- Não tivemos culpa. Ele se tornou ambicioso demais e facilitou. Foi preso no aeroporto quando tentava sair da Itália clandestinamente com o dinheiro. Apurou-se que o dinheiro era nosso. Ainda que Elizabeth estivesse preparada para o pior havia uma nota de incredulidade em sua voz.

- Porque estávamos subornando esse banqueiro?

- Se não agíssemos desse modo, não poderíamos fazer negócios na Itália. O costume aqui é esse. Nosso crime não foi subornar o banqueiro, cara. Foi deixar que ele fosse apanhado.

Ela se recostou na cadeira, sentindo a cadeira rodar.

- E agora?

- Sugiro uma reunião o quanto antes com os advogados da companhia. Mas não se preocupe. Só os pobres vão para a cadeia, aqui na Itália.

Charles telefonou de Paris, e sua voz estava quase histérica pela preocupação. A imprensa francesa atacava a companhia por todos os lados. Elizabeth tinha que consentir na venda das ações enquanto a companhia tinha ainda alguma reputação.

- Nossos fregueses estão perdendo a confiança - dissera Charles. - E sem confiança não há companhia.

Elizabeth pensou nos telefonemas, nos banqueiros, nos primos, na imprensa. Era muita coisa acontecendo com muita rapidez. Alguém devia estar por trás de tudo isso.

Ela tinha de descobri-lo. O nome ainda estava no caderno particular de Elizabeth.

Maria Martinelli. Era uma moça alta e de pernas compridas que tinha sido sua colega na Suíça. Correspondiam-se de vez em quando. Maria havia se tornado modelo e mandara dizer a Elizabeth que estava noiva do diretor de um jornal de Milão. Elizabeth não levou mais que quinze minutos para falar com Maria. Depois da troca de cumprimentos, Elizabeth perguntou pelo telefone:

- Você ainda está noiva do jornalista?

- Claro. Vamos nos casar logo que o divórcio dele seja homologado.

- Quero um favor seu, Maria.

- É só dizer o que é.

Menos de uma hora depois, Maria Martinelli telefonava para ela.

- Já tenho a informação que você quer. O banqueiro que foi apanhado quando tentava levar dinheiro para fora da Itália foi vítima de uma traição. Meu noivo diz que alguém o denunciou à polícia de fronteira.

- Ele conseguiu o nome do delator?

- Ivo Palazzi.

O detetive Max Hornung havia feito uma descoberta interessante. Apurara que a explosão nos laboratórios da Roffe and Sons fora provocada criminosamente e causada por um explosivo, Rylar X, fabricado exclusivamente para as forças armadas numa das unidades da Roffe and Sons. Com um simples telefonema, Max soube onde ficava a fábrica. Era nos arredores de Paris.

Às quatro da tarde em ponto, Julius Badrutt acomodou o corpo anguloso em uma cadeira e disse sem preâmbulos:

- Por mais que quiséssemos atendê-la, Senhorita Roffe, parece que as responsabilidades que temos para com os nossos acionistas têm prioridade.

Badrutt devia dizer mais ou menos a mesma coisa às viúvas e aos órfãos, a quem não podia perdoar no vencimento das hipotecas. Mas dessa vez ela estava preparada para Badrutt.

- Em vista disso, recebi instruções da diretoria para informar-lhe que nosso banco exigirá o pagamento imediato dos títulos devidos pela Roffe and Sons.

- Mas tive a promessa de um prazo de noventa dias - disse Elizabeth.

- Infelizmente, as circunstancias mudaram, para pior. Devo dizer-lhe que os outros bancos com os quais vocês trabalham chegaram à mesma conclusão.

- Como os bancos se negavam a ajudá-la, não havia possibilidade de manter a companhia fechada a novos acionistas. - Sinto muito dar-lhe essas más notícias, Senhorita Roffe, mas achei que devia vir falar-lhe pessoalmente.

- Não pode desconhecer que a Roffe and Sons ainda é uma companhia sólida e forte.

- Sem dúvida. É uma grande companhia.

- Ainda assim, não nos quer dar mais tempo.

Badrutt pensou por um momento e então disse:

- O banco julga que os seus problemas podem ser resolvidos, Senhorita Roffe.

Mas…

- Parece-lhe que não há ninguém em condições de resolver esses problemas, não é?

- Infelizmente, é isso mesmo. - E se eu passasse a presidência da Roffe and Sons a outra pessoa? - perguntou Elizabeth. O banqueiro sacudiu a cabeça.

- Já discutimos essa possibilidade e, infelizmente, chegamos à conclusão de que nenhum dos membros da atual diretoria tem a capacidade necessária para enfrentar…

- Eu estava pensando em Rhys Williams.

Capítulo 38 O agente Thomas Hiller, da Divisão da Polícia Marítima do Tamisa, via-se numa situação terrível. Estava com sono, fome, sexualmente excitado e ensopado. E não sabia ao certo qual dessas desgraças era pior. Estava com sono porque sua noiva, Flo, passara a noite discutindo com ele e não o deixara dormir. Estava com fome porque, quando Flo acabara de discutir, já estava na hora de ir para o trabalho e não havia mais tempo de comer nada. Estava excitado porque ela se recusava energicamente a deixar que a tocasse. E estava todo molhado porque a lancha de dez metros da patrulha do Tamisa não era feita exatamente para dar conforto aos seus ocupantes e porque o vento insistente tangia a chuva para a casa do leme onde ele estava.

Em um dia como aquele, havia pouco para ver e menos a fazer. A circunscrição da patrulha se estendia por oitenta e cinco quilômetros do rio, de Dartford Creek a Staines Brige. Em geral, Hiller gostava do serviço de patrulha, mas não quando se via naquele estado.

O diabo levasse todas as mulheres! Pensou em Flo nua na cama, com os grandes seios em movimento, brigando com ele. Olhou para o relógio. Mais meia hora e o serviço chegaria ao fim. A lancha já se encaminhava para o cais de Waterloo.

O seu problema agora era decidir o que fazer primeiro: comer, dormir ou ir para a cama com Flo. Talvez tudo ao mesmo tempo, por que não? Esfregou os olhos para afugentar o sono e olhou para o rio lamacento e denso, salpicado pelas borbulhas da chuva.

Aquilo apareceu de repente. Parecia um grande peixe boiando de barriga para cima. O primeiro pensamento de Hiller foi: "se o puxar para bordo, vai ser um mau cheiro insuportável". Estava a cerca de dez metros a nordeste e a lancha estava se afastando dele. Se ele abrisse a boca, o maldito peixe retardaria a hora de largar o serviço. Seria preciso pegar o peixe com um gancho e puxá-lo para bordo ou rebocá-lo. Fosse o que fosse, faria com que se atrasasse na volta a Flo. Ora, ele bem podia calar a boca. Quem podia afirmar que ele tinha visto alguma coisa? E estava cada vez mais longe. O agente Hiller ergueu a voz:

- Sargento, há um peixe flutuando vinte graus a boreste. Parece um grande tubarão.

O motor diesel de cem cavalos mudou subitamente de ritmo e a lancha começou a seguir em marcha lenta. O sargento Haskins aproximou-se dele.

- Onde está? O vulto tinha desaparecido, oculto pela chuva. - Ali daquele lado.

O sargento Haskins hesitou. Estava também ansioso para ir para casa e a vontade que tinha era de não tomar conhecimento do tal peixe.

- Acha que é tão grande que possa ameaçar a navegação?

O policial Hiller lutou consigo mesmo, e perdeu.

- Acho, sim.

Assim, a lancha da patrulha virou e seguiu na direção em que o objeto fora visto.

Este apareceu quase sob a proa da lancha, e ambos viram o corpo de uma jovem loura.

Estava nua, mas tinha uma fita vermelha amarrada ao pescoço.

Capítulo 39 No momento em que o policial Hiller e o sargento Haskins estavam recolhendo o corpo da jovem assassinada do Tamisa, a quinze quilômetros de distância, do outro lado de Londres, o detetive Max Hornung entrava no vestíbulo de mármore cinza e branco da Nova Scotland Yard.

O simples ato de entrar no imponente edifício dava-lhe uma sensação de orgulho.

Fazia parte daquela grande fraternidade. Apreciava muito o fato de que o endereço telegráfico da Scotland Yard fosse Algemas. Max gostava muito dos ingleses.

O seu único problema estava na dificuldade que experimentava de comunicar-se com eles. Os ingleses falavam a sua língua de maneira estranha. O guarda sentado à mesa de recepção perguntou:

- Que deseja o senhor?

- Tenho hora marcada com o inspetor Davidson.

- Nome, por favor?

Max disse lenta e distintamente:

- Inspetor Davidson.

O guarda olhou-o com interesse.

- Perdão, mas o seu nome é inspetor Davidson?

- Meu nome não é inspetor Davison. Meu nome é Max Hornung.

- Desculpe, mas o senhor fala inglês?

Cinco minutos depois, Max estava sentado na sala do inspetor Davidson, que era um homem tipicamente britânico, de meia-idade, com rosto vermelho e dentes amarelos e irregulares.

- Disse pelo telefone que estava interessado em obter informações sobre Sir Alec Nichols como possível suspeito de um homicídio.

- Ele é suspeito com mais uma meia dúzia de pessoas.

- Já sei o que fazer - disse o inspetor. -Vou encaminhá-lo ao Departamento de Registros Criminais C-4. Se não houver nada sobre ele lá, tentaremos o Serviço Secreto Criminal C-11 e o C-14.

O nome de Sir Alec Nichols não constava de qualquer dos arquivos consultados.

Mas Max já sabia onde conseguir a informação.

Logo cedo, naquela manhã, Max telefonara para vários homens de negócios que trabalhavam na City, o centro financeiro de Londres. As reações de todos foram idênticas.

Quando Max declarou seu nome, ficaram inquietos, pois todos que tratavam de negócios na City tinham alguma coisa para esconder, e a reputação de Max Hornung como um anjo vingador financeiro era internacional. Mas, no momento em que Max dizia estar procurando informações sobre outra pessoa, dispunham-se até a cooperar com ele.

Max passou dois dias visitando bancos e companhias financeiras, organizações de créditos e centros de registros estatísticos. Não se interessava em falar com as pessoas nesses lugares; queria falar com os seus computadores. Max era um gênio com os computadores. Sentava-se diante das mesas de controle e os digitava como um mestre.

Não importava a língua que se houvesse ensinado ao computador na fábrica, pois Max falava todas elas.

Falava com computadores digitais e com computadores de linguagem de baixo e de alto nível. Estava no seu elemento com o Fortran e o Fortran IV, com o gigante 370 da IBM, com o 10 e o 1 da PDP e o 68 da Algol. Entendia tanto de Cobol, programado para os negócios, quanto do Basic usado pela polícia e do APL de alta velocidade, que só se exprimia por meio de mapas e gráficos. Max falava com o LISP, o APT e o PL-1. Mantinha conversações em código binário e interrogava os grupos aritméticos e os CPV, recebendo as respostas em alta velocidade à razão de mil e cem linhas por minuto. Os computadores gigantes tinham sugado informações como bombas insaciáveis, armazenando-as, analisando-as, recordando-as, e estavam despejando tudo nos ouvidos de Max, sussurrando-lhe os seus segredos nas suas criptas com ar condicionado.

Nada era sagrado, nem seguro. A vida particular na civilização atual era uma ilusão, um mito. Todo cidadão vivia exposto, e os seus segredos mais ocultos estavam à mostra, à espera de que os lesse. As pessoas eram registradas se tinham um número de matrícula na Previdência Social, uma apólice de seguro, uma carteira de motorista ou uma conta bancária. Eram relacionadas se tinham pagado impostos ou haviam recebido seguro desemprego ou algum fundo de assistência social.

Os seus nomes eram armazenados nos computadores quando eram beneficiadas por algum plano de seguro médico, quando compravam uma casa com um empréstimo sob garantia hipotecária, quando tinham um automóvel ou até uma bicicleta ou quando eram depositantes em alguma poupança ou conta corrente de banco.

Os computadores sabiam os nomes das pessoas que tinham passado por hospitais, que tinham feito serviço militar, que haviam tirado licença de caça ou pesca, que haviam tirado passaporte, que haviam pedido ligação de telefone ou energia elétrica para suas casas, que tinham se casado ou divorciado, ou mesmo nascido.

Quando se sabia onde procurar e se tinha paciência, todos os fatos estavam à disposição. Max Hornung e os computadores tinham relacionamento admirável. Os computadores não riam do sotaque de Max, do seu aspecto, dos seus gestos ou das suas roupas. Para os computadores, Max era um gigante. Respeitavam-lhe a inteligência, admiravam-no, amavam-no. Contavam-lhe com prazer os seus segredos, comunicavamlhe deliciosos rumores sobre as loucuras que os mortais são capazes. Eram como velhos amigos que conversavam.

- Vamos falar sobre Sir Alec Nichols - disse Max. E os computadores começaram.

Deram a Max um perfil matemático de Sir Alec, traçado em algarismos, códigos binários e gráficos. Duas horas depois, Max tinha um retrato complexo do homem, um relatório financeiro dele. Cópias de recibos de bancos, cheques cancelados e contas lhe foram apresentados. O que primeiro chamou a atenção de Max foi uma série de cheques de quantias vultosas, todos ao portador, emitidos por Sir Alec Nichols. Para onde fora o dinheiro? Mas procurou ver se ele fora consignado como despesas pessoais ou comerciais, talvez como uma dedução de impostos. Nada.

Voltou às listas de despesas: um cheque para o White's Club, uma conta de açougue, que não fora paga… um vestido de noite de John Bates… o Guinea… uma conta de dentista, que não fora paga… Anabelleks… um vestido de challis de Yves Saint- Laurent… uma conta do White Elephant, que não fora paga… uma conta de avaliações…

John Wydhan, salão de beleza, por pagar… quatro vestidos de Yves Saint-Lorent, River Gauche… salários dos empregados domésticos…

Max formulou uma pergunta ao computador no Centro de Licenciamento de veículo. Positivo. "Sir Alec possui um Bentley e um Morris." Faltava alguma coisa.

Não havia contas de oficinas mecânicas. Max fez os computadores efetuarem uma pesquisa em suas memórias. Em sete anos, não tinha havido uma só conta de oficina.

"Esquecemos alguma coisa?" perguntaram os computadores. "Não, não esqueceram", respondeu Max. Sir Alec não precisava de mecânicos. Ele mesmo consertava seus carros. Um homem dotado dessa habilidade não tinha a menor dificuldade em preparar um desastre com um elevador ou com um jipe.

Max Hornung se debruçou sobre os dados secretos fornecidos pelos seus amigos com a mesma ansiedade com que um egiptólogo decifraria hieróglifos recémdescobertos.

Descobriu outros mistérios. Sir Alec estava gastando muito mais do que ganhava.

Outro fio solto. Os amigos de Max na City tinham ligações com muitos setores.

Dois dias depois, Max soube que Sir Alec tinha tomado dinheiro emprestado a Tod Michaels, dono de um clube no Soho. Max procurou os computadores da polícia e formulou perguntas. Os computadores ouviram e responderam: "Sim, podemos dar-lhe Tod Michaels. Já foi acusado de vários crimes, mas nunca condenado. Suspeito de estar envolvido em chantagem, prostituição e agiotagem".

Max foi ao Soho e fez mais perguntas. Ficou sabendo que Sir Alec não já jogava, mas que a mulher dele era uma jogadora inveterada. Quando Max acabou, não tinha a menor dúvida de que Sir Alec Nichols estava sendo chantageado. Deixara de pagar as contas e precisava sempre de dinheiro com urgência. Tinha ações que valeriam milhões se ele pudesse vendê-las. Mas Sam Roffe fora um obstáculo no seu caminho, como o era Elizabeth Roffe. Sir Alec Nichols tinha um motivo para assassinar.

Max verificou Rhys Williams. As máquinas fizeram o possível, mas o retrato saiu muito vago. Os computadores informaram a Max que Rhys Williams era do sexo masculino, nascido no País de Gales, tinha trinta e quatro anos e era solteiro. Alto funcionário da Roffe and Sons. Ganhava oitenta mil dólares por ano, sem contar as gratificações. Uma poupança em Londres com saldo de vinte e cinco mil libras. Tinha um depósito em um banco em Zurique, de conteúdo desconhecido. Tinha todas as contas e cartões de crédito. Muitos dos artigos comprados com eles se destinavam a mulheres.

Rhys Williams não tinha antecedentes criminais. Era empregado da Roffe and Sons havia nove anos. Não bastava, pensou Max. Não bastava de modo algum. Parecia até que Rhys Williams estava se escondendo por trás dos computadores. O homem se mostrava muito protetor quando Max fizera perguntas a Elizabeth depois do funeral de Kate Erling.

Estava protegendo a quem? A Elizabeth Roffe? Ou a si mesmo?

Às seis horas daquela tarde, Max embarcou na classe turística num vôo da Alitália com destino a Roma.

Capítulo 40 Ivo Palazzi tinha passado quase dez anos construindo com habilidade e cuidado uma dupla vida de que nem mesmo as pessoas mais íntimas dele tinham desconfiado.

Max e seus amigos, os computadores, levaram menos de vinte e quatro horas para desvendar tudo. Max discutiu o caso com os computadores no Edifício Anagrafe, onde estavam registrados dados biográficos e administrativos, visitando também os computadores do SID e dos bancos. Todos receberam Max muito bem. "Falem-me de Ivo Palazzi", disse Max. "Com prazer", responderam os computadores. As conversações começaram. Uma conta de armazém de Amici… uma conta no salão de beleza de Sergio na Via Condoti… um terno azul de Angelo.. flores da Carducci… dois vestidos de noite de Irene Galitzne… uma bolsa Pucci… contas de luz e telefone.

Max lia os impressos, examinando, analisando, farejando. Uma coisa estava errada. Havia pagamentos de colégio para seis crianças. "Será que erraram?", perguntou Max. "Que tipo de erro?" "Os computadores do Anagrafe disseram que Ivo Palazzi registrado como pai de três filhas Confirmaram seis contas de colégio?" "Confirmamos."

"Dão o endereço de Ivo Palazzi em Olgiata?" "Exato." "Mas ele está pagando um apartamento na Via Montemignaio?" "Está." "Há dois Ivo Palazzi?" "Não. Um só. Duas famílias. Três filhas com a esposa. Três filhos com Donatella Spolini."

Max ficou sabendo das preferências da amante de Ivo Palazzi, do nome do seu salão de beleza e dos nomes dos três filhos ilegítimos de Ivo. Sabia que Simonetta era loura e Donatella, morena. Sabia dos números dos manequins, dos sutiãs e dos sapatos de cada uma e quanto custava cada artigo. Entre as despesas, vários itens interessantes chamaram a atenção de Max.

As quantias eram pequenas, mas as mercadorias comparadas se destacavam.

Havia recibos pela compra de um torno, uma plaina de uma serra. Ivo gostava de trabalhos manuais. Mas não se esqueceu do fato de que, sendo arquiteto, devia entender um pouco de elevadores. "Ivo Palazzi solicitou recentemente um grande empréstimo bancário", informaram os computadores. "Conseguiu?" "Não. Os bancos exigiram a assinatura da mulher dele, e Ivo desistiu do empréstimo." Max tomou o ônibus para o Centro di Polizia Scientifica, onde havia um computador gigantesco numa grande sala circular. "Ivo Palazzi tem antecedentes criminais?", perguntou Max. "Positivo. Ivo Palazzi foi condenado por assalto com violência aos vinte e três anos. A vítima teve de ir para o hospital. Ivo passou dois meses na prisão." "Mais alguma coisa?" "Ivo sustenta uma amante na Via Montemignaio." "Obrigado. Já sei disso." "Há várias queixas dos vizinhos à polícia." "Que espécie de queixas?" "Perturbação da ordem. Brigas, gritaria. Um dia, a mulher quebrou todos os pratos da casa. Isso tem importância?" "Muita. Obrigado." Isso queria dizer que Ivo Palazzi tinha temperamento exaltado. E Donatella Spolini também.

Teria havido alguma coisa entre eles? Estaria ela ameaçando denunciálo? Fora por isso que ele solicitara um grande empréstimo ao banco?

Até que extremos poderia ir um homem como Ivo Palazzi para proteger seu casamento, sua família, sua maneira de viver?

Havia um detalhe final a que o detetive deu muita atenção. A seção financeira da polícia de segurança italiana fizera um grande pagamento a Ivo Palazzi. Era uma recompensa, uma percentagem do dinheiro encontrado com o banqueiro a quem Ivo havia denunciado. Se Ivo estava precisando tanto de dinheiro, que mais seria capaz de fazer para consegui-lo?

Max despediu-se dos computadores e embarcou para Paris, no vôo do meio-dia da Air France.

Capítulo 41 O táxi marca do Aeroporto Charles de Gaulle até as proximidades da Notre-Dame setenta francos, sem contar a gorjeta. A passagem pelo ônibus 351 para o mesmo lugar custa sete francos e meio, também sem gorjetas.

O detetive Max Hornung tomou o ônibus. Hospedou-se no barato Hôtel Meublé e começou a fazer telefonemas. Falou com pessoas que tinham nas mãos os segredos dos cidadãos da França. Os franceses eram normalmente mais desconfiados do que os suíços, mas mostravam-se ansiosos em cooperar com Max Hornung.

Em primeiro lugar, Max Hornung era um perito no seu setor, grandemente admirado, sendo uma honra cooperar com um homem assim. Em segundo lugar, tinham pavor dele. Não havia segredos para Max. O homenzinho esquisito, com o seu sotaque impossível, desmascarava todo mundo.

- Sem dúvida - disseram a Max. - Pode usar à vontade nossos computadores. Tudo deve ser, porém, confidencial.

- É claro.

Max passou pelo Inspecteur des Finances, pelo Crédit Lyonnais e pela Assurannce Nationale, para conversar com os computadores de impostos. Visitou os computadores da Gendarmerie em Rosny-sous-Bois e os da Préfecture de police, na Ile de la Cité.

Começaram a conversa leve e calma de velhos amigos. "Quem são Charles e Hélsne Roffe-Martel?", perguntou Max. "Charles e Hélsne Roffe-Martel, residência Rue François Premier, 5, Vésinet, casados a 24 de maio de 1970 em Neuilly, sem filhos. Hélsne três vezes divorciada, nome de solteira Roffe, conta bancária no Crédit Lynnais na Avenue Montaigne, no nome de Hélsne Roffe-Martel, saldo médio de mais de vinte mil francos."

"Despesas?" "Pois não. Uma conta de livros da Librairie Marceau… conta de dentista com tratamento de canais para Charles Martel… contas de hospital para Charles Martel… conta de exame de Charles Martel." "Resultado do diagnóstico?" "Pode esperar? Terei de falar com outro computador." "Por favor." Max esperou. A máquina com o relatório do médico principiou a falar. "Tenho o diagnóstico." "Pode dizer?"

"Esgotamento nervoso." "Mais alguma coisa?" "Equimoses e contusões graves nas coxas e nas nádegas." "Alguma explicação?" "Não foi dada nenhuma." "Faça o favor de continuar." "Uma conta de um par de sapatos de homem de Pinet… um chapéu de Rose Valois… foie gras da Fauchon… salão de beleza Carita… jantar no Maxim's para oito pessoas… pratas de Christofle… um robe de homem da Sulka.."

Max interrompeu o computador. Havia uma coisa a respeito das contas que lhe chamou a atenção. Todas as compras tinham sido assinadas por Madame Roffe-Martel, inclusive as de roupas para homens e as contas de restaurantes. Tudo em nome dela.

Interessante! E então surgiu o primeiro fio solto.

Uma companhia chamada Belle Paix havia comprado um selo de imposto territorial. Um dos proprietários da Belle Paix se chamava Charles Dessain. O número do Seguro Social de Charles Dessain era o mesmo de Charles Martel. Segredo. "Fale-me sobre a Belle Paix", disse Max. "A Belle Paix é propriedade de René Duchamps e Charles Dessain, também conhecido como Charles Martel." "Que faz a Belle Paix?" "Possui um vinhedo." "De quanto é o capital da companhia?" "Quatro milhões de francos." "Onde Charles Martel conseguiu a sua cota de capital?" "Chez ma tange." "Na casa de sua tia?"

"Desculpe. É uma expressão de gíria francesa. Quer dizer no penhor, no Crédit Municipal." "O vinhedo tem dado lucro?" "Não. A companhia faliu."

Max tinha de saber mais. Continuou a falar com seus amigos, sondando, lisonjeando, exigindo. Foi o computador dos seguros que falou a Max de uma advertência arquivada referente a uma possível fraude de seguros. Max sentiu uma emoção deliciosa.

"Fale-me sobre isso", disse ele. E falaram como duas velhas que trocam segredos enquanto lavam a roupa suja na manhã de segunda-feira.

Depois disso, Max foi procurar um joalheiro chamado Pierre Richaud. Meia hora depois, Max sabia exatamente o valor das jóias de Hélsne Roffe-Martel que tinham sido imitadas: pouco mais de dois milhões de francos, a quantia que Charles Martel investira no vinhedo. Por conseguinte, Charles Dessain-Martel tinha precisado tanto de dinheiro que não hesitara em roubar as jóias da mulher. Que outros atos de desespero haveria ele cometido?

Havia outro fato que interessava a Max. Podia ter pouco significado, mas Max o arquivou rapidamente na memória. Era uma nota de um par de botas de alpinismo. Isso fazia Max pensar, pois o alpinismo não se ajustava à imagem que fazia de Charles Martel- Dessain, um homem dominado pela mulher que não podia comprar coisa alguma em seu nome e nem tinha conta bancária pessoal, a tal ponto que era forçado a roubar para fazer um investimento. Não era possível imaginar Charles Martel escalando montanhas Voltou aos seus computadores. "A conta que me mostrou ontem da loja de artigos desportivos. Gostaria de ter detalhes dela." "Certamente." A conta apareceu na tela diante dele. Número das botas: 3. Um número de mulher. A alpinista era Hélsne Roffe-Martel.

Sam Roffe fora morto nas montanhas.

Capítulo 42 A Armengaud era uma rua tranqüila de Paris, marginada dos dois lados por residências de um e dois andares, com telhados de calha inclinados. Destacava-se entre os outros prédios o do número 26, uma estrutura moderna de vidro, aço e pedra de oito andares, que servia de sede à Interpol. O detetive Max Hornung estava falando com um computador na grande sala com ar condicionado do porão, quando um dos funcionários entrou e disse:

- Vão passar um filme assassino lá em cima. Quer vê-lo?

Max levantou a vista e disse:

- Não sei. O que significa exatamente um filme assassino?

- Suba e verá.

Havia cerca de vinte homens e mulheres sentados na grande sala de projeção do terceiro andar. Havia funcionários da Interpol, inspetores de polícia Súreté francesa, detetives à paisana e alguns policiais fardados. Na frente da sala, diante da tela, René Almedin, secretário assistente da Interpol, estava falando.

Max entrou e sentou-se numa das últimas filas.

- Nestes últimos anos - dizia René Almedin. -, temos tido notícias de filmes assassinos, isto é, de filmes pornográficos em que ao fim do ato sexual a vítima é assassinada diante das câmaras. Não havia provas de que tais filmes realmente existissem, embora houvessem um motivo para essa escassez de provas. Esses filmes não eram ou não são feitos para o público. São feitos para exibição particular a homens ricos que encontram prazer dessa maneira deformada e sádica.

René Almedin tirou os óculos e continuou:

- Como já disse, tudo era boato e especulação. Isso, porém, muda agora. Dentro de alguns momentos, vocês vão assistir a algumas cenas de um filme assassino autêntico. Há dois dias, um homem que levava uma pasta foi atropelado numa rua de Passy por um carro cujo o motorista fugiu. O homem morreu a caminho do hospital e ainda não foi identificado. A Súreté encontrou este rolo de filme na sua pasta e mandou revelá-lo no seu laboratório. Vejam.

Fez um sinal, e a exibição começou. Na tela, apareceu uma moça loura que devia ter no máximo dezoito anos. Causava um penoso constrangimento, como se estivesse diante de uma coisa irreal, ver aquela criatura tão linda praticar algumas perversões sexuais com o homem que estava na cama com ela. A câmara fechou em close para focalizar a introdução do enorme pênis na mulher. Em seguida, moveu-se e focalizou o rosto do homem.

Max Hornung teve a certeza instantânea de que já tinha visto um dia aquele rosto.

E havia alguma coisa mais que já conhecia. Era a fita amarrada no pescoço da mulher.

Reavivou-lhe a lembrança da fita vermelha. Onde? A mulher na tela começou a entusiasmar-se com o ato e, quando ia atingir o orgasmo, o homem fechou as mãos em torno do pescoço dela e começou a estrangulá-la. A expressão no rosto da mulher se transformou de prazer em horror. Debateu-se desenfreadamente para fugir, mas as mãos do homem apertaram com mais força, e ela morreu no momento final do orgasmo. A câmara focalizou em close o rosto dela. O filme terminara, e as luzes se acenderam na sala de projeção. Max lembrou-se. A moça que fora pescada em um rio de Zurique.

Já estavam chegando à sede da Interpol em Paris respostas de toda a Europa às mensagens urgentes enviadas por cabo. Seis mortes semelhantes haviam ocorrido em Zurique, Londres, Roma, Portugal, Hamburgo e Paris.

René Almedin disse a Max que as características das vítimas eram semelhantes.

- São todas jovens e louras. Foram estranguladas durante o ato sexual e estavam nuas, com uma fita vermelha amarrada no pescoço. Estamos diante de um perigoso assassino, que dispõe de um passaporte e dinheiro suficiente para fazer todas essas viagens por sua conta ou às expensas de alguém.

Um detetive apareceu nesse momento.

- Estamos com sorte. Já descobriram a origem do filme virgem usado. É produzido em uma pequena fábrica em Bruxelas que tem um problema com o equilíbrio das cores, o que facilitou a identificação do filme. Já obtivemos uma lista das firmas que comparam os filmes nestes últimos tempos.

- Posso ver essa lista, quando a tiverem? - perguntou Max Hornung.

- Sem dúvida - disse René Almedin.

Olhou para o pequeno detetive. Na opinião dele, ninguém no mundo podia parecer-se menos com um detetive que Max Hornung. Entretanto, fora ele quem dera o primeiro indício seguro no caso dos filmes assassinos.

- Temos com você uma dívida de gratidão - disse Almedin.

- Ora essa! Porquê?

Capítulo 43 Alec Nichols não havia desejado comparecer ao banquete, mas achara que Elizabeth não devia ir sozinha. Ambos tinham sido convidados a falar. O banquete era em Glasgow, cidade que Alec detestava. O carro o esperava defronte do hotel, para levá-lo para o aeroporto assim que ele pudesse sair sem ser descortês.

Já fizera o seu discurso, mas, naquele momento, estava pensando em outra coisa.

Sentia-se muito nervoso e não estava passando bem do estômago. Algum imbecil tivera a péssima idéia de servir haggi o prato escocês que ele achava horripilante. Alec mal o provara.

- Está sentindo alguma coisa, Alec? - perguntou Elizabeth, que estava sentada ao lado dele.

- Não é nada - disse ele para tranqüilizá-la. Os discursos estavam quase terminados quando um garçom se inclinou e sussurrou a Sir Alec:

- Telefonema interurbano para o senhor. Pode atender no escritório.

Alec seguiu o garçom e passou do salão de jantar para o pequeno escritório atrás da portaria. Pegou o telefone.

- Alo? Ouviu então a voz de Swinton.

- Este é o último aviso! Em seguida, o telefone foi desligado.

Capítulo 44 A última cidade na agenda do detetive Max Hornung era Berlim. Os amigos computadores estavam à sua espera. Max falou com o exclusivo computador Nixdorf, ao qual só se tinha acesso com um cartão especial, perfurado.

Falou com os grandes computadores de Allianz e Schuff e com os do Bundeskriminalamt em Wiesbaden, centro de coleta de dados sobre todas as atividades criminais da Alemanha. "Que podemos fazer?", perguntaram eles. "Falem-me de Walther Gassner." E os computadores falaram. Quando acabaram de revelar os segredos a Max Hornung, a vida de Walther Gassner estava exposta diante do detetive em belos símbolos matemáticos.

Max podia ver o homem tão claramente quanto se estivesse olhando para uma fotografia. Sabia das preferências dele em matéria de roupas, vinhos, comidas e hotéis.

Tinha sido um jovem e belo professor de esqui que vivia à custas das mulheres e se casara com uma herdeira muito mais velha do que ele. Houve um ponto que pareceu curioso a Max. Tratava-se de um cheque compensado de duzentos marcos feito em favor do Dr. Heissen. Estava escrito no cheque "para consulta". Que espécie de consulta? O cheque fora recebido no Dresdner Bank, em Düsseldorf.

Quinze minutos depois, Max falava com o gerente do banco. Sim. o gerente conhecia bem o Dr. Heissen, um velho cliente. Que espécie de médico era ele?

Psiquiatra. Quando Max desligou, ficou sentado com os olhos fechados, pensando.

Um fio solto. Por fim pegou o telefone e ligou para o Dr. Heissen, em Düsseldorf.

Uma recepcionista toda cerimoniosa disse a Max que o médico não podia ser perturbado.

Max insistiu, e afinal o próprio Dr. Heissen pegou o telefone e informou rudemente a Max que não costumava dar informações a respeito dos seus clientes e que não tinha a intenção de discutir tais assuntos pelo telefone. Desligou sem esperar qualquer resposta.

Max voltou aos computadores: "Falem-me de Heissen."

Três horas depois, tornava a falar com o Dr. Heissen pelo telefone.

- Fique sabendo - disse o médico asperamente - que, se quiser alguma informação a respeito de qualquer dos meus clientes, terá que aparecer aqui no meu consultório com um mandado judicial.

- Não me é possível no momento ir a Düsseldorf - disse o detetive.

- O problema é seu. Mais alguma coisa? Sou um homem ocupado.

- Sei disso. Tenho aqui em mãos as suas declarações de impostos de renda nos últimos cinco anos.

- E daí?

- Escute, doutor, não quero lhe criar problemas, mas vem sonegando ilegalmente vinte e cinco por cento de sua renda. Se preferir, poderei encaminhar as suas declarações às autoridades alemãs do Imposto de Renda e dizer-lhes onde devem procurar a sonegação. Poderei também falar do seu cofre em um banco em Munique e de sua conta numerada em Basiléia.

Houve um longo silêncio, e então o médico perguntou:

- Quem o senhor disse que era?

- Detetive Max Hornung, da Polícia Criminal da Suíça.

Houve um longo silêncio, e então o médico perguntou:

- O que exatamente deseja saber?

Quando o Dr. Heissen começou a falar, não houve mais jeito de parar. Sim, lembrava-se perfeitamente de Walther Gassner. O homem tinha ido procurá-lo sem marcar hora e tinha insistido em ser imediatamente atendido. Não quisera dar o nome, dizendo que desejava discutir apenas os problemas de um amigo.

- É claro que isso logo me pôs em guarda - disse o Dr. Heissen. - É uma síndrome clássica de pessoas que têm receio de enfrentar os seus próprios problemas.

- Qual era o problema dele, doutor?

- Disse ele que o amigo era esquizofrênico e seria capaz de matar alguém, se não o impedissem. Perguntou se havia alguma espécie de tratamento capaz de atenuar esse estado. Acrescentou que não podia encarar a idéia de ver o amigo internado em um hospício.

- O que o senhor lhe disse?

- Expliquei que, em primeiro lugar, eu teria de examinar esse amigo dele. Adiantei que alguns tipos de doenças mentais eram suscetíveis de tratamento por meio de terapias medicamentosas e psiquiátricas, ao passo que outras eram incuráveis. Disse também que, no caso como o que ele em linhas gerais me expunha, o tratamento poderia ser muito demorado.

- O que aconteceu então?

- Nada. Foi só isso. Nunca mais vi o homem, e sinceramente gostaria de ter feito alguma coisa por ele. A sua visita ao meu consultório teve todas as características de um pedido de socorro. Era como se um assassino tivesse escrito na parede do apartamento de sua vítima: "Prendam-me, senão vou matar de novo!"

Havia uma coisa que Max ainda estranhava.

- Disse que ele não quis dar o nome. Entretanto, deixou nas suas mãos um cheque assinado.

- Disse-me que havia se esquecido de pegar o dinheiro ao sair de casa. Estava muito aflito com isso e, no fim, teve de me dar um cheque. Foi assim que fiquei sabendo o nome dele. Deseja saber mais alguma coisa.

- Não.

Alguma coisa ainda estava desafiando Max. Era um fio solto que fugia do seu alcance. Tinha de encontrá-lo… Mas nada havia a fazer com os computadores. O resto era com ele.

Quando Max voltou a Zurique na manhã seguinte, encontrou um teletipo da Interpol em cima de sua mesa. Continha a relação dos fregueses que haviam comprado a partida de filme virgem com defeito e com o qual fora feito o filme assassino. Havia oito nomes na lista. Um deles era a Roffe and Sons.

O inspetor-chefe Schmied estava ouvindo o detetive Max Hornung e pensando que indiscutivelmente, graças a um golpe de sorte, o pequenino detetive tropeçara em outro caso importante.

- É uma de cinco pessoas - dizia Max. - Todas elas tinham um motivo e tiveram a oportunidade. Estavam todas em Zurique em uma reunião da diretoria no dia em que o elevador caiu. Qualquer delas poderia estar na Sardenha quando houve o acidente com o jipe.

- Espere ai, Hornung - disse o inspetor-chefe Schmied. - Está falando em cinco suspeitos. Mas, na reunião da diretoria, só havia quatro diretores presentes além de Elizabeth Roffe. Quem é o seu quinto suspeito?

- O homem que estava em Chamonix com Sam Roffe quando ele foi assassinado, Rhys Williams.

Capítulo 45 Sra. Rhys Williams. Elizabeth nem poda acreditar. Tudo parecia um sonho como nos seus tempos de mocinha, quando tinha escrito o nome muitas e muitas vezes nos seus cadernos. Sra. Rhys Williams. Olhava sem acreditar para o anel que levava no dedo.

- De que está rindo? - perguntou Rhys.

Estava sentado à frente dela, em uma poltrona a bordo do luxuoso Boeing 707- 320. Estavam dez mil metros acima do oceano Atlântico e faziam uma refeição de caviar iraniano com Dom Pérignon gelado. Era um completo clichê de La dolce vita, e Elizabeth não pôde deixar de rir.

- Alguma coisa que eu disse? - perguntou Rhys. Elizabeth maneou a cabeça. Viu como ele era bonito. E era seu marido.

- Estou tão feliz! - murmurou ela. Ele nunca saberia até que ponto ela era feliz.

Como poderia Elizabeth dizer-lhe o que aquele casamento representava para ela? Ele não poderia compreender, porque para Rhys aquilo não era um casamento; era um acordo comercial. Mas ela amava Rhys. Tinha a impressão de que sempre o amara.

Queria passar o resto da vida com ele e dar-lhe muitos filhos. Queria pertencer a ele e fazer que ele pertencesse a ela. Mas era preciso antes resolver um problema.

Tinha de fazer Rhys apaixonar-se por ela. Elizabeth tinha falado em casamento a Rhys no dia em que se encontrara com Julius Badrutt. Depois que o banqueiro saiu, Elizabeth ajeitou os cabelos e foi à sala de Rhys. Respirou fundo e perguntou:

- Quer se casar comigo, Rhys?

Viu a surpresa estampada no rosto dele e continuou apressadamente, querendo parecer eficiente e fria:

- Seria um acordo puramente comercial. Os bancos estão dispostos a prorrogar o prazo de empréstimos se você assumir a presidência da Roffe and Sons. A única maneira de você conseguir isso é casando-se com uma mulher da família, e parece que a única disponível sou eu.

Nas últimas palavras, a voz se tornou imprevisivelmente esganiçada. Elizabeth ficou muito vermelha e não pôde levantar a vista para ele.

- É claro - continuou Elizabeth - que não seria um verdadeiro casamento no sentido usual do termo… Você teria inteira liberdade de fazer o que quisesse…

Ele ficou olhando-a, sem ajudá-la em nada. Elizabeth queria que ele falasse, que dissesse alguma coisa, fosse lá o que fosse.

- Rhys…

- Desculpe, Elizabeth - disse ele, sorrindo. - Mas não é todos os dias que se recebe um pedido de casamento de uma mulher bonita.

Ele estava querendo ganhar tempo, procurando um jeito de livrar-se daquilo, sem ofender os sentimentos dela. "Desculpe, Elizabeth, mas"…

- Combinado, Elizabeth - disse ele.

De repente, ela sentiu como se a tivesse aliviado de um tremendo peso. Não compreendera até aquele momento o quanto aquilo era importante para ela. Ganhara tempo de sobra para saber quem era o inimigo. Juntos, Rhys e ela poderiam acabar com todas aquelas coisas terríveis que estavam acontecendo. Mas uma coisa era preciso esclarecer desde daquele instante.

- Você será o presidente da companhia, mas o controle acionário permanecerá nas minhas mãos. Rhys franziu a testa.

- Se eu vou presidir à companhia…

- Vai,sim.

- Mas o controle acionário…

- Continuará em meu nome. Quero ter a certeza de que as ações não poderão ser vendidas.

- Compreendo.

Ela sentia a reprovação de Rhys. Gostaria de dizer-lhe que decidira transformar a firma numa sociedade aberta e deixar os diretores venderem as suas ações. Com Rhys na presidência, Elizabeth não teria mais receio de que os estranhos chegassem e se apossassem de tudo. Rhys saberia contê-los. Mas não podia deixar que isso acontecesse enquanto ela não soubesse que estava tentando destruir a companhia. Gostaria muito de dizer todas essas coisas a Rhys, mas sabia que ainda não era hora. Limitou-se a dizer:

- Fora esse ponto, você terá o controle total da companhia.

Rhys ficou a olhá-la em silêncio durante um tempo que pareceu a Elizabeth intoleravelmente longo. Por fim, perguntou:

- Quando é que você quer se casar, Elizabeth?

- O mais depressa possível.

À exceção de Anna e Walther, que estava em casa doente, todos compareceram ao casamento em Zurique: Alec e Vivian, Hélsne e Charles, Simonetta e Ivo. Pareciam todos muito felizes com o casamento, a tal ponto que Elizabeth em alguns momentos sentiu-se como uma impostora, pois não estava se casando realmente e, sim, fazendo um acordo comercial. Alec abraçou-a e disse:

- Sabe muito bem que eu lhe desejo tudo de bom.

- Sei sim, Alec. Muito obrigada.

Ivo parecia em êxtase.

- Caríssima, tanti auguri e figli mashi. Ficar rico é o sonho dos mendigos, mas ter amor é o sonho dos reis.

- Quem disse isso?

- Eu mesmo - disse Ivo. - Só espero que Rhys saiba apreciar a sorte que tem.

- É o que eu me canso de dizer a ele - disse Elizabeth rindo.

Hélsne levou Elizabeth para um canto.

- Você é cheia de surpresas, ma chére. Nem sabia que você e Rhys se interessavam um pelo outro.

E afastou-se.

Depois da cerimônia, houve uma recepção no Baur-au-Lac. Na superfície, tudo foi alegre e festivo, mas Elizabeth podia sentir as correntes submersas. Pairava na sala uma maldição, mas ela não podia dizer de quem partia. Sabia apenas que uma das pessoas presentes a odiava. Era uma convicção profunda, ainda que em volta dela só visse sorrisos e rostos amigos.

Charles fez um brinde, mas ela recebera um relatório segundo o qual o explosivo que destruíra o laboratório fora fabricado nos arredores de Paris. Ivo tinha um sorriso cordial, mas o banqueiro capturado quando tentava sair com dinheiro da Itália fora denunciado por ele.

Alec? Walther? Qual deles? perguntava-se Elizabeth.

Na manhã seguinte, houve uma reunião da diretoria, e Rhys Williams foi eleito, por unanimidade, presidente e principal executivo da Roffe and Sons. Charles levantou a questão que estava no espírito de todos.

- Agora que está dirigindo a companhia, vai permitir as vendas das ações? Elizabeth pôde sentir subitamente a tensão dominar a sala.

- O controle acionário ainda está nas mãos de Elizabeth - informou Rhys.

- Cabe a ela decidir. Todas as cabeças se voltaram para Elizabeth.

- Não vamos vender - declarou ela.

Quando Elizabeth e Rhys ficaram sozinhos, ele perguntou:

- Gostaria de ir passar a lua-de-mel no Rio?

Elizabeth olhou-o e sentiu o coração bater mais forte. Mas Rhys acrescentou, com a maior calma do mundo.

- O nosso gerente lá está ameaçando demitir-se e é preciso resolver esse caso.

Planejava tomar o avião amanhã. Pareceria estranho se eu fosse sem minha mulher.

- É claro - disse Elizabeth. E pensou: Você é uma tola. Tudo isso foi idéia sua. Não se trata de um casamento, mas sim de um acordo comercial. Você não tem o direito de esperar coisa alguma de Rhys. Entretanto, quem sabe o que pode acontecer numa viagem dessas?

Quando desembarcaram do avião no Aeroporto do Galeão, fazia calor, e Elizabeth se lembrou de que no Rio era verão. À espera deles havia um Mercedes 600 com um motorista, um homem magro de pouco mais de vinte anos.

- Onde está Luís? - perguntou-lhe Rhys ao entrar no carro.

- Luís está doente, Sr. Williams. Mas eu estarei à disposição do senhor e de sua mulher.

- Diga a Luís que desejo seu pronto restabelecimento.

O chofer olhou-os pelo retrovisor e respondeu:

- Direi, sim.

Meia hora depois, rolavam pela avenida ao longo de Copacabana. Pararam à porta de um hotel moderno, e, um momento depois, os empregados já estavam cuidando da bagagem deles. Foram levados para uma enorme suíte de quatro quartos, uma bela sala, uma cozinha e um grande terraço de frente para o mar.

Havia flores em profusão, champanha, uísque e bombons. O gerente os havia levado pessoalmente até a suíte.

- Se desejarem alguma coisa, seja o que for, estou às ordens vinte e quatro horas por dia - disse ele, antes de retirar-se.

- São sem dúvida muito atenciosos - disse Elizabeth.

Rhys riu e respondeu:

- Têm motivos para ser. Este hotel lhe pertence.

- Oh, eu não sabia disso.

- Está com fome?

- Ainda não…

- Um pouco de champanha?

- Isso sim… Obrigada.

Tinha a impressão de que não estava falando naturalmente. Não sabia ao certo como proceder, nem o que devia esperar de Rhys. Ele se tornara de repente uma pessoa estranha, e ela não podia esquecer um só momento que estava sozinha com ele em uma suíte de hotel, que estava ficando tarde e que, dentro em pouco, seria hora de ir para a cama.

Viu Rhys abrir com facilidade a garrafa de champanha. Tudo o que ele fazia era assim, com aquela facilidade e a segurança de quem sabe o que quer e como conseguilo.

O que queria ele?

Rhys levou a champanha para Elizabeth e fez um brinde.

- A um bom começo.

- A um bom começo - repetiu Elizabeth, e acrescentou intimamente: E a um final feliz. Beberam. Deviam quebrar as taças para comemorar, pensou ela.

Acabou de beber o champanha. Estavam em lua-de-mel no Rio e ela queria Rhys. Não só naquele momento, mas para sempre.

O telefone tocou. Rhys atendeu e disse algumas palavras. Depois que desligou, disse a Elizabeth:

- Já é tarde. Por que não vai para a cama?

Para Elizabeth, a palavra "cama" ficou pairando no ar.

- Já vou -disse ela com voz fraca. Levantou-se e foi para o quarto onde tinha deixado as suas malas. Havia uma cama enorme no centro do quarto. Uma camareira abrira as malas e preparava a cama. De um lado havia uma fina camisola de seda; do outro, um pijama azul de homem. Hesitou um momento e começou a despir-se. Quando ficou nua, passou ao quarto de vestir espelhado e tirou cuidadosamente a maquiagem.

Amarrou uma toalha na cabeça, entrou no banheiro e tomou um demorado banho de chuveiro, ensaboando bem o corpo e deixando a água quente descer-lhe por entre os seios e sobre seu ventre e coxas, como se compridos dedos quentes a afagassem.

Tentava não pensar em Rhys, mas não podia pensar em mais nada. Pensava nos braços dele em torno do seu corpo e o corpo dele nela. Tinha se casado com ele para ajudar a salvar a companhia ou isso fora apenas um pretexto, pois na verdade era a ele que queria? Não sabia mais.

O seu desejo se transformava numa ardente necessidade. Era com se a menina de quinze anos que ela fora estivesse durante todo o tempo à espera por ele sem ter consciência de que a ansiedade se transformara numa fome imperiosa.

Saiu do chuveiro, enxugou-se, vestiu a camisola de seda e deitou-se. Ficou esperando, pensando no que ia acontecer, apenas com uma vaga idéia de como seria tudo e com o coração batendo com força.

Ouviu a porta abrir-se e Rhys apareceu. Estava inteiramente vestido.

- Vou sair, Liz.

- Aonde… Aonde vai?

- Tenho de resolver um problema de negócios - disse ele, e saiu.

- Elizabeth passou o resto da noite acordada, virando-se na cama deum lado para outro, sacudida por emoções contraditórias, ora grata a Rhys por observar o acordo que tinham feito, ora furiosa por ter sido rejeitada por ele.

O dia já estava amanhecendo quando ouviu Rhys voltar. Os seus passos se encaminharam para o quarto e ela fechou os olhos, fingindo que dormia. Chegou a ouvir a respiração de Rhys quando ele se aproximou da cama. Ficou ali olhando-a durante muito tempo. Por fim, voltou-se e foi para o outro quarto. Poucos minutos depois, Elizabeth adormecia. Nas últimas horas da manhã, fizeram a primeira refeição no terraço. Rhys estava muito agradável e falava com muita animação da cidade e do seu aspecto no tempo do carnaval. Mas não disse coisa alguma sobre onde passara a noite, e Elizabeth não perguntou.

Um garçom apareceu para saber o que queriam almoçar. Elizabeth notou que foi outro garçom que serviu pouco depois o almoço. Mas não deu muita atenção a isso.

Como também às camareiras que a todo o momento entravam e saíam.

Elizabeth e Rhys estavam na fábrica de Roffe and Sons nos arredores do Rio, sentados no escritório do gerente. Roberto Tumas, um homem de meiaidade, que transpirava copiosamente.

- Deve compreender as coisas - dizia ele a Rhys. - A Roffe me é mais cara do que a própria vida. É como se fosse minha família. Quando sair daqui, me sentirei como se tivesse abandonado o meu lar. Meu coração ficará dilacerado. Mas tenho uma excelente proposta de outra companhia. Tenho mulher, filhos e uma sogra em quem pensar.

Compreende, não é mesmo?

Rhys estava descansando confortavelmente numa poltrona e disse:

- É claro, Roberto. Sei muito bem o que a companhia representa para você e quantos anos você já passou aqui dentro. Mas compreendo também que é um homem e tem de pensar na família.

- Obrigado, Rhys. Eu sabia que você iria compreender.

- E o seu contrato conosco?

Roberto encolheu os ombros.

- Ora, o meu contrato com a Roffe sempre foi mera formalidade. Que valor tem um contrato quando obriga um homem a trabalhar sentindo-se infeliz?

- Foi por isso que tomamos o avião até aqui, Roberto. Queremos que você se sinta feliz.

- Pena que seja muito tarde… Agora, eu já acertei ir trabalhar em outra companhia.

- Essa outra companhia sabe que você pode ir para a prisão? - perguntou Rhys displicentemente.

- Para a prisão?

- O governo dos Estados Unidos obrigou toda a empresa de negócio no exterior a revelar todos os subornos pagos nos últimos dez anos. Infelizmente, você está envolvido nisso, Roberto. Além disso, deixou de cumprir várias leis brasileiras. Estávamos dispostos a protegê-lo de todas as maneiras, como um verdadeiro membro da família. Mas, desde que vai sair da companhia, não há mais motivos para isso, não acha?

Roberto estava muito pálido.

- Mas tudo o que eu fiz foi em benefício da companhia. Estava apenas cumprindo ordens.

- Tenho certeza de que poder explicar tudo durante o seu julgamento - disse Rhys, levantando-se. - Bem, não temos mais nada a fazer aqui. Vamos, Elizabeth.

- Espere um pouco! - exclamou Roberto. - Não pode me abandonar assim!

- Creio que está fazendo um pouco de confusão. Quem quer nos abandonar é você.

Tumas enxugou o suor da testa, foi até a janela e olhou para fora, enquanto um profundo silêncio reinava na sala. Finalmente, voltou-se para Rhys e disse:

- Se eu ficar na companhia, posso contar com a proteção da Roffe?

- Total e absoluta - disse Rhys.

Quando estavam de novo no Mercedes de volta à cidade, Elizabeth disse a Rhys:

- O que você fez com ele foi chantagem.

- Decerto, mas não podíamos perder o homem para uma companhia rival. Ele sabe muito sobre nossos negócios e trataria de revelar isso fora daqui.

Elizabeth ficou pensando que ainda tinha muito que aprender com Rhys. Naquela noite, foram jantar num restaurante, o Minder. Rhys se mostrou encantador, divertido e impessoal. Elizabeth tinha a impressão de que ele estava se escondendo por trás de uma cortina de fumaça de palavras e gentilezas para não revelar os seus verdadeiros sentimentos.

Quando acabaram de jantar, já passava da meia-noite. Elizabeth tinha esperança de que fossem voltar para o hotel, mas Rhys disse:

- Vou lhe mostrar um pouco da vida noturna do Rio.

Fizeram a ronda das boates e todo mundo parecia conhecer Rhys. Em todos os lugares, era o centro das atenções e encantava a todos. Eram convidados para as mesas de outros casais, e muitas pessoas iam sentar-se à mesa deles. Não ficavam um único minuto a sós. Sem dúvida, Rhys estava fazendo aquilo de propósito para estabelecer uma barreira entre eles. Em outros tempos, tinham sido amigos. Tinham passado a ser… o quê?

Na quarta boate, onde tinham ido para uma mesa cheia de amigos de Rhys.

Elizabeth chegou à conclusão de que já bastava. Interveio na conversa entre Rhys e uma linda moça espanhola.

- Desculpe, mas ainda não dancei uma só vez com meu marido. Com licença.

Rhys olhou-a com surpresa e levantou-se, dizendo aos outros:

- Creio mesmo que estou esquecendo minha mulher. - Tomou o braço de Elizabeth e levou-a para a pista de dança. Ela estava um pouco rígida, e ele murmurou: - Você está brava.

Tinha razão, mas Elizabeth estava zangada consigo mesmo. Impusera as regras do jogo e estava aborrecida porque Rhys não tratava de desrespeitá-las. Mas não era só isso. O pior de tudo era não ter certeza dos verdadeiros sentimentos de Rhys. Estava cumprindo o acordo apenas porque tinha senso de dignidade ou porque ela não lhe interessava? Elizabeth tinha de saber.

- Desculpe toda essa gente, Elizabeth - disse ele. - Todos estão ligados ao mundo dos negócios e, de uma forma ou de outra, podem nos ser úteis.

Isso mostrava que ele compreendia os sentimentos dela. Era muito agradável ter o braço dele passado por ela e o corpo bem junto ao seu. Tudo em Rhys era exatamente como ela queria. Um se ajustava ao outro. Ela sabia disso. Mas saberia ele o quanto ela precisava dele? O amor-próprio não lhe permitia dizer coisa alguma. Mas ele não podia deixar de sentir alguma coisa. Encostouse mais a ele.

O tempo havia parado e não havia nada no mundo senão os dois, a música e a magia daquele momento. Ela poderia continuar dançando para sempre nos braços dele.

Descontraiu-se, abandonou-se inteiramente a ele e, pouco depois, sentiu a dureza masculina contra as coxas. Abriu os olhos e viu nos olhos dele alguma coisa que nunca vira antes, uma urgência e uma necessidade que eram reflexos do que ela sentia.

Finalmente, ele disse, com voz rouca:

- Vamos voltar para o hotel.

Ela nem conseguia falar. Quando ele a ajudava a colocar o casaco, os dedos dele lhe queimavam a pele. Sentaram-se no carro separados um do outro, com receio de qualquer contato. Elizabeth sentia-se arder. Pareceu-lhe terem levado uma eternidade para chegar à suíte. Sentiu que não podia esperar um só momento mais. Logo que a porta se fechou, juntaram-se num abraço impetuoso, que a ambos tirou o fôlego.

Estava nos braços dele, e havia nele uma ferocidade que ela nunca pressentira.

Ele a tomou nos braços e levou-a para o quarto. Não conseguiram despir-se com a rapidez que desejavam. Elizabeth pensou que eram como duas crianças ansiosas, e ficou sem saber por que Rhys demorava tanto. Mas pouco importava agora. O que importava era a nudez e o maravilhoso contato de um corpo contra o outro.

Acariciaram-se longamente e, quando não agüentaram mais, ele se moveu com lentidão sobre o corpo dela e penetrou-a lenta e profundamente, em gentis movimentos circulares, até que ela começou a mover-se no ritmo dele, no ritmo de ambos, no ritmo do universo, e tudo se moveu cada vez mais depressa, girando descontroladamente até que houve uma explosão maravilhosa e a terra voltou a ser tranqüila e pacífica. Ficaram ali abraçados, e Elizabeth pensou com alegria: Sra. Rhys Williams.

Capítulo 46 - Perdão, Sra. Williams - disse Henriette pelo interfone. -O detetive Hornung está aqui, e deseja vê-la. Diz que é urgente.

Elizabeth olhou para Rhys, intrigada. Tinham chegado a Zurique, vindo do Rio, na noite anterior, e estavam no escritório havia poucos minutos apenas. Rhys encolheu os ombros.

- Diga-lhe que mande o homem entrar. Vamos saber que urgência é essa.

Pouco depois, estavam os três sentados no escritório de Elizabeth.

- Que deseja? - perguntou Elizabeth.

Max Hornung não era homem de rodeios.

- Alguém está tentando matá-la - disse ele.

Ao ouvir essas palavras, Elizabeth ficou muito pálida. Diante disso, Max Hornung pensou que devia ter tido mais tato, apresentando os fatos de outra maneira.

- O que está dizendo, afinal de contas? - perguntou Rhys Williams. Max continuou a dirigir-se a Elizabeth.

- Já houve duas tentativas de morte contra a sua pessoa. Haverá provavelmente outras.

- Acho… que deve estar enganado - murmurou Elizabeth.

- Não estou, não. O desastre do elevador visava a sua pessoa.

Ela o encarou em silêncio, com os olhos negros cheios de espanto e outras emoções que Max não podia definir.

- E o desastre com o jipe também.

Elizabeth conseguiu falar:

- Está enganado. Foi um acidente. Não havia nada no jipe. A polícia de Sardenha examinou-o.

- Não.

- Eu vi os mecânicos examinarem o jipe - disse Elizabeth.

- Não, senhora. A senhora viu os mecânicos examinarem um jipe. Não era o seu.

Ambos o olhavam, estupefatos. Max continuou:

- O seu jipe nunca esteve naquela garagem. Fui encontrá-lo em um ferro velho, em Olbia. A porca que fechava o cilindro principal foi afrouxada, deixando escoar todo o óleo do freio. Foi por isso que a senhora ficou sem freios. O pára lamas esquerdo ainda estava amassado e havia marcas verdes da seiva da árvore contra a qual bateu. Verifiquei tudo e vi que conferia.

O pesadelo estava de volta. Elizabeth sentiu-se dominada por ele, e as comportas dos seus temores ocultos se reabriam subitamente, revivendo o terror daquela descida pela montanha.

- Não compreendo - disse Rhys. - Como foi possível isso?

Max voltou-se para Rhys.

- Todos os jipes se parecem. Eles se aproveitaram disso. Quando ele bateu na árvore em vez de rolar pelo precipício como esperavam, tiveram de improvisar. Não podiam deixar ninguém examinar o jipe, pois tudo tinha que parecer um acidente. Tinham esperado que ele fosse parar no fundo do mar. Talvez a tivessem liquidado ali mesmo, se não tivesse chegado uma turma de socorro que a levou para o hospital. Conseguiram então outro jipe, simularam uma batida e fizeram a mudança antes que a polícia chegasse.

- Quem são essas pessoas a quem se refere? - perguntou Rhys.

- Quem fez tudo aquilo teve auxílio. É por isso que falo no plural.

- Quem… quem poderia querer matar-me? - perguntou Elizabeth.

- A mesma pessoa que matou seu pai.

Ela teve uma súbita impressão de irrealidade, como se nada daquilo tivesse acontecido. Era tudo um pesadelo que em breve se dissiparia.

- Seu pai foi assassinado - continuou Max. - Escalou a montanha com um falso guia, que o matou. Seu pai não foi a Chamonix sozinho. Havia alguém com ele.

- Quem? -perguntou Elizabeth com um fio de voz.

Max olhou para Rhys e disse:

- Seu marido.

Essas palavras ressoaram sinistramente nos ouvidos de Elizabeth. Parecia vir de muito longe, crescendo e diminuindo. Elizabeth teve a impressão de que estava perdendo o juízo.

- Liz, eu não estava com Sam quando ele foi morto - disse Rhys.

- Esteve em Chamonix com ele - insistiu Max.

- É verdade. Mas parti de Chamonix antes que Sam iniciasse a sua escalada!

- Por que não me disse isso, Rhys? - perguntou Elizabeth.

Rhys pareceu hesitar um momento. Em seguida, tomou uma decisão e começou a falar:

- Era um assunto que eu não podia discutir com ninguém. No ano passado alguém tinha começado a sabotar a Roffe and Sons. Tudo era feito com muita habilidade, para que parecesse simplesmente uma série de acidentes. Mas eu comecei a perceber que havia um plano por trás de tudo. Fui falar com Sam e então combinamos em contratar uma agência particular para investigar os fatos.

Elizabeth sabia o que ele ia dizer e foi dominada ao mesmo tempo por uma onda de alívio e por um sentimento de culpa. Rhys sabia do relatório. Devia ter confiado nele, devia ter contado tudo a ele, em lugar de guardar os receios para si mesma. Rhys continuou a falar com Max Hornung.

- Sam Roffe recebeu um relatório que confirmou as minhas suspeitas. Ele me convidou a ir até Chamonix para discutir o caso com ele. Fui. Resolvemos guardar sigilo sobre tudo até sabermos quem era o responsável pelo que estava acontecendo. É evidente que o sigilo não foi absoluto. Sam foi morto porque alguém sabia que estávamos nos aproximando da verdade. O relatório desapareceu.

- Eu vi o relatório - disse Elizabeth, a quem Rhys olhou com surpresa. -Estava entre os objetos de Sam recolhidos pela polícia em Chamonix. O relatório indicava que o culpado era alguém da diretoria da Roffe and Sons. Mas todos eles têm ações da companhia. Por que haveriam de querer destruí-la?

Max explicou:

- Não estão tentando destruí-la, Sra.. Williams. O que procuram é criar problemas suficientes para que os banqueiros fiquem impacientes e comecem a exigir o pagamento dos seus empréstimos. Queriam com isso forçar seu pai a transformar a companhia em uma sociedade aberta e vender as ações. O culpado de tudo isso ainda não conseguiu o que queria. Por isso, a sua vida continua em perigo.

- Então é preciso dar proteção a ela - disse Rhys.

Max piscou os olhos e disse:

- Não se preocupe com isso, Sr. Williams. Ela tem estado sob nossas vistas desde o dia em que se casou com o senhor.

Capítulo 47 Berlim. Segunda-feira, 1 de dezembro. 10 horas.

A dor era insuportável e havia semanas que ele sofria. O médico deixaralhe alguns comprimidos, mas Walther Gassner tinha medo de tomá-los. Devia ficar constantemente alerta para que Anna não fizesse outra tentativa de matá-lo ou fugir.

- Deve ir para um hospital - havia dito o médico. - Perdeu muito sangue…

Era isso o que Walther absolutamente não queria. Ferimentos feitos a faca ou com instrumentos pontiagudos eram comunicados à polícia. Havia se tratado com um médico da companhia, na certeza de que ele não faria qualquer comunicado à polícia, pois Walther não podia tolerar que ela se metesse na sua vida. Ao menos naquele momento.

O médico tinha dado, em silêncio, alguns pontos no ferimento, com os olhos cheios de curiosidade. Perguntara depois:

- Quer que mande uma enfermeira, Sr. Gassner?

- Não, minha mulher cuidará de mim.

Isso havia acontecido já fazia um mês, Walther telefonara para sua secretária e lhe dissera que devido a um acidente, iria passar algum tempo em casa. Pensou no terrível momento em que Anna tentara matá-lo com a tesoura. Ele se havia voltado no momento exato, e a lâmina lhe atingira o ombro em vez de acertar-lhe o coração. Quase desmaiara com a dor e o choque, mas ainda conservara a consciência o tempo suficiente para arrastar Anna para o quarto e trancá-la.

E durante o tempo ela não parara de gritar: "O que você fez com as crianças? O que você fez com as crianças?"

Desde então, Walther a mantinha trancada. Preparava a comida dela. Levava uma bandeja ao quarto de Anna, abria a porta e entrava. Ela ficava sempre encolhida em um canto, com medo dele, e só vivia perguntando num sussurro: "O que você fez com as crianças?" às vezes, ele abria a porta e a encontrava com o ouvido colado à parede, procurando escutar as vozes do filho ou da filha. A casa estava vazia agora, e só os dois estavam lá dentro.

Walther sabia que havia muito pouco tempo a perder. Os seus pensamentos foram, de repente, interrompidos por um leve ruído. Escutou. Tornou a ouvir. Alguém estava andando pelo corredor do andar de cima. Entretanto, a casa devia estar vazia. Ele mesmo fechara todas as portas.

No andar de cima, a Sra. Mendler estava arrumando a casa. Trabalhava como faxineira e era a segunda vez que ia àquela casa. Não gostava de lá. Quando trabalhava ali na quarta-feira anterior, o Sr. Gassner a havia acompanhado, como se tivesse receio de que ela roubasse alguma coisa. Quando ela se preparava para subir, ele falara bruscamente com ela, pagara o dia e a mandara embora. Havia alguma coisa no jeito do homem que lhe metia medo.

Naquele dia, ainda não o vira, graças a Deus. A Sra. Mandler havia entrado na casa com a chave que tinha pegado na semana anterior e subido para o andar superior. A casa estava em completo silêncio, e ela julgou que o homem tivesse saído. Havia arrumado um dos quartos, onde não encontrara nada senão algumas moedas espalhadas e uma caixinha dourada de pílulas. Seguiu então o corredor até o quarto vizinho e tentou abrir a porta. Estava trancada. Estranho.

Talvez o homem guardasse alguma coisa de muito valor lá dentro. Forçou a maçaneta e então ouviu uma voz de mulher vinda de dentro do quarto perguntar:

- Quem é? - A Sra. Mandler recuou, assustada. - Quem é? Quem está aí?

- Sou eu, a faxineira. Não quer que arrume seu quarto?

- Não pode entrar. Estou trancada. Socorro! Por favor, chame a polícia! Diga que meu marido matou meus filhos! Agora, vai me matar! Depressa! Saia daqui antes que ele…

Nesse momento, agarraram violentamente a Sra. Mendler pelo braço e ela se viu frente a frente com o Sr. Gassner, que estava mortalmente pálido.

- O que está espionando aqui? -perguntou ele, apertando-lhe dolorosamente o braço.

- Não estou espionando nada. Sou a faxineira e hoje é meu dia. A agência me disse…

- Eu disse à agência que não queria mais ninguém. Eu… - Procurou lembrar-se.

Havia telefonado mesmo para a agência? Pensara em fazer isso, mas sentira tantas dores que talvez tivesse esquecido… A Sra. Mandler olhava para ele, aterrada.

- Não me disseram nada…

Ele ficou parado para ver se escutava algum barulho por trás da porta fechada.

Mas o silêncio era completo. Voltou-se para a faxineira:

- Vá embora daqui. E não volte.

A Sra. Mandler saiu o mais depressa que pôde da casa. O homem não lhe pagara o dia. Mas ela pegara a caixinha dourada de pílulas e as moedas que encontrara espalhadas pelo quarto. Tinha pena da pobre mulher trancada no quarto. Gostaria de ajudá-la, mas não queria envolver-se no caso. Tinha ficha na polícia.

Em Zurique, o detetive Max Hornung lia o seguinte teletipo recebido da sede da Interpol em Paris:

"Número da fatura do filme virgem usado no filme assassino vendido a Roffe and Sons não pôde ser obtido pois funcionário não trabalha mais na companhia. Estamos investigando e comunicaremos todas as informações obtidas".

Em Paris, a polícia retirava das águas do Sena o corpo nu de uma mulher de quase vinte anos, loura. Tinha uma fita vermelha amarrada no pescoço.

Em Zurique, Elizabeth Williams fora colocada sob proteção permanente da polícia.

Capítulo 48 A luz branca se acendeu, indicando que havia uma ligação para a linha direta de Rhys Williams. Nem meia dúzia de pessoas sabiam desse número. Pegou o telefone.

- Alo? - Bom dia, querido.

Não era possível confundir aquela voz gutural e diferente.

- Você não devia telefonar para mim.

A mulher riu.

- Você nunca se preocupou com essas coisas. Não me diga que Elizabeth já o dominou.

- O que você quer? - perguntou Rhys.

- Quero vê-lo hoje à tarde.

- Impossível!

- Olhe que eu me zango, Rhys. Quer que eu vá até Zurique?

- Não, não posso vê-la aqui… está bem. Irei até aí.

- Assim, sim. No lugar do costume, chéri.

E Hélsne Roffe-Martel desligou.

Rhys colocou o fone no gancho e ficou pensando. Para Rhys, não tinha passado de um breve caso puramente sexual com uma mulher interessante, mas estava encerrado havia algum tempo. Mas Hélsne não era mulher que pudesse ser abandonada com facilidade. Ela estava cansada de Charles e queria Rhys: "Você e eu formamos um par perfeito", dizia, e Hélsne Roffe-Martel podia ser muito determinada e extremamente perigosa.

Rhys chegou à conclusão de que a viagem a Paris era necessária. Tinha de fazêla compreender de uma vez por todas que não podia haver mais nada entre eles.

Momentos depois, entrou na sala de Elizabeth, e os olhos dela faiscaram. Abraçou-o e disse:

- Estava pensando em você. Vamos para casa e trataremos de ter uma folga pelo resto do dia. Ele sorriu.

- Você está ficando maníaca em matéria de sexo.

Ela se aconchegou a ele. - Sei disso. E não é bom?

- Infelizmente, tenho de tomar o avião para Paris hoje à tarde, Liz. Ela procurou dissimular a sua decepção e perguntou:

- Devo ir com você?

- Não é o caso, Liz. Há um pequeno problema que eu tenho de resolver pessoalmente. Estarei de volta à noite. Jantaremos um pouco mais tarde.

Quando Rhys entrou no pequeno hotel da River Gauche, que conhecia tão bem, já encontrou Hélsne à espera dele. Era organizada e eficiente, extraordinariamente bela, inteligente e maravilhosa amante.

Faltava-lhe, no entanto, alguma coisa. Hélsne era uma mulher sem compaixão.

Havia nela intensa crueldade, um verdadeiro instinto assassino. Rhys já vira outros massacrados por ela, e não tinha a intenção de se tornar uma de suas vítimas. Sentou-se diante dela.

- Você está com ótimo aspecto, meu querido. É evidente que está se dando bem com o casamento. Elizabeth tem sido satisfatória para você na cama?

Ele sorriu para atenuar a rudeza do que ia dizer.

- Não é da sua conta.

Ela se curvou para a frente e segurou uma das mãos dele.

- Ah, é, sim, cheri. É da nossa conta.

Começou a acariciar-lhe a mão, e ele pensou nela na cama. Parecia um tigre, selvagem, à espreita e insaciável. Rhys afastou a mão. Os olhos de Hélsne ficaram frios.

- Escute, Rhys. Como é ser presidente da Roffe and Sons?

Ele quase havia esquecido o quanto ela era ambiciosa. Lembrou-se das longas conversas que já haviam tido. Ela alimentava a obsessão de dominar a companhia. Você e eu, Rhys. Se Sam estivesse fora do caminho, nós dois poderíamos dirigir a companhia.

Até nos momentos mais arrebatadores de amor ela murmurava: A companhia é minha, meu bem. Tenho nas veias o sangue de Samuel Roffe. A companhia é minha. Eu a quero.

Foda-me, é minha. Eu a quero. Foda-me, Rhys. O poder era o afrodisíaco de Hélsne. O perigo também.

- O que você quer comigo, Hélsne?

- Acho que já está na hora de nós dois fazermos alguns planos.

- Não sei do que você está falando.

- Eu o conheço bem, Rhys. Você é ainda mais ambicioso do que eu. Por que acompanhou Sam como uma sombra quando teve ótimas propostas para dirigir outras companhias? Sabia muito bem que um dia iria dirigir a Roffe and Sons.

- Fiquei porque gostava de Sam.

- É claro, chéri - disse ela, rindo. - E hoje está casado com a filhinha encantadora dele. - Tirou um cigarro da bolsa e acendeu-o com um isqueiro de platina. - Charles me disse que Elizabeth mantém o controle acionário da companhia e ainda se recusa a abrir mão dele.

- É verdade, Hélsne.

- Naturalmente, já deve ter pensado que, se ela sofrer um acidente, você herdará tudo, não é? Rhys olhou demoradamente para ela.

Capítulo 49 Ivo Palazzi estava em sua casa, em Olgiata, e olhava pela janela quando viu uma coisa simplesmente horripilante. Donatella e os três garotos vinham chegando pela entrada de carros. Simonetta estava no andar de cima, cochilando. Ivo saiu às pressas ao encontro de sua segunda família.

Estava com tanta raiva que tinha vontade de matar. Tinha sido tão bom, tão amigo, tão carinhoso para com aquela mulher, e a recompensa que ela lhe dava era a tentativa deliberada de destruir-lhe a carreira, o casamento e a vida. Viu Donatella saltar do Lancia Flava que ele tão generosamente lhe dera. Para dizer a verdade, ela nunca lhe parecera tão bela quanto aquele instante. Os garotos saltaram também para abraçá-lo e beijá-lo.

Ivo sentiu que os amava demais. Desejava apenas que Simonetta não acordasse naquele momento.

- Vim falar com sua mulher - disse cerimoniosamente Donatella,. - Vamos entrar, garotos.

- Não! - ordenou Ivo.

- Como você vai impedir? Se eu não falar com ela hoje, falarei amanhã.

Ivo estava imprensado contra a parede e não via saída. Sabia, porém, que não podia deixar que ninguém lhe destruísse aquilo que lhe custara tanto construir. Ivo se considerava um homem de bem e detestava o que tinha de fazer. Mas era preciso, não só por ele, mas por Simonetta, por Donatella e por todos os seus filhos.

- Eu lhe darei seu dinheiro - disse a Donatella. - Daqui a cinco dias.

- Está bem. Cinco dias - disse Donatella, com os olhos fixos nele.

Em Londres, Sir Alec Nichols estava tomando parte num debate na Câmara dos Comuns. Fora escolhido para fazer um importante discurso político a respeito das repetidas greves que estavam desarticulando a economia britânica. Tinha, porém, dificuldades de concentrar-se. Pensava na série de telefonemas que recebera naquelas últimas semanas. Conseguiam encontrá-lo onde quer que ele estivesse: no clube, no barbeiro, nos restaurantes, em reuniões comerciais.

Alec sempre desligava sem dizer uma palavra. Sabia o que estavam querendo era apenas o começo. Depois que o tivessem sob controle, achariam um jeito de apoderar-se das suas ações e deteriam então uma parcela da gigantesca indústria farmacêutica que fabricava drogas de todas as espécies. No início, telefonavam-lhe quatro ou cinco vezes por dia, até que os seus nervos ficaram em petição de miséria.

O que preocupava Alec naquele dia era não ter recebido ainda qualquer telefonema. Havia esperado o telefonema de manhã na hora do café e, mais tarde, quando almoçava no White's. Mas ninguém lhe telefonara, e ele não podia livrar-se da idéia de que aquele silêncio era mais sinistro que todas as ameaças. Procurou, entretanto, esquecer-se de tudo ao ocupar a tribuna da Câmara. "Ninguém é mais amigo dos trabalhadores do que eu. Nossa força de trabalho é que dá a grandeza ao país. Os trabalhadores alimentam as nossas usinas e movem as nossas fábricas. São a verdadeira elite do país, a espinha dorsal que torna a Inglaterra alta e forte entre as nações." Fez uma pausa e continuou: "Há todavia períodos na vida de toda a nação em que é preciso fazer sacrifícios…"

Falava mecanicamente, pensando todo o tempo se a sua atitude teria afugentado os chantagistas. Afinal de contas, não passavam de chantagistas vulgares. E ele era Sir Alec Nichols, baronete e membro do Parlamento. Nada poderiam fazer contra ele. Com toda a certeza, tinham desistido de vez. Daí por diante, o deixariam em paz. Terminou seu discurso entre aplausos entusiásticos do plenário. Já ia saindo quando um funcionário se aproximou dele.

- Tenho um recado para o senhor, Sir Alec.

- Que é?

- Deve ir para casa o mais depressa possível. Houve um acidente.

Estavam levando Vivian para uma ambulância quando Alec chegou em casa.

Havia um médico ao lado dela. Alec parou o carro junto ao meio-fio e saiu correndo, mas parou de repente. Olhou para o rosto inconsciente de Vivian e perguntou ao médico:

- O que houve?

- Não sei, Sir Alec. Recebi um telefonema anônimo que falava de um acidente.

Quando cheguei, encontrei Lady Nichols caída no quarto com as rótulas perfuradas por dois pregos cravados no chão.

Alec fechou os olhos, lutando contra o acesso de náusea que o invadia. Sentia a bile subir-lhe à garganta.

- Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance. Mas convém que prepare o espírito para uma coisa: talvez ela nunca mais possa andar. Alec sentia dificuldades de respirar. Encaminhou-se para a ambulância.

- Ela está sob o efeito de um sedativo bem forte - disse o médico. - Não poderá reconhecê-lo.

Alec subiu para a ambulância e se sentou no banco ao lado da mulher, sem ver as portas se fecharem e sem ouvir o silvo da sirene logo que o veículo começou a mover-se.

Segurou as mãos frias de Vivian.

- Alec - murmurou ela, abrindo os olhos. Os olhos de Alec ficaram cheios de lágrimas.

- Oh, minha querida…

- Dois homens mascarados… me agarraram… quebraram minhas pernas… Nunca mais poderei dançar… Vou ficar aleijada… Você me quer assim mesmo, Alec?

Ele encostou a cabeça no ombro dela e chorou. Eram lágrimas de desespero e de agonia e de mais alguma coisa que ele hesitava em reconhecer. Havia uma espécie de angustiado conforto no seu sentimento. Se Vivian ficasse aleijada, ele poderia cuidar dela com todo o carinho e ela não o deixaria por mais ninguém… Alec sabia, porém, que os seus problemas não estariam terminados. Os inimigos ainda não deviam estar satisfeitos.

Aquilo era apenas um aviso. A única maneira de livrar-se deles era dar-lhes o que queriam. O mais depressa possível.

Capítulo 50

Zurique. Quinta-feira, 4 de dezembro.

Era exatamente meio-dia quando a ligação chegou à mesa telefônica da sede da Polícia Criminal em Zurique. O telefonema foi encaminhado ao inspetorchefe Schmied e quando acabou de falar, mandou chamar o detetive Max Hornung.

- Está tudo acabado -disse ele a Max. - O caso Roffe está resolvido. Já encontraram o assassino. Pode ir para o aeroporto. Tem o tempo exato para pegar o avião.

- E para onde eu vou? - perguntou Max. - Para Berlim.

O inspetor-chefe Schmied telefonou para Elizabeth Williams.

- Tenho boas notícias para lhe dar. Não tem mais necessidade de proteção da polícia. O assassino foi capturado.

Elizabeth segurava nervosamente o telefone. Ia afinal saber o nome do seu implacável inimigo.

- Quem é ele, inspetor?

- Walther Gassner.

Iam em alta velocidade pela Autobahn, em direção a Wannsee. Max ia no banco de trás, em companhia do major Wageman. Dois detetives estavam no banco da frente.

Tinham ido esperar Max no aeroporto de Tempelhof, e o major Wageman havia explicado a situação. A casa estava cercada, mas deviam agir com cuidado, pois a esposa de Gassner estava detida por ele como refém.

- Como descobriram que Walther Gassner é o culpado? - perguntou Max.

- Graças ao senhor. Foi por isso que pensamos que gostaria de estar presente à captura.

- Graças a mim?

- Falou-me do psiquiatra a quem ele foi consultar. Baseado nisso, mandei a descrição de Gassner a outros psiquiatras e apurei que ele consultou uma meia dúzia deles. Usava cada vez um nome diferente e então desaparecia. Sabia que estava doente.

A mulher dele nos telefonou pedindo socorro alguns meses antes. Mandamos um dos nossos homens até lá, mas ela o despistou com evasivas. Hoje de manhã, recebemos um telefonema de uma faxineira, a Sra. Mandler. Disse-me que tinha ido trabalhar na casa de Gassner na segunda-feira e que falou com a mulher dele através da porta fechada de um quarto. A Sra. Gassner disse a ela que o marido matara os dois filhos do casal e pretendia matá-la.

Max piscou os olhos.

- Isso aconteceu na segunda-feira? E a tal mulher só telefonou para a polícia hoje?

- A Sra. Mandler tem uma longa ficha de contravenções e teve receio de nos procurar. Ontem à noite, discutiu o caso com o companheiro dela, e os dois resolveram falar.

Haviam chegado a Wannsee. Pararam o carro a alguma distância da casa de Gassner, atrás de uma sebe. Um homem saiu do carro e dirigiu-se ao encontro do major Wageman e Max.

- Ele ainda está na casa, major. Os meus homens estão cercando tudo.

- Sabe se a mulher ainda está viva?

- Não dá para ver. Todas as cortinas estão fechadas.

- Muito bem. Vamos avançar com rapidez e silêncio. Dentro de cinco minutos.

O homem saiu às pressas. O major Wageman tirou do carro um pequeno aparelho-transmissor. Começou então a dar ordens. Max não o estava escutando.

Pensava em alguma coisa que o major Wageman lhe dissera havia poucos minutos e que não fazia sentido. Mas não havia tempo de falar sobre isso. Os homens estavam começando a avançar para a casa, escondendo-se por trás das árvores e arbustos.

- Vamos Hornung? - disse o major Wageman.

Max teve a impressão de que havia um verdadeiro exército infiltrando-se pelo jardim. Alguns deles portavam fuzis de mira telescópica e couraças blindadas. Outros carregavam metralhadoras portáteis e bombas de gás lacrimogênio.

A operação foi executada com precisão matemática. A um sinal do major Wageman, as bombas de lacrimogênio foram lançadas através das janelas dos dois andares da casa. No mesmo instante, as portas da frente e dos fundos foram arrombadas por homens que usavam máscaras contra gás. Foram seguidos por um enxame de detetives de pistola em punho. Quando o major Wageman e Max entraram na casa pela porta da frente, encontraram o hall ainda cheio da acre fumaça, que, entretanto, começava a dissipar-se pelas janelas abertas.

Dois detetives aparecem com Walther Gassner algemado. Estava de pijama e robe. Tinha a barba crescida, o rosto abatido e os olhos vermelhos. Max olhou para ele.

Era a primeira vez que o via pessoalmente. Pareceu-lhe de certo modo irreal.

O outro Walther Gassner é que era real, o homem do computador, cuja vida fora retratada em algarismos. Qual deles era a sombra e qual era o real?

- Está preso, Sr. Gassner - disse o major Wageman. -Onde está sua esposa? Walther Gassner respondeu com voz rouca:

- Não está aqui… Desapareceu…

Ouviu-se no andar de cima o barulho de uma porta sendo forçada. Um detetive gritou então do alto:

- Encontrei-a. Estava trancada no quarto.

Em seguida, o detetive apareceu na escada, apoiando Anna Gassner, que tremia.

Estava desgrenhada e soluçava.

- Graças a Deus, vieram! - exclamou ela. - Graças a Deus!

O detetive levou-a delicadamente para o grupo reunido no hall. Quando Anna viu o marido, começou a dar gritos.

- Tudo está bem agora, Sra. Gassner - disse o major Wageman. - Ele não pode fazer-lhe nada mais.

- Meus filhos! - exclamou ela. - Ele matou meus filhos.

Max estava observando o rosto de Walther Gassner, que olhava para a mulher com uma expressão de completo desalento. Parecia esgotado e exausto.

- Anna… Anna… - murmurou.

O major Wageman disse.

- Tem o direito de ficar calado ou de chamar um advogado. Para seu próprio bem, espero que coopere conosco. Walther não o estava escutando.

- Por que você tinha de chamá-los, Anna? Por quê? Não éramos felizes juntos?

- As crianças estão mortas! - gritou Anna Gassner.

O major Wageman olhou para Walther Gassner e perguntou:

- É verdade?

Walther fez um sinal afirmativo, e os seus olhos pareciam velhos e abatidos.

- Sim… Estão mortas.

- Pode dizer-nos onde estão os corpos?

Walther Gassner estava chorando. As lágrimas desciam-lhe pelo rosto, e ele não conseguia falar.

- Onde estão as crianças? - tornou a perguntar o major Wageman.

Foi Max quem respondeu:

- As crianças estão enterradas no cemitério de Saint Paul.

Todos se voltaram para olhá-lo, e Max explicou:

- Morreram ao nascer, há cinco anos.

- Assassino! - gritou Anna Gassner para o marido.

E todos viram a loucura brilhando nos olhos dela.

Capítulo 51 Zurique. Quinta-feira, 4 de dezembro. 0 horas.

A noite fria de inverno havia caído, apagando o breve crepúsculo. Começava a nevar, e um manto de fina poeira branca se estendia sobre a cidade. No edifício da administração da Roffe and Sons, as luzes dos escritórios desertos brilhavam na escuridão com luas amarelas.

Elizabeth estava trabalhando sozinha em sua sala, esperando por Rhys, que fora participar de uma reunião em Genebra. Estava ansiosa por sua volta. Todo mundo já deixara havia muito o edifício. Elizabeth sentia-se nervosa e incapaz de concentrar-se.

Não conseguia deixar de pensar em Walther e Anna.

Lembrava-se de Walther tal como conhecera, jovem e belo, loucamente apaixonado por Anna. Apaixonado ou fingia que estava. Era muito difícil acreditar que Walther fosse responsável por todos aqueles terríveis atos. Pensava em Anna com grande ternura. Tentara várias vezes, sem resultados, falar com ela pelo telefone. Logo que pudesse, iria até Berlim para confortá-la da melhor forma possível.

A campainha do telefone assustou-a. Atendeu.

Alec estava do outro lado da linha, e Elizabeth teve prazer em ouvir a voz dele.

- Já soube de Walther? -perguntou Alec.

- Já.É horrível. Nem posso acreditar.

- Não acredite mesmo, Elizabeth.

Ela pensou que não tivesse ouvido bem.

- Como?

- Não acredite. Walther não é culpado.

- Mas a polícia disse…

- A polícia errou. Walther foi a primeira pessoa que eu e Sam investigamos. Foi liberado por nós. Não era o homem que estávamos procurando.

Elizabeth sentiu-se mergulhar em completa confusão. "Não era o homem que estávamos procurando"…

- Não compreendo o que está falando, Alec.

- É difícil dizer essas coisas pelo telefone, mas ainda não tive oportunidade de falar com você sozinha.

- Falar comigo de quê?

- Desde o ano passado, alguém vem sabotando a companhia. Houve uma explosão numa de nossas fábricas na América do Sul, houve roubos de patentes, e drogas perigosas foram trocadas de embalagem. Não tenho tempo agora de lhe relatar tudo o que houve. Mas fui procurar Sam e lhe sugeri que contratasse uma agência particular para encontrar o culpado. Combinamos não falar sobre isso com mais ninguém.

Foi como se a terra se tivesse aberto aos pés de Elizabeth. Era Alec que falava pelo telefone, mas a voz que ela ouvia era a de Rhys, dizendo-lhe a mesma coisa, afirmando-lhe que tinha discutido o caso com Sam e que tinham resolvido contatar uma agência particular. Alec prosseguiu:

- Quando a agência concluiu o relatório, Sam o levou para Chamonix e nós o discutimos pelo telefone.

Rhys havia dito que Sam o chamara a Chamonix para discutir o relatório e que tinham resolvido manter o segredo entre os dois até descobrirem o culpado. Elizabeth estava com dificuldade para respirar. Procurou normalizar a voz e perguntou:

- Quem mais sabia desse relatório, Alec, além de Sam e você? -Mais ninguém.

Isso era da maior importância. O relatório indicava que o culpado era alguém que ocupava uma posição bem alta na administração da companhia. Rhys não havia dito que estivera em Chamonix até o detetive mencionar o fato… Perguntou então, arrancando a custo as palavras da garganta:

- Acha que Sam disse alguma coisa a Rhys?

- Não. Por quê?

Havia somente uma maneira de Rhys saber o que estava no relatório. Tinha-o roubado. Havia somente um motivo para ele ter ido a Chamonix. Matar Sam. Elizabeth não ouviu o resto das palavras de Alec. O zumbido em seus ouvidos abafava todas as palavras. Deixou cair o gancho, com a cabeça a rodar, lutando contra o horror que ia lhe invadindo a alma. Sentia na cabeça um tumulto de imagens caóticas.

Por ocasião do acidente com o jipe, mandara dizer a Rhys que ia para a Sardenha.

Na noite da queda do elevador, Rhys não tinha ido à reunião de diretoria, mas aparecera depois, quando ela e Kate estavam trabalhando sozinhas. Logo depois, deixara o edifício.

Ou não tinha deixado?

Elizabeth tremia da cabeça aos pés. Tudo aquilo era um tremendo equívoco. Não podia ser Rhys! Todo o seu ser se insurgia contra isso. Não! Era o grito angustiado do seu coração.

Levantou-se e, com as pernas trôpegas, passou pela porta que ligava a sua sala à de Rhys. A sala estava às escuras. Acendeu as luzes e ficou parada, indecisa, sem saber o que esperava encontrar. Não ia procurar provas que incriminassem Rhys, mas, sim, provas de sua inocência. Era intolerável pensar que o homem que ela amava, o homem que a tivera cheia de amor nos braços, fosse uma assassino insensível.

Havia uma agenda de compromissos em cima da mesa de Rhys. Elizabeth folheou-a, à procura do fim de semana em setembro, quando ocorrera o acidente com o jipe. Naquela data estava marcada a viagem a Nairobi.

Teria de examinar o passaporte dele para verificar se fora mesmo para lá.

Começou a procurar o passaporte, sentindo-se culpada e certa de que haveria uma explicação que o inocentasse. Uma das gavetas estava trancada. Elizabeth hesitou. Sabia que não tinha o direito de abri-la. Seria um abuso de confiança, a violação de uma fronteira proibida de que não poderia mais redimir-se.

Rhys saberia que ela tinha feito aquilo, e ela teria de explicar-lhe tudo. Mas, apesar de tudo, tinha de saber. Abriu a gaveta com uma espátula e encontrou uma pilha de papéis, notas e memorandos. Pegou tudo. Encontrou um envelope endereçado a Rhys com uma letra de mulher. Tinha o carimbo de Paris e datada de poucos dias. Elizabeth hesitou um momento e abriu a carta. Era de Hélsne e começava assim:

"Chéri, não consegui falar com você pelo telefone. É urgente que nos encontremos de novo para assentarmos os nossos planos…"

Elizabeth não acabou de ler a carta. Estava a olhar para o relatório roubado, no fundo da gaveta.

Sr. Sam Roffe confidencial sem cópias Elizabeth sentiu a sala girar em torno dela e teve de apoiar-se na mesa para não cair. Ficou ali muito tempo, com os olhos fechados, esperando a vertigem passar. O assassino já tinha um rosto. Era o rosto de seu marido. O silêncio foi quebrado pelo toque insistente de um telefone distante.

Elizabeth custou muito a identificar de onde vinha o som. Por fim, voltou a passos lentos para sua sala e pegou o telefone. Era o porteiro do térreo.

- Só queria saber se ainda estava aí, Sra. Williams. Seu marido já vai subir.

Vai preparar outro acidente! A vida dela era o único obstáculo que separava Rhys do controle total da Roffe and Sons. Não podia enfrentá-lo, não podia fingir que nada havia acontecido. No momento em que ele a visse, saberia de tudo. Tinha de fugir.

Atordoada pelo medo, Elizabeth pegou a bolsa e casaco e saiu correndo do escritório. De repente, parou. Tinha se esquecido do passaporte. Tinha de fugir de Rhys, ir para algum lugar onde ele não pudesse encontrá-la.

Abriu apressada a gaveta, pegou o passaporte e saiu pelo corredor, com o coração batendo como se fosse estourar. O elevador privativo estava subindo… Oito… nove… dez…. Elizabeth começou a descer as escadas às carreiras, para salvar a vida.

Capítulo 52 Havia uma balsa entre Civitavecchia e a Sardenha. Elizabeth subiu para bordo dirigindo um carro alugado, perdido entre dúzias de outros carros. Os aeroportos podem ter registros de passageiros, mas a grande balsa era anônima. Elizabeth era apenas uma das muitas pessoas que faziam a travessia para a Sardenha em busca de um pouco de lazer.

Tinha certeza de que não fora seguida, mas isso não a impedia de sentir um medo absurdo. Rhys tinha ido muito longe, e não podia mais recuar diante de alguma coisa. Ela só podia desmascará-lo, e, sobretudo por isso, ele teria de livrar-se dela. Quando fugira do edifício, não fazia idéia do lugar para onde iria.

Sabia apenas que devia sair de Zurique e esconder-se, mas tinha certeza de que não estaria em segurança enquanto Rhys não fosse apanhado. A Sardenha foi o primeiro lugar em que pensou.

Alugou um carro e, no meio da estrada, na Itália, tentou telefonar para Alec. Não o encontrou. Deixou recado para que ele telefonasse para a Sardenha. Não conseguiu também falar com o detetive Max Hornung e deixou o recado para ele.

Iria para a Villa na Sardenha, mas desta vez não estaria sozinha, pois teria a polícia para protegê-la. Quando a balsa chegou a Olbia, Elizabeth viu que não seria necessário procurar a polícia. Estava esperava no cais, na pessoa de Bruno Campagna, o detetive que ela conhecera em companhia do delegado Ferraro. Fora Campagna quem a levara para ver o jipe na garagem depois do acidente. O detetive correu para o carro de Elizabeth.

- Já estava nos causando preocupações, Sra. Williams - disse ele. Elizabeth olhou-o surpresa, e Campagna explicou: - Recebemos um telefonema da polícia suíça, pedindo que a vigiássemos. Temos homens a postos em todos os cais de balsa e aeroportos.

Elizabeth sentiu-se cheia de gratidão. Max Hornung recebera o seu recado.

- Quer que eu dirija o carro? -perguntou o detetive Campagna, vendo como Elizabeth estava abatida.

- Quero, sim. Muito obrigada. Sentou-se no banco de trás, e o detetive tomou posição no volante. - Para onde prefere ir e esperar? Para a delegacia ou para a sua Villa?

- Para a Villa, se alguém puder ficar lá comigo. Não quero ficar sozinha lá em cima.

- Não se preocupe. Temos ordens de vigiá-la bem. Passarei a noite na Villa e, além disso, teremos um carro equipado com rádio estacionado na entrada. Ninguém poderá aproximar-se da senhora.

O detetive falava com tanta confiança que Elizabeth ficou tranqüilizada. Campagna dirigiu o carro com rapidez e segurança, deixando as pequenas ruas de Olbia para tomar a estrada de montanha que levava para a Costa Esmeralda. Todos os lugares por onde passavam faziam Elizabeth lembrar-se de Rhys. Perguntou então:

- Há alguma notícia do meu marido?

- Ainda não - disse Campagna, depois de lançar-lhe um olhar de compaixão. - Ainda está solto, mas não poderá ir longe. Esperam capturá-lo até amanhã cedo.

Elizabeth sabia que devia sentir alívio ao ouvir isso, mas uma dor cruciante lhe atingiu o coração. Era de Rhys que estavam falando. Era o seu Rhys que estava sendo caçado como um animal. Ele a arrojara àquele terrível pesadelo e naquele momento estava também vivendo um pesadelo, lutando para salvar a vida como ela havia feito. E como havia confiado nele! Como acreditara na bondade, na retidão e no amor de Rhys!

Estremeceu, e o detetive Campagna lhe perguntou:

- Está sentindo frio?

- Não, estou bem.

Sentiu-se até febril. Um vento quente parecia passar silvando pelo carro, fazendoa ficar nervosa. Pensou a princípio que era sua imaginação, mas o detetive Campagna disse:

- O siroco vai soprar com força esta noite. Vai ser uma noite muito agitada.

Elizabeth compreendia o que ele queria dizer. O siroco podia alucinar homens e animais. Era um vento que vinha do Saara, quente, seco e carregado de partículas de areia, com um macabro silvo agudo que tinha efeito terrivelmente desastroso sobre o sistema nervoso. O índice de criminalidade sempre subia quando soprava o siroco, e os juizes costumavam ser complacentes com os acusados.

Uma hora depois a Villa surgiu da escuridão à frente deles. O detetive Campagna seguiu pela entrada de carros, parou diante da porta da casa e desligou o motor. Depois, deu a volta em torno do carro e abriu a porta do lado de Elizabeth.

- Seria bom que ficasse bem junto de mim, Sra. Williams. Ninguém sabe o que pode acontecer.

- Está bem.

Encaminharam-se para a porta da frente da Villa às escuras.

- Tenho certeza de que ele não está aqui, mas não vou facilitar. Quer me dar a chave?

Elizabeth entregou-lhe a chave. O detetive fê-la chegar um pouco para o lado e abriu a porta com a pistola em punho. Entrou e ligou o interruptor. O hall ficou todo iluminado.

- Gostaria que me mostrasse a casa - disse o detetive Campagna. -Temos de olhar tudo.

Começaram a percorrer a casa, e o detetive Campagna ia acendendo a luz em todas as peças. Revistava os armários e os cantos e examinava se as janelas estavam bem fechadas. Quando voltaram à grande sala do térreo, Campagna disse:

- Agora, se me dá licença, vou telefonar para a delegacia.

- Está bem - disse Elizabeth, levando-o para o escritório.

Campagna pegou o telefone e discou. Um momento depois, disse:

- Fala o detetive Campagna. Estamos na Villa. Vou passar a noite aqui. Mandem um carro da patrulha para ficar estacionado na entrada da Villa… Sim, ela está muito bem.

Apenas um pouco cansada. Mais tarde, telefonarei de novo.

Elizabeth deixou-se cair numa poltrona. Estava muito nervosa e sabia que no dia seguinte iria ser pior, muito pior. Ela estaria em segurança, mas Rhys poderia estar morto ou jogado em uma prisão. Fosse como fosse, apesar de tudo o que ele havia feito, essa idéia era intolerável.

O detetive Campagna olhava-a com um ar de preocupação.

- Sabe que eu gostaria de uma xícara de café agora? E a senhora?

- Vou fazer - disse Elizabeth, fazendo menção de levantar-se.

- Nada disso. Fique onde está. Minha mulher diz que ninguém faz café como eu.

Elizabeth sorriu e tornou a recostar-se na poltrona. Não percebera até então como estava emocionalmente esgotada. Pela primeira vez, reconhecia que, mesmo durante a conversa pelo telefone com Alec, julgara que devia haver algum engano e que Rhys era inocente.

Ainda durante a fuga, alguma coisa em seu coração lhe dizia que não era possível que ele tivesse feito aquelas coisas terríveis, que tivesse matado Sam, que a tivesse amado e, apesar disso, quisesse matá-la. Só um monstro seria capaz de fazer tudo aquilo. E, graças a isso, uma pequena luz de esperança brilhava dentro dela. Quase morrera quando o detetive dissera que ele não podia ir muito longe e estaria preso até o dia seguinte. Era muito doloroso pensar em tudo isso, mas ela não podia pensar em mais nada.

Desde quando Rhys planejava apoderar-se da companhia? Com certeza, desde o momento em que conhecera em uma escola da Suíça uma impressionável mocinha solitária de quinze anos. Decidira, naquele momento, que iria lograr Sam por intermédio da filha dele. Tudo fora muito fácil para ele. O jantar no Maxim's, as longas conversas amistosas através dos anos e o encanto, o irresistível encanto de Rhys.

Fora muito paciente. Esperava até que ela se tornasse uma mulher, e o mais revoltante de tudo era que Rhys não se dera ao trabalho de fazer-lhe a corte. Ela lhe facilitara tudo, e como ele devia ter rido!

Pensou em Hélsne. Estaria ela metida também em toda essa trama suja? Onde estaria Rhys? Seria morto pela polícia quando fosse encontrado? Começou a chorar inconsolavelmente.

- Sra. Williams… - O detetive Campagna estava do lado dela com uma xícara de café. - Tome o café e se sentirá melhor.

- Desculpe - disse Elizabeth. - Não costumo proceder assim…

- Ora essa! Acho que está reagindo muito bem.

Elizabeth tomou um gole de café. Ele havia acrescentado alguma coisa. Olhou para o detetive e ele sorriu.

- Achei que um gole de uísque no café não lhe faria mal algum.

Sentou-se perto dela em silêncio. O homem era uma boa companhia. Jamais conseguiria ficar sozinha. Tinha de saber antes o que acontecera a Rhys, se ele estava preso ou fora morto. Acabou de tomar o café. O detetive Campagna olhou para o relógio e disse:

- O carro da patrulha deve chegar a qualquer momento. Dois homens ficarão vigiando tudo a noite inteira. Eu vou ficar aqui embaixo. Não me leve a mal, mas acho melhor a senhora subir e procurar dormir um pouco.

- Eu não conseguiria dormir - murmurou Elizabeth.

Mas no mesmo instante em que disse isso um imenso cansaço a dominou. A longa viagem e a tensão sob a qual estava vivendo começavam a ter efeito sobre ela.

- Em todo o caso, vou me deitar um pouco.

Tinha dificuldade em articular as palavras.

Elizabeth estava deitada na cama, lutando contra o sono. Não lhe parecia direito dormir enquanto Rhys estava sendo caçado. Imaginou-o abatido a tiros em alguma rua escura e sentiu um arrepio pelo corpo. Procurou manter os olhos abertos, mas as pálpebras lhe pesavam terrivelmente.

Quando fechou os olhos, sentiu-se escorregar sem esforço no brando colchão do nada. Algum tempo depois, ela foi acordada por gritos.

Capítulo 53 Elizabeth sentou-se na cama com o coração batendo descompassadamente e sem saber o que a acordara. Tornou a ouvir. Era um grito lúgubre e longo, como alguém que estivesse morrendo. Parecia vir da janela.

Elizabeth correu para a já anela e abriu-a. A noite, iluminada por uma fria lua de inverno, parecia uma paisagem de Daumier. As árvores escuras eram sacudidas por um vento impetuoso. Ao longe, muito abaixo, o mar se encapelava. Ouviu de novo o grito.

Compreendeu então o que era. As rochas cantantes. O siroco estava forte e soprava pelos rochedos, produzindo aquele som, que era quase um grito de socorro humano.

Identificou-o sem demora com a voz de Rhys chamando por ela, pedindo a sua ajuda. Desvairada, tapou os ouvidos com as mãos, mas não deixou de escutar. Foi até a porta do quarto e ficou espantada de ver como estava fraca. A exaustão lhe toldava as idéias. Saiu para o corredor e começou a descer as escadas. Tentou chamar o detetive Campagna, mas da garganta só lhe saiu um fio de voz. Desceu agarrando-se ao corrimão para não cair. Conseguiu levantar a voz e chamar o detetive Campagna. Não houve resposta.

Foi de sala em sala, agarrando-se aos móveis. O detetive Campagna não estava em casa. Ela estava sozinha. Ficou parada no hall, completamente confusa, tentando raciocinar. O detetive havia saído um instante para falar com os homens da patrulha. Sem dúvida. Foi até a porta da frente, abriu-a e olhou para fora. Não viu ninguém. Só a noite escura e o vento gemente. Com um sentimento crescente de medo, encaminhou-se para o escritório. Ia telefonar para a delegacia de polícia e saber o que acontecera. Pegou o telefone e percebeu que estava inteiramente mudo. Foi nesse momento que todas as luzes da casa se apagaram.

Capítulo 54 Em Londres, no Hospital Westminster, Vivian Nichols recobrava a consciência ao ser levada da sala de operações pelo longo corredor sombrio. A operação havia durado oito horas. Apesar de tudo o que haviam feito os competentes cirurgiões, ela nunca mais poderia andar. Quando acordou, sentia terríveis dores e murmurava sem cessar o nome de Alec.

Precisava dele a seu lado dizendo-lhe que não deixaria de amá-la. O pessoal do hospital não conseguiu encontrar Sir Alec.

Em Zurique, na sala de comunicações da Polícia Criminal, era recebida uma mensagem da Interpol procedente da Austrália. O homem que comprara o filme para a Roffe and Sons fora descoberto em Sydney. Tinha morrido de um ataque cardíaco três dias antes. As suas cinzas iam ser mandadas para a Inglaterra. A Interpol não conseguira mais nenhuma informação sobre a compra do filme e aguardava instruções.

Em Berlim, Walther Gassner estava sentado na sala de espera de um sanatório particular, nos arredores da cidade. Estava ali havia quase dez horas. De vez em quando, uma enfermeira parava e conversava com ele, oferecendolhe alguma coisa para comer.

Walther nem sequer ouvia a enfermeira. Estava esperando a sua Anna. Seria uma espera muito longa.

Em Olgiata, Simonetta Palazzi estava ouvindo uma mulher dizer pelo telefone:

- Meu nome é Donatella Spolini. Nunca a vi, Sra. Palazzi, mas nós duas temos muita coisa em comum. Quer almoçar comigo amanhã no Bolognese, na Piazza de Popolo? À uma hora da tarde, está bem?

Simonetta tinha hora marcada no salão de beleza, mas adorava mistérios.

- Como poderei reconhecê-la?

- Meus três filhos estarão comigo.

Em sua Villa em Le Vésinet, Hélsne estava lendo uma carta que encontrara no consolo da lareira. Era de Charles, que tinha fugido e a deixara. Dizia ele: "Nunca mais me verá. Não tente procurar-me". Hélsne Roffe-Martel rasgou a carta em pedacinhos. Iria vê-lo de novo. Iria encontrá-lo.

Em Roma, Max Hornung encontrava-se no aeroporto Leonardo da Vinci. Estava tentando havia duas horas falar pelo telefone com a Sardenha, mas as comunicações estavam todas interrompidas, e ele foi conversar de novo com o gerente de operações do aeroporto.

- Tem de me conseguir um avião que me leve até a Sardenha - dizia ele. Acredite no que estou lhe dizendo. É uma questão de vida ou morte.

- Acredito piamente, signore, mas nada posso fazer. Não se pode chegar à Sardenha. Os aeroportos estão fechados. Até as balsas deixaram de operar. Só depois que o siroco parar, será possível aproximar-se da ilha ou sair de lá.

- E quanto tempo o siroco vai durar?

O gerente olhou para o mapa meteorológico na parede.

- Parece que ainda vai durar no mínimo doze horas.

Elizabeth Williams não estaria viva daí a doze horas.

Capítulo 55 A escuridão era hostil, cheia de inimigos invisíveis à espreita para atacála. E Elizabeth compreendia que estava à mercê desses inimigos. O detetive Campagna levara-a para a Villa a fim de que ela fosse assassinada. Devia estar a serviço de Rhys.

Lembrava-se de Max Hornung ter dito ao explicar a troca dos jipes que o assassino tivera ajuda de alguém que conhecia bem a ilha.

Como o tal Campagna tinha sido convincente! Rhys sabia que ela procuraria esconder-se na Villa. O detetive lhe perguntara se ela queria ir para a delegacia ou para a Villa, mas não tivera a menor intenção de levá-la para a polícia. E Não fora para a polícia que ele ligara. Fora para Rhys, a fim de dizerlhe que já estavam na Villa.

Elizabeth sabia que precisava fugir, mas não tinha mais forças para isso. Estava lutando para manter os olhos abertos e mover braços e pernas, de repente pesados demais. Compreendeu então que o café que o homem lhe dera continha narcótico.

Dirigiu-se para a cozinha escura. Abriu um armário e remexeu as prateleiras até encontrar o que queria. Pegou um pouco de vinagre e despejou um pouco em um copo com água. Bebeu com esforço e imediatamente depois começava a vomitar na pia.

Poucos minutos depois, sentiu-se um pouco melhor, mas ainda fraca. O cérebro não podia funcionar direito. Era como se todos os circuitos dentro dela já tivessem se fechado, numa preparação para a escuridão da morte.

"Não", pensou ela febrilmente. "Você não vai entregar-se assim. Você tem de lutar.

Eles estão a caminho para vir matá-la." Levantou a voz e disse:

- Pode vir matar-me, Rhys! Mas a sua voz foi apenas um murmúrio. Voltou para o hall por instinto, guiada apenas por seu conhecimento da casa. Parou em frente ao retrato de Samuel Roffe, enquanto lá fora o vento soluçava e gemia, açoitando a casa, provocando-a, advertindo-a.

Continuou ali no escuro, sozinha, diante de uma alternativa de horrores: sair e enfrentar o desconhecido ou esperar que fosse matá-la ali, onde ela tentaria lutar. Mas como?

Um pensamento procurava formar-se na sua cabeça, mas isso era difícil porque ela ainda estava levemente narcotizada. Não podia concentrar-se. Era alguma coisa a respeito de um acidente. Lembrou-se então. Rhys tinha de fazer que a morte dela parecesse acidente. Você tem de detê-lo, Elizabeth.

Fora o velho Samuel que falara? Ou tudo se passara dentro de sua cabeça? Não podia fazer nada. Era muito tarde. Os olhos estavam se fechando de novo, enquanto o rosto se colava à frieza do retrato. Dormir seria muito bom.

Mas antes tinha de fazer uma coisa. Tentou lembrar-se, mas ela sempre lhe fugia.

Não deixe que sua morte pareça um acidente. Faça todo mundo ver que foi assassinato.

Assim, a companhia nunca ser dele. Elizabeth já sabia o que tinha de fazer. Foi para o escritório. Pegou o pesado abajur e jogou-o de encontro a um espelho. Ouviu o barulho dos vidros quebrados. Em seguida, pegou a cadeira e bateu-a contra parede até que ela se arrebentasse. Foi até a estante e começou a abrir os livros e arrancar as páginas, que espalhava pelo chão. Arrancou da parede o fio do telefone inútil.

Rhys que explicasse aquela confusão toda. Não ia facilitar a vida para ele. Não ia facilitar nada. Se queria fazer alguma coisa, teria de ser à força. Uma súbita rajada de vento passou pela sala, fazendo voar os papéis. Elizabeth levou algum tempo para compreender o que havia acontecido. Não estava sozinha na casa.

No aeroporto Leonardo da Vinci, Max Hornung estava próximo do local onde se manipulavam as cargas. Viu um helicóptero pousar e, no momento em que o homem ia abrir a porta, Max estava ao lado dele.

- Pode levar-me para a Sardenha?

- O que está havendo por lá? Acabo de levar um camarada para a ilha. A tempestade por lá está violenta.

- Quer me levar?

- Só se me pagar três vezes o que o outro pagou.

Max não hesitou. Subiu no helicóptero. Logo que levantaram vôo, perguntou ao piloto:

- Quem foi o passageiro que levou para a Sardenha?

- Chamava-se Williams.

A escuridão era aliada de Elizabeth, ocultando-a. Era tarde demais para fugir.

Tinha que achar um lugar para esconder-se dentro de casa. Subiu as escadas para aumentar a distância que a separava de Rhys.

No alto das escadas, vacilou, mas acabou tomando a direção do quarto de Sam.

Alguma coisa pulou sobre ela no meio da escuridão, e ela começou a gritar, mas era apenas a sombra de uma árvore sacudida pelo vento do outro lado da janela.

Seu coração batia tão forte que ela estava certa de que Rhys lá embaixo podia ouvi-lo. Tinha de retardá-lo. Mas como?

Sentia a cabeça pesada, e tudo era confuso. Que teria feito numa situação como aquela o velho Samuel? Tirou a chave da porta do fim do corredor e trancou-a por fora.

Depois trancou as outras portas e pensou que estava trancando os portões do gueto em Cracóvia. Elizabeth não sabia por que estava fazendo isso, mas lembrou-se de que havia matado o guarda Aram e não podia ser apanhada. Viu a luz de uma lanterna elétrica embaixo.

Começava a subir as escadas e isso lhe causou um baque no coração. Rhys ia atacá-la.

Elizabeth começou a subir a escada da torre, mas no meio do caminho os joelhos começaram a dobrar-se. Escorregou para o chão e subiu o resto dos degraus gatinhando.

Chegou ao alto e levantou-se. Abriu a porta da sala da torre e entrou. A porta. Feche a porta, disse Samuel.

Elizabeth fechou a porta, mas sabia que isso não ia impedir a entrada de Rhys. Ele terá de arrombá-la, pensou ela é mais violência que ele ter de explicar.

A morte dela teria de parecer um assassinato. Empurrou móveis para escorar a porta. Agia com muita lentidão, como se a escuridão fosse um mar que lhe embargasse os movimentos. Empurrou uma mesa de encontro à porta, depois uma poltrona.

Trabalhava automaticamente, lutando contra o tempo e procurando construir a sua frágil fortaleza contra a morte. Ouviu um baque surdo embaixo, logo seguido de outro e mais outro. Era Rhys arrombando as portas dos quartos, à procura dela. Seriam sinais de um ataque, uma pista que a polícia teria de seguir. Ela o havia enganado, do mesmo modo que ele a enganara.

Havia uma coisa que ela não compreendia. Se Rhys estava empenhado em fazer que a morte dela parecesse um acidente, por que estava arrombando as portas?

Abriu as portas envidraçadas da sala da torre e deixou que o vento assobiasse em torno dela. Além do balcão, um abismo descia a pique para o mar. Daquela sala não havia possibilidade de fuga. Era ali que Rhys teria de atacá-la. Elizabeth procurou uma arma, mas não viu nada que pudesse servir.

Esperou no escuro por seu assassino. O que Rhys estava esperando? Por que não punha logo a porta abaixo e não acabava com aquilo? Por quê?

Alguma coisa não se ajustava. Ainda que Rhys levasse o corpo dela para dar-lhe fim de outra maneira, não podia explicar a confusão encontrada na casa, o espelho quebrado, as portas arrombadas. Tentou colocar-se no lugar de Sam e pensar no plano que ele poderia formular para explicar todas essas coisas sem que a polícia o considerava suspeito da morte dela. Só havia um meio. E no momento em que a idéia ocorreu a Elizabeth, ela sentiu o cheiro acre da fumaça.

Capítulo 56 Max podia ver do helicóptero a costa da Sardenha, coberta por uma nuvem de poeira vermelha. O piloto gritou acima do barulho do aparelho:

- A situação piorou muito. Não sei se vou puder pousar.

- Tem de pousar! - gritou Max. - Vá até Porto Cervo.

O piloto olhou para Max.

- Fica no alto de uma montanha terrível.

- Sei disso. Vai conseguir?

- As chances são de setenta por cento.

- A favor ou contra?

- Contra.

A fumaça se infiltrava por baixo das portas e pelas tábuas do assoalho. Um novo som se já untava aos gemidos do vento. Era o barulho das chamas, e Elizabeth sabia que era muito tarde para que ela escapasse com vida.

Estava presa ali dentro. Sem dúvida, pouco importava a destruição de espelhos e de portas, pois dentro de alguns minutos nada mais restaria dela, nem da casa. Tudo seria consumido pelo fogo, como o laboratório e Emil Joeppli haviam sido destruídos, e Rhys teria um álibi que o eliminaria totalmente da culpa.

Ele a vencera. Vencera a todos. A fumaça começava a entrar na sala aos borbotões, fazendo Elizabeth tossir. As chamas já atingiam a porta, e ela sentia o calor. Foi a raiva que deu a Elizabeth ânimo para mover-se. Através da densa fumaça, correu às cegas para as portas envidraçadas do balcão. Abriu-as e saiu. No instante em que as portas foram abertas, as chamas entraram na sala, lambendo as paredes.

Elizabeth ficou no balcão respirando a plenos pulmões o ar fresco da noite, enquanto o vento lhe agitava as roupas. Olhou para baixo. O balcão se projetava da parede do prédio, com uma ilha minúscula suspensa sobre o abismo. Não havia a menor esperança de fuga.

Talvez… Elizabeth olhou para o telhado inclinado de ardósia, acima de sua cabeça. Se houvesse algum meio de alcançar o telhado e passar para o outro lado da casa que não havia chamas, poderia haver uma chance de salvação.

Estendeu os braços para cima, mas não conseguiu alcançar as bordas do telhado.

As chamas se aproximaram, envolvendo a sala. Havia, porém, uma possibilidade mínima, e Elizabeth resolveu tentá-la. Correu para dentro da sala cheia de fumaça e fogo, sentindo-se quase sufocada.

Pegou a cadeira de seu pai e arrastou-a para o balcão. Procurando não perder o equilíbrio, subiu na cadeira. Podia agora alcançar o telhado com os dedos, mas não encontrava um só ponto a que pudesse agarrar-se.

Tateou cegamente e em vão à procura de um ponto de apoio. Na sala, as chamas atingiam as cortinas e dançavam por todos os cantos, atacando os livros, o tapete e os móveis, aproximando-se do balcão.

De repente, Elizabeth encontrou um ponto de apoio numa telha que se projetava dentre as outras. Os braços estavam pesados, e ela não tinha certeza se conseguiria.

Quando começou a levantar o corpo, a cadeira escorregou para baixo dos seus pés. Com tudo o que lhe restava de forças, conseguiu subir e segurar-se.

Estava escalando os muros do gueto, lutando para salvar a vida. Esforçou-se, esforçou-se e finalmente se viu em cima do telhado inclinado, quase sem fôlego. Subiu lentamente pelo telhado, com o corpo comprimido contra as telhas, sabendo muito bem que, se escorregasse, iria cair no negro abismo lá embaixo.

Chegou no alto do telhado e parou para respirar um pouco e orientar-se. O balcão de que ela acabara de fugir estava em chamas. Não era possível voltar. Olhando para o outro lado da casa, Elizabeth viu o balcão de um dos quartos de hóspedes. Ainda não havia fogo ali. Mas não estava segura de conseguir chegar lá.

O telhado era bem inclinado, as telhas estavam soltas e o vento soprava fortemente daquele lado. Se falseasse o pé, nada haveria para deter-lhe a queda. Ficou ali algum tempo, com medo de tentar. De repente, um milagre, um vulto apareceu no balcão do quarto de hóspedes. Era Alec, que olhou para cima e disse calmamente:

- Vai conseguir, menina. Com a maior facilidade. - Elizabeth criou alma nova. - Venha devagar - disse Alec. - Dê um passo de cada vez. Nada de pressa.

Ela então começou a mover-se cuidadosamente para onde ele estava, palmo a palmo, sem largar uma telha enquanto não tivesse agarrado firmemente outra. Teve a impressão de que levara um tempo enorme. Durante todo o tempo, ouvia a voz de Alec a animá-la, fazendo-a prosseguir.

Estava quase chegando, deslizando para o balcão. De repente, uma telha se desprendeu e ela começou a cair.

- Segure-se! - gritou Alec.

Elizabeth encontrou outro ponto de apoio e agarrou-o febrilmente. Estava já na borda do telhado e nada havia abaixo dela senão o vácuo. Teria de deixarse cair no balcão, onde Alec a esperava. Se errasse o impulso…

Alec olhava para ela, com o rosto cheio de calma e confiante.

- Não olhe para baixo - disse ele. - Feche os olhos e solte-se. Eu a segurarei.

Ela tentou. Respirou fundo duas vezes e soltou-se. Sentiu-se cair no espaço até que os braços de Alec a seguraram. Deu um suspiro de alívio.

- Muito bem - disse Alec. Ela sentiu então o cano da pistola encostado à cabeça.

Capítulo 57 O piloto do helicóptero sobrevoava a terra o mais baixo que julgava possível sem correr perigo, passando rente à copa das árvores, a fim de evitar os ventos implacáveis.

Até nessa baixa altitude, havia turbulência no ar. Ao longe, o piloto avistou o cume da montanha de Porto Cervo.

- Lá está! - gritou Max. - Já posso ver a Villa.

Viu alguma coisa mais que lhe deu um aperto no coração.

- A casa está pegando fogo!

No balcão, Elizabeth ouviu o barulho do helicóptero que se aproximava e olhou para o alto. Alec não deu qualquer atenção ao aparelho. Olhava para Elizabeth com os olhos aflitos.

- Foi por amor a Vivian que tive de fazer tudo isso. Compreende, não é? Não vão achar você na casa incendiada.

Elizabeth não o ouvia. Pensava apenas: Não foi Rhys. Não foi Rhys. Tinha sido Alec, sempre. Alec matara Sam e tentara matá-la. Havia roubado o relatório e resolvera envolver Rhys no caso. Obrigara-a a fugir com medo de Rhys, sabendo que ela iria para a Sardenha. O helicóptero tinha desaparecido por trás de algumas árvores.

- Feche os olhos, Elizabeth - disse Alec.

- Não! - De repente, ouviu-se a voz de Rhys:

- Largue essa pistola, Alec! Ambos olharam e viram no gramado embaixo, à luz trêmula das lanternas, Rhys, o delegado de polícia Luiggi Ferraro e meia dúzia de detetives, armados de fuzis.

- Está tudo acabado, Alec - gritou Rhys. - Deixe-a.

Um dos detetives, que empunhava um fuzil de mira telescópica, disse:

- Não posso atirar enquanto ela não sair da frente.

Afaste-se, gritou mentalmente Rhys. Afaste-se! Max Hornung surgiu de trás das árvores e começou a correr em direção de Rhys. Parou ou ver a cena no balcão.

- Recebi seu recado, mas cheguei tarde - disse Rhys.

Olharam para os dois vultos no balcão, que se destacavam contra a claridade das chamas do outro lado da casa. O vento atiçara o fogo, acendendo no meio da noite aquele imenso braseiro.

Elizabeth olhou para Alec e percebeu que o homem estava inteiramente desvairado e não a via mais. Afastou-se dele em direção à porta do balcão. No gramado, um dos detetives levantou o fuzil. Deu apenas um tiro. Alec cambaleou com o impacto e desapareceu no interior da casa. Um momento antes, havia dois vultos no balcão, mas naquele momento só havia um.

- Rhys! - gritou Elizabeth.

Mas ele já estava correndo para ela. Tudo aconteceu então num caleidoscópio rápido e confuso movimento. Rhys pegou-a e levou-a para um lugar seguro embaixo, enquanto ela se agarrava estreitamente a ele. Estava deitada na relva, com os olhos fechados, e Rhys tinha-a nos braços e murmurava:

- Minha querida! Como a amo!

Ela lhe escutava a voz carinhosa e não podia falar. Olhava para ele e via nos seus olhos todo o amor e toda a angústia, e havia muito que lhe queria dizer. Mas estava cheia de culpa pelas horríveis suspeitas que tivera. Passaria o resto da vida com uma dedicação capaz de compensar esse erro. Estava, porém, muito cansada para pensar nisso, muito cansada para pensar em qualquer coisa. Era como se tudo aquilo por que passara tivesse acontecido a outra pessoa, em outro lugar, em outra época. O importante era que ela e Rhys estavam juntos. Os braços dele a cingiam apaixonadamente. Que isso durasse para sempre e seria o bastante.

Capítulo 58 Como se ele estivesse entrando num recanto ardente do inferno. A densa fumaça enchia o quarto de formas quiméricas que logo se desfaziam. O fogo deu um salto na direção de Alec, chamuscando-lhe os cabelos, e ele ouviu na crepitação a voz de Vivian chamando-o, doce como um canto de sereia. Viu-a então, subitamente iluminada, estendida na cama com o lindo corpo nu, tendo no pescoço uma fita vermelha que usara na primeira vez em que fora dele.

Chamou-o de novo com uma voz cheia de desejo.

Desta vez, era a ele que ela queria e não aos outros. "Você foi o único homem a quem amei", murmurou ela. Alec acreditava. Tinha de puni-la pelas coisas que ela havia feito, mas fora hábil e fizera outras pagarem pelos pecados dela. Todas as terríveis coisas que tinha feito eram por amor a ela.

Aproximou-se e Vivian tornou a dizer: "Você foi o único homem a quem amei". E Alec sabia que era verdade. Ela abriu os braços para ele e Alec deixou-se cair ao lado dela. Abraçou-a e se fundiu a ela. Estava dentro dela e se transformara nela. Conseguiu satisfazê-la e isso lhe causou um prazer que logo se transformou num sofrimento intolerável.

Sentia o calor do corpo dela a consumindo-o e, de repente, a fita vermelha do pescoço de Viviam se transformou numa língua de fogo que o atingiu. Neste instante, uma trave do teto em chamas caiu sobre ele.

Alec morreu como as mulheres tinham morrido. Em êxtase.


O AUTOR E SUA OBRA


A literatura do norte-americano Sidney Sheldon pretende prender a atenção do leitor como se fosse um bom filme. "Quando escreve um romance, o autor é o produtor, o diretor e a equipe." A pretensão não é descabida, quando se leva em conta que Sheldon se interessou em primeiro lugar pelo cinema, dirigindo, produzindo ou escrevendo cerca de trinta filmes, assim como criou aproximadamente duzentos e cinqüenta roteiros para a televisão, para séries como "Jeannie é um Gênio", "Casal Vinte" e outras.

O sucesso literário veio há dez anos com "O outro lado da meia-noite"(1974), mais tarde levado para o cinema. Mas Sheldon sabe muito bem que a literatura e o cinema são linguagens diferentes, a começar pelo tratamento da trama. "Ao contrário do cinema, em um romance uma pessoa não entra na sala apenas. Você tem que descrevê-la, dizer o que está usando, como se move, sua atitude, enfim."

Depois, há o ritmo do próprio ofício, uma "ilha de sanidade em Hollywood", sem as enormes pressões do meio cinematográfico, do qual fez parte desde que abandonou sua Chicago natal, aos dezessete anos. Nascido em 1917, Sheldon realizou seus estudos elementares e decidiu que escrevia para o cinema. Com sua determinação, conseguiu um emprego nos estúdios da Universal: leitor de textos a dezoito dólares por semana, função que o obrigava a resumir as histórias que lia.

Quando não estava ocupado por esse trabalho, escrevia seus próprios roteiros.

Veio a Segunda Guerra Mundial, e ele serviu na força aérea. Ao voltar da guerra, dedicouse também ao teatro. Aí, seu grande êxito foi o musical "Rodbead", com o qual conquistou o prêmio Tony. Em 1947, era a vez de ganhar o Oscar pelo argumento de "O solteirão cobiçado", estrelado por Cary Grant, Myrna Loy e Shirley Temple. Sempre com brilho seu trabalho em Hollywood e na Broadway.

Por volta de 1967, trabalhava num filme para a televisão, enforcando um psiquiatra e alguém que o perseguia. Para salvar sua vida, o psiquiatra precisava penetrar na mente dessa pessoa, na motivação que a conduzia e, assim, descobri-la. "A trama crescia em minha cabeça, e notei que, para fazerlhe justiça, ela requeria um tratamento de romance.

Pela primeira vez em minha vida, percebi a diferença entre escrever um texto narrativo e um roteiro de cinema."

Em 1970, com cinqüenta e três anos de idade, Sheldon publicou "A outra face". O "New York Times" o considerou o melhor romance de mistério do ano, mas ele encalhou nas livrarias. Porém, uma nova vocação estava descoberta, e ele não mais pararia. "O outro lado da meia-noite"(1974) se tornaria um best seller imediato, com milhões de cópias vendidas, tradução para dezenas de línguas e adaptação para o cinema. Os editores não perderam tempo" relançaram "A outra face".

O resultado foi o previsto: o romance entrou logo para a lista dos mais vendidos.

Em seguida, vieram "Um estranho no espelho", "A ira dos anjos", "O reverso da medalha" e "A herdeira". Sheldon tornou-se mais um fenômeno da industria de best sellers, e, em meados da década de 70, assinou um dos maiores contratos do meio literário: nove milhões de dólares por onze livros, alguns deles já entregues aos editores.

Para manter o prestígio e a vendagem, Sheldon mantém um ritmo de trabalho veloz e uma produção constante. Cerca de cinqüenta páginas por dia são ditadas à sua secretária. Centenas de páginas depois, ele inicia a primeira releitura, polindo, eliminando, enxugando e reformulando frases, chocando fato s. V rias releituras mais tarde - ele já chegou a submeter um romance a quinze exames -, está pronto mais um sucesso de milhões de exemplares, um livro composto sob medidas para fascinar e divertir o seu imenso público.

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