era Sir Alec Nichols.
Vivian, a mulher dele, era, porém, completamente diferente. Tanto quanto Alec era generoso e gentil, Vivian era egoísta e imprevidente. Era a criatura mais egocêntrica que Elizabeth já havia conhecido. Anos antes, quando Elizabeth estava passando um fim de semana na casa de campo deles, em Gloucestershire, foi fazer um piquenique sozinha.
Mas começou a chover e ela voltou para casa. Entrou pela porta dos fundos e atravessava o corredor quando ouviu vozes alteradas no escritório.
- Estou cansada de servir de babá para essa fedelha - dizia Vivian. - Pode ficar com sua danada priminha e tratar de diverti-la esta noite. Vou a Londres. Tenho um compromisso.
- Você pode cancelar esse compromisso, Vivian. A menina só vai ficar mais um dia conosco e depois…
- Sinto muito, Alec. Estou precisando de homem, e é isso que eu vou fazer esta noite.
- Pelo amor de Deus, Vivian!
- Veja se me esquece! E não tente viver minha vida por mim! Neste momento, antes que Elizabeth pudesse mover-se, Vivian saiu impetuosamente do escritório. Olhou de relance o rosto espantado de Elizabeth e disse alegremente: - Já voltou, queridinha? - E subiu.
Alec chegou à porta do escritório e disse gentilmente:
- Entre, Elizabeth.
Ela acompanhou o primo sem muita disposição. O rosto de Alec estava vermelho de vergonha e confusão. Elizabeth gostaria muito de consolá-lo, mas não sabia o que dizer. Alec dirigiu-se para uma mesa grande de refeitório, pegou um cachimbo, encheu-o de fumo e acendeu-o. Elizabeth teve a impressão de que ele gastara um tempo enorme nisso.
- Você deve compreender Vivian.
- Alec, não tenho nada com isso. Eu…
- De certo modo tem, Elizabeth. Você é da família e eu não quero que pense mal dela. Elizabeth não podia acreditar. Depois da horrível cena que acabara de presenciar, Alec estava querendo defender a mulher. - Às vezes, em um casamento - continuou Alec - marido e mulher têm necessidades diferentes. Não quero que você pense mal de Vivian pelo fato de eu não poder atender a certas necessidades dela. Vivian não tem culpa…
Elizabeth não pôde conter-se.
- Ela costuma… gozar da companhia de outros homens?
- Creio que sim - respondeu Alec.
Elizabeth ficou horrorizada.
- Por que não a deixa então?
Alec deu-lhe um sorriso.
- Não posso, minha filha. Acontece que eu gosto dela. No dia seguinte, Elizabeth voltou para a escola. Mas, a partir desse dia, sentiu-se mais do que nunca ligada a Alec.
Elizabeth vivia ultimamente muito preocupada com o pai. Ele parecia ter algum problema, e ela não fazia a menor idéia do que fosse. Chegara um dia a perguntar-lhe e ele dissera:
- Apenas um pequeno problema que tenho de resolver. Depois lhe conto tudo.
Havia se tornado muito reservado, e Elizabeth não tinha mais acesso a seus papéis particulares.
Quando ele lhe disse que ia partir no dia seguinte para Chamonix para fazer um pouco de alpinismo, Elizabeth ficou satisfeita. Sabia que ele precisava de um pouco de repouso. Tinha emagrecido e andava pálido e abatido.
- Vou fazer as reservas para você.
- Não precisa, Elizabeth. Já estão feitas.
Também isso não estava nos hábitos dele. Partiu para Chamonix na manhã seguinte. Foi a última vez em que o viu. Nunca mais o veria…
Elizabeth ficou deitada no quarto às escuras, recordando. Havia uma impressão de irrealidade persistente em torno da morte de seu pai. Ela era a última descendente direta da família Roffe. Se não fosse ela, o nome desapareceria. Que iria acontecer à empresa?
Seu pai sempre tivera o controle acionário nas mãos. Para quem teria ele deixado as suas ações? Elizabeth ficou sabendo na tarde seguinte. O advogado de Sam apareceu em sua casa.
- Trouxe uma cópia do testamento de seu pai. Sinto muito importuná-la num momento triste como este, mas creio que é bom que fique sabendo o quanto antes. Você é a herdeira universal de seu pai. Isso quer dizer que as ações que representam o controle da maioria da Roffe and Sons estão em suas mãos.
Elizabeth não podia acreditar. Sam não devia ter certamente esperado que ela pudesse dirigir a empresa…
- Porquê? Porquê eu?
O advogado hesitou um pouco e disse:
- Permita-me falar-lhe com toda a franqueza. Seu pai era um homem relativamente novo. Tenho certeza de que esperava ainda ter muitos anos de vida. Com o tempo, ele faria naturalmente outro testamento, apontando a pessoa que deveria assumir o controle da companhia. Com toda a certeza, ainda não havia resolvido nada. Mas tudo agora não tem importância. A realidade é que o controle está em suas mãos e cabe-lhe decidir o que fazer, bem como escolher a pessoa que dirigirá a empresa. Nunca houve uma mulher na diretoria da Roffe and Sons, mas, no momento pelo menos, terá de tomar o lugar de seu pai. Há uma reunião da diretoria, na sexta-feira, em Zurique. Poderá comparecer?
Sam não esperaria outra coisa dela. E o velho Samuel também.
- Estarei lá - disse Elizabeth.
LIVRO SEGUNDO
Capítulo 15 Portugal. Quarta-feira, 9 de setembro. Meia-noite.
Num quarto de um pequeno apartamento da Rua dos Bombeiros, numa das ruas escusas e tortuosas do Alto Estoril, estavam rodando uma cena para um filme. Havia quatro pessoas no quarto. Um cameraman, os dois atores sentados na cama, um homem de cerca de trinta anos e uma mulher loura e jovem de uma beleza estonteante, que não usava coisa alguma a não ser uma fita vermelha em volta do pescoço. O homem era alto, com ombros largos de atleta e um peito largo, Estranhamente desprovido de pêlos.
Seu pênis, mesmo não ereto, era enorme. A quarta pessoa era um espectador, sentado em segundo plano. Usava óculos escuros e um chapéu preto de abas largas. O cameraman olhou para o espectador e este lhe fez um sinal. O cameraman ligou a máquina e disse aos atores:
- Pronto! Ação!
O homem ajoelhou-se ante a mulher, e ela tomou seu pênis na boca, até que ele começou a endurecer. Numa pausa a mulher disse:
- Nossa, como é grande!
E depois, à ordem do cameraman, o homem penetrou-a.
- Devagar, querido. - Ela tinha uma voz alta e lamuriosa.
- Parece que você está gostando.
- Como posso gostar? Tem o tamanho de uma melancia.
O espectador se inclinava na sua cadeira e acompanhava tudo o que estava acontecendo. Estava com a respiração ofegante. Aquela mulher era a terceira, e ainda mais bela que as outras. A mulher começou a agitar-se e a gemer na cama.
- Sim, sim - gemeu. - Não pare! - Ela segurou o homem pelos quadris e puxou-o em sua direção. O homem reagiu fazendo movimentos mais vigorosos e rápidos. Ela enterrou suas unhas nas costas nuas do homem. - Oh, sim - ela gemeu -, sim, sim, sim!
Vou gozar!
O cameraman voltou-se para o espectador e este fez um sinal, com os olhos brilhando por trás dos óculos escuros.
- Agora! -disse o cameraman ao homem em cima da cama. A mulher, empolgada nas suas sensações, nem o ouviu. Enquanto seu rosto se enchia de êxtase, as grandes mãos do homem se fecharam em torno do seu pescoço e ela começou a debater-se, num esforço desesperado para respirar. Olhou para o homem, espantada, e então os seus olhos encheram-se de uma súbita e aterrorizada compreensão.
O espectador pensou: é esse o momento! Os olhos dela! Os olhos estavam dilatados de terror. Lutou em vão para livrar-se das mãos de ferro que lhe apertavam o pescoço. O seu orgasmo e os estertores da morte se fundiram. O espectador tinha o corpo ensopado de suor. A excitação era insuportável. No meio do mais refinado prazer da vida, a mulher morria. De súbito, tudo acabou. O espectador estava exausto, abalado por espasmos, com os pulmões cheios de longos haustos entrecortados. A mulher fora punida. O espectador se sentia como um deus.
Capítulo 16 Zurique. Sexta-feira, 11 de setembro. Meio-dia.
A sede mundial da Roffe and Sons ocupava vinte e cinco hectares ao lado do Sprettenbach, nos arredores da parte oeste de Zurique. O edifício da administração consistia em uma estrutura moderna de doze andares com paredes de vidro, elevando-se sobre um imenso conjunto de edifícios de pesquisa, fábricas, usinas, laboratórios experimentais, divisões de planejamento e ramais de caminhos de ferro. Era o centro nervoso do vasto império da Roffe and Sons.
O vestíbulo de recepção era arrojadamente moderno, decorado de verde e branco, os móveis dinamarqueses. Uma recepcionista ficava sentada a uma mesa de vidro, e as pessoas admitidas no interior do edifício tinham de ser acompanhadas por um guia. Nos fundos do vestíbulo, do lado direito, havia uma série de elevadores, um deles reservado para o presidente da companhia. Naquela manhã, esse elevador particular tinha sido usado pelos componentes da diretoria.
Haviam chegado nas últimas horas vindos de vários pontos do mundo, de avião, trem, helicópteros e automóvel. Estavam reunidos naquele momento no grande salão da diretoria, de alto pé-direito e paredes revestidas de carvalho. Lá estavam Sir Alec Nichols, Walther Gassner, Ivo Palazzi e Charles Martel. A única pessoa presente que não fazia parte da diretoria era Rhys Williams. Refrescos e drinques estavam servidos numa mesa ao lado, mas ninguém se mostrava interessado. Todos estavam tensos e nervosos.
Kate Erling, uma suíça eficiente de quase cinqüenta anos, entrou na sala e anunciou:
- O carro da Senhorita Roffe acaba de chegar.
Correu os olhos pela sala a fim de ver se tudo estava em ordem: canetas, blocos de papel e garrafas de prata com água diante de cada cadeira, charutos e cigarros, cinzeiros e fósforos. Kate Erling fora secretária particular de Sam Roffe durante quinze anos. O fato de ele estar morto não era motivo para que ela baixasse os seus padrões de eficiência. Ao ver que tudo estava correto, retirou-se da sala.
Embaixo, em frente ao edifício da administração, Elizabeth Roffe estava saltando de um carro. Usava um costume escuro e uma blusa branca. Não tinha qualquer maquiagem. Parecia ter menos do que os seus vinte e quatro anos e estava muito pálida e abatida. Os jornalistas estavam à espera dela. Foi logo cercada pelos repórteres dos jornais e da televisão, munidos de câmaras e microfones.
- Sou do L'Europeu, Senhorita Roffe. Quer fazer alguma declaração. Quem vai dirigir agora a companhia? - Olhe para cá, Senhorita Roffe. Pode dar um sorriso para os nossos leitores?
- Sou da Associated Press, Senhorita Roffe. Quer falar sobre o testamento de seu pai? - Do Daily News, de Nova York.
Seu pai não era um bom alpinista? Já o encontraram?
- Do Wall Street Journal. Quer dizer-nos alguma coisa sobre a situação da companhia?
- Sou do Times, de Londres. Pretendemos escrever um artigo sobre a Roffe e…
Elizabeth seguiu pelo vestíbulo, escoltada por três guardas de segurança que abriam caminho por entre os repórteres.
- Mais uma fotografia, Senhorita Roffe…
Elizabeth se viu por fim no elevador, cujas portas se fecharam. Deu um suspiro e estremeceu. Sam estava morto. Porque não a deixavam em paz? Alguns instantes depois, Elizabeth entrava na sala da diretoria.
Alec Nichols foi a primeira pessoa a cumprimentá-la. Passou os braços pelos ombros dela e disse:
- Meus sentimentos, Elizabeth. Foi um choque para todos nós. Vivian e eu tentamos telefonar-lhe, mas…
- Eusei. Muito obrigada, Alec. Obrigada por sua carta.
Ivo Palazzi aproximou-se e beijou-a nas duas faces.
- O que é que posso dizer, cara? Você está bem?
- Muito bem. Obrigada, Ivo. - Voltou-se. - Alo, Charles.
- Elizabeth, Hélsne e eu ficamos arrasados. Se houver alguma coisa que possamos fazer…
- Obrigada. Walther Gassner se aproximou de Elizabeth e disse sinhestramente. - Anna e eu queremos exprimir o nosso grande pesar pelo que aconteceu a seu pai…
- Obrigada, Walther. Não queria estar ali entre toda aquela gente que lhe lembrava o pai. Queria fugir, ficar sozinha.
Rhys Williams estava de lado, pensando: Se não pararem com isso, ela vai ter alguma coisa. Aproximou-se deliberadamente do grupo, estendeu a mão e disse:
- Alo, Liz.
- Alo Rhys.
Vira-o pela última vez quando ele fora até sua casa para dar-lhe a notícia da morte de Sam. Parecia que haviam se passado anos. Fora apenas uma semana antes. Rhys tinha consciência do esforço que Elizabeth estava fazendo para manter a linha. Disse então:
- Já que todos estão aqui, por que não começamos? Não vai demorar muito - acrescentou com um sorriso para tranqüilizá-la.
Ela sorriu, agradecendo. Os homens tomaram os seus lugares habituais em volta da grande mesa retangular de carvalho. Rhys levou Elizabeth para a cabeceira da mesa e puxou uma cadeira para ela. A cadeira de meu pai, pensou Elizabeth. Charles disse então:
- Como não temos uma agenda, proponho que Sir Alec assuma a direção dos trabalhos. Alec olhou em torno e, como todos manifestaram a sua aprovação, disse: - Muito bem.
Apertou um botão que estava à sua frente na mesa e Kate Erling voltou com o caderno de notas. Fechou a porta, puxou uma cadeira, preparou o caderno e as canetas e esperou.
- Creio que, em vista das circunstâncias, podemos dispensar as formalidades - disse Alec. - Todos nós sofremos uma terrível perda, mas o essencial agora é que a Roffe and Sons mostre ao público uma atitude coesa e firme.
- De acordo - disse Charles. - Temos sido muito atacados pela imprensa.
Elizabeth olhou para ele e perguntou:
- Por quê?
Foi Rhys quem explicou:
- A companhia está enfrentando alguns problemas excepcionais nestes últimos tempos, Liz. Estamos envolvidos em questões jurídicas delicadas, estamos sobre investigação do governo e alguns bancos estão fazendo pressão sobre nós. Nada disso é bom para a companhia. O público adquire produtos farmacêuticos porque tem confiança na companhia que os fabrica. Se perdermos essa confiança, perderemos os nossos fregueses.
- Não há, porém, um só problema que não possa ser resolvido - disse Ivo.
- O essencial é reorganizar imediatamente a companhia.
- Como? - perguntou Elizabeth.
- Vendendo nossas ações ao público - respondeu Walther.
Charles acrescentou:
- Dessa maneira, podemos liquidar os nossos empréstimos bancários e ainda teremos dinheiro de sobra para… Não concluiu a frase e Elizabeth se voltou para Alec.
- Está de acordo com isso?
- Creio que todos nós estamos de acordo, Elizabeth.
Ela se recostou na cadeira, pensando. Rhys se aproximou dela com alguns papéis.
- Já mandei preparar todos os documentos necessários. Terá apenas que assinar. Elizabeth olhou para os papéis à sua frente e perguntou:
- Se eu assinar esses documentos, o que vai acontecer?
Foi Charles quem falou:
- Temos cerca de uma dúzia de escritórios internacionais de corretagem prontos a formar um consórcio para subscrever a nossa emissão. Garantirão a venda pelo preço que mutuamente assentarmos. Numa oferta tão grande assim, haverá compras de instituições e de particulares em grande número.
- Por exemplo, bancos e companhias de seguro? - perguntou Elizabeth.
- Exatamente.
- E haverá homens de confiança deles na diretoria da companhia?
- É de praxe…
- Quer dizer que, na realidade, eles passariam a controlar a Roffe and Sons?
- Nós continuaríamos na diretoria - apressou-se em dizer Ivo. Elizabeth voltou-se para Charles.
- Disse que há um consórcio de corretores, ainda não entraram em ação?
- Não compreendo, Elizabeth…
- Escute,se todos aqui estão de acordo em que a melhor coisa para a companhia é deixar de pertencer à nossa família e passar às mãos de estranhos, por que isso ainda não foi feito?
Houve um silêncio constrangido, e afinal Ivo disse:
- Uma decisão assim exige um consenso unânime. Toda a diretoria tem de concordar.
- Quem não concordava?. - perguntou Elizabeth.
O silêncio foi mais longo desta vez.
- Sam - disse finalmente Rhys.
Elizabeth compreendeu então o que a havia perturbado desde que entrara naquela sala. Todos tinham manifestado as suas condolências, o choque e o pesar que sentiam com a morte do pai dela, mas, ao mesmo tempo, havia na sala uma atmosfera de ansiedade e expectativa, um sentimento de vitória! Não lhe era possível fugir dessa impressão. Todos os papéis estavam prontos para ela. Teria apenas de assinar. Mas, se o que pretendiam era certo, por que o pai dela se opusera? Fez essa pergunta em voz alta.
- Ora, Sam tinha lá as suas idéias - disse Walther. - Seu pai era, às vezes, muito obstinado em certas coisas.
Como o velho Sam, pensou Elizabeth. Nunca se deve deixar uma raposa dócil entrar no galinheiro. Um dia, a raposa pode ter fome. E Sam não quisera vender. Deveria ter tido muito boas razões.
Ivo disse:
- Creio, cara, que é melhor deixar tudo isso conosco. Você não entende dessas coisas.
- Mas gostaria de entender - disse calmamente Elizabeth.
- Porquê incomodar-se com essas coisas? - perguntou Walther. - Quando as ações forem vendidas, terá uma enorme fortuna, mais do que conseguirá gastar. Poder ir viver onde quiser e gozar a vida.
O que Walther dizia era sensato. Por que iria ela envolver-se naquelas coisas?
Bastava assinar os papéis que estavam à sua frente e ir embora.
- Elizabeth, estamos simplesmente perdendo tempo - disse Charles, com impaciência. - Não pode fazer outra coisa.
Foi nesse momento que Elizabeth compreendeu que poderia fazer o que quisesse, como seu pai. Podia afastar-se e deixar que eles fizessem o que bem entendessem com a companhia ou ficar e descobrir por que estavam todos eles tão ansiosos por vender as ações e exerciam sobre ela uma pressão tão visível.
Não só visível como quase material. Todos naquela sala desejavam que ela assinasse o quanto antes aqueles papéis.
Olhou para Rhys. Gostaria de saber o que ele estava pensando. Mas a sua expressão era indefinível. Olhou para Kate Erling, que tinha sido por muito tempo secretária de seu pai. Elizabeth gostaria de ter uma palavra em particular com ela. Todos olhavam para Elizabeth, à espera de que ela assinasse.
- Não vou assinar - disse ela. - Pelo menos, por enquanto.
Houve um momento de atônito silêncio. Walther disse então:
- Não compreendo, Elizabeth. É claro que você deve assinar. Tudo já está providenciado nesse sentido.
- Walther tem razão! - exclamou Charles irritadamente. - Você tem de assinar!
Começaram a falar ao mesmo tempo, uma confusão exaltada de palavras que iam quebrar-se de encontro a Elizabeth.
- Por que não quer assinar? - perguntou afinal Ivo. Ela não podia dizer: "Porque meu pai não assinaria. Porque vocês estão me forçando". Tinha a nítida impressão de que havia alguma coisa errada em tudo aquilo, e estava decidida a descobrir o que era.
Mas, naquele momento, disse apenas:
- Quero um pouco de tempo para pensar no assunto.
Os homens se entreolharam.
- Quanto tempo, cara? perguntou Ivo.
- Não sei ainda. Gostaria de compreender os fatos e as questões em jogo. Walther exclamou iradamente:
- Ora essa! Não podemos…
Mas Rhys atalhou firmemente:
- Acho que Elizabeth tem razão. - Os outros voltaram-se para ele. - Ela deve ter oportunidade de ver com clareza os problemas que a companhia está enfrentando e chegar a uma decisão.
Todos pensaram no que Rhys havia dito.
- Concordo com isso - disse Alec.
- Não faz diferença concordarmos ou não -disse amargamente Charles. - Elizabeth é quem tem o controle de tudo. Ivo olhou para Elizabeth.
- Precisamos de uma decisão rápida, cara.
- Está bem.
Todos a olharam, cada qual ocupado com os seus pensamentos.
Um deles pensava: "Ela também terá de morrer".
Capítulo 17 Elizabeth estava impressionada. Havia estado outras vezes na sede da companhia em Zurique, mas sempre como visitante. O domínio sobre tudo aquilo pertencia a seu pai.
Agora, o domínio era dela. Olhava para o enorme escritório e sentiu-se como uma intrusa.
A sala fora magnificamente decorada por Ernst Hohl. Em um canto, havia um armário de Roentgen, sobre o qual se via uma paisagem de Millet. Diante da lareira, havia um sofá de camurça, com uma mesa de café e quatro poltronas. Nas paredes, telas de Renoir, Chagall e Klee, bem como dois quadros da primeira fase de Courbet. A mesa era um bloco sólido de mogno preto. Ao lado dela, numa mesa menor, havia um complexo de comunicações - telefones em ligação direta com as filiais da companhia através do mundo.
Havia dois telefones vermelhos com dispositivos para misturar as palavras, um sistema sofisticado de interfones, um telégrafo de fitas e outros equipamentos. Atrás da mesa via-se um retrato do velho Samuel Roffe. Uma porta levava a uma sala particular com armários de cedro e gavetas forradas. Tinham levado dali todas as roupas de Sam, e Elizabeth ficou satisfeita com isso. Depois da sala, havia um banheiro revestido de ladrilhos, com uma banheira e box. Havia toalhas limpas nos cabides.
O armário de remédios estava vazio. Todas as coisas de uso pessoal de seu pai tinham sido retiradas dali, talvez pela secretária. Elizabeth pensou por um instante na possibilidade de que Kate Erling tivesse amado Sam. Havia ainda, como partes do escritório de Sam, uma grande sauna, um ginásio bem equipado, uma barbearia e uma grande sala de jantar, com acomodação para cem pessoas.
Quando se recebiam convidados estrangeiros, uma pequena bandeira do país deles era colocada no ornamento floral ao centro da mesa. Além disso, havia a sala de jantar particular de Sam, decorada com muito gosto e com paredes ornadas de murais.
Kate Erling havia explicado a Elizabeth:
- Há dois cozinheiros de serviço durante o dia e um à noite. Se houver mais de doze convidados para o almoço ou para o jantar, eles precisam ser avisados apenas duas horas antes.
Naquele momento, Elizabeth estava sentada à mesa abarrotada de papéis, memorandos, estatísticas e relatórios, e não sabia por onde começar.
Pensou no pai ali sentado naquela cadeira e sentiu-se dominada por uma terrível impressão de abandono. Sam era tão competente, tão brilhante! Como precisava dele naquele momento! Elizabeth vira Alec apenas por alguns instantes antes que ele partisse para Londres.
- Tenha calma - dissera ele. - Não deixe ninguém forçá-la a fazer coisa alguma. Ele tinha percebido os sentimentos dela.
- Alec,acha mesmo que eu devo permitir a venda das ações da companhia ao público? Ele sorriu e dissera com algum constrangimento:
- Acho que sim, minha filha, mas acontece que eu sou interessado no caso.
Nossas ações não têm valor para qualquer de nós enquanto não pudermos vendê-las.
Cabe a você decidir.
Elizabeth pensava nessa conversa ao ver-se ali sentada no grande escritório. A tentação de telefonar para Alec era quase irresistível. Bastava que dissesse que havia mudado de idéia. Poderia então ir embora. Aquele não era o lugar dela. Sentiu-se deslocada e incapaz. Olhou para os botões do interfone na mesa do lado. Pensou um momento e então apertou o botão que tinha o nome de Rhys Williams.
Rhys estava sentado diante dela. Elizabeth sabia muito bem o que ele estava pensando. Era o mesmo que os outros. Ela não tinha o que fazer ali.
- Você jogou uma verdadeira bomba hoje, na reunião - disse Rhys.
- Sinto muito a surpresa que causei.
- Surpresa não é bem a palavra - disse ele com um sorriso. - Você aniquilou todo mundo. Julgava-se o caso pronto e resolvido. Os comunicados à imprensa já estavam até prontos. Escute, Liz. Por que você resolveu não assinar?
Como é que ela podia explicar? Como podia dizer que tudo não havia passado de uma vaga intuição? Rhys iria rir dela. Entretanto, Sam Roffe nunca vendera as ações da companhia. Ela estava empenhada em saber o motivo. Como se lhe tivesse adivinhado os pensamentos, Rhys disse:
- Seu trisavô fundou a companhia como um negócio de família, fechado aos estranhos. Mas no tempo de seu trisavô, a companhia era pequena. As coisas mudaram muito desde então. Hoje, temos uma das maiores indústrias de produtos farmacêuticos do mundo. Quem se sentar aí na cadeira de seu pai terá de tomar todas as decisões importantes. é uma responsabilidade tremenda.
Seria aquela a maneira de Rhys dizer-lhe que tinha de sair?
- Está disposto a ajudar-me?
- Você bem sabe que sim. -Elizabeth sentiu uma onda de alívio e compreendeu quanto havia contado com ele.- A primeira coisa que temos de fazer -disse então Rhys - é levá-la para correr as fábricas aqui em Zurique. Sabe alguma coisa sobre a estrutura física da companhia?
- Quase nada.
Não era bem verdade. Elizabeth havia comparecido nos últimos anos a muitas reuniões de Sam e tinha alguma ciência do funcionamento da Roffe and Sons. Mas queria saber tudo do ponto de vista de Rhys.
- Nós não fabricamos apenas medicamentos, Liz. Produzimos também substâncias químicas, perfumes, vitaminas, sprays para cabelos e pesticidas. Fabricamos produtos de beleza e outros bioeletrônicos. Temos ainda uma divisão de alimentos e outra de nitratos animais. Publicamos revistas, adesivos, material de proteção para construção e explosivos plásticos. Elizabeth notara o entusiasmo dele pelo que dizia e, ao perceber-lhe um tom de orgulho na voz, lembrou-se estranhamente do pai. -A Roffe and Sons tem fábricas e companhias que possuem a maioria das ações de outras em mais de cem países. Todas elas diretamente subordinadas a este escritório. - Fez uma pausa, como se quisesse ter certeza de que ela estava compreendendo. -O velho Samuel começou com uma égua velha e um tubo de ensaio. Tudo se expandira em sessenta fábricas através do mundo, dez centros de pesquisas e um conjunto de milhares de vendedores e propagandistas. Elizabeth sabia que eram eles que visitavam os médicos e os hospitais. - No ano passado, Liz, só nos Estados Unidos, gastaram-se catorze bilhões de dólares em medicamentos, e uma parte substancial desse movimento foi nossa.
Apesar disso, a Roffe and Sons enfrentava problemas com os bancos. Alguma coisa devia estar errada.
Rhys levou Elizabeth para correr as fábricas da sede da companhia. A divisão de Zurique constava de doze fábricas espalhadas por setenta e cinco edifícios nos vinte e cinco hectares de terreno. Era um mundo em miniatura, completamente auto-suficiente.
Visitaram as fábricas, os departamentos de pesquisa, os laboratórios de toxicologia, os depósitos.
Rhys levou Elizabeth a um estúdio de cinema onde se faziam filmes para pesquisas e para as divisões de publicidade e de produtos do mundo inteiro.
- Usamos mais filmes aqui - disse Rhys - do que qualquer grande estúdio de Hollywood.
Passaram pelo departamento de biologia molecular e pelo centro de líquido, onde cinquenta gigantescos tanques de aço inoxidável estavam cheios de líquidos prontos para serem engarrafados. Viram as salas de comprimidos, onde diversas espécies de pó recebiam a forma de comprimidos, que eram marcados com o nome Roffe, embalados e rotulados sem que a pessoa tocasse neles. Alguns dos produtos eram destinados a venda sob prescrição médica, ao passo que outros podiam ser livremente vendidos nas farmácias.
Separados dos outros, havia vários edifícios menores. Destinavam-se aos cientistas: analistas, químicos, bioquímicos, químicos orgânicos, parasitologistas, patologistas.
- Mais de trezentos cientistas trabalham aqui - disse Rhys. - Agora, vou mostrar-lhe a Sala dos Cem Milhões de Dólares.
Era um edifício de tijolo isolado dos outros, vigiado por um guarda armado. Rhys mostrou a sua carteira de diretoria, e ele e Elizabeth entraram por um cumprido corredor ao fim do qual havia uma porta de aço. O guarda usou duas chaves para abrir a porta, e Elizabeth e Rhys entraram. A sala não tinha janelas. Do chão ao teto estava cheia de estantes, nas quais se via uma extensa variedade de frascos, jarros e tubos.
- Por que se chama isto aqui de Sala dos Cem Milhões de Dólares? - perguntou Elizabeth. - Porque foi o que se gastou para enchê-la. Está vendo esses recipientes nas prateleiras? Nenhum deles tem nome, mas apenas um número.
São as substâncias que não deram resultado. São os nossos insucessos.
- Mas, por que cem milhões?
- Para cada novo medicamento aprovado, há talvez mil outros que terminam nesta sala e então abandonados. Um medicamento pode custar cinco ou dez milhões de dólares em trabalhos de pesquisa, até chegar à conclusão que não serve para o fim a que se destina ou que alguém o fabricou antes de nós. Não jogamos nada fora, pois pode acontecer que algum dos nossos moços brilhantes faça uma descoberta que torne valiosa alguma coisa existente nesta sala. - As quantias envolvidas em tudo aquilo eram fantásticas. - Agora, vou lhe mostrar a Sala do Prejuízo.
Ficava em outro edifício e, como a outra, estava cheia de estantes de vidros.
- Perdemos uma fortuna aqui - disse Rhys. - Mas tudo foi planejado.
- Não compreendo.
Rhys pegou de uma prateleira um vidro que tinha o rótulo "Botulismo".
- Sabe quantos casos de Botulismo nos Estados Unidos, no ano passado? Vinte e cinco apenas. Mas, quando recorreram a nós, tínhamos em estoque o medicamento necessário, muito embora isso nos custasse milhões de dólares. Esta sala está cheia de medicamentos para doenças raras - venenos de determinadas cobras, plantas venenosas, etc. Fornecemos esses medicamentos gratuitamente às forças armadas e aos hospitais, como um serviço público.
- Gosto disso - murmurou Elizabeth, e pensou que o velho Samuel teria gostado também.
Rhys levou Elizabeth à divisão de cápsulas, onde frascos vazios eram transportados através de esteiras rolantes. Ao sair da sala, os vidros tinham sido esterilizados, enchidos de cápsulas, rotulados, tapados com algodão e fechados. Todo o processo era automático. Havia uma fábrica de frascos, uma divisão de arquitetura para o planejamento de novos edifícios e uma divisão imobiliária para tratar da compra e da adaptação dos terrenos. Num edifício, havia dezenas de redatores escrevendo bulas e prospectos em cinquenta línguas, ao lado de impressoras que os imprimiam. Alguns departamentos fizeram Elizabeth pensar no 1984 de George Orwell. As salas de esterilização eram banhadas em fantásticas luzes ultravioletas.
As salas adjacentes eram pintadas de cores diferentes - branco, verde ou azul -, e as pessoas que nelas trabalhavam usavam roupas de cores correspondentes. Cada vez que uma delas entrava ou saía da sala, tinha de passar por uma câmara especial de esterilização. Os trabalhadores de roupa azul ficavam trancados o dia inteiro. Antes que pudessem comer, descansar ou ir ao banheiro, tinham de tirar a roupa, entrar numa zona verde neutra, vestir outra roupa, e inverter o processo quando voltassem.
- Creio que vai achar isso muito interessante - disse Rhys.
Iam pelo corredor cinzento de um edifício de pesquisa. Chegaram a uma porta, na qual se via o letreiro: "Reservado - Não entre". Rhys empurro a porta e entrou com Elizabeth. Passaram por outra porta, e Elizabeth se viu numa sala iluminada com uma luz fraca. Havia centenas de gaiolas com animais. A sala estava quente e úmida, e ela se sentiu de repente transportada para uma selva. Quando habituou os olhos à luz fraca, viu que as gaiolas estavam cheias de macacos, hamsters, gatos e ratos brancos. Muito dos animais tinham excrescências de aspecto repulsivo projetando-se de várias partes do corpo. Alguns animais estavam com as cabeças raspadas e mostravam elêtrodos que lhes tinham sido implantados nos cérebros. Muito deles gritavam em tremenda algazarra, correndo dentro das gaiolas, enquanto outros pareciam em estado comatoso e letárgico.
O barulho e o mau cheiro eram insuportáveis. Era uma espécie de inferno. Elizabeth aproximou-se de uma gaiola em que havia um gatinho branco. O cérebro do animal estava exposto, dentro de um revestimento claro de plástico, do qual se projetava meia dúzia de fios.
- Para… para que isso? - perguntou Elizabeth.
Um homem alto e barbado, que tomava algumas notas em frente das gaiolas, explicou:
- Estamos testando um novo tranquilizante.
- Espero que dê resultado - murmurou Elizabeth. - Bem que eu ando precisando disso.
E saiu da sala antes de começar a passar mal. Rhys estava ao lado dela no corredor.
- Está sentindo alguma coisa, Liz?
Ela respirou fundo e disse:
- Estou bem… Mas há mesmo necessidade de tudo isso?
- Essas experiências salvam muitas vidas, Liz. Mais de um terço das pessoas que nasceram depois de 1950 estão vivas graças às drogas modernas. Pense nisso.
Elizabeth assim o fez.
Levaram seis dias inteiros para conhecer os principais edifícios, e quando tudo terminou, Elizabeth estava exausta, atordoada com a vastidão de tudo o que vira. E compreendia que vira apenas uma parte das instalações da companhia. Havia dezenas delas espalhadas pelo mundo. Os fatos e os números eram espantosos. "São necessários cinco ou dez anos para lançar no mercado um novo medicamento, e, em geral, de cerca de duas mil substâncias testadas, só aproveitamos três produtos…" "A Roffe and Sons tem trezentas pessoas trabalhando só no controle de qualidade…" "Há pelo menos meio milhão de pessoas ao serviço da companhia…" "Nossa receita bruta no ano passado foi de…" Elizabeth escutava, procurando assimilar os incríveis números que Rhys lhe revelava. Sabia que a companhia era grande, mas "grande" era um adjetivo quase abstracto. Ter essa grandeza traduzida em termos de pessoas e de dinheiro era estarrecedor.
Naquela noite, Elizabeth ficou na cama pensando em tudo o que havia visto e ouvido, e foi tomada por um poderoso sentimento de impotência. Ivo lhe dissera que não devia se meter com essas coisas que não entendia, deixando tudo com eles. Alec achava que ela devia assinar, embora tivesse interesse na venda das ações. Walther era de opinião que ela devia assinar, receber uma fortuna e gozar a vida como quisesse. Eles têm razão, pensou Elizabeth. Vou me afastar e deixar que façam com a companhia o que quiserem. Eu não sou do ramo. Depois de chegar a essa decisão, o seu alívio foi enorme.
Adormeceu quase imediatamente.
O dia seguinte, era o início de um fim de semana prolongado por um feriado.
Quando Elizabeth chegou ao escritório, mandou chamar Rhys para comunicar-lhe a sua decisão.
- O Sr. Williams teve de tomar o avião para Nairóbi, ontem à noite - informou-lhe Kete Erling. - Pediu-me que lhe dissesse que estará de volta na terça-feira. Não serve outra pessoa?
- Faça então uma ligação para Sir Alec.
- Está bem, Senhorita Roffe - disse Kate Erling, com uma nota de hesitação na voz. - A polícia lhe mandou hoje um pacote com os objetos de uso pessoal deixados por seu pai em Chamonix. A noção de Sam reavivou no mesmo instante a sua dor. - A polícia pediu desculpas por não haver entregue o pacote ao seu mensageiro. Já lhe havia sido remetido.
- Meu mensageiro?
- Sim,o homem que mandou a Chamonix para pegar tudo.
- Mas eu não mandei ninguém a Chamonix. Onde está o pacote? - perguntou Elizabeth, julgando tratar-se de alguma confusão burocrática.
- Guardei no seu armário.
Encontrou uma mala Vuitton com as roupas de Sam. Havia também uma mala trancada, tendo ao lado a chave. Devia ser papéis da companhia. Entregaria tudo a Rhys para ver de que se tratava. Lembrou-se, então, de que ele estava ausente. Bom, decidiu ela, também vou passar o fim de semana fora. Olhou então para a pasta e pensou que talvez contivesse alguma coisa pessoal e íntima de Sam. Primeiro tinha que olhar. Kate Erling falou pelo interfone.
- Sinto muito, Senhorita Roffe, mas Sir Alec não está no escritório.
- Deixe então um recado para que me telefone logo que puder. Estarei na Villa da Sardenha. Dê o mesmo recado ao Sr. Palazzi, ao Sr. Gassner e ao Sr. Martel.
Diria a todos que ia desistir e que eles podiam vender as ações e fazer o que quisessem. Pensou com prazer no fim de semana que a esperava. A Villa da Sardenha era um retiro, um casulo protetor, onde ela poderia ficar sozinha e pensar em si mesma e no seu futuro. Os acontecimentos haviam se passado com tal rapidez que ela não tivera tempo de ver as coisas sob outro prisma. O acidente de Sam… Elizabeth ainda não aceitava a palavra "morte". Depois, a sua herança do controle da companhia, a pressão da família para que ela vendesse as ações ao público, a própria companhia, a pulsação vibrante de um poder colossal que abarcava o mundo. Era difícil enfrentar tudo isso de uma vez. Naquela noite, quando tomou o avião para a Sardenha, Elizabeth levava a pasta do pai.
Capítulo 18 Ela pegou um táxi no aeroporto. A Villa estava fechada, e Elizabeth não comunicara a ninguém a sua chegada. Entrou e percorreu lentamente as grandes salas, tão suas conhecidas, e teve a impressão de que nunca saíra dali. Só então deu-se conta da falta que sentira de Sardenha e da Villa. Parecia que as poucas lembranças felizes de sua infância ali estavam encerradas. E era muito estranho, estar sozinha naquele labirinto onde sempre tinha havido meia dúzia de empregados cozinhando, polindo e arrumando tudo. Naquele momento, porém, estava sozinha, com os ecos do passado. Deixou a pasta de Sam no hall de entrada e levou a sua mala para o andar de cima.
Como de costume dirigiu-se para seu quarto, no centro do corredor, e então parou.
O quarto do pai ficava no fim do corredor. Elizabeth caminhou até lá. Abriu lentamente a porta porque, embora compreendesse a realidade, um profundo instinto atávico a fazia esperar ver Sam ali, e ouvir o som de sua voz.
O quarto estava logicamente vazio e nada havia mudado nele desde que Elizabeth o vira pela última vez. Continha uma cama grande, uma cômoda com espelho, duas poltronas confortáveis e um sofá diante da lareira. Elizabeth deixou a mala no chão e foi até à janela. As persianas de metal estavam fechadas contra o sol de fim de setembro e os reposteiros, cerrados.
Escancarou tudo e deixou que o ar fresco das montanhas entrasse livremente, leve e frio, com a promessa de outono. Dormiria naquele quarto. Depois desceu e entrou na biblioteca. Sentou-se numa das confortáveis poltronas de couro, passando as mãos pelos lados. Era sempre ali que Rhys se sentava quando tinha uma conferência com Sam. Pensou em Rhys e desejou que ele estivesse ali com ela.
Lembrou-se da noite em que ele a levara de volta à escola, depois do jantar em Paris, e de como ela escrevera repetidamente num pedaço de papel "Sra. Rhys Williams".
Num impulso, Elizabeth foi até a mesa, pegou numa caneta e calmamente escreveu "Sra. Rhys Williams". Depois, pensou, com um sorriso: "Quem sabe quantas idiotas estão fazendo a mesma coisa neste momento". Procurou deixar de pensar em Rhys, mas ele permaneceu na sua mente, agradavelmente reconfortante.
Levantou-se e passou uma vista de olhos pela casa. Entrou na grande cozinha antiga, com o seu fogão a lenha e os dois fornos. Abriu a geladeira. Estava vazia. Não era de esperar outra coisa com a casa fechada. Mas, ao ver a geladeira vazia, de repente sentiu fome.
Vasculhou os armários e encontrou duas pequenas latas de atum, um vidro de Nescafé e um pacote fechado de biscoitos. Se ia passar o fim de semana ali, era preciso fazer os seus planos. Em lugar de sair e fazer todas as refeições na cidade, seria melhor ir a um dos pequenos armazéns de Cala di Volpe e fazer compras para vários dias. Havia sempre um jipe na garagem. Olhou pela porta da cozinha e verificou que o jipe ainda estava lá.
As chaves estavam penduradas numa tábua, na parede ao lado do armário. Pegou a chave do jipe e foi até a garagem. Será que havia gasolina no tanque? Girou a chave e pisou o acelerador. O motor começou a funcionar quase imediatamente. Esse problema estava, portanto, eliminado.
No dia seguinte pela manhã, iria comprar tudo o que fosse necessário. Voltou para casa. Ao pisar no chão ladrilhado do hall de entrada, ouviu um eco surdo e um tanto assustador dos próprios passos.
Desejou que Alec lhe telefonasse e, como por encanto, nesse momento o telefone tocou. Apanhou um susto e foi atender.
- Alo.
- Elizabeth? Aqui é Alec.
Elizabeth deu uma risada.
- De que está rindo?
- Você não acreditaria se eu lhe dissesse. Onde é que você está?
- Em Gloucester.
Elizabeth sentiu o urgente impulso de vê-lo, de comunicar-lhe a sua decisão sobre as ações da companhia. Mas não por telefone.
- Quer me fazer um favor, Alec?
- Claro. Que é?
- Pegue um avião e venha passar o fim de semana aqui na Sardenha. Quero conversar sobre uma coisa muito importante com você. Houve apenas uma breve hesitação, e Alec disse:
- Está bem.
Nem uma palavra sobre compromissos já assumidos, sobre os possíveis transtornos. Apenas "Está bem". Alec era assim.
- Pode trazer Vivian -disse Elizabeth com algum esforço.
- Creio que isso não será possível. Ela está agora mesmo… em Londres. Estarei aí amanhã de manhã cedo.
- Ótimo.Telefone-me quando souber a hora e irei esperá-lo no aeroporto.
- Será muito mais simples eu pegar um táxi.
- Está bem. Muito obrigada, Alec. Não sabe o quanto lhe agradeço.
Quando desligou o telefone, Elizabeth sentiu-se infinitamente melhor. Sabia que a sua decisão estava certa. Só se via naquela posição porque Sam tinha morrido antes de ter tempo de apontar um sucessor. Quem seria o novo presidente da Roffe and Sons? A diretoria resolveria isso. Tentou pensar no caso do ponto de vista de Sam, e o nome que lhe veio no mesmo instante à cabeça foi Rhys Williams. Os outros eram competentes nos seus setores, mas Rhys era a única pessoa que tinha conhecimento completo e eficiente do funcionamento global da companhia. Era inteligente e dinâmico. O único problema é que ele não era elegível para a presidência. Não sendo um Roffe, nem casado com uma Roffe, não podia nem ao menos participar das reuniões de diretoria. Chegou ao hall e viu a pasta de seu pai.
Hesitou. Não havia sentido em se submeter àquilo naquele momento. Daria tudo a Alec quando ele chegasse na manhã seguinte. Entretanto, podia haver alguma coisa muito pessoal ali… Levou-a para a biblioteca, colocou-a em cima da mesa, pegou a chave e abriu os dois fechos laterais. No centro da pasta encontrou um grande envelope.
Elizabeth abriu-o e tirou dele um maço de folhas datilografadas dentro de uma pasta de cartolina, na qual estava escrito:
SAM ROFFE CONFIDENCIAL SEM CÓPIAS
Era, evidentemente, um relatório, mas sem qualquer nome, e Elizabeth não podia saber quem o redigira. Começou a passar os olhos pelas folhas e, em dado momento, leu mais atentamente e parou. Não podia acreditar no que estava lendo. Levou os papéis para uma poltrona, tirou os sapatos, encolheu as pernas e recomeçou a leitura da primeira página. Leu todas as palavras e ficou horrorizada.
Era um documento espantoso, o relatório confidencial de uma investigação em torno de uma série de fatos ocorridos no ano anterior. No Chile, uma usina de produtos químicos de propriedade da Roffe and Sons havia sofrido uma explosão, espalhando toneladas de substâncias venenosas por uma área de vinte e cinco quilômetros quadrados. Houve a morte de cerca de dez pessoas e centenas tinham sido internadas em hospitais. Todos os animais da área haviam morrido e a vegetação ficara envenenada. Toda a região tivera de ser evacuada. As ações de indenização impetradas contra a companhia subiram a centenas de milhões de dólares. Mas o espantoso era que a explosão fora criminosa. Dizia o relatório: "A investigação do governo chileno sobre o acidente foi superficial. A conclusão oficial parece ter sido a de que a companhia era rica e o povo, pobre, em vista do que, a companhia tinha de pagar. Não há qualquer dúvida no espírito da nossa equipe de investigação de que houve um ato de sabotagem, da autoria de pessoa ou pessoas desconhecidas, por meio de explosivos plásticos. Em vista da atitude de antagonismo das autoridades locais, ser impossível provar alguma coisa".
Elizabeth se lembrava muito bem do caso. Jornais e revistas haviam publicado reportagens com fotografias das vítimas. A imprensa do mundo inteiro atacara a Roffe and Sons, acusando a companhia de negligência e indiferença para com o sofrimento humano.
O fato havia prejudicado consideravelmente a reputação da empresa. Em seguida, o relatório tratava de importantes projetos de pesquisa em que os cientistas da Roffe and Sons vinham trabalhando havia vários anos. Entre eles, quatro projetos de inestimável valor. O seu desenvolvimento ao todo tinha custado mais de cinquenta milhões de dólares. Em todos os casos, a firma rival havia requerido patentes para os produtos antes da companhia, apresentando fórmulas idênticas. O relatório continuava:
"Um caso isolado poderia ser atribuído a simples coincidência. Num campo em que dezenas de companhias trabalham em setores correlatos, é inviável que várias firmas desenvolvam o mesmo tipo de produto. Mas o fato de que isso tenha acontecido quatro vezes no curto espaço de alguns meses força a concluir que alguém, a serviço da Roffe and Sons, deu ou vendeu o material de pesquisa à firma concorrente. Em vista da natureza secreta das experiências e do fato de que elas se realizaram em laboratórios bem distantes uns dos outros, dentro de condições da m xima segurança, é lógico supor que as pessoas respons veis tenham acesso aos arquivos mais secretos da companhia.
Assim, podemos chegar à conclusão de que se trata de alguém situado no mais alto escalão da Roffe and Sons". Havia mais.
Uma grande quantia de substâncias tóxicas fora erradamente rotulada e despachada. Antes que ela pudesse ser recolhida, tinha havido várias mortes, com péssima publicidade para a companhia. Ninguém sabia quem tinha colocado os rótulos errados. Uma toxina mortífera desaparecera de um laboratório sob pesada guarda. Uma hora depois, uma pessoa não foi identificada havia comunicado o fato aos jornais e desencadeara um alarma.
As sombras da tarde se alongavam lá fora e a noite chegou. Elizabeth continuava totalmente absorvida pelo documento que tinha nas mãos. Quando a sala ficou escura, ela acendeu uma luz e continuou a ler aquela série de horrores. Nem mesmo o tom seco e sucinto do relatório podia dissimular o drama que havia em tudo aquilo. Uma coisa era clara. Alguém estava metodicamente tentando prejudicar ou destruir a Roffe and Sons.
Alguém no mais alto escalão executivo da companhia. Na última página, havia uma nota à margem escrita com a letra precisa e inconfundível de seu pai: "Pressão sobre mim para vender as ações da companhia ao público? é preciso desmascarar o patife!"
Lembrou-se então de como Sam lhe parecera preocupado nos últimos tempos.
Vivia angustiado por aquele terrível segredo e não tinha em quem confiar. A nota na primeira página dizia que não havia cópias. Elizabeth julgava que o relatório provinha de uma agência de investigação particular. Por conseguinte, só Sam tinha conhecimento daquele relatório. Depois de Sam, ela. A pessoa culpada não tinha idéia de que estava sob suspeita. Teria Sam interpelado de algum modo a pessoa antes do acidente? Ela não tinha como descobrir. Elizabeth sabia, que havia um traidor. Alguém no mais alto escalão executivo da companhia.
Ninguém mais teria oportunidade ou capacidade de levar a cabo tanta destruição em níveis tão diferentes. Era por isso que Sam se recusara a vender ações ao público?
Estaria procurando primeiro descobrir quem era o culpado? Depois da companhia vendida, seria impossível realizar uma investigação secreta, pois todas as providências tomadas seriam logo do conhecimento de um grupo de estranhos. Elizabeth pensou na reunião da diretoria que participara, durante a qual todos lhe haviam recomendado que vendesse. Sentiu-se de repente muito sozinha naquela casa. Deu um salto ao ouvir o telefone tocar. Foi atender.
- Alo?
- Liz? É Rhys. Acabo de receber o seu recado.
Era bom ouvir a voz dele, mas lembrou-se de repente do motivo pelo qual quisera falar com ele. Era para dizer que resolvera assinar e deixar que vendessem a companhia.
Mas em poucas horas tudo havia mudado. Olhou para o retrato do velho Samuel, que fundara a companhia e tinha lutado por ela, dedicando-lhe toda a sua vida.
- Rhys, quero uma reunião da diretoria na terça-feira, às duas horas. Quer tomar as providências necessárias?
- Terça-feira,às duas horas? Está bem. Mais alguma coisa?
- Não. Só isso. Muito obrigada.
Elizabeth desligou o telefone. Ia lutar contra todos eles.
Estava no alto de uma montanha, escalando-a em companhia do pai. "Não olhe para baixo", dizia constantemente o pai, e Elizabeth desobedecia. Olhava para baixo e não via senão milhares de metros de espaço vazio. De repente, houve o surdo ronco de um trovão e um raio veio ziguezagueando na direção deles. Atingiu a corda de Sam, incendiou-a e Sam começou a cair no espaço vazio. Elizabeth viu o corpo do pai rolar e começou a gritar, mas seus gritos eram abafados pelo ribombar dos trovões. Acordou em sobressalto, com a camisola ensopada de suor e o coração batendo descompassadamente. Houve um trovão mais forte, e Elizabeth viu a chuva entrar pelas janelas abertas. Levantou-se e fechou-as. Pelas vidraças viu as nuvens de tempestade que enchia o céu e os relâmpagos que iluminavam o horizonte, mas não prestou atenção a nada disso. Estava pensando no sonho que tivera. Pela manhã, a tempestade passara sobre a ilha, deixando apenas uma chuva fina. Elizabeth esperava que o mau tempo não retardasse a chegada de Alec.
Depois da leitura do relatório, tinha ardente necessidade de falar com alguém.
Enquanto isso, seria bom guardar o relatório num lugar seguro. Havia um cofre na sala da torre, e ela o colocaria lá. Tomou um banho, vestiu um suéter e calças velhas e foi então à biblioteca pegar o relatório. Não estava mais lá.
Capítulo 19 Parecia que um furacão havia passado pela sala. A tempestade abrira as janelas, e o vento e a chuva haviam espalhado e desarrumado tudo. Algumas páginas do relatório estavam em cima do tapete molhado, mas o resto fora evidentemente levado pelo vento.
Foi até à janela. Não via papéis no gramado, mas o vento poderia ter levado pela borda do penhasco. Fora certamente isso o que acontecera. Não havia cópias. Tinha, portanto, de descobrir o nome do investigador que Sam contratara.
Talvez Kete Erling soubesse. Mas já não podia ter certeza de que Sam confiava em Kete Erling. Tudo se tornara um jogo terrível, em que ninguém podia confiar em ninguém. Daí por diante, devia ter cuidado em tudo o que fizesse.
Lembrou-se, de repente, de que estava sem comida em casa. Podia ir fazer contas em Cala di Volpe e estar de volta antes que Alec chegasse. Foi até o armário embutido do hall e apanhou uma capa e uma charpe para a cabeça. Mais tarde, quando a chuva parasse, procuraria as outras folhas do relatório nos arredores da casa.
Pegou a chave do jipe e dirigiu-se à garagem. Ligou o motor e manobrou cuidadosamente para sair da garagem, dirigindo com todo o cuidado, em vista do chão molhado pela chuva.
Virou depois à direita para seguir a estreita estrada da montanha que ia para a aldeia de Cali di Volpe, mais abaixo. Não havia movimento na estrada àquela hora. Na verdade, era difícil havê-lo a qualquer hora, pois raras eram as casas construídas naquela altura. À esquerda, o mar estava escuro e parecia revolto, ainda agitado pela tempestade da véspera.
Dirigia com muito cuidado, pois aquele trecho da estrada era traiçoeiro. Muito estreito, com duas pistas, abria-se no flanco da montanha, ao lado de um enorme precipício. De um lado, o paredão de pedras da montanha; do outro, uma descida de centenas de metros até o mar. Elizabeth seguia beirando a outra pista, freando um pouco para contrabalançar o impulso da descida. O carro aproximou-se de uma curva fechada.
Ela pisou automaticamente nos freios para controlar a descida do jipe. Os freios não funcionaram! O fato levou algum tempo para ser consciencializado. Elizabeth tornou a frear, pisando no pedal com toda sua força, mas sentiu o coração bater mais forte ao ver que o jipe continuava a ganhar velocidade na descida.
Fez a curva, mas viu que estava rodando desabaladamente pela íngreme estrada da montanha e que o jipe ganhava mais velocidade a cada segundo. Tornou a pisar nos freios. Não havia mais freios.
Outra curva surgiu à frente. Elizabeth tinha medo de olhar para o velocímetro e sentiu-se dominada pelo terror. Chegou à curva em alta velocidade e derrapou. As rodas traseiras chegaram próximo da beira do precipício, mas ela conseguiu controlar o jipe e seguiu em frente estrada abaixo. Não havia mais nada que pudesse fazê-lo parar, nem barreiras, nem controles. Continuaria naquela desabalada descida pela montanha, cheia de curvas fatais. Pensou destemperadamente num meio de salvar-se. Teve a idéia de pular do carro. Arriscou-se a olhar para o velocímetro e viu que ia a cento e dez quilômetros, com a velocidade aumentando a cada momento, e que estava encurralada entre a montanha e o precipício. Se saltasse, morreria.
Numa súbita revelação, Elizabeth compreendeu que estava sendo assassinada, e que Sam também fora assassinado. Sam tinha lido o relatório e fora morto. Ela também iria ser morta. Não tinha idéia de quem fosse o assassino, de quem os odiava a ponto de fazer aquela coisa terrível. Talvez tudo fosse mais tolerável se partisse de um estranho.
Mas tinha de ser um deles, alguém situado no mais alto escalão executivo da companhia… Alec… Ivo… Walther… Charles… A morte dela seria atribuída a um acidente, como a de Sam. As lágrimas rolaram pelo rosto de Elizabeth e se misturaram com a chuva fina que caía.
O jipe fugia constantemente do seu controle no chão molhado. Elizabeth lutava para mantê-lo na estrada, mas sabia que era apenas uma questão de segundos para que fosse atirada para o precipício e o aniquilamento. O corpo ficou rígido com a tensão, e as mãos se tornaram dormentes devido à força que ela fazia para segurar a direção.
Estava sozinha no universo, descendo vertiginosamente a estrada, enquanto o vento lhe zumbia em torno e empurrava o carro para a borda do penhasco. Houve outra derrapagem e Elizabeth lutou destemperadamente para controlar o carro, lembrando-se do que aprendera. Vá sempre a favor da derrapagem. Finalmemte, as rodas traseiras se firmaram e o jipe continuou a sua descida alucinante.
Elizabeth tornou a olhar de relance o velocímetro. Cento e trinta quilômetros por hora! Havia uma curva bem fechada à frente e sabia que não poderia passar dali. Alguma coisa em seu espírito pareceu congelar-se, e foi como se uma trêmula veia se estendesse entre ela e a realidade. Ouviu a voz de seu pai perguntar-lhe o que ela fazia sozinha no escuro e depois sentiu-se nos braços de Sam e levada para a cama. No mesmo instante, estava no palco, dançando enquanto Madame Netturova gritava com ela (ou era o vento?), mas ela não podia parar.
Alguém então lhe perguntava quantas vezes uma pessoa faz vinte e um anos, e Elizabeth pensou que nunca mais viria Rhys. Gritou o nome dele e o véu desapareceu, mas o pesadelo ainda estava presente. A curva perigosa estava mais próxima e o carro corria para ela como uma bala.
Cairia pelo precipício. Pelo menos, que tudo acontecesse bem depressa. Nesse momento, à direita, um pouco antes da curva, Elizabeth viu um estreito caminho. Tinha de tomar uma decisão rápida. Não tinha idéia da utilidade ou do destino daquele caminho.
Sabia apenas que subia à beira do precipício e que podia quebrar o ímpeto da descida.
Entrou por ele, virando a direção para a direita com toda a força. As rodas traseiras começaram a derrapar, mas as da frente já estavam no saibro do caminho e a velocidade deu bastante tração ao carro para se estabilizar.
Elizabeth procurou mantê-lo no estreito caminho. Viu algumas árvores à frente, e alguns galhos lhe fustigaram o rosto e as mãos. De repente, viu, à sua frente, o ar Tirando, lá embaixo. O caminho era apenas um breve acostamento à margem do penhasco. Não havia a menor segurança! Estava cada vez mais perto da borda, e ia tão depressa que não podia saltar. Quando o jipe se aproximou da borda, derrapou violentamente, e a última coisa de que Elizabeth teve consciência foi de uma árvore à sua frente e de uma explosão que pareceu iluminar o resto do universo. Depois, o mundo ficou tranquilo, branco, pacífico e silencioso.
Capítulo 20 Quando abriu os olhos, estava numa cama de hospital, e a primeira pessoa que viu foi Alec Nichols.
- Não há nada lá em casa para você comer - murmurou Elizabeth, e começou a chorar. Os olhos de Alec mostravam a sua tristeza. Aproximou-se e abraçoua.
- Elizabeth!
- Tudo bem agora, Alec - murmurou ela. E estava. Sentia contusões por todo o corpo, mas ainda estava viva, por mais incrível que isso parecesse. Lembrou-se do horror da descida sem freios pela montanha, e sentiu um arrepio.
- Há quanto tempo estou aqui, Alec?
- Trouxeram-na para cá há dois dias. Chegou inconsciente e só agora Está voltando a si. O médico acha que se trata de um milagre. De acordo com os que viram o local do acidente, você devia estar morta. Quando uma turma de socorro trouxe você, estava inconsciente e cheia de contusões, mas felizmente não havia fraturas. Agora, escute. Por que é que você estava correndo tanto naquela estrada?
Elizabeth contou tudo. Viu o horror estampado no rosto de Alec enquanto falava da sua terrível corrida estrada abaixo. Quando acabou, Alec estava muito pálido.
- Que acidente horrível e idiota!
- Não foi acidente, Alec.
- Como assim? Não compreendo!
Não podia mesmo compreender, pois não havia lido o relatório.
- Mexeram nos freios de propósito para que isso acontecesse.
- Não, Elizabeth - disse ele, sacudindo a cabeça. - Que motivo teria alguém para fazer uma coisa dessas?
Ainda não podia dizer nada a ele. Confiava mais em Alec do que nos outros, mas só podia falar depois que estivesse mais forte e tivesse algum tempo para pensar.
- Não sei, Alec. Mas tenho certeza de que mexeram nos freios.
Notou a mudança de expressão no rosto dele. Da incredulidade passara ao espanto e, por fim, à raiva.
- Nesse caso, temos de descobrir quem foi!
Pegou o telefone e daí a poucos minutos estava falando com o delegado de polícia de Olbia.
- Aqui é Alec Nichols. Sim, ela está passando bem, muito obrigado. Direi isso a ela, sim. Estou lhe telefonando a respeito do jipe que ela estava dirigindo. Pode me dizer onde é que está… Muito bem. Pode deixá-lo aí, e conseguir-me um bom mecânico? Estarei aí daqui a meia hora Desligou e disse a Elizabeth: O jipe está na garagem da polícia. Vou até lá.
- Vou com você - disse Elizabeth.
Ele olhou-a, surpreso.
- O médico disse que você devia passar ainda dois dias em repouso e observação.
- Ele pode ter dito isso, mas vou com você.
Quarenta e cinco minutos depois, Elizabeth, ainda bem machucada, saía do hospital sob os protestos do médico e seguia em companhia de Alec Nichols para a garagem da polícia.
Luigi Ferraro, delegado de polícia de Olbia, era um sardo robusto de meia-idade, com uma enorme barriga e pernas arqueadas. Tinha a seu lado o detetive Bruno Campagna, um homem musculoso, de cerca de cinquenta anos e grande competência, bem mais alto do que o delegado. Estavam ambos, em companhia de Elizabeth e de Alec, vendo um mecânico examinar a parte inferior do jipe levantado por um macaco hidráulico.
O pára-lamas esquerdo e o radiador estavam destroçados e mostravam fragmentos da árvore em que batera.
Elizabeth sentiu um começo de vertigem ao ver o carro, e teve de apoiarse em Alec para não cair.
- Tem certeza de que vai resistir? - perguntou Alec.
- Absoluta - disse Elizabeth, que se sentia fraca e cansada, mas estava disposta a ver tudo pessoalmente. O mecânico limpou as mãos em um pano cheio de graxa e aproximou-se do grupo.
- Desses, não fazem mais hoje em dia - disse ele. Graças a Deus, pensou Elizabeth. - Qualquer outro carro teria sido reduzida a pedacinhos.
- E os freios? Estão em perfeitas condições.
Elizabeth sentiu que estava de novo entrando numa zona de irrealidade.
- Que está dizendo?
- Os freios estão funcionando muito bem. A batida não teve a menor ação sobre eles. Foi por isso que eu disse que não faziam mais…
- É impossível! - exclamou Elizabeth. - Os freios desse jipe não estavam funcionando.
- A Sra. Roffe acredita que alguém mexeu nos freios, inutilizando-os - disse o delegado Ferrraro O mecânico sacudiu negativamente a cabeça.
- De jeito nenhum! Aproximou-se do carro no alto do macaco.
- Só há duas maneiras de danificar os freios de um jipe. Ou se cortam as bielas dos freios ou se desatarraxa esta porca e se deixa o óleo dos freios escorrer. Como pode ver, esta biela está firme e eu verifiquei o tambor dos freios. Está cheio. Ferraro olhou para Elizabeth e disse: - Posso muito bem compreender que no seu estado…
- Um momento! - exclamou Alec, e voltou-se para o mecânico. - Não é possível que alguém tenha cortado esses bielas, substituindo-as depois, e que essa mesma pessoa tenha tornado a encher o tambor dos freios e depois de esvaziá-los?
- Não, não é possível. Ninguém tocou nestas bielas. Está vendo esta porca? Se alguém a tivesse afrouxado, haveria marcas recentes de chave inglesa nela, e não há nenhuma. Pelo menos, há seis meses ninguém toca nesta porca. Não há nada com estes freios e eu vou mostrar-lhes. Foi até a parede e ligou um comutador. O macaco hidráulico principiou a descer o jipe para o chão. O mecânico entrou no jipe, ligou o motor e deu marcha à ré no carro. Quando estava quase encostando na parede dos fundos na direção do detetive Campagna. Elizabeth deu um grito, e neste instante o carro parou de súbito a alguns centímetros do homem. O mecânico não tomou conhecimento do olhar irado do detetive e disse:
- Viram, Os freios estão perfeitos.
Todos se voltaram para Elizabeth, que sabia muito bem o que estavam pensando.
Mas isso não diminuíra o terror daquela descida pela montanha. Sentira perfeitamente o seu pé comprimir o freio sem que nada acontecesse. O mecânico da polícia tinha provado que os freios estavam em ordem. A não ser que também estivesse metido na trama. E o delegado também… Estou é ficando paranóica, Pensou Elizabeth. Alec murmurou desalentadamente:
- Elizabeth…
- Quando eu estava dirigindo o jipe, os freios não funcionavam. Alec perguntou então ao mecânico:
- Vamos supor que alguém tivesse tomado providências para que os freios desse jipe não funcionassem. Que mais poderia fazer?
- Poderia ter molhado as lonas do freio - disse o detetive Campagna.
Elizabeth sentiu o nervosismo crescer dentro dela.
- Que aconteceria se alguém fizesse isso?
- Quando as lonas do freio comprimissem o tambor, não haveria tração.
- Tem razão - disse o mecânico, e perguntou a Elizabeth. - Os freios estavam funcionando logo que saiu com o jipe?
Elizabeth se lembrara de que manobrara o jipe para sair da garagem e chegara às primeiras curvas usando os freios.
- Estavam funcionando, sim - disse ela.
- Está aí a explicação - disse o mecânico vitoriosamente. - A chuva molhou a lona dos freios.
- Espere um pouco - disse Alec. - Alguém não poderia ter molhado tudo antes que ela saísse?
- Nesse caso - disse o mecânico pacientemente -, os freios não teriam funcionado desde o início. O delegado falou com Elizabeth.
- A chuva pode ser muito perigosa, Senhorita Roffe, especialmente nas estradas estreitas de montanha. Casos assim acontecem com muita frequência.
Alec olhava indeciso para Elizabeth. Ela se sentiu mal. Afinal de contas, tudo não passara de um acidente. Queria sair dali o mais depressa possível. Olhou para o delegado.
- Desculpe ter-lhe causado todo esse incômodo.
- Sinto muito pelo acidente, mas tive muito prazer em servi-la. O detetive Campagna irá levá-la de carro para a sua Villa.
Alec disse a ela:
- Não leve a mal, mas você Está terrivelmente abatida. Quero que vá para a cama e passe alguns dias sem se levantar. Vou pedir alguns mantimentos pelo telefone?
- Se eu ficar na cama, quem vai cozinhar?
- Ora essa, eu! - exclamou Alec.
Naquela noite, preparou o jantar e levou-o para Elizabeth na cama.
- Creio que não sou muito bom cozinheiro - disse Alec, colocando a bandeja diante de Elizabeth.
Falando assim, Alec estava sendo muito pretensioso. Não havia um só prato que não estivesse queimado ou salgado demais. Mas Elizabeth conseguiu comer, não só porque estava com fome, mas também para não melindrar Alec. Conversaram sobre um milhão de assuntos durante o jantar. Alec não se referiu à situação que ela criara na garagem da polícia. Elizabeth ficou-lhe muito grata por isso.
Os dois passaram mais alguns dias na Villa. Elizabeth continuou na cama e Alec, a fazer confusão na cozinha, lendo de vez em quando para ela.
Ivo e Simonetta telefonavam diariamente para saber como ela estava e o mesmo faziam Hélsne e Charles e Walther. Até Vivian telefonou para saber dela. Todos se ofereciam para ir fazer-lhe companhia na ilha.
- Estou passando bem - dizia ela. - Não há motivo para que venham aqui. Voltarei para Zurique dentro de poucos dias.
Rhys Williams telefonou. Elizabeth só compreendeu a falta que ele lhe fazia quando ouviu a voz dele.
- Ouvi dizer que você quis fazer concorrência a Hélsne como piloto - disse ele, brincando, mas ela notou preocupação na voz dele.
- Em descida de montanha, duvido que ela seja páreo para mim. -Parecia-lhe incrível que estivesse pilheriando com o que acontecera.
- Fico muito contente de que você esteja bem, Liz. - O tom e as palavras dele encheram-na de alegria.
Estaria ele naquele momento em companhia de outra mulher? Se estivesse, devia ser uma mulher muito bela. Dane-se!
- Sabe que você saiu nos jornais do mundo inteiro?
- Não.
Falaram pelo telefone durante meia hora, e ao desligar Elizabeth estava se sentindo muito melhor. Rhys parecia sinceramente interessado nela. Gostaria de saber se ele fazia todas as outras mulheres sentirem-se assim. Aquilo fazia parte do encanto dele.
Lembrou-se do jantar de aniversário. Sra. Rhys Williams.
Alec entrou no quarto e perguntou:
- O que houve? Está rindo à toa?
- Estou.
Rhys sempre lhe dera aquela sensação de felicidade. Talvez fosse melhor falar a Rhys sobre o relatório confidencial. Alec tinha providenciado para que um avião da companhia os levasse para Zurique.
- Não gostaria que você saísse daqui ainda - disse ele -, mas há alguns assuntos urgentes que devem ser resolvidos o quanto antes.
O vôo para Zurique foi calmo. Repórteres esperavam-na no aeroporto. Elizabeth fez uma breve declaração sobre o acidente. Em seguida, Alec levou-a para o carro, e os dois partiram para a sede da companhia.
Ela estava na sala de reuniões com todos os membros da diretoria presente, além de Rhys. A reunião já durava três horas, e o ar estava impregnado da fumaça dos charutos e cigarros. Elizabeth ainda estava abalada pelo acidente e sentia uma tremenda dor de cabeça. Os médicos haviam-na tranquilizado, dizendo que as dores de cabeça eram uma consequência do abalo nervoso e dentro em pouco passariam. Olhou para os rostos cheios de tensão e de raiva que a cercavam.
- Resolvi não vender - tinha dito Elizabeth.
Pensaram que ela estava sendo arbitrária e obstinada. Se soubessem a tentação que ela teve de ceder! Mas agora era impossível. Alguém dentro daquela sala era um inimigo, e se ela batesse em retirada, esse inimigo seria vitorioso. Tinham tentado convencê-la, cada qual à sua maneira. Alec apresentara argumentos lógicos.
- Acompanhia precisa de um presidente experiente. Particularmente agora, Elizabeth. Para o seu bem e para o bem de todos, gostaria de vê-la afastada disso.
Ivo fez uso do seu encanto.
- Você é bela e jovem, carissima. O mundo inteiro é seu. Por que escravizar-se a uma coisa tão enfadonha quanto os negócios, quando pode divertir-se, viajar…
- Já viajei muito - disse Elizabeth.
Charles usou a clara razão francesa.
- Você passou a deter o controle acionário em consequência de um trágico acidente, mas não é sensato você querer, por isso, dirigir a companhia. Nós temos problemas muito graves, e sua direção só servir para agravá-los.
Walther falou agressivamente.
- A companhia está em situação muito difícil, a tal ponto que você é incapaz de imaginar. Se não vender agora, depois ser tarde demais.
Elizabeth sentia-se acuada. Ouvia a todos, estudando-os e pesando o que diziam.
Todos eles baseavam os seus argumentos no bem da companhia; no entanto, um deles estava empenhado em destruí-la. Uma coisa era clara. Todos queriam que ela se afastasse, que os deixasse vender as suas ações e levar pessoas estranhas para a Roffe and Sons. Elizabeth sabia que no momento em que fizesse isso as probabilidades de descobrir quem estava por trás de tudo aquilo estariam perdidas. Enquanto permanecesse ali, haveria possibilidade de descobrir o sabotador. Ficaria por tanto tempo quanto fosse necessário. Não passara aqueles três últimos anos com Sam sem aprender alguma coisa a respeito de negócios. Com a ajuda do pessoal qualificado que ele havia preparado, poderia prosseguir nas diretrizes do pai. A insistência de todos para que ela saísse só servia para reforçar a sua determinação de ficar. Resolveu encerrar a reunião.
- Tomei a minha decisão - disse ela -, e não pretendo dirigir a companhia sozinha.
Sei muito bem quanto ainda tenho que aprender. Quero que todos aqui presentes me ajudem. Enfrentaremos os problemas um por um.
Ivo abriu os braços em um gesto desconsolado.
- Será que ninguém pode convencê-la do que é lógico?