- Creio que todos devem concordar com o que ela quiser fazer - disse Rhys, olhando para Elizabeth e sorrindo. -Obrigada, Rhys. Há mais uma coisa, senhores. Como vou ocupar o lugar de meu pai, parece conveniente oficializar o fato, não acham? Charles perguntou, arregalando os olhos:
- Está querendo ser presidente?
- Presidente ela já é - disse Alec. - Está apenas fazendo a gentileza de nos homologar uma situação de fato. Charles hesitou e, por fim, disse:
- Está bem. Proponho que Elizabeth Roffe seja eleita presidente da Roffe and Sons.
A proposta foi aprovada. O ano não é bom para presidentes, pensou ele tristemente. Muitos têm sido assassinados.
Capítulo 21 Ninguém tinha mais consciência do que Elizabeth da enorme responsabilidade que havia assumido. Agora que estava dirigindo a companhia, o emprego de milhares de pessoas dependia dela. Precisava de ajuda, mas não sabia ao certo em quem confiar. Alec, Rhys e Ivo eram os que lhe pareciam mais dignos de confiança, mas não estava ainda preparada para isso. Era muito cedo. Mandou chamar Kate Erling.
- Pronto, Senhorita Roffe.
Elizabeth não sabia por onde começar. Kate Eerling tinha trabalhado durante muitos anos para seu pai. Não podia deixar de ter algum conhecimento das correntezas subterrâneas que fervilhavam sob a aparente calma. Devia estar a par dos segredos da companhia e dos sentimentos e planos de Sam Roffe. Podia ser uma valiosa aliada.
- Meu pai tinha mandado fazer uma espécie de relatório confidencial, Kate. Sabe alguma coisa a respeito disso?
Kate Erling franziu a testa num esforço para concentrar-se, mas acabou sacudindo a cabeça.
- Ele nunca falou nisso comigo, Senhorita Roffe.
Elizabeth tentou descobrir alguma coisa por outro caminho.
- Se meu pai tivesse querido uma informação confidencial, a quem procuraria?
- Naturalmente a nossa divisão de segurança - disse ela, sem hesitação. O último lugar que ele teria procurado.
- Está bem. Muito obrigada - disse Elizabeth.
Não havia ninguém com quem ela pudesse falar.
Havia em sua mesa um relatório financeiro. Elizabeth leu-o com crescente assombro.
Depois, mandou chamar o tesoureiro. Chamava-se Wilton Kraus e era mais moço do que ela esperava. Parecia inteligente e ativo, ao mesmo tempo que ostentava um leve ar de superioridade. Devia ter sido diplomata pela Escola Wharton e talvez pela Universidade de Harvard. Elizabeth entrou diretamente no assunto.
- Como pode uma empresa como a Roffe and Sons estar em dificuldades financeiras?
Kraus olhou para ela e encolheu os ombros. Era claro que não estava habituado a entender-se com uma mulher. Disse então com condescendência:
- Não posso resumir tudo…
- Não resuma nada. Vamos começar pelos fatos. Até há dois anos atrás, a Roffe and Sons sempre dispunha de todo capital de que precisava. - Ela viu a expressão dele mudar.
- Isso é verdade.
- Por que então estamos agora devendo tanto aos bancos?
- Bem, há alguns anos, tivemos um período de expansão excepcionalmente pesado. Seu pai e os outros membros da diretoria julgaram melhor levantar o dinheiro necessário para a expansão tomando empréstimos a curto prazo nos bancos. Em conseqüência, temos agora compromissos com vários bancos no montante de seiscentos e cinqüenta milhões de dólares. Alguns desses empréstimos estão para vencer.
- Já venceram - disse Elizabeth.
- Isso mesmo. Já venceram.
- Estamos pagando os juros combinados e mais um por cento de mora. Por que não pagamos os empréstimos vencidos e não diminuímos o montante dos outros?
O homem já havia passado da fase da surpresa.
- Isso aconteceu… em face de algumas ocorrências imprevistas e infortunadas. Por isso, o movimento de casa da companhia é consideravelmente menor do que fora previsto. Em condições normais, pediríamos prorrogação aos bancos. Entretanto, diante dos problemas, dos vários acordos de indenização, dos prejuízos em nossos laboratórios experimentais e… - Elizabeth estudava o homem, tentando adivinhar de que lado ele estava.
Olhou de novo para os balanços, procurando ver precisamente onde as coisas tinham começado a desandar. Os balanços mostravam acentuado declínio nos últimos três trimestres, principalmente em razão dos pagamentos das indenizações relacionadas sob a rubrica: "Despesas extraordinárias sem recorrência". Elizabeth pensou na explosão no Chile, na nuvem de substâncias tóxicas que se erguera no ar. Pensou nos gritos das vítimas. Uma dúzia de pessoas mortas. Centenas de pessoas levadas para os hospitais.
No fim, todo o sofrimento humano era reduzido a dinheiro e consignado como "Despesas extraordinárias".
- De acordo com o seu relatório, Sr. Kraus os nossos problemas são de caráter temporário. Somos a Roffe and Sons. Representamos ainda um risco da primeira classe para qualquer banco do mundo.
Agora era o homem quem estudava Elizabeth. Sua auto-suficiência havia desaparecido, mas ele se tornara cauteloso.
- Deve compreender,Senhorita Roffe, que a reputação de uma firma de produtos químicos e farmacêuticos é tão importante quanto seus produtos. Quem tinha dito isso a ela? Seu pai? Alec? Lembrou-se: Tinha sido Rhys.
- Continue.
- Nossos problemas se tornaram muito conhecidos. O mundo dos negócios é uma selva sem lei. Quando os concorrentes suspeitarem que você Está ferido, preparam-se para dar o golpe final.
- Em outras palavras - disse Elizabeth -, os nossos concorrentes fazem negócios com os nossos banqueiros e sabem de tudo.
- Exatamente. Os bancos têm um limite de fundo para empréstimos, e quando se convencem de que A é melhor risco do que B…
- E estão convencidos disso?
O homem passou nervosamente a mão pelos cabelos.
- Desde a morte de seu pai, recebi vários telefonemas de Herr Julius Badrutt, presidente do consórcio bancário com o qual negociamos.
- O que ele queria saber?
- Quem ia ser o novo presidente da Roffe and Sons.
- Já sabe quem é o novo presidente?
- Não.
- Sou eu. Que acha que vai acontecer quando Her Badrutt souber disso?
- Sem dúvida, aumentar a pressão sobre nós - disse Wilton Kraus.
- Vou falar com ele - disse Elizabeth, sorrindo e recostando-se na cadeira. - Quer tomar café?
- Não, obrigado.
Elizabeth viu Kraus tranquilizar-se. Sabia que fora testado e passara no teste.
- Gostaria de saber sua opinião, Sr. Kraus. Se estivesse no meu lugar, que faria?
O leve ar de superioridade voltou, e ele disse confidencialmente:
- Na minha opinião, tudo é muito simples. O ativo da Roffe and Sons é enorme. Se vendermos um bloco substancial de ações ao público teremos dinheiro em quantidade mais do que suficiente para cobrir todos os nossos empréstimos bancários.
Elizabeth já sabia de que lado ele estava.
Capítulo 22 Hamburgo. Sexta-feira, 1 de outubro. 2 horas.
O vento soprava do mar e o ar da madrugada era frio e úmido. No bairro Reeperbahn, em Hamburgo, as ruas estavam cheias de visitantes ansiosos por experimentarem os prazeres proibidos da cidade. Bebidas, drogas, garotas e rapazes estavam à disposição… mediante um preço.
Os bares com fachadas profusamente iluminadas ficavam na rua principal, enquanto a Grosse Freiheit apresentava os mais lascivos shows de striptease.
A Herbertstrasse, a um quarteirão de distância, estava cheia de prostitutas que se exibiam às janelas de seus quartos com as roupas de dormir tão transparentes, que não ocultavam nada. O Reeperbahn era um vasto mercado onde se podia comprar tudo o que se quisesse em matéria de sexo, desde que se pagasse. O camaraman andou lentamente pela rua sem dar maior atenção às pessoas até que se aproximou de uma loura que não devia ter mais de dezoito anos. Estava conversando com uma amiga. Sorriu quando o homem se aproximou.
- Gostaria de se divertir, Liebchen? Minha amiga e eu podemos atendê-lo. O homem olhou para ela e disse:
- Só você.
A outra mulher encolheu os ombros e afastou-se:
- Como se chama?
- Hildy.
- Quer trabalhar no cinema?
- Não me venha com essa história de Hollywood, que isso não engana mais ninguém.
O camaraman sorriu, tranquilizando-a.
- Nada disso. A minha proposta será: Faço filmes pornô para um amigo meu.
- Vai custar quinhentos marcos. Adiantados.
- Gut.
Ela se arrependeu no mesmo instante de não ter pedido mais. Ora, daria um jeito de ganhar uma gratificação.
- Que é que tenho de fazer? - perguntou Hildy.
Hildy estava nervosa. Estendida na cama, no apartamento mal mobiliado, olhava para os três homens e achava que havia alguma coisa estranha em tudo aquilo. Tinha apurado os seus instintos nas ruas de Berlim, Munique e Hamburgo. Aprendera a se virar por eles, e eles lhe diziam que havia naqueles três alguma coisa que não merecia confiança.
Tinha vontade de sair dali antes que começassem. Só não fazia isso porque já recebera quinhentos marcos, e os sujeitos lhe haviam prometido mais quinhentos marcos se ela trabalhasse bem. Ia trabalhar bem. Era uma profissional e tinha orgulho do seu trabalho. Olhou para o homem nu na cama ao lado dela. Era forte e tinha corpo liso, sem pêlos. O que inquietava Hildy era o rosto do homem. Parecia velho demais para fazer filmes daquela espécie. Mas era o espectador sentado nos fundos do quarto que mais afligia Hildy. Usava um grande capote, chapéu de abas largas e óculos escuros. Hildy não sabia se era homem ou mulher. As vibrações eram ruins. Hildy levou os dedos à fita vermelha que lhe tinham pedido que amarrasse ao pescoço, sem que compreendesse o motivo.
- Muito bem - disse o camaraman. - Estamos prontos. Ação.
Começaram a rodar o filme. Hildy tinha recebido todas as instruções. Quando as manobras preliminares terminaram, o camaraman disse ao homem:
- Entre nela! O ato na cama se desenvolvia rapidamente.
Nos fundos do quarto, o espectador se inclinava para a frente, sem perder um só movimento. Hildy, na cama, fechou os olhos. Ela está estragando tudo!
- Os olhos! - exclamou o espectador.
Assustada, Hildy abriu os olhos. Olhou o homem sobre ela. Era impetuoso e forte.
Assim é que ela gostava. Ele começou a fazer movimentos mais rápidos, e a reação dela foi imediata. Não era comum ela ter orgasmos. Quase sempre fingia, e os homens nem sabiam a diferença. Mas o camaraman a havia avisado que, se ela não sentisse um orgasmo, não recebia o dinheiro da gratificação.
Pensou em todas as coisas boas que ia comprar com o dinheiro e sentiu um orgasmo aproximar-se. Seu corpo começou a estremecer O espectador fez um sinal e o camaraman exclamou:
- Agora! As mãos do homem moveram-se para o pescoço de Hildy.
Ela sentiu a pressão, olhou para os olhos do homem, viu o que havia neles e foi dominada pelo terror. Quis gritar, mas já não podia nem respirar. Lutou desesperadamente, mas não havia meio de livrar-se daquelas mãos de ferro que a estrangulavam. O espectador, do seu canto, não perdia um só detalhe da cena, contemplando os olhos que perdiam o brilho e vendo a mulher ser punida. O corpo de Hildy estremeceu pela última vez e ficou imóvel.
Capítulo 23 Zurique. Segunda-feira, 4 de outubro. 10 horas.
Quando Elizabeth chegou ao seu escritório, encontrou um envelope fechado, com a rubrica "Confidencial", em cima de sua mesa. Era um relatório de química e estava assinado por Emil Joeppli. Estava cheio de termos técnicos, e Elizabeth leu-o do princípio ao fim sem compreender nada. Leu pela segunda e terceira vez, sempre mais vagarosa e atentamente. Quando afinal percebeu o significado, disse a Kate:
- Voltarei dentro de uma hora.
E foi procurar Emil Joeppli. Era um homem alto, de cerca de trinta e cinco anos, com o rosto magro e sardento e que ostentava no alto da cabeça apenas um tufo de cabelos avermelhados. Ficou muito nervoso, pois não estava habituado a receber visitas no seu pequeno laboratório.
- Li o seu relatório -disse Elizabeth. - há muitas coisas nele que não compreendo.
Quer ter a bondade de explicar-me tudo?
O nervosismo de Joeppli desapareceu por encanto. Começou imediatamente a falar, seguro e confiante.
- Tenho feito experiências com um novo método de inibir a diferenciação rápida dos colagênos por meio de técnicas de bloqueio com mucopolissacarídeos e enzimas. Os colagênos são, naturalmente, a base fundamental de proteínas de todo o tecido conjuntivo.
- Está bem - disse Elizabeth. Não se esforçou por compreender a parte técnica das explicações de Joeppli. O que Elizabeth compreendia era que o projeto em que o homem estava trabalhando poderia retardar o processo de envelhecimento. Era uma idéia empolgante. Continuou a ouvir, pensando na revolução que uma descoberta dessa ordem representaria para a humanidade. Segundo Joeppli, não haveria razão alguma para que os homens não chegassem aos cem anos ou a cento e cinquenta e até duzentos.
- Não seria nem preciso tomar injeções - dizia Joeppli. - Com esta fórmula, os ingredientes podem ser tomados via oral, sob a forma de comprimidos.
As possibilidades eram incríveis. Isso representaria nada menos que uma revolução social e se converteria em biliões de dólares para a Roffe and Sons. A companhia fabricaria o produto e concederia licenças a outras empresas. Ninguém com mais de cinquenta anos de idade, deixaria de tomar os comprimidos para manter-se jovem. Elizabeth tinha dificuldade em ocultar o seu interesse.
- Em que pé estão as suas pesquisas neste projeto?
- Como disse no meu relatório, há quatro anos que venho fazendo testes com animais. Os últimos resultados têm sido positivos. Já posso começar a fazer experiências com seres humanos.
Ela gostava do entusiasmo dele.
- Quem mais sabe disso?
- Seu pai sabia. Trata-se de um projeto da Pasta Vermelha, o que quer dizer absolutamente secreto. Só devo fazer as minhas comunicações ao presidente da companhia e a um dos diretores.
- Qual dos diretores? - perguntou Elizabeth, sentindo um arrepio.
- Walther Gassner.
- De hoje em diante, quero que faça as suas comunicações exclusivamente a mim.
Joeppli olhou-a com surpresa e disse:
- Está bem, Senhorita Roffe.
- Quando poderemos lançar esse produto no mercado?
- Se tudo correr bem, dentro de um ano e meio a dois anos.
- Muito bem. Se precisar de alguma coisa, dinheiro, pessoal, equipamento, fale comigo. Quero que trabalhe o mais depressa possível.
- Muito obrigado.
Elizabeth levantou,-se e Emil Joeppli acompanhou-a, dizendo, com um sorriso:
- Tive muito prazer em conhecê-la. Gostava muito de seu pai.
- Muito obrigada - disse Elizabeth.
Sam tinha tido conhecimento daquele projeto. Seria essa uma das razões pelas quais se negara a vender as ações da companhia? Quando ela já ia saindo, Emil Joeppli lhe disse:
- Isso tem que dar certo em gente.
- Claro - disse Elizabeth. Era preciso.
- Como um projeto de Pasta Vermelha é executado?
- Desde o início? - perguntou Kate Erling.
- Desde o início.
- Bem, como sabe, temos várias centenas de produtos novos em fase experimental.
- Quem os autoriza?
- Até determinar a verba, os chefes dos departamentos interessados.
- Qual o limite da verba?
- Cinquenta mil dólares.
- E acima disso?
- O projeto tem de ser aprovado pela diretoria. É claro que um projeto não passa à categoria de Pasta Vermelha senão depois de bem sucedido nas experiências iniciais.
- Isso é, só depois que tenha probabilidades de dar resultados.
- Exatamente.
- Como funciona a proteção ao projeto?
- Se o projeto é considerado importante, todo o trabalho é transferido para um laboratório de máxima segurança. Todos os papéis são retirados dos arquivos gerais e levados para um arquivo de Pasta Vermelha. Só três pessoas têm acesso a esses arquivos, o cientista encarregado do projeto, o presidente da companhia e um dos diretores.
- Quem escolhe o diretor?
- Seu pai escolheu Walther Gassner.
No momento em que acabou de falar, Kate Erling percebeu o seu erro. As duas mulheres se olharam, e Elizabeth disse:
- Muito obrigada, Kate. É só isso.
Elizabeth não havia mencionado o projeto de Joeppli. Entretanto, Kate compreendera do que Elizabeth estava falando.
Havia duas possibilidades. Ou Sam havia confiado em Kate e lhe falara sobre o projeto de Joeppli ou ela soubera dele por si mesma, a serviço de alguém. Era muito importante não dar margem a que alguma coisa desse errado.
Ela verificaria pessoalmente a segurança. Tinha também de falar com Walther Gassner. Estendeu a mão para o telefone e parou. Havia um meio melhor.
Naquela mesma tarde, Elizabeth embarcou em um vôo regular para Berlim.
Walther Gassner parecia nervoso. Estavam sentados a uma mesa de um canto do salão do andar superior do Restaurante Papillon, no Kurfürstendamm. Sempre que Elizabeth ia a Berlim, Walther insistia em recebê-la para jantar em casa, em companhia de Anna.
Dessa vez, nem falaram nisso e sugerira o restaurante, ao qual havia chegado só.
Walther Gassner ainda tinha as feições bem-marcadas de um jovem artista de cinema, mas já se notava alguma deterioração na fachada. O rosto mostrava rugas de tensão e as mãos nunca ficavam paradas. Parecia estar sob o domínio de extraordinária tensão. Quando Elizabeth perguntou por Anna, respondeu vagamente:
- Anna não está passando bem. Não pôde vir.
- Algum problema grave?
- Não. Isso passa. Ficou em casa descansando.
- Vou telefonar para saber dela.
- É melhor não perturbá-la.
Era uma conversa surpreendente, pois Walther, a quem Elizabeth sempre conhecera animado e extrovertido, estava reservado e reticente. Ela falou então no projeto de Emil Joeppli.
- Precisamos muito do que ele está fazendo.
- Vai ser uma grande coisa - murmurou Walther.
- Pedi-lhe que não lhe comunicasse mais nada - disse Elizabeth. As mãos de Walther ficaram de repente imóveis.
- Por que fez isso, Elizabeth?
- Não é nada pessoal contra você, Walther. Eu faria a mesma coisa com qualquer outro diretor que estivesse trabalhando com ele. O que acontece é que quero cuidar do projeto à minha maneira.
- Compreendo - disse ele, ainda sem mover as mãos. - É um direito seu. - Fez uma pausa e continuou com um sorriso forçado, que mostrava quanto aquilo estava lhe custando. - Escute, Elizabeth, Anna possui muitas ações da companhia. Mas não pode vendê-las sem a sua aprovação. Isso é muito importante para nós…
- Sinto muito, Walther, mas não posso concordar por enquanto com a venda das ações. Neste momento, as mãos de Walther voltaram a agitar-se nervosamente.
Capítulo 24 Julius Badrutt era um homem magro e frágil, que parecia um louva-a-deus metido num terno preto. Era como um boneco desenhado por uma criança, com pernas e braços angulosos e um rosto magro e inacabado desenhado no alto do corpo. Estava sentado à mesa da diretoria da Roffe and Sons, diante de Elizabeth. Havia mais cinco banqueiros em companhia dele. Todos usavam ternos pretos com colete, camisas brancas e gravatas escuras.
Elizabeth pensava que estavam não apropriadamente vestidos, mas fardados.
Vendo os rostos impassíveis e frios em volta da mesa, Elizabeth não conseguia dominar seus receios. Antes da reunião, Kate Erling tinha levado para a sala uma bandeja com doces. Os banqueiros recusaram o café e os doces, do mesmo modo que antes não tinham aceito o convite dela para almoçar.
Era mau sinal. Queriam dizer com isso que estavam ali apenas para receber o dinheiro que lhes era devido.
- Antes de tudo - disse Elizabeth -, quero agradecer a presença de todos. - Houve polidos resmungos ininteligíveis em resposta. Ela respirou fundo e continuou: - Pedi que viessem até aqui para discutirmos uma prorrogação dos empréstimos contraídos com os senhores pela Roffe and Sons.
Julius Badrutt sacudiu a cabeça em breves movimentos quase convulsivos.
- Sinto muito, Senhorita Roffe. Já informamos…
- Ainda não acabei - disse Elizabeth. - Se eu estivesse no lugar dos senhores também recusaria. Os banqueiros se entreolhavam, confusos. - Se estavam preocupados com os empréstimos quando meu pai, que era um homem brilhante, estava dirigindo a companhia, por que iriam conceder uma prorrogação a uma mulher inexperiente como eu?
- Creio que deu resposta cabal à pergunta que fez - disse Julius Badrutt secamente. - Não temos a intenção de…
- Espere um pouco. Ainda não acabei.
Observaram-na agora com mais cautela. Ela olhou para cada um dos homens, a fim de ter certeza de que estava merecendo toda a atenção deles. Tratava-se de banqueiros suíços, respeitados e invejados no mundo inteiro. Escutavam todos atentamente, e a sua atitude anterior de impaciência e enfado cedera lugar à curiosidade.
- Todos os senhores conhecem a Roffe and Sons há muito tempo. E tenho certeza de que conheceram e respeitaram meu pai. Alguns homens fizeram sinais de assentimento. - Imagino que devem ter-se engasgado com o café da manhã quando leram a notícia de que eu havia ficado no lugar dele.
Um dos banqueiros sorriu, depois riu francamente e disse:
- Tem toda a razão, Senhorita Roffe. Se todos nós estamos de acordo, como disse, todos nós nos engasgamos com o café da manhã.
- Não o censuro - disse Elizabeth, rindo. - Eu teria reagido da mesma maneira. Outro banqueiro tomou a palavra.
- Desculpe a curiosidade, Senhorita Roffe. Se todos nós estamos de acordo quanto ao resultado desta reunião, o que estamos fazendo aqui?
- Estão aqui porque desejei reunir nesta sala os maiores banqueiros do mundo. E agi assim porque não posso acreditar que tenham tido êxito encarando tudo exclusivamente do ponto de vista do dinheiro. Se fosse assim, qualquer guarda-livros poderia ter sucesso como banqueiro. Não pode ser só isso!
- Claro que não é - disse outro banqueiro. -Somos antes de tudo homens de negócios e…
- E a Roffe and Sons é um grande negócio. Só tive uma idéia exata da grandeza desta companhia depois que me sentei na cadeira de meu pai. Não sabia quantas vidas haviam sido salvas por esta companhia em todo mundo. As contribuições que fizemos à medicina são inestimáveis. Muitos milhares de pessoas dependem da Roffe and Sons para viver…
Julius Badrutt interrompeu-a.
- Tudo isso é muito meritório. Mas parece que estamos nos afastando do assunto.
Sei que lhe foi sugerido que liberasse as ações da companhia. Neste caso, haveria dinheiro em quantidade mais que suficiente para cobrir todos os empréstimos.
Era o primeiro erro dele. Sei que lhe foi sugerido… A sugestão fora feita no segredo de uma reunião da diretoria da companhia, em que tudo era confidencial. Alguém que estava na reunião havia falado. Era alguém que queria exercer pressão sobre ela.
Pretendia descobri-lo, mas isso podia ficar para depois.
- Posso fazer uma pergunta? - disse Elizabeth. - Se os empréstimos forem pagos, ter alguma importância para os senhores de onde veio o dinheiro?
Julius Badrutt olhou-a, ruminando a pergunta, à procura de alguma armadilha.
Disse por fim:
- Não.Não tem importância de onde o dinheiro venha, contanto que os nossos títulos sejam pagos.
- Muito bem! Pouco importa que o dinheiro provenha da venda das ações da companhia a terceiros ou dos nossos recursos financeiros próprios. Tudo o que devem saber agora é que a Roffe and Sons não vai fechar as portas. Nem hoje, nem amanhã, nem nunca. Estou pedindo apenas a gentileza de uma prorrogação de prazo.
Julius Badrutt passou a língua pelos lábios secos e disse:
- Acredite, Senhorita Roffe, que conta com toda a nossa simpatia.
Compreendemos a tremenda tensão emocional por que está passando, mas não podemos…
- Três meses - disse Elizabeth. - Noventa dias. É claro que deverão cobrar juros adicionais.
Houve um silêncio em volta da mesa. Mas era um silêncio negativo. Elizabeth viu os rostos hostis e frios. tentou então um lance de desespero.
- Não sei se devo revelar - murmurou ela com deliberada hesitação. - Em todo caso, peço-lhes que guardem o maior sigilo possível. A Roffe and Sons Está em vésperas de uma descoberta que vai revolucionar toda a indústria farmacêutica. - Fez uma pausa para causar maior efeito. - Esta companhia tem em estudos um novo produto que vai sobrepujar todos os medicamentos atualmente existentes no mercado!
Sentiu perfeitamente que tinha havido uma mudança no ambiente. Foi Julius Badrutt quem mordeu primeiro a isca.
- De que tipo… é esse medicamento?
Elizabeth sacudiu a cabeça.
- Desculpe, Sr. Badrutt. Talvez eu já tenha falado mais do que devia. Só lhes posso dizer que será a maior inovação na história de nossa indústria. Exigir uma imensa expansão de nossas instalações. Teremos de duplicá-las, talvez triplicá-las. É claro que iremos precisar de novos financiamentos em grande escala. Os banqueiros olhavam uns para os outros, trocando sinais silenciosos. O silêncio foi quebrado por Badrutt.
- Se nós lhe dermos um prazo de noventa dias, esperamos naturalmente que a Roffe and Sons trabalhe conosco em todas as futuras transações.
- Naturalmente.
Houve nova troca de olhares significativos. Funciona como os tambores na selva, pensou Elizabeth.
- Enquanto isso - disse Badrutt -, nós teremos a sua garantia de que ao fim de noventa dias todos os seus títulos vencidos seriam resgatados?
- Teriam, sim.
Durante um instante, Badrutt ficou olhando para o espaço. Em seguida, olhou para Elizabeth e para cada um dos seus companheiros, recebendo sinais silenciosos.
- Da minha parte - disse ele -, estou disposto a concordar. Não creio que um novo prazo, com os juros correspondentes, é claro, faça algum mal. Um por um, os outros banqueiros concordaram.
- Estamos com você, Julius…
E tudo foi combinado. Elizabeth recostou-se na cadeira, tentando dissimular a sua satisfação. Ganhara noventa dias. Ia precisar de todos os minutos desse prazo.
Capítulo 25 Era como se ela estivesse no centro de um furacão. Tudo convergia para a mesa de Elizabeth, das centenas de departamentos da sede, das fábricas de Zaire, dos laboratórios da Groenlândia, dos escritórios da Austrália e da Tailândia, dos quatro cantos da Terra. Havia relatórios sobre novos produtos, demonstrativos de vendas, projeções estatísticas, campanhas de publicidade, programas experimentais. Era preciso tomar decisões sobre a construção de novas fábricas, venda de fábricas velhas, compra de companhias, admissão e demissão de diretores. Elizabeth dispunha de pareceres técnicos em todas as fases dos negócios, mas as decisões finais tinham de ser tomadas por ela.
Assim tinha sido Sam, e ela era grata pelos três anos que havia trabalhado com ele. Sabia muito mais sobre a companhia do que havia imaginado, e, ao mesmo tempo, sabia muito menos. A extensão da companhia era incalculável. Elizabeth havia concebido a companhia como um reino. Via agora que se tratava de uma série de reinos, cada qual com seu vice-rei, e que o escritório do presidente era como uma sala do trono. Cada um dos seus primos se incumbia do seu domínio próprio; além disso, supervisionava alguns territórios estrangeiros. Por isso, todos viajavam constantemente.
Elizabeth compreende que tinha um problema especial. Era uma mulher no mundo masculino, e descobriu que isso fazia alguma diferença. Nunca havia realmente acreditado que os homens aceitassem como uma verdade o mito de inferioridade das mulheres, mas agora via que as coisas não se passavam de outra maneira. Ninguém dizia isso abertamente em palavras ou atos, mas Elizabeth tinha de enfrentar diariamente essa realidade. Era uma atitude oriunda de velhos preconceitos e não se podia fugir dela.
Os homens não gostavam de receber ordens de uma mulher. Não lhe agradava a idéia de que uma mulher pusesse em dúvida as suas conclusões ou discordasse dos seus conceitos. O fato de Elizabeth ser jovem e bela agravava a situação. Todos procuravam fazê-la compreender que o seu lugar era numa cama o numa cozinha, deixando os negócios aos cuidados dos homens. Elizabeth marcava reuniões todos os dias com diversos chefes de departamento. Nem todos eram hostis. Alguns eram ousados. Uma mulher bonita na cadeira da presidência era um desafio irresistível para certos corações masculinos.
Pensavam que, se conseguissem levá-la para a cama, poderiam controlála e a companhia também. Eram uma versão adulta dos rapazes da Sardenha. Os homens atacavam Elizabeth pelo lado errado.
Deviam atacá-la pelo espírito, pois, no fundo, era dali que ela os controlava.
Subestimavam-lhe a inteligência e se enganavam redondamente. Calculavam mal a sua capacidade de exercer autoridade, e esse era outro erro.
Não levavam em consideração a sua energia, e esse era o maior de todos os erros. Ela era uma Roffe, descendente do velho Samuel e de Sam, com o espírito e a determinação deles. Enquanto os homens a cercavam e procuravam usar Elizabeth, ela é que os usava. Apropriava-se dos conhecimentos, das experiências e da intuição que eles possuíam e passava a usar tudo isso como lhes pertencesse. Deixava os homens falarem e escutava. Fazia perguntas e guardava na memória as respostas.
Estava aprendendo. Levava todas as noites duas pesadas pastas, cheias de relatórios a serem estudados. Trabalhava às vezes até às quatro horas da madrugada.
Uma tarde, um fotógrafo registrou para um jornal um flagrante de Elizabeth, que saía do edifício acompanhada de uma secretária com as duas pastas. A fotografia foi publicada no dia seguinte com a legenda: "Uma herdeira que trabalha".
Elizabeth se tornara uma celebridade internacional da noite para o dia.
A história de uma mulher jovem e bela que herdava uma companhia de muitos bilhões de dólares e resolvia assumir a sua direção era irresistível. A imprensa explorou-a em todos os ângulos. Elizabeth era bela, inteligente e simples, uma combinação de qualidades muito raras entre as celebridades.
Atendia aos jornalistas sempre que possível, tentando recompor a imagem um pouco desgastada da companhia, e eles apreciavam essa solicitude. Quando ela não tinha a resposta à pergunta de algum repórter, não tinha a menor dúvida em pegar o telefone e perguntar a alguém.
Os primos iam de avião a Zurique para as reuniões semanais. Elizabeth passava com eles tanto tempo quanto possível. Via-os juntos e reunia-se com cada um deles separadamente. Falava com eles e estudava-os, pensando encontrar algum indício de que um deles fosse capaz de deixar pessoas inocentes morrerem numa explosão, de vender segredos a concorrentes e de procurar destruir a Roffe and Sons.
Um de seus primos. Ivo Palazzi, com o seu irresistível encanto. Alec Nichols, tipo perfeito, o próprio gentleman, sempre solícito quando Elizabeth precisava dele. Charles Martel, um homem dominado e amedrontado. Homens assim podiam ser perigosos quando acuados. Walther Gassner. O tipo do herói alemão. Belo e extremamente afável.
Como seria ele no íntimo? Casara-se com Anna, treze anos mais velha do que ele.
Casara-se por amor ou por dinheiro? Quando Elizabeth estava com eles, observava, escutava, sondava. Mencionava a explosão no Chile e observava as reações de cada um.
Falava das patentes que a Roffe tinha perdido para outras companhias e discutia as indenizações a serem pagas. Não conseguia apurar nada. Fosse quem fosse, era muito hábil para se deixar trair. Teria de ser colhido numa armadilha. Lembrou-se da nota do próprio punho de Sam no relatório. Era preciso apanhar o patife. Ela teria de encontrar um meio.
Elizabeth ficava cada vez mais fascinada com o funcionamento interno da indústria farmacêutica. As más notícias eram deliberadamente espalhadas. Quando se sabia que algum doente morrera depois de ter tomado um medicamento de um concorrente, meia hora depois cerca de dez homens estavam dando telefonemas através do mundo. "Sabe o que estão dizendo?"
Entretanto, aparentemente, todas as companhias pareciam viver nas melhores relações possíveis. Os chefes de algumas das grandes firmas reuniam-se regularmente em encontros informais. Elizabeth foi convidada para uma dessas reuniões. Foi a única mulher presente. Os homens debateram os seus problemas comuns. O presidente de uma das grandes companhias, um homem de meia-idade que tinha seguido Elizabeth a noite inteira, disse-lhe em dado momento:
- As restrições são cada vez mais absurdas. Se a aspirina fosse descoberta hoje, duvido muito que as autoridades a aprovassem. Por falar nisso, minha bela jovem, tem alguma idéia de há quanto tempo nós temos a aspirina?
A bela jovem respondeu:
- Desde quatrocentos anos antes de Cristo, quando Hipócritas descobriu a salicina na casca do salgueiro. O homem olhou para ela e o sorriso morreu em seus lábios.
- Certo - murmurou ele, e afastou-se.
Todos os chefes de companhia concordavam em que um dos seus maiores problemas era o das firmas sem escrúpulos que roubavam as fórmulas dos produtos que tinham êxito, mudavam os nomes e lançavam os medicamentos no mercado. Isso custava às empresas de boa reputação centenas de milhões de dólares por ano. Na Itália, não havia sequer a necessidade de roubar.
- AIitália é um país que não tem regulamento de patentes a respeito de medicamentos - disse um dos diretores a Elizabeth. - Por algumas centenas de milhares de liras, qualquer pessoa pode comprar as fórmulas e vender os produtos com outro nome. Gastamos milhões de dólares em pesquisas. E eles se limitam a arrecadar os lucros.
- Isso acontece apenas na Itália? - perguntou Elizabeth. - A Itália e a Espanha são os piores lugares. A França e a Alemanha Ocidental, mais ou menos. Só nos Estados Unidos e na Inglaterra é que não acontece isso.
Elizabeth olhava para aqueles homens indignados e tinha vontade de saber quantos deles estariam envolvidos nos roubos das patentes da Roffe and Sons.
Elizabeth tinha a impressão de que estava passando a maior parte da vida a bordo de aviões. O seu passaporte ficava bem à mão, na primeira gaveta de sua mesa. Uma vez por semana, pelo menos, havia uma chamada angustiosa do Cairo, da Guatemala ou de Tóquio, e poucas horas depois, Elizabeth estava a bordo de um avião com alguns homens de sua confiança para atender a alguma emergência. Encontrava-se com gerentes de fábricas e suas famílias em cidades grandes como Bombaim ou em pontos remotos como Puerto Vallarta, e pouco a pouco principiou a ver a Roffe and Sons sob outra perspectiva.
Não era mais um acúmulo impessoal de relatórios e estatísticas. Chegava um relatório da Guatemala e isso significava Emilio Núnez, sua mulher gorda e feliz e seus doze filhos. Copenhague era Nils Bjorn e a mãe inválida com quem ele vivia. O Rio de Janeiro fazia lembrar uma noite passada com Alexandre Duval e sua vivaz companheira.
Elizabeth mantinha-se regularmente em contato com Emil Joeppli. Telefonava-lhe sempre por uma linha privativa e às vezes ia visitá-lo à noite em seu pequeno apartamento no Aussershl. Era cautelosa até pelo telefone.
- Como vão as coisas?
- Um pouco mais lentamente do que eu esperava, Senhorita Roffe.
- Precisa de alguma coisa?
- Não. Só de tempo. Encontrei um problema, mas creio que já resolvi.
- Muito bem. Telefone-me se precisar de alguma coisa, seja lá o que for.
- Está bem. Muito obrigado, Senhorita Roffe.
Elizabeth desligara o telefone com vontade de dizer mais alguma coisa, de apressá-lo, pois sabia que o vencimento dos empréstimos contraídos com os bancos estava próximo.
Precisava muito do produto em que Joeppli estava trabalhando, mas sabia que pouco adiantava pressioná-lo e continha sua impaciência. As experiências não podiam evidentemente estar terminadas antes do prazo concedido pelos banqueiros. Mas ela tinha um plano. Pretendia levar Julius Badrutt secretamente até o laboratório para que ele visse pessoalmente o projeto. Os bancos dariam o tempo necessário.
Elizabeth trabalhava cada vez mais em conjunto com Rhys Williams, e com frequência ficavam juntos até altas horas da noite. Quase sempre trabalhavam sozinhos.
Jantavam na sala privativa do escritório ou no elegante apartamento que ela passara a ocupar. Era um edifício moderno em Zurichberg, com as janelas dando para o lago de Zurique, amplo, arejado e bem-iluminado.
Elizabeth estava cada vez mais consciente do poderoso magnetismo animal de Rhys, mas, se ele sentia qualquer atração por ela, tinha o maior cuidado em não dar a maior demonstração. Era sempre gentil e simpático. A sua atitude era mais ou menos protetora, e essa palavra tinha no espírito de Elizabeth ressonância pejorativa.
Queria se apoiar nele, confiar nele, mas sabia que precisava tomar cuidado. Mais de uma vez, estivera a ponto de contar a Rhys tudo sobre os atos de sabotagem na companhia, mas recuava sempre. Não era ainda tempo de falar sobre o assunto com ninguém. Tinha de saber mais.
Elizabeth estava adquirindo confiança em si mesma. Na reunião de vendas, tinham discutido o caso de um preparado para os cabelos que estava tendo pouca saída.
- Há muitas devoluções das farmácias - disse um dos chefes de vendas. - O produto não pegou. Precisamos de mais publicidade.
- Nossa verba de publicidade Está esgotada - disse Rhys. - Temos de tomar uma providência diferente.
- Vamos tirar o produto das farmácias - disse então Elizabeth.
- Como? - perguntaram todos, voltando-se para ela.
- É isso mesmo. Devemos continuar a campanha de publicidade e passar a vender o produto exclusivamente nos salões de beleza. Procurem dar a impressão de que é uma mercadoria exclusiva, difícil de encontrar.
Rhys pensou um pouco e disse:
- Muito bem. Agrada-me a idéia.
As vendas do produto subiram da noite para o dia. Depois, Rhys deu-lhe os parabéns.
- Você não é apenas uma mulher bonita - disse ele com um sorriso. Então, ele estava começando a notá-la.
Capítulo 26 Londres. Sexta-feira, 2 de novembro. 14 horas.
Alec Nichols estava na sauna do clube quando a porta se abriu e um homem entrou na peça de vapor, com uma toalha amarrada à cintura. Foi sentar-se no banco de madeira ao lado de Alec.
- Isto aqui Está quente como um colo de feiticeira, não é mesmo, Sir Alec?
Alec voltou-se. Era Jon Swinton.
- Como conseguiu entrar aqui?
- Disse que estava à minha espera - respondeu Swinton, piscando o olho.
- E está mesmo, não é?
- Não. Já lhe disse que preciso de um pouco mais de tempo.
- Disse também que sua priminha ia consentir na venda das ações que, depois disso, nos daria o dinheiro.
- Ela… ela mudou de idéia.
- Pois é melhor você convencê-la a não mudar de idéia.
- Vou convencê-la. é apenas uma questão de…
- É apenas uma questão de quanto papo-furado vamos tolerar de sua parte - disse Jon Swinton, chegando mais perto e fazendo Alec escorregar pelo banco para afastar-se dele. - Não queremos ser duros, porque é sempre bom ter um amigo de confiança no Parlamento. Mas acontece que há um limite para tudo… Nós lhe fizemos um favor. Agora, está na hora de você pagar. Tem de conseguir uma remessa de drogas para nós.
- Não! é impossível! Não posso fazer isso…
Alec viu de repente que tinha sido empurrado para aponta do banco, bem próximo ao recipiente de metal cheio de pedras quentes.
- Cuidado! - gritou Alec.
Swinton agarrou o braço de Alec e torceu-o, empurrando-o na direção das pedras.
Alec sentiu que os pêlos de seu braço começavam a chamuscar.
- Não!
No instante seguinte, o braço foi comprimido contra as pedras, e Alec soltou um grito de dor. Em seguida, rolou pelo chão. Swinton inclinou-se para ele e disse:
- Dê um jeito. Depois a gente se vê.
Capítulo 27 Berlim. Sábado, 3 de novembro. 18 horas.
Anna Roffe Gassner não sabia por quanto tempo poderia agüentar aquilo. Era uma prisioneira dentro de sua própria casa. A não ser nas poucas horas em que a faxineira aparecia uma vez por semana, ela e os filhos ficavam sozinhos e inteiramente à mercê de Walther. Este nem se dava mais ao trabalho de esconder o seu ódio. Anna estava no quarto das crianças, ouvindo um disco que gostava muito.
- Estou farto de ouvir isso! - gritou Walther, entrando impetuosamente. Quebrou o disco, enquanto as crianças se encolhiam de terror. Anna tentou acalmá-lo.
- Desculpe, Walther. Não sabia que você estava em casa. Quer alguma coisa?
Walther avançou para ela, com os olhos fuzilantes, e disse:
- Temos de nos livrar das crianças, Anna.
Colocou as mãos nos ombros dela.
- O que acontecerá nesta casa será nosso segredo. Nosso segredo. Nosso segredo.
Nosso segredo. Sentiu as palavras ressoarem-lhe na cabeça enquanto os braços de Walther a apertavam até que ela não pôde mais respirar. Perdeu os sentidos. Quando Anna voltou a si estava deitada em sua cama. As cortinas estavam descidas. Olhou para o relógio na mesa-de-cabeceira. Seis horas da tarde. A casa estava em silêncio, um silêncio sinistro. Pensou imediatamente nas crianças. Levantou-se com as pernas trêmulas e foi até à porta do quarto. Estava trancada por fora. Encostou o ouvido à porta, procurando escutar. Devia estar ouvindo o barulho das crianças.
Não podiam deixar de procurá-la. Se pudessem, se ainda estivessem vivas… Suas pernas tremiam tanto que teve dificuldade em ir até o telefone. Rezou em silêncio ao tirar o fone do gancho. Ouviu o ruído e hesitou, pensando no que Walther faria se a surpreendesse de novo.
Começou a discar com as mãos trêmulas. Por isso, discou errado. Pela segunda vez também. Começou a chorar. Havia tão pouco tempo! Procurando dominar-se, e com movimentos muito lentos, discou 110. Ouviu a campainha tocar e em seguida uma voz milagrosa de homem.
- Aqui fala o Socorro Urgente da Polícia.
Anna não conseguiu articular uma só palavra.
- Fala o Socorro Urgente da Polícia. Que deseja?
- Por favor! Mande alguém aqui! Estou em grande perigo! Mande alguém…
Walther apareceu diante dela, arrancando-lhe o telefone da mão e atirou-a na cama com um empurrão. Com a respiração entrecortada arrancou o fio do telefone da parede e voltou-se para Anna.
- As crianças… - murmurou ela. - O que você fez com as crianças?
Walther não respondeu.
A Divisão Central da polícia Criminal de Berlim ficava na Keithstrasse, 2832, um bairro de aspecto comum, em que havia tantos edifícios de apartamentos quanto de escritórios. O número de emergência do Departamento de Delitos Pessoal era dotado de um dispositivo automático que não permite que uma ligação fosse desfeita enquanto não fosse cortada eletronicamente pela mesa da polícia.
Graças a isso, era possível apurar a procedência de todos os telefonemas, por mais breve que tivesse sido a conversação. Esse dispositivo era um equipamento moderno de que o departamento se orgulhava. Cinco minutos depois do telefonema de Anna Gassner, o detetive Paul Lange entrou no gabinete do seu chefe, o major Wageman, tendo na mão um toca-fitas.
- Gostaria que escutasse isso - disse o detetive e apertou um botão. Ouviu-se uma voz metálica dizer: "Aqui fala o Socorro Urgente da Polícia. Que deseja?" Ouviu-se então uma voz de mulher, cheia de terror: "Por favor! Mandem alguém aqui! Estou em grande perigo! Mandem alguém…" Houve um estalo, depois um baque, e o telefone ficou mudo.
- Identificou o telefonema? - perguntou o major Wageman.
- Sabemos de que casa foi dado o telefonema - respondeu o detetive. -Qual é o problema então? Fale com a Central para mandar um carro imediatamente para lá.
- Quero a sua autorização primeiro - disse Lange, colocando uma folha de papel na mesa diante do major.
- Epa! - exclamou Wageman. - Tem certeza?
- Tenho, major.
Wageman olhou para a folha de papel. O telefone constava da lista em nome de Walther Gassner, chefe da divisão alemã da Roffe and Sons, uma das grandes empresas da Alemanha. Não havia necessidade de discutir as consequências. Só um idiota poderia desconhecê-las. Um passo em falso, e ambos poderiam ser demitidos.
- Muito bem - disse Wageman, depois de refletir um pouco. - Acho que você deve ir pessoalmente. E tenha muito cuidado, entendeu?
- Entendi, major.
A propriedade de Gassner ficava em Wannsee, um subúrbio de classe alta na parte sudoeste de Berlim. O detetive Lange seguiu pelo caminho mais longo, o da Hohenszollerndamm, e não pela Autobahn, para encontrar o tráfego livre. Atravessou o Clayalle e passou pelo edifício da CIA, escondido por trás de mais de um quilômetro de cercas de arame farpado.
Passou pelo quartel-general do exército americano e virou à direita para o que fora conhecido em outros tempos como Rodovia 1, a estrada mais longa da Alemanha, que ia da Prússia Oriental às fronteiras da Bélgica. À sua direita, ficava a Brück der Einheit, a Ponte da Unidade.
O detetive Lange saiu da grande estrada para as colinas cobertas de florestas de Wannsee. O lugar era muito bonito. Às vezes, aos domingos, o detetive Lange ia com a mulher para aqueles lados só para apreciarem as lindas casas. Encontrou o endereço que procurava pelo longo caminho que levava à casa de Walther Gassner. A dinastia Roffe era bastante poderosa para derrubar governos. Seguindo o conselho do seu chefe, o detetive Lange estava empenhado em ter o máximo de cuidado. Parou o carro à porta da casa de três andares, saltou, tirou o chapéu e tocou a campainha. Esperou. Havia o pesado silêncio de uma casa deserta.
Sabia que isso era impossível e tornou a tocar. Nada senão aquele silêncio completo e opressivo. Já estava pensando em ir tentar os fundos da casa quando a porta se abriu inesperadamente. Uma mulher apareceu. Era de meia-idade e de feições comuns. O detetive Lange pensou que fosse a governanta. Mostrou a sua carteira de identificação e disse:
- Gostaria de falar com a Sra. Walther Gassner. Tenha a bondade de dizer-lhe que é o detetive Lange.
- Sou a Sra. Gassner - disse a mulher.
O detetive Lange conseguiu esconder a sua surpresa. Tinha uma idéia inteiramente diferente da dona de uma casa como aquela.
- Recebemos na polícia ainda há pouco um chamado daqui.
Ela o olhou, com o rosto impassível e desinteressado. Lange tinha a impressão de que estava tratando erradamente do caso, não sabia por quê. Parecia-lhe que não estava levando em conta alguma coisa importante.
- O telefonema foi seu, Sra. Gassner?
- Foi, sim, mas tudo não passou de um engano.
Havia um tom surdo, forçado, na voz da mulher que não lhe agradava, principalmente quando o comparava com o apelo nervoso e angustiado pelo telefone.
- Só para constar dos nossos registros, que espécie de engano, senhora? Houve um instante de pequena hesitação. - Dei por falta de uma de minhas jóias e pensei que tivesse sido roubada. Mas já encontrei a jóia.
O número do telefone de emergência era para casos graves, assaltos, homicídio, agressão. Mas era preciso agir com cuidado.
- Está bem - disse o detetive, com vontade de entrar na casa e ver o que ela estava escondendo, mas nada mais podia fazer. - Muito obrigado, Sra. Gassner.
Desculpe o incômodo.
O detetive ficou frustrado e viu a porta ser fechada em sua cara. Voltou para o carro e foi embora. Atrás da porta, Anna se voltou. Walther disse com voz mansa:
- Saiu-se muito bem, Anna. Agora, vamos voltar lá para cima.
Ele se dirigiu para a escada. Anna pegou uma tesoura grande que levava escondida nas dobras do robe e cravou-a nas costas dele.
Capítulo 28
Roma. Domingo, 4 de novembro. Meio-dia.
Ivo Palazzi pensava que o dia estava prefeito para aquela visita à Villa d'Este, em companhia de Simonetta e das três belas filhas do casal. Enquanto passeava pelos fabulosos jardins do Tivoli, de braço dado com sua mulher, ao ver as meninas que corriam de uma fonte para a outra, ia pensando se Pirro Ligorio, que construíra o parque para a família D'Este, sonhara com a alegria que proporcionaria no futuro a milhões de pessoas.
A Villa D'Este ficava a nordeste de Roma, no alto dos montes Sabinos. Ivo já estivera muitas vezes ali, mas sempre sentia um prazer especial em ficar no ponto mais alto e olhar para as dezenas de fontes luminosas, cada qual artisticamente desenhada e diferente das outras.
Uma vez, Ivo tinha levado até ali Donatella e seus três filhos. Como tinha adorado o passeio! Essa lembrança entristeceu Ivo. Não vira Donatella, nem falara com ela, desde aquela horrível tarde no apartamento. Lembrava-se ainda das tremendas unhadas que recebera dela.
Sabia que remorso ela devia estar sentindo, ao mesmo tempo que desejava a volta dele. Não fazia mal que ela sofresse um pouco, como ele havia sofrido. Imaginava ouvir a voz de Donatella a dizer durante o passeio: "Vamos.
Por aqui, meninos". Ouviu a voz de Donatella tão claramente que chegava a parecer-lhe real. Ouviu-a dizer:
- Ande mais depressa, Francesco!
Voltou-se e viu Donatella atrás dele em companhia dos três filhos, encaminhou-se determinadamente para onde estavam ele, Simonetta e as três meninas. No primeiro momento, Ivo pensou que a presença de Donatella ali nos jardins do Tivoli fosse pura coincidência, mas logo que viu a expressão no rosto dela, ficou sabendo da verdade. A grande putana estava reunindo as duas famílias para arruiná-lo. Agiu então como um alucinado. Gritou para Simonetta:
- Quero mostrar-lhe uma coisa. Vamos andar depressa, todo mundo!
Levou então rapidamente a família pela sinuosa escadaria de pedra abaixo, empurrando quem encontrava no caminho para abrir passagem e de vez em quando lançando olhares desesperados para trás.
Donatella e as crianças já estavam chegando ao alto da escadaria. Ivo sabia que, se os meninos o vissem, tudo estaria perdido. Bastava que um deles gritasse "Papai!" e ele não teria outro remédio senão afogar-se numa das fontes. Apressou Simonetta e as filhas, sem lhes dar oportunidade sequer para respirar.
- Para onde vamos? - perguntou Simonetta. - Porquê esta correria?
- É uma surpresa. Você vai ver - disse Ivo, tentando mostrar-se alegre e despreocupado.
Arriscou outro rápido olhar para trás. Donatella e os três rapazes não estavam visíveis no momento. À frente, havia um labirinto, com um lance de degraus para baixo e outro para cima. Ivo escolheu o último.
- Vamos! - disse ele para as meninas. - Quem chegar primeiro lá em cima ganhará um prêmio!
- Estou exausta, Ivo - disse Simonetta. - Não podemos descansar um instante?
- Descansar? Nem me fale em descansar! Isso estragaria a supressa! Vamos!
Pegou Simonetta pelo braço e arrastou-a pelos degraus acima enquanto as três meninas corriam à frente. Ivo sentiu de repente falta de fôlego e pensou por um momento que seria bem feito para as duas mulheres que ele caísse ali fulminado por um ataque do coração. A verdade era que não se podia confiar nas mulheres. Precisavam obrigá-lo a fazer aquilo? Não o adoravam? Mas ele ia matar aquela cadela! Imaginou estrangular Donatella na cama. Ela estava nua e lhe pedia perdão. Sentiu então desejo ao invés de raiva.
- Não podemos parar agora? - perguntou Simonetta. - Não! Estamos quase chegando! Chegaram de novo ao alto. Ivo correu os olhos em torno e não viu Donatella e as crianças.
- Para onde você está nos levando, Ivo?
- Vocês vão ver. Sigam-me! - disse Ivo nervosamente, levando-as para a saída.
- Mas já vamos sair, papai? -perguntou Isabella, a filha mais velha. - Chegamos ainda há pouco…
- Vamos para um lugar melhor - disse Ivo, ofegante. Olhou para trás e viu Donatella, que subia a escada com os filhos. - Mais depressa, meninas.
Um momento depois, Ivo e uma de suas famílias estavam fora dos portões da Villa d'Este, correndo para o carro, que havia ficado na grande praça.
- Nunca vi você agir dessa maneira - murmurou Simonetta.
- Nunca agi assim.
Ligou o motor antes mesmo que as portas estivessem fechadas e saiu do estacionamento como se os demônios o estivessem perseguindo.
- Ivo! Ele bateu tranquilizadoramente na mão de Simonetta.
- Quero que todo mundo agora fique calmo. Como prêmio especial, vou levar vocês para almoçarem no Hassler.
Sentaram-se a uma mesa diante de uma grande janela, de onde se via a Escada Espanhola e, ao longe, em todo o seu esplendor, a Basílica de São Pedro.
Simonetta e as crianças gostaram muito do almoço. Ivo tinha a impressão que estava comendo papel. Suas mãos tremiam tanto que mal conseguia segurar o talher.
Não agüento mais, pensava ele. Não vou deixar que ela me arruíne a vida. Não tinha mais dúvidas de que era exatamente isso que Donatella pretendia fazer. A sorte estava lançada. A não ser que ele encontrasse um meio de dar o dinheiro a Donatella. Tinha de conseguir o dinheiro. Pouco importava como…
Capítulo 29
Segunda-feira, 5 de novembro. 18 horas.
No momento em que Charles Martel entrou em casa, viu que estava em dificuldades. Hélsne achava-se à espera dele em companhia dela estava Pierre Richaud, o joalheiro que fizera as imitações das jóias roubadas.
- Entre, Charles - disse Hélsne com um subtom na voz que gelou de terror o coração de Charles. -Creio que você e M. Richaud já se conhecem.
Charles olhou-a, calado, sabendo que qualquer coisa que dissesse poderia condená-lo. O joalheiro voltara os olhos para o chão e era evidente que não se sentia à vontade.
- Sente-se, Charles. Era uma ordem, e ele obedeceu. - O que está enfrentando agora, mon cher mari, é um processo criminal como ladrão. Roubou minhas jóias e substituiu-as por imitações baratas feitas por M. Richaud.
Charles descobriu, horrorizado, que estava urinando nas calças, coisa que não lhe acontecia desde garotinho. Ficou muito vermelho e teve vontade de sair dali para ir trocar de roupa. Não, o que ele queria mesmo era fugir dali e nunca mais voltar.
Hélsne sabia de tudo. Pouco importava como descobrira. Não havia escapatória e não havia piedade. Já era por demais aterrador que Hélsne tivesse descoberto o roubo.
Pior seria quando ela soubesse o motivo, quando soubesse que ele planejava tirar o dinheiro de Hélsne para fugir dela. O inferno em que vivia iria ter redobrada a violência.
Ninguém conhecia Hélsne mais que Charles. Era une sauvage, capaz de tudo.
O destruiria sem um momento de hesitação e o transformaria num clochard, num dos tristes vagabundos esfarrapados que dormem nas ruas de Paris. A vida dele se tornaria de repente uma merda.
- Pensou mesmo que poderia ter êxito com uma coisa tão imbecil? -perguntou Hélsne.
Charles ficou miseravelmente calado. Sentia as calças mais molhadas ainda, mas não tinha coragem de olhar para ela.
- Consegui convencer M. Richaud a contar-me tudo. - Convencer… Charles não queria nem pensar como. - Tenho cópias fotostáticas do recibo do dinheiro que você me roubou. Posso fazê-lo passar vinte anos na cadeia. - Fez uma pausa e acrescentou: - Se eu quiser. As palavras dela só serviam para agravar o pânico de Charles.
A experiência lhe demonstrava que a generosidade de Hélsne era ainda mais perigosa do que a cólera. Charles não tinha ânimo de olhar para ela. Não conseguia imaginar o que ela exigiria dele. Devia ser alguma coisa monstruosa. Hélsne voltou-se para Pierre Richaud.
- Não diga uma palavra sobre isto a ninguém até eu resolver o que fazer.
- Sem dúvida alguma, Madame Roffe-Martel, sem dúvida. E agora, posso…?
Hélsne assentiu, e Pierre Richaud deixou rapidamente a casa.
Hélsne viu-o sair e, em seguida voltou-se para o marido. Podia sentir o cheiro do medo dele. E de alguma coisa mais. Urina. Sorriu. Charles tinha-se urinado de medo.
Havia o adestrado bem. Estava contente com Charles. Era um casamento muito satisfatório. Ensinara Charles, e ele havia reagido muito bem. Era um produto dela. As inovações que ele introduzira na Roffe and Sons eram brilhantes, mas tinham partido todas da cabeça de Hélsne. Ela era uma Roffe. Era rica por direito próprio, e os seus casamentos anteriores lhe haviam dado ainda mais dinheiro. Mas não era por dinheiro que se interessava e, sim, pelo controle da companhia.
Tinha planejado usar as suas ações para comprar mais ações, as ações dos outros. Já conversara com eles sobre isso. Todos haviam concordado em cooperar com ela para a formação de um grupo minoritário. Mas Sam tinha sido um obstáculo aos seus planos e, depois, Elizabeth.
Hélsne, porém, não tencionava deixar que Elizabeth, ou fosse lá quem fosse, a impedisse de conseguir o que desejava. Charles ia conseguir tudo para ela. Se acontecesse algum contratempo, ele serviria de bode expiatório.
Naquele momento, entretanto, ele devia ser punido por sua pequena revolta.
Olhou para ele e disse:
- Ninguém me rouba, Charles. Ninguém. Você está liquidado. A não ser que eu resolva salvá-lo.
Charles estava sentado, desejava vê-la morta, apavorado diante dela. Hélsne se aproximou dele e quase lhe roçou o rosto com as coxas.
- Quer que eu o salve, Charles?
- Quero - disse ele, a voz rouca. Hélsne estava tirando a saia com os olhos faiscando, e ele pensou: Oh, não! Agora não! - Escute então o que lhe vou dizer. A Roffe and Sons é minha companhia. Quero o controle acionário dela.
Charles levantou os olhos para ela do fundo da sua angústia e disse:
- Sabe muito bem que Elizabeth não vai vender.
Hélsne tirou a blusa e as calças.
- Você deve então fazer alguma coisa com ela. Ou isso ou vinte anos de cadeia.
Não se preocupe, que eu lhe direi o que tem de fazer. Mas, primeiro, venha cá, Charles.
Capítulo 30 No dia seguinte, às dez horas da manhã, o telefone direto de Elizabeth tocou. Era Emil Joeppli. Ela lhe havia dado o número do telefone para que ninguém soubesse das conversas entre eles.
- Seria muito bom se eu pudesse vê-la - disse ele, numa voz em que a ansiedade era visível.
- Estarei aí dentro de quinze minutos.
Kate Erling mostrou surpresa quando viu Elizabeth sair do escritório com o casaco e a bolsa.
- Tem hora marcada com… - disse ela.
- Cancele tudo por hora - disse Elizabeth e saiu.
No Edifício de Desenvolvimento, um guarda examinou o cartão de Elizabeth.
- Ultima porta à esquerda, Senhorita Roffe.
Joeppli estava sozinho no laboratório e recebeu-a com entusiasmo.
- Terminei os últimos testes ontem à noite. Dá resultado. As enzimas tolhem inteiramente o processo de envelhecimento. Levou-a até uma gaiola onde havia quatro jovens coelhos irrequietos e animados de incessante vitalidade. Numa gaiola ao lado, viam-se também quatro coelhos, estes mais velhos e apáticos. - Esta é a geração número 500 a receber a enzima - disse Joeppli.
- Parecem sadios - disse Elizabeth, olhando para a gaiola.
- Este é o grupo de controle - disse Joeppli, sorrindo. - Os mais velhos estão à esquerda. Elizabeth olhou para os coelhos cheios de vida que se agitavam na gaiola e quase não pôde acreditar.
- Terão uma sobrevida três vezes maior que os outros. Quando se aplicasse essa relação aos seres humanos, os resultados seriam assombrosos. Elizabeth não podia dissimular seu interesse.
- Quando poderá começar a fazer experiências com seres humanos, Joeppli?
- Estou reunindo minhas anotações. Depois disso, preciso de mais três ou quatro semanas, no máximo.
- Não fale nisso com ninguém, sim?
- Claro que não, Senhorita Roffe. Estou trabalhando sozinho e redobrarei os cuidados.
Toda a tarde foi tomada por uma reunião de diretoria e tudo correu bem. Walther não apareceu. Charles ventilou novamente o assunto da venda das ações, porém Elizabeth opôs firmemente o seu veto. Depois disso, Ivo foi encantador como sempre, e Alec se mostrou mais cavalheiro do que nunca.
Charles parecia excepcionalmente preocupado. Elizabeth gostaria de saber porquê. Convidou todos a ficarem em Zurique e jantarem com ela. Tão displicentemente possível, Elizabeth mencionou os problemas constantes do relatório, esperando alguma espécie de reação, mas não notou nervosismo nem culpa. E todos os que podiam estar envolvidos no caso, à exceção de Walther, estavam sentados à mesa. Rhys não comparecera à reunião nem ao jantar.
Dissera a Elizabeth que tinha um caso urgente para resolver, e ela imaginou logo que se tratava de alguma mulher. Sabia que sempre que Rhys ficava trabalhando com ela até altas horas da noite, tinha de cancelar algum encontro. Certa vez, quando ele não conseguira avisar a tempo a mulher, esta apareceu no escritório. Era uma ruiva sensacional, com um corpo que fazia Elizabeth sentir-se humilhada. Estava furiosa e não procurava ocultar o desagrado que sentia. Rhys levou-a até o elevador e voltou.
- Desculpe, Elizabeth - disse ao voltar. Elizabeth não se conteve.
- Ela é encantadora. O que faz na vida?
- É médica, especializada em neurocirurgia.
Elizabeth riu, mas soube no dia seguinte que a ruiva era realmente médica especializada em neurocirurgia. Tinha havido outras, e Elizabeth sentiu-se mal em todos os casos. Gostaria de compreender Rhys melhor. Conhecia o Rhys Williams gregário e público. Queria conhecer o Rhys Williams íntimo, que vivia escondido sob o outro. Mais de uma vez, tinha pensado que quem deveria estar dirigindo a companhia era Rhys, em lugar de receber ordens dela. Gostaria muito de poder ser franca e ficar sabendo o que Rhys pensava disso.
Naquela noite, depois do jantar, quando os membros da diretoria já haviam se despedido para embarcar em comboios e aviões de volta para casa, Rhys entrou no escritório onde Elizabeth estava trabalhando com Kate Erling.
- Resolvi vir ajudar um pouco - disse ele simplesmente.
Não explicou onde tinha estado. Por que teria de me dar explicações?, pensou Elizabeth. Ele não me deve nenhuma justificativa. Todos começaram a trabalhar, e o tempo correu célere. Rhys estava inclinado sobre alguns papéis, examinando-os rapidamente, mas sem perder um só detalhe.
Encontrou várias falhas em contratos importantes, que não tinham sido notadas pelos advogados. Por fim, levantou-se, espreguiçou-se e olhou para o relógio.
- Ih! já passa de meia-noite! Estou cansado e tenho um encontro. Virei amanhã bem cedo para acabar de examinar estes contratos.
Elizabeth perguntou-se se o encontro seria com a neurocirurgiã ou com outra.
Conteve-se, porém. O que Rhys Williams fazia com a sua vida particular era assunto exclusivamente dele.
- Desculpe - disse ela. - Não sabia que já era tão tarde. Pode ir. Kate e eu ainda vamos ler alguns papéis.
- Até amanhã, então. Boa noite, Kate.
- Boa noite, Sr. Williams.
Elizabeth viu Rhys sair e voltou ao trabalho. Mas, um momento depois, pensava em Rhys de novo. Devia ter contado a ele os resultados alcançados por Emil Joeppli com o seu projeto. Gostaria de partilhar tudo com ele. Dentro em breve, talvez… À uma hora da madrugada, resolveram encerrar o trabalho.
- Mais alguma coisa, Senhorita Roffe? - perguntou Kate Erling.
- Não. Não há mais nada. Obrigada, Kate. Não se importe com a hora de entrada amanhã. Elizabeth levantou-se e só então percebeu como estava cansada.
- Muito obrigada. Amanhã à tarde, baterei tudo isso à máquina.
- Ótimo,Kate.
Elizabeth pegou o casaco e a bolsa e ficou à espera de Kate. Saíram juntas para o corredor e se encaminharam para o elevador privativo que estava com a porta aberta à espera. As duas entraram no elevador. Quando Elizabeth ia apertar o botão do térreo, ouviram o telefone tocar no escritório.
- Vou atender, Senhorita Roffe. Pode ir descendo - disse Kate Erling saindo do elevador.
Embaixo, o vigia do térreo olhou para o painel de controle dos elevadores quando uma luz vermelha se acendeu e o elevador privativo começou a descer. Isso significava que a Senhorita Roffe vinha descendo.
O vigia voltou-se para o chofer dela, que cochilava a um canto, com um jornal na mão.
- Sua patroa já vem.
O chofer levantou-se e espreguiçou-se. A campainha de alarme quebrou de repente o silêncio do vestíbulo. O vigia olhou para o painel de controle. A luz vermelha descia rapidamente, descontrolada, indicando a queda do elevador.
- Meu Deus! - exclamou o vigia. Correu para o painel dos elevadores e apertou o botão de emergência, para acionar os freios, mas a luz vermelha continuou sua descida veloz. O chofer tinha se aproximado, viu a fisionomia transtornada do vigia e perguntou:
- O que está havendo?
- Saia daqui! - gritou o vigia. - O elevador vai cair.
Correram para bem longe. O vestíbulo começava a vibrar com a velocidade do carro desgovernado dentro do poço, e o guarda desejou que a Senhorita Roffe não estivesse dentro do elevador. Quando o elevador passou pelo vestíbulo, veio do seu interior um grito de terror. Um instante depois, houve um estrondo no fundo do poço, e o edifício tremeu como se tivesse sido atingido por um terremoto.
Capítulo 31 O inspetor-chefe Otto Schmied, da Polícia Criminal de Zurique, estava sentado à sua mesa, respirando profundamente de acordo com os princípios da ioga, procurando acalmar-se e controlar a fúria que o dominava. Havia no processo policial regras tão básicas e evidentes que ainda ninguém julgara necessário incluí-las nos manuais da polícia.
Eram coisas naturais e simples como respirar, dormir e comer. Por exemplo, quando ocorria um acidente fatal, a primeira coisa que um detetive fazia, o primeiro movimento simples, óbvio, natural de um detetive que valia o pão que comia era visitar o local do acidente. Nada poderia ser mais elementar do que isso. Entretanto, bem ali na mesa do inspetor-chefe Otto Schmied estava um relatório do detetive Max Hornung que representava uma violação de todas as normas policiais conhecidas.
Eu só poderia esperar isso, pensou o inspetor. Por que estou tão surpreso? O detetive Hornung era uma pedra no sapato, a bête noire, a Moby do inspetor Schmied, que era um admirador entusiástico do livro Melville. O inspetor respirou de novo profundamente e deixou o ar escapar muito lentamente. Só então, mais calmo, apanhou o relatório de Max Hornung e leu-o de novo, desde o princípio.
"Relatório
Quarta-feira, 7 de novembro. Hora: 1:15 Assunto: Comunicado da mesa telefônica central de um acidente no edifício da administração da Roffe and Sons, na fábrica da Eichenbahn. Tipo do acidente:
Desconhecido. Causa do acidente: Desconhecida. Números de mortos e feridos:
Desconhecido.
Hora: 1:27 Assunto: Segundo comunicado da mesa telefônica, um acidente na Roffe and Sons. Tipo do acidente: Queda de elevador Causa do acidente: Desconhecida. Números de mortos e feridos: Uma mulher, morta.
Iniciei uma investigação limitada. À 1:35 da madrugada, obtive o nome do superintendente do edifício da administração da Roffe And Sons e soube dele o nome do primeiro arquiteto no prédio. 2:30 da madrugada. Encontrei o primeiro arquiteto, que estava comemorando o seu aniversário em La Puce. Deu-me o nome da firma que instalou os elevadores no prédio: Rudolf Schatz, A. G. Às 3:15 da madrugada, telefonei para a casa do Sr. Rudolf Schatz e pedi-lhe que procurasse imediatamente as plantas dos elevadores. Solicitei também os orçamentos, com os cálculos preliminares e as despesas totais. Solicitei ainda uma relação completa de todo o material mecânico elétrico empregado".
Neste ponto, o inspetor Schmied sentiu uma contração espasmódica na face direita. Respirou profundamente várias vezes e continuou a ler.
"6:15. Os documentos solicitados foram-me entregues aqui na chefatura pela esposa do Dr. Schatz. Depois de examiná-los, fiquei convencido do seguinte: a) não houve emprego de material inferior na construção dos elevadores; b) em vista da boa reputação da firma, deve ser excluída a hipótese de trabalho de montagem inferiores como a causa do acidente; c) as medidas de segurança de que foram dotados os elevadores foram satisfatórias; d) minha conclusão, portanto, é que a causa da queda do elevador não foi acidente”. (assinado) Max Hornung, detetive.
N.B. Como os meus telefonemas foram feitos de madrugada, é possível que a polícia receba queixas das pessoas a quem eu possa ter despertado."
O inspetor Schmied jogou o relatório com raiva para um canto da mesa. "Pessoas a quem possa ter despertado!" O inspetor-chefe tinha passado a manhã sob o fogo cruzado dos telefonemas das autoridades do governo suíço. O que ele pensava que a polícia era? Alguma Gestapo? Como se atrevera a acordar o presidente de uma respeitável empresa construtora e ordenou-lhe a entrega de documentos no meio da noite? Como tivera coragem de suspeitar da integridade de uma firma com a Rudolf Schatz? E assim por diante…
Mas o que era mais espantoso, o que era até incrível, era que o detetive Max Hornung só havia aparecido no local do acidente catorze horas depois da comunicação do mesmo! Quando lá chegara, a vítima já fora removida, identificada e autopsiada. Meia dúzia de outros detetives tinham examinado o local do acidente, interrogado testemunhas e redigido relatórios. Quando o inspetor-chefe Schmied acabou de ler o relatório do detetive Max Hornung, mandou chamá-lo ao seu gabinete.
O simples aspecto do detetive Max Hornung já bastava para enfurecer o inspetorchefe.
Max Hornung era um homem baixo, gordo e calvo. O rosto parecia o resultado de uma hora de divertimento de algum humorista. A cabeça era muito grande e as orelhas muito pequenas. A boca parecia uma ameixa comprida. Além de tremendamente míope, Max Hornung ficava dez centímetros abaixo da altura exigida pelos regulamentos da Polícia Criminal de Zurique.
Como se tudo isso não bastasse, ainda era arrogante. Havia unanimidade de sentimentos na polícia em relação a Max Hornung. Todos o odiavam. A mulher do inspetor-chefe perguntara um dia por que ele não demitia Hornung, e ele quase batera nela.
A razão pela qual Max Hornung continuava a fazer parte da polícia de Zurique era que ele, por si só, havia contribuído mais para a receita nacional da Suíça do que todas as fábricas de relógios e chocolates do país juntas. Max Hornung era contador, um verdadeiro gênio matemático, dotado de um conhecimento enciclopédico de assuntos fiscais, de um instinto infalível para as traças humanas e de uma paciência que fazia Jó chorar de inveja.
Max tinha sido funcionário do Betrug Abtelunh, o departamento encarregado de fiscalizar as fraudes financeiras, as irregularidades na venda de ações e as transações bancárias, e a entrada e saída de dinheiro do território suíço. Foi Max Hornung quem bloqueou o contrabando de dinheiro ilegal para a Suíça, desmascarando engenhosos golpes financeiros no valor de muitos bilhões de dólares, o que levara para a prisão uma dezena dos mais respeitáveis líderes do mundo dos negócios.
Pouco importava como o dinheiro fosse dissimulado, misturado, remisturado, mandado para as Seychelles, para aliás ser manejado e transferido por meio de uma série complexa de empresas fantasmas. No fim de tudo, Max Hornung apurava a verdade. Em suma, tornara-se o terror da comunidade financeira suíça. Acima de todas as coisas, os suíços consideravam sagrada a sua privacidade. Com Max Hornung à solta, não podia haver vida particular. O salário de Max como um cão de guarda financeiro era bem modesto.
Tinham tentado suborná-lo com um milhão de francos suíços numa conta numerada, um chalé em Cortina d'Ampezo, um iate e, em meia dúzia de oportunidades, belas mulheres, todas adolescentes. Em todos os casos, o suborno fora rejeitado, sendo as autoridades devidamente notificadas.
Max Hornung não dava importância ao dinheiro. Poderia tornar-se milionário se aplicasse a sua sagacidade financeira no mercado de ações, mas essa idéia nunca lhe ocorrera. Max Hornung só estava interessado numa coisa: surpreender aqueles que se desviavam do caminho da probidade financeira.
Havia outra ambição no fundo do coração de Max Hornung, e essa ambição foi uma bênção para a comunidade financeira. Por motivos que só ele poderia aprofundar, Max Hornung desejava ardentemente ser um detetive policial. Via-se como uma espécie de Sherlock Holmes ou de Maigret, seguindo infatigavelmente um labirinto de indícios até desentocar o criminoso do seu covil.
Quando um dos principais financeiros da Suíça teve por acaso conhecimento dessa ambição de Max Hornung, reuniu-se imediatamente com alguns amigos de prestígio e, quarenta e oito horas depois, Max recebeu a oferta de um lugar de detetive na polícia de Zurique.
Aceitou pressurosamente, sem quase acreditar na sua sorte. Toda a comunidade financeira da Suíça deu um suspiro de alívio e retomou as suas atividades ocultas. O inspetor-chefe Schmied não fora consultado sobre o caso. Recebera um telefonema do mais influente líder político da Suíça, fora instruído, e o assunto terminara ali.
Ou melhor, ali é que tudo havia começado. Para o inspetor-chefe, fora o começo de uma agonia que não mostrava o menor sinal de chegar ao fim. Tentara honestamente dissimular o seu ressentimento pela imposição de um detetive, por mais competente que fosse. Presumiu que devia haver fortes motivos políticos para um procedimento tão inusitado. Mas resolveu cooperar, na esperança de poder manobrar facilmente a situação.
A sua confiança foi abalada no momento em que Max Hornung se apresentou. A aparência do novo detetive era por si só suficientemente ridícula. Mas o que assombrou o inspetor Schmied foi a atitude de superioridade que se desprendia daquele farrapo de gente, era como se ele dissesse: "Bem, Max Hornung chegou! Descansem e não se preocupem mais com coisa alguma".
As idéias de fácil cooperação do inspetor desapareceram. Decidiu tomar uma atitude que deixasse Max Hornung encostado, transferindo-o de uma seção para outra e designando-o para serviços sem a menor importância. Hornung trabalhou na polícia técnica, na divisão de identificação, na seção de desaparecidos. Mas ele sempre acabava voltando.
Havia na polícia uma regra segundo a qual todo detetive tinha de dar plantão noturno no mínimo uma vez, de três em três meses. Invariavelmente, em todos os plantões de Max Hornung, acontecia alguma ocorrência importante, e, enquanto os outros detetives do inspetor Schmied se esfalfavam investigando pistas, Max resolvia o caso. Era de exasperar. Não sabia absolutamente nada de processo policial, criminologia, medicina legal, balística ou psicologia criminal, coisas em que os outros detetives eram competentemente treinados, mas apesar disso, vivia resolvendo casos que desafiavam os outros.
O inspetor-chefe Schmied tinha de chegar à conclusão de que Max Hornung era o homem mais sortudo do mundo. Na realidade, a sorte nada tinha que ver com o caso. O detetive Max Hornung esclarecia os casos policiais da mesma maneira que o contador Max Hornung desmascarava centenas de planos engenhosos para fraudar os bancos e o governo.
Max Hornung tinha uma mente de tacanha, por sinal. Precisava apenas de um fio solto, um pequeno fragmento que não se ajustasse ao resto da trama. Começava então a desenrolá-lo até que o plano que o criminoso considerava brilhante começasse as estourar nas costuras.
O fato de Max Hornung possuir uma memória fotográfica enlouquecia os seus colegas. Max podia se lembrar instantaneamente de qualquer coisa que tivesse visto, lido ou ouvido.
Outra circunstância que depunha contra ele, se mais alguma coisa fosse necessária, referia-se à sua conta de despesas, que era uma fonte de perplexidade e confusão para todo o corpo de detetives. Na primeira vez em que ele apresentara uma conta de despesas, o Oberleutnant chamou-o ao seu gabinete e dissera cordialmente:
- Notei alguns erros de cálculo nas suas contas, Max.
Isso equivalia acusar um campeão de xadrez a ter sacrificado a sua dama por descuido.
- Erros nas minhas contas?
- Sim, Max. Por exemplo, transporte através da cidade, oitenta centavos. Volta, oitenta centavos. O mínimo que gastaria com um táxi seria trinta e quatro francos de ida e outro de volta.
- Exatamente. Foi por isso que tomei o ônibus.
- Ônibus? - perguntou o Oberleutnant, espantado.
Nenhum dos detetives andava de ônibus quando estava investigando algum caso.
Nunca se ouvira falar nisso. A única observação que lhe ocorreu fazer foi a seguinte:
- Muito bem, Hornung, Não incentivamos desperdícios ou extravagâncias na polícia. Mas temos uma margem para despesas bem razoável. Outra coisa. Você trabalhou durante três dias neste caso. Esqueceu-se de incluir as despesas com suas refeições.
- Está enganado, Herr Oberleutnant. De manhã, tomo apenas café. Preparo o almoço em casa e sempre o levo numa marmita. O jantar dos três dias está relacionado aqui.
E estava. Três jantares por dezesseis francos. Devia ter comido em alguma cantina do Exército de Salvação. O Oberleutnant disse friamente:
- Detetive Hornung, este departamento existia havia mais de cem anos quando o Sr. veio trabalhar aqui, e continuar a existir pelo menos mais cem anos depois que sair.
Há aqui certas tradições que devem ser observadas. Pense, pelo menos, nos seus colegas e faça uma revisão dessa prestação de contas.
- Certo, senhor. Sinto muito que não tenha sido correto.
- Não tem importância. Afinal de contas, é novo aqui.
Meia hora depois, Max Hornung voltava com a prestação de contas revista.
Diminuíra as despesas feitas em cerca de três por cento. Naquele dia de novembro, o inspetor-chefe Schmied tinha nas mãos o relatório do detetive Max Hornung, o qual se achava de pé diante dele.
Hornung estava com um terno azul-marinho, sapatos castanhos e meias brancas.
Apesar de suas resoluções e dos seus exercícios respiratórios, o inspetor-chefe Schmied falava aos gritos:
- Você estava de plantão quando foi recebida a comunicação. Cabia-lhe investigar o acidente, você só chegou catorze horas depois. Durante esse tempo, toda a polícia da Nova Zelândia podia ter vindo até aqui e voltado, depois de investigar o caso.
- Não inspetor! Está enganado. O tempo de uma viagem da Nova Zelândia até aqui em um avião a jato é de…
- Ora, cale a boca! - Schmied passou a mão pelos cabelos, pensando no que iria dizer àquele homem. Não era possível insultá-lo, nem tentar argumentar com ele. Era apenas um pobre imbecil de sorte. - Não posso tolerar incompetência no meu departamento, Hornung. Quando os outros detetives chegaram aqui e viram a comunicação, foram imediatamente para o local do acidente. Chamaram uma viatura, levaram o corpo para o necrotério, depois de identificá-lo… Em suma, Hornung, fizeram tudo o que um bom detetive tinha de fazer. Enquanto isso, você esteve calmamente sentado, acordando pelo telefone metade dos homens mais importantes da Suíça…
- Pensei que…
- Não é preciso pensar. Passei a manhã toda pedindo desculpas pelo telefone por sua causa.
- Eu tinha de saber…
- Retire-se, Hornung!
- Está bem. Posso ir ao enterro hoje de manhã?
- Pode, sim!
- Obrigado, inspetor! Eu…
- Pode ir!
Só meia hora depois, o inspetor-chefe Schmied conseguiu respirar normalmente.
Capítulo 32 A capela funerária em Shilfeld estava repleta. Era um velho edifício de pedra e mármore, com salas de velório e um crematório. Cerca de duas dezenas de diretores e empregados da Roffe and Sons ocupava a primeira fila de cadeiras. Mais ao fundo, encontrava-se pessoas amigas, representantes da comunidade e repórteres.
Na última fila, estava o detetive Hornung, pensando em como a morte era uma coisa ilógica. O homem atingira seu auge e então, quando tinha o máximo para viver e para dar, morria. Não podia haver maior desperdício e ineficiência.
O caixão era de mogno e estava coberto de flores. Mais desperdício, pensou Hornung. O caixão estava fechado, e ele compreendia o motivo. Um ministro estava falando com uma voz de dia de Juízo Final - "…a morte no meio da vida, nascida do pecado, das cinzas"-, mas Max não prestava muita atenção às palavras. Observava as pessoas presentes. - "O Senhor deu a vida e o Senhor a tomou"-, e as pessoas começaram a levantar-se e encaminhar-se para a saída. A cerimônia estava encerrada.
Max permaneceu próximo à porta e, quando um homem e uma mulher se aproximaram dele, deu um passo em direção à mulher e disse:
- Senhorita Elizabeth Roffe? Poderia dar-me uma palavra?
O detetive Max Hornung estava sentado com Elizabeth Roffe e Rhys Williams em um reservado de uma confeitaria em frente a capela. Pela vitrina, viram o caixão ser levado para um cofre cinzento. Elizabeth olhou para o outro lado.
- Que deseja? - perguntou Rhys. - A Senhorita Roffe já prestou declarações à polícia. O detetive Max Hornung disse:
- É o Sr. Williams, não é? Há apenas alguns detalhes que desejo verificar.
- Não pode deixar para depois? A Senhorita Roffe ainda está abalada com o que aconteceu… Elizabeth tocou no braço de Rhys.
- Não tem importância, desde que eu possa ajudar em alguma coisa. Que deseja saber, detetive Hornung?
Max olhou para Elizabeth e pela primeira vez em sua vida sentiu lhe fugirem as palavras. As mulheres eram tão estranhas para Max, como seres de outro planeta. Eram ilógicas, imprevisíveis, sujeitas a reações mais emocionais que racionais. Não era possível contar com elas. Max tinha poucos impulsos sexuais, pois era orientado pelo cérebro, mas podia apreciar a lógica exata do sexo. Era a construção mecânica de partes móveis que se ajustavam num todo coordenado e funcional que lhe interessava. Era essa a poesia do amor para Max. Era dinamismo puro, e Max notava que os poetas em geral não viam isso. As emoções eram imprecisas e incertas, um desperdício de energia capaz de mover um grão de areia, enquanto a lógica podia impulsionar o mundo. O que espantava Max era o fato de ele se sentir à vontade com Elizabeth. Isso o inquietava.
Nenhuma mulher até então agira sobre ele daquela maneira. Ela não parecia encará-lo como um homem frio e ridículo, como faziam as outras.
Procurou desviar os olhos a fim de concentrar-se.
- Tinha o hábito de trabalhar até altas horas da noite, Senhorita Roffe?
- Quase sempre.
- Até que horas?
- Variava. Às vezes, até às dez horas. Às vezes, até à meia-noite ou um pouco mais.
- Quer dizer, então, que era costume seu? As pessoas que a cercam tinham conhecimento disso? Elizabeth o olhou, um tanto confusa, e murmurou:
- Creio que sim.
- Na noite em que o elevador caiu, trabalhou com o Sr. Williams e Kate Erling até tarde?
- Sim.
- Mas não saíram ao mesmo tempo?
- Eu saí mais cedo. Tinha um compromisso - disse Rhys.
Max olhou-o por um momento e então voltou-se de novo para Elizabeth.
- A senhorita saiu do escritório quanto tempo depois do Sr. Williams?
- Seguramente uma hora.
- Saiu em companhia de Kate Erling?
- Saí. Pegamos os casacos e bolsas e fomos para o corredor. O elevador já estava lá, à nossa espera. O elevador direto e privativo.
- Que aconteceu então?
- Quando entramos no elevador, o telefone do escritório tocou. Kate Erling disse que ia atender. Ela já ia saindo, quando me lembrei que havia pedido um telefonema para o exterior, cuja ligação não se completara. Então eu disse a ela que atenderia. - Elizabeth parou, os olhos subitamente cheios de lágrimas. - Eu saí do elevador. Ela me perguntou se queria que esperasse, e eu lhe disse que não precisava. Ela apertou o botão do térreo e eu voltei ao escritório. Quando estava abrindo a porta, ouvi o barulho…
Não pôde continuar, com a voz embargada pelas lágrimas. Rhys olhou para Max Hornung com o rosto cheio de indignação.
- Não acha que já basta? O que significa tudo isso?
Max Hornung teve vontade de dizer que tudo isso queria dizer crime de morte.
Alguém tinha planejado matar Elizabeth Roffe. Max ficou ali concentrando-se e tentando se lembrar das informações que obtivera nas últimas quarenta e oito horas sobre a Roffe and Sons. Era uma empresa profundamente comprometida, forçada a pagar indenizações astronômicas, solapada por uma publicidade negativa. Perdia clientes e devia quantias enormes aos bancos, que estavam ficando impacientes. O presidente, Sam Roffe, que detinha o controle acionário, havia morrido em um acidente nas montanhas, embora fosse um excelente alpinista. O controle acionário havia passado para a filha dele, Elizabeth, que quase morrera em um acidente com um jipe na Sardenha e escapara havia pouco de morrer em um elevador, o qual passara pouco antes por uma revisão periódica. Alguém estava empenhado em matar. O detetive Max Hornung devia ser no momento um homem feliz.
Encontrara um fio solto. Mas tinha conhecido Elizabeth Roffe, e ela já não era simplesmente um nome, uma equação num enigma matemático. Era uma pessoa muito especial, e Max sentia necessidade de protegê-la.
- Perguntei o que significa isso - disse Rhys.
- Nada - disse vagamente Max. - Rotina da polícia apenas. Agora, com licença.
Tinha um trabalho urgente para fazer.
Capítulo 33 O inspetor-chefe Schmied tivera uma manhã cheia. Tinha havido uma manifestação política diante do escritório das Linhas Aéreas Ibéria e três homens haviam sido detidos para averiguações. Houvera um incêndio de origem suspeita numa fábrica de papel em Brunau. Uma moça fora estuprada no parque de Platspitz. Tinha havido um roubo com vitrinas quebradas em Guebelin e outro em Grima, perto do Baur-au-Lac. E, como se não bastasse, o detetive Max Hornung estava de volta, com uma das suas hipóteses idiotas. O inspetor-chefe recomeçou a abanar-se furiosamente..
- Os cabos do elevador foram cortados - disse Max. - Quando o elevador caiu, todos os dispositivos de segurança pifaram. Parece…
- Vi os laudos dos técnicos, Hornung. Tudo foi resultado de um desgaste normal dos cabos e dos dispositivos.
- Não, inspetor. Estudei minuciosamente as especificações. Tudo devia durar mais cinco ou seis anos. - Schmied sentiu uma contração no rosto. - Que está querendo dizer?
- Alguém sabotou o elevador.
- Por que iria fazer isso?
- É o que eu gostaria de descobrir.
- Quer voltar à Roffe and Sons?
- Não, inspetor. Quero ir a Chamonix.
A cidade de Chamonix fica sessenta e cinco quilômetros a sudeste de Genebra, mil e cinqüenta metros acima do nível do mar, no departamento francês de Haute-Savoie, entre o maciço monte Branco e a cadeia de Aiguille Rouge, com uma das vistas mais deslumbrantes do mundo.
O detetive Max Hornung estava completamente indiferente ao cenário quando desembarcou do combóio na estação de Chamonix, carregando uma velha maleta barata.
Recusou um táxi e dirigiu-se a pé para a delegacia de polícia, um pequeno prédio da praça principal, no centro da cidade. Max entrou, sentiu-se no mesmo instante à vontade, confiante na camaradagem existente entre os polícias do mundo inteiro. Era um deles. O sargento francês olhou de sua mesa e perguntou:
- Será que posso ajudar?
- Sim.- respondeu Max, todo alegre. Começou então a falar. Max atacava todas as línguas estrangeiras da mesma forma. Abria caminho através da selva impenetrável dos verbos regulares, pretéritos e particípios, usando a sua língua materna como um facão.
Enquanto ele falava, a expressão no rosto do sargento se transformou de confusão em incredulidade. O povo francês levava centenas de anos desenvolvendo línguas, abóbadas palatinas e laringes para formar a gloriosa musicalidade da língua francesa. Aquele homem diante dele conseguira transformá-la numa série de ruídos horríveis e incompreensíveis. Afinal, o sargento não agüentou mais. Interrompeu-o e perguntou:
- Afinal, o que está querendo dizer?
Max respondeu:
- Não compreendeu? Estou falando francês.
O sargento curvou-se sobre a mesa e perguntou com sincera curiosidade.
- Você está falando francês agora?
Max pensou que aquele idiota não sabia sequer falar a sua própria língua. Tirou a sua carteira e passou-a às mãos do sargento. Este a examinou com todo cuidado, olhando de vez em quando para Max. Era impossível crer que o homem que estava à sua frente fosse um detetive. Devolveu por fim a carteira a Max e perguntou:
- Em que posso servi-lo?
- Estou investigando um acidente que houve aqui há dois meses. O nome da vítima era Sam Roffe.
- Lembro-me desse caso - disse o sargento.
- Gostaria de falar com alguém que pudesse me dar alguma informação sobre o acidente.
- Deve procurar a organização de socorros aos alpinistas. O nome exato é Société Chamoniarde de Secours en Montagne. Fica no Place du Mont Blanc. O número do telefone é 531689. Pode obter também alguma informação na clínica. Fica na Rue du Valai, telefone 530182. Espere que eu escrevo tudo.
- Não preciso - disse Max. - Société Chamoniarde de Secours en Montagne, Place du Mont Blanc, 531689. A clínica é na Rue du Valai, 530182.
O sargento ainda parecia espantado muito tempo depois de Max ter saído.
A Société Chamoniarde de Secours estava sob a guarda de um moço moreno e de aspecto atlético, sentado a uma velha mesa de pinho. Ele viu Max entrar e no mesmo instante pensou que era bem pouco provável que aquele homem esquisito pretendesse escalar alguma montanha.
- Que deseja?
- Sou o detetive Max - disse, mostrando a sua carteira.
- Em que posso servi-lo, detetive Hornung?
- Estou investigando a morte de um homem chamado Sam Roffe.
- Pois não. Eu gostava muito do Sr. Roffe. Foi um acidente muito triste.
- Estava presente quando ocorreu o acidente?
- Não.Subi com minha turma de socorro logo que recebi os sinais, mas infelizmente nada mais pudemos fazer. O corpo do Sr. Roffe tinha caído em uma ravina profunda. Nunca mais será encontrado.
- Como foi que tudo aconteceu?
- O grupo era composto de quatro alpinistas. O Sr. Roffe e o guia eram os últimos.
Segundo me parece, estavam atravessando uma morena glacial. O Sr. Roffe escorregou e caiu.
- Não estava usando equipamento de proteção?
- Estava, mas a corda arrebentou.
- É comum acontecer uma coisa dessas?
- Só aconteceu uma vez - disse o homem com um sorriso por sua gracinha, mas viu a cara do detetive e apressou-se em acrescentar: - Os alpinistas experientes sempre verificam o seu equipamento cuidadosamente antes de qualquer subida, mas, ainda assim, acontecem acidentes.
Max pensou por um momento.
- Gostaria de falar com o guia de Sam Roffe.
- O guia habitual do Sr. Roffe não pôde subir nesse dia.
- Por quê?
- Se não me engano, estava doente. Outro guia tomou o seu lugar.
- Sabe como se chama?
- Se esperar um pouco, posso lhe dizer. O homem desapareceu numa sala contínua e voltou minutos depois, com um papel na mão. - Aqui está o nome do guia:
Hans Bergmann.
- Onde posso encontrá-lo?
- Ele não é daqui. Mora numa aldeia chamada Lesgets. Fica a cerca de sessenta quilômetros daqui.
Antes de Max sair de Chamonix, passou pela portaria do Kleine Scheidegg Hotel e falou com a recepcionista.
- Estava trabalhando quando Sam Roffe esteve hospedado aqui?
- Estava, sim. Foi uma coisa triste aquele acidente.
- O Sr. Roffe estava sozinho?
- Não. Estava com um amigo.
- Um amigo? Tem certeza?
- Tenho. O Sr. Roffe fez as reservas dos quartos para os dois.
- Pode me dizer o nome desse amigo?
- Sem dúvida. - Abriu o livro de registro, virou algumas páginas, Correu o dedo e disse: - Aqui está…
Max levou quase três horas para chegar a Lesgets no Volkswagen, o carro mais barato que encontrou para alugar em Chamonix. Quase passou reto.
Não era sequer uma aldeia. Algumas lojas, uma cabana alpina e um armazém com uma bomba de gasolina. Max parou o carro e entrou na cabana. Havia meia dúzia de homens conversando diante da lareira acesa, mas a conversa cessou no momento que ele entrou.
- Desculpem, mas quero falar com o Sr. Hans Bergnann.
- Com quem?
- Com Hans Bergnann, o guia. Ele está na aldeia.
Um velho com um rosto bastante enrugado cuspiu na lareira e disse:
- Devem ter feito uma brincadeira com o senhor. Nunca ouvi falar de nenhum Hans Bergnann.
Capítulo 34 Era o primeiro dia em que Elizabeth ia ao escritório depois da morte de Kate Erling, uma semana antes. Entrou nervosamente no vestíbulo do térreo, respondendo mecanicamente aos comprimentos do porteiro e do guarda. Viu, nos fundos, operários que consertavam as portas destruídas do elevador. Pensou em Kate Erling e imaginou o terror que ela devia ter sentido, quando caiu para a morte da altura de doze andares.
Elizabeth sabia que nunca mais seria capaz de entrar naquele elevador.
Quando entrou no escritório, a sua correspondência já tinha sido aberta por Henriette, a nova secretária, que havia colocado tudo bem arrumado em cima de sua mesa.
Elizabeth passou os olhos rapidamente por tudo, escrevendo notas para as respostas e encaminhando os casos para vários departamentos. Embaixo, havia um grande envelope fechado com uma observação: "Elizabeth Roffe - Pessoal". Abriu-o com os olhos esbugalhados. Preso à fotografia, havia o seguinte bilhete: "Este é meu belo filho John. Foram as drogas que provocaram isso. Vou matá-la".
Elizabeth deixou cair o bilhete e a fotografia e percebeu que suas mãos estavam trêmulas. Henriette entrou na sala com alguns papéis.
- Aqui estão alguns papéis para serem assinados -disse ela, mas viu o rosto de Elizabeth e perguntou: - Aconteceu alguma coisa?
- Por favor, peça ao Sr. Williams para vir até aqui.
A Roffe and Sons não podia ser responsável por uma coisa tão horrível quanto aquela.
- A culpa foi nossa - disse Rhys. -Uma partida de medicamentos com rótulos errados. Conseguimos recolher quase tudo, mas em alguns casos não foi possível…
- Há quanto tempo aconteceu isso?
- Há quase quatro anos.
- Quantas pessoas foram prejudicadas?
- Cerca de cem. Todas foram indenizadas. Nem todos os casos foram tão graves assim. Escute, Elizabeth, temos o máximo cuidado. Todas as precauções de segurança são tomadas, mas, afinal, as pessoas são humanas e podem errar.
Elizabeth continuava a olhar para a fotografia.
- Isso é horrível!
- Não deviam ter deixado esta carta chegar às suas mãos. - Passou a mão pelos bastos cabelos pretos e acrescentou: -A ocasião é horrível, mas devo dizer-lhe que temos problemas mais importantes do que este..
- Não acredito, mas pode falar.
- A Administração Federal de Drogas acaba de chegar a uma decisão contra nós no caso sprays. Dentro de dois anos, os produtos com aerossol serão inteiramente proibidos.
- O que significa isso para nós?
- Não poderia ser pior. Teremos de fechar meia dúzia de fábricas através do mundo e perder um dos nossos melhores produtos.
Elizabeth pensou em Emil Joeppli e no medicamento que ele estava preparando, nada disse a Rhys.
- Que mais?
- Já leu os jornais?
- Não.
- A esposa de um ministro belga, Madame Van den Logh, tomou alguns comprimidos de Benexan.
- É um dos nossos medicamentos?
- Sim. Um anti-histamínico. É contra-indicado para as pessoas portadoras de hipertensão. O rótulo contém a advertência. Ela tomou os comprimidos, apesar disso.
- E que foi que aconteceu?
- Está em coma. Talvez não escape. Os jornais salientam o fato de que se trata de um produto nosso. Há cancelamento de encomendas em todo mundo. A Administração Federal de Drogas já nos avisou que vai iniciar uma investigação, mas isso durará no mínimo um ano. E enquanto não acabarem, poderemos continuar a vender o medicamento.
- Quero que ele seja retirado do mercado - disse Elizabeth.
- Não há motivo para fazer isso. É um remédio muito bom para…
- Já teve efeitos prejudiciais em outras pessoas?
- Centenas de milhares de pessoas foram beneficiadas - disse Rhys. -Estou lhe dizendo que é um dos nossos melhores medicamentos.
- Não respondeu à minha pergunta.
- Creio que houve alguns casos isolados, mas…
- Quero que seja retirado do mercado. Imediatamente.
Rhys ficou alguns instantes calado, procurando dominar a sua irritação. Por fim, perguntou:
- Quer saber quanto isso vai custar à companhia?
- Não.
- Está bem. Até agora só soube das boas notícias. As más: os banqueiros querem nova reunião com você. Agora mesmo. Querem receber o dinheiro.
Elizabeth ficou no escritório sozinha, pensando no menino mongolóide e na mulher que estava em coma porque tomara um remédio produzido pela companhia. Ela bem sabia que tragédias dessa espécie atingiam outras companhias de produtos farmacêuticos e não apenas a Roffe and Sons. Os jornais publicavam quase diariamente casos semelhantes, mas a reação dela nunca fora tão forte. Sentia-se pessoalmente responsável. Ia ter uma conferência com os chefes dos departamentos para ver a possibilidade de se reforçarem as medidas de segurança. "Este é meu belo filho John."
"Madame Van den Logh está em coma e pode morrer." "Os banqueiros querem receber o dinheiro." Sentia-se atordoada, como se tudo começasse a desabar ao mesmo tempo sobre sua cabeça. Pela primeira vez, Elizabeth duvidou seriamente de que fosse capaz de enfrentar tudo aquilo. As cargas eram muito pesadas e estavam se acumulando com muita rapidez. Voltou-se um pouco na cadeira para olhar na parede o retrato do velho Samuel. Parecia tão capaz e tão seguro! No entanto, ela sabia das dúvidas, das incertezas e dos desesperos que o haviam acometido. Mas ele havia superado tudo. Ela conseguiria sobreviver também. Era uma Roffe.
Notou que o retrato estava ligeiramente inclinado. Devia ser consequência da queda do elevador. Levantou-se para endireitá-lo. No momento em que tocou no retrato, o gancho que o prendia à parede se soltou e o quadro caiu. Elizabeth nem olhou para ele.
Estava com os olhos fixos na parede. No lugar onde estivera o retrato, havia um pequeno microfone preso à parede.
Eram quatro horas da madrugada e Emil Joeppli ainda estava trabalhando.
Nos últimos tempos, costumava trabalhar até muito tarde. Ainda que Elizabeth Roffe não tivesse estabelecido um prazo para a conclusão dos seus trabalhos, Joeppli sabia como o seu projeto era importante para a companhia e queria acabar o mais depressa possível. Tinha ouvido rumores alarmantes sobre a situação da Roffe and Sons.
Queria fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para ajudar a companhia que havia sido muito boa para ele. Recebia um bom trabalho e gozava de inteira liberdade.
Gostava muito de Sam Roffe, e gostava da filha dele também. Elizabeth Roffe nunca saberia disso, mas aquelas horas extras de trabalho eram um presente especial para ela. Debruçou-se sobre a sua mesa, conferindo os resultados de sua última experiência. Eram mais promissoras do que ele havia esperado. Ficou sentado, em profunda concentração. Não tomava conhecimento do mau cheiro dos animais engaiolados no laboratório, da unidade intensa da sala ou do adiantado da hora.
A porta se abriu, e Sepp Nolan, o vigia noturno, entrou. Nolan detestava aquele serviço. Dava-lhe arrepios andar à noite pelos laboratórios experimentais desertos. Os cheiros dos animais presos provocavam-lhe engulhos. Nolan gostaria de saber se os animais ali mortos tinham alma e voltavam para aterrorizar os corredores. Devia requerer um pagamento extra para aturar os fantasmas dos bichos. Todo mundo no edifício já fora para casa há muito tempo. Só o cientista louco ainda estava ali entre seus bichos.
- Vai demorar muito ainda, doutor? - perguntou Nolan.
Joeppli levantou a vista, tomando pela primeira vez conhecimento do vigia.
- O quê?
- Se vai ficar aqui ainda, posso ir buscar uma sanduíche ou o que quiser. Estou indo à cantina.
- Só café - murmurou Joeppli, voltando aos seus papéis.
- Vou fechar a porta principal para ir à cantina. Não demoro.
Joeppli nem o ouviu. Dez minutos depois, a porta do laboratório foi de novo aberta, e alguém disse:
- Está trabalhando até bem tarde, Emil.
Joeppli levantou a vista, espantado. Quando viu quem era, ergueu-se da cadeira.
De certo modo, era uma honra que aquele homem tivesse ido vê-lo.
- É preciso, chefe - murmurou.
- O projeto da Fonte da juventude é muito secreto, não é?
Emil Joeppli hesitou. A Senhorita Roffe havia dito que ninguém devia saber dos seus trabalhos. Mas, sem dúvida, essa determinação não podia estender-se àquela pessoa. Fora aquele homem o responsável por sua entrada na companhia. Por isso, sorriu e disse:
- Sim, senhor. Muito secreto.
- Ótimo. Continue assim. Como vai tudo?
- Magnificamente.
O visitante se encaminhou para uma das gaiolas de coelhos, e Emil Joeppli o acompanhou.
- Quer que lhe explique alguma coisa?
- Não é preciso - disse o homem, sorrindo. - Estou mais ou menos a par de tudo.
Quando o visitante se voltou para sair, roçou o braço em um prato vazio de rações que estava em uma prateleira e o prato caiu no chão.
- Desculpe.
- Pode deixar que eu apanho - disse Joeppli. Quando se abaixou para pegar o prato, sentiu a parte posterior da cabeça explodir numa chuva rubra e a última coisa de que teve consciência foi de que o chão subia ao seu encontro.
O toque insistente da campainha do telefone acordou Elizabeth. Sentouse na cama, tonta de sono, e olhou para o relógio digital na mesinha. Cinco horas da manhã.
Pegou o telefone. Uma voz muito nervosa disse:
- Senhorita Roffe? É o guarda de segurança aqui da fábrica. Houve uma explosão em um dos laboratórios, que ficou inteiramente destruído.
- Houve alguma vítima? - perguntou Elizabeth, já completamente acordada.
- Houve, sim, senhora. Um dos cientistas morreu queimado.
Elizabeth não precisava perguntar o nome dele.
Capítulo 35 O detetive Max Hornung estava pensando. A sala dos detetives ressoava o barulho das máquinas de escrever, de vozes empenhadas em discussões, de campainhas de telefone, mas Hornung não ouvia nada disso. Estava pensando no contrato social da Roffe and Sons, tal como fora estabelecido pelo velho Samuel para manter a companhia sob o controle da família. Era um dispositivo engenhoso mas também muito perigoso. Fazia Hornung lembrar-se da tontine, o plano italiano de seguros concebido pelo banqueiro Lorenzo Tonti, em 1695.
Todos os sócios da tontine entravam com a mesma quota de dinheiro. Quando um deles morria, os sobreviventes herdavam a sua quota. Isso proporcionou um forte motivo para a eliminação dos outros sócios.
Na Roffe and Sons estava acontecendo a mesma coisa. Era uma tentação muito grande fazer as pessoas herdarem ações no valor de muitos milhões e, ao mesmo tempo, impedi-las de vender, a menos que houvesse acordo unânime.
Max sabia que Sam Roffe não havia concordado com a venda. Estava morto.
Elizabeth Roffe também não havia concordado com a venda. E já escapara duas vezes da morte. Eram acidentes demais. O detetive Max Hornung não acreditava em acidentes.
Foi falar com o inspetor-chefe Schmied.
O inspetor escutou o que Hornung lhe disse sobre o acidente de alpinismo de Sam Roffe e resmungou:
- Está bem. Houve uma confusão com o nome do guia. Dificilmente isso pode constituir um indício de homicídio, pelo menos no meu departamento. O detetive retrucou pacientemente:
- Na minha opinião, não é apenas isso. A Roffe and Sons está envolvida em graves problemas internos. Talvez alguém tivesse pensado que o afastamento de Sam Roffe poderia resolver esses problemas.
Schmied encarou firmemente o detetive Hornung. Decerto não havia em tudo aquilo senão as hipóteses malucas do detetive. Mas a perspectiva de ver o detetive Max Hornung fora das suas vistas era uma coisa que o enchia de alegria. A ausência dele levantaria o moral de todo o departamento. E havia outro ponto importante a levar em conta. Hornung pretendia investigar nada menos que a poderosa família Roffe. Em circunstâncias normais, teria ordenado que Hornung não se aproximasse nem em pensamento dos Roffes. Entretanto, se Hornung os irritasse - e isso não poderia deixar de acontecer -, tinham bastante prestígio para expulsá-lo da polícia. E ninguém teria qualquer acusação contra o inspetor-chefe Schmied. Não havia forçado de maneira alguma o pequeno detetive. Em vista de tudo isso, disse a Max Hornung.
- Fica encarregado do caso. Pode levar o tempo que julgar necessário.
- Muito obrigado - disse Max, todo feliz.
Quando Max ia pelo corredor em direção à sua sala, encontrou-se com o médicolegista.
- Posso explorar a sua memória um minuto, Hornung?
- Como assim?
- A patrulha acaba de pescar um corpo na água. É uma mulher. Quer olhá-la um instante?
- Está bem.
Não era uma tarefa que agradasse a Max, mas ele achava que aquilo fazia parte de seus deveres. O corpo da mulher estava depositado em uma gaveta de metal impessoal do necrotério. Era loura e devia ter no máximo vinte anos. O corpo estava inchado, devido à longa permanência na água, e nu, apenas com uma fita vermelha amarrada no pescoço.
Havia sinais de relações sexuais pouco antes da morte. A mulher fora estrangulada e depois jogada na água.
- Não morreu afogada, pois não há água nos pulmões. Não temos no arquivo as impressões digitais dela. Já a viu em algum lugar? O detetive Max Hornung olhou atentamente para o rosto da mulher e disse:
- Não. Saiu então para pegar um ônibus para o aeroporto.
Capítulo 36 Quando o detetive Max Hornung desembarcou no aeroporto da Costa Esmeralda, na Sardenha, alugou o carro mais barato que pôde achar, um Fiat 500, e tomou o caminho de Olbia.
Diferente do resto da Sardanha, Olbia era uma cidade industrial e os seus arredores, desprovidos de qualquer beleza, eram uma extensão de usinas e fábricas, um depósito de lixo e um gigantesco cemitério de carros velhos. Ao vêlo, Max refletiu que todas as cidades do mundo tinham esses depósitos de automóveis, como se fossem monumentos da civilização.
Chegando ao centro da cidade, parou diante de um prédio em cuja fachada se lia o seguinte letreiro: "Questure di Sassiri - Commissariato di Polizia, Olbia".
No momento em que entrou no edifício, ele sentiu o caráter familiar de identidade, de participação, Luigi Ferraro. Este se levantou com um sorriso no rosto. O sorriso se desvaneceu quando ele viu a figura que o procurava. Havia na aparência de Max Hornung alguma coisa que não se ajustava ao conceito que o delegado fazia de um "detetive".
- Pode mostrar-me a sua identificação? De posse da carteira, o delegado examinou-a cuidadosamente, devolvendo-a em seguida. Formulou então a idéia de que a Suíça devia estar enfrentando uma grande escassez de gente para a polícia, pois, do contrário, não admitiria um homem como aquele. - Que deseja?
Max começou a explicar-se em italiano fluente. O problema foi que o delegado Ferraro demorou um pouco para descobrir que língua Max estava falando. Quando compreendeu a intenção do homem, levantou a mão e disse:
- Basta! Fala inglês?
- É claro - respondeu Max.
- Peço-lhe então que conversemos em inglês.
Quando Max acabou de falar, o delegado disse:
- Está enganado, sinore. Posso lhe assegurar que está perdendo o seu tempo.
Meus mecânicos já examinaram o jipe e todos concordaram em que foi acidente.
- Mas eu ainda não o examinei - disse imperturbavelmente Max Hornung.
- Muito bem. O jipe está agora à venda em uma garagem. Mandarei um dos meus homens levá-lo até lá. Gostaria de ver o local do acidente? Max piscou os olhos e perguntou:
- Para quê?
O detetive Bruno Campagna foi designado como acompanhante de Max.
- Já verificamos tudo - disse Campagna. - Foi um acidente.
- Não - replicou Max.
O jipe estava em um canto da garagem ainda com a frente amassada e com vestígios da seiva verde da árvore.
- Ainda não tive tempo para consertá-lo - disse o mecânico da garagem. Max se aproximou do jipe e começou a examiná-lo.
- Como foi que sabotaram os freios? - perguntou ele.
- Jesus! O senhor também? - exclamou o mecânico, irritado. - Há vinte anos que sou mecânico, signore, e examinei esse jipe pessoalmente. A última vez que alguém tocou nesses freios foi quando o carro saiu da fábrica.
- Mexeram nos freios - disse Max.
- Como? - perguntou o mecânico, exasperado.
- Não sei ainda, mas vou descobrir - declarou Max, confiantemente.
Lançou um último olhar ao jipe e então virou as costas e saiu da garagem. O delegado olhou para o detetive Bruno Campagna e perguntou:
- O que você fez com ele?
- Não fiz nada. Levei-o à garagem, onde ele quase fez o mecânico ficar fora de si.
Depois, ele me disse que queria dar uma volta sozinho.
- Inacreditável!
Max estava na praia, olhando as águas esmeraldinas do Tirreno, mas não viu coisa alguma. Estava concentrado, procurando juntar todos os fragmentos. Tudo era como um gigantesco quebra-cabeça. Tudo se encaixava exatamente no seu lugar, quando se sabia onde a peça devia se ajustar. O jipe era uma parte pequena mas importante do enigma. Os freios tinham sido examinados pelos mecânicos, de cuja honestidade e competência não havia motivos para duvidar.
Aceitava, portanto, o fato de que não tinham tocado nos freios do jipe. Mas como Elizabeth tinha dirigido o jipe e alguém desejava a sua morte, tinha também de aceitar o fato de que haviam mexido nos freios. Max estava diante de uma coisa executada com muita habilidade. E isso tornava tudo mais interessante. Deu alguns passos na areia, fechou os olhos e procurou concentrar-se de novo. Pensou nos elementos do enigma, mudando-os de lugar, dissecando-os, reagrupando tudo. Vinte minutos depois, a última peça se encaixou. Max abriu os olhos e pensou com admiração no homem que imaginara aquilo. Tinha de conhecê-lo. Depois disso, o detetive Max Hornung tinha duas coisas a fazer, uma fora de Olbia e a segunda, nas montanhas.
Pegou o último avião da tarde para Zurique.
Classe turista.
Capítulo 37 O chefe da segurança da Roffe and Sons disse a Elizabeth:
- Tudo aconteceu com muita rapidez, Senhorita Roffe. Nada pudemos fazer. No momento em que conseguimos colocar o aparelhamento de combate ao fogo em ação, o laboratório já estava destruído! Tinham encontrado os restos do corpo carbonizado de Emil Joeppli. Não se podia saber se a sua fórmula fora retirada do laboratório antes da explosão.
- O Edifício de Desenvolvimento estava sobre vigilância ininterrupta, não estava?
- Estava, sim. Nós…
- Há quanto tempo chefia o nosso departamento de segurança?
- Cinco anos. Eu…
- Está despedido. O homem ia dizer alguma coisa, mas mudou de idéia e murmurou: - Está bem.
- Quantos homens trabalham sob suas ordens?
- Sessenta e cinco. Sessenta e cinco homens!
E não tinham conseguido salvar Emil Joeppli.
- Estão todos despedidos. Têm o prazo de vinte e quatro horas para sair daqui.
- Escute, Senhorita Roffe, acha que está sendo justa. Elizabeth pensou em Emil Joeppli, nas preciosas fórmulas e no microfone escondido no seu escritório e que ela esmagara com o salto do sapato.
- Saia daqui - disse ela.
Passou a manhã toda esforçando-se por afastar a imagem do corpo carbonizado de Emil Joeppli e do seu laboratório cheio de animais queimados. Procurou não pensar no prejuízo que a companhia teria com a perda daquela fórmula.
Era possível que dentro em pouco uma companhia rival a patenteasse. Não havia nada que pudesse fazer. Vivia numa selva sem lei. Quando os concorrentes acreditaram que a vítima estava sem forças, acorriam para o golpe final. Mas, no caso, não se tratava de um concorrente, e, sim, de um amigo, um amigo fatal.
Elizabeth tomou providências para a contratação de uma nova força de segurança constituída de profissionais. Sentiria-se mais segura cercada de estranhos. Telefonou para o Hospital Internationale de Bruxelas para ter notícias de Madame Van den Longh, a esposa do ministro belga. Disseram-lhe que ela ainda estava em coma e que as possibilidades eram incertas.
Elizabeth ainda estava pensando em Emil Joeppli, no menino mongolóide e na mulher belga, quando Rhys Williams entrou no escritório. Olhou para o rosto dela e perguntou:
- As coisas estão tão ruins assim?
Ela fez tristonhamente um sinal afirmativo. Rhys viu seu rosto abatido e esgotado.
Era difícil saber até onde ela poderia resistir. Aproximou-se, tomou nas mãos as mãos de Elizabeth e disse:
- Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudá-la?
Pode fazer tudo, pensou Elizabeth. Precisava desesperadamente de Rhys.
Precisava da energia, da ajuda e do amor dele. Os olhos de ambos se encontraram, e ela se viu prestes a cair nos braços dele e dizer-lhe tudo o que havia acontecido, tudo o que estava acontecendo.
- Alguma novidade sobre Madame Van den Logh? - perguntou Rhys. O momento havia passado.
- Não - disse Elizabeth. -Já recebeu algum telefonema a propósito do comentário feito pelo Wall Streel Journal?
- Que comentário?
- Ainda não leu?
- Não.
Rhys Mandou buscar o jornal em sua sala. O comentário enumerava os recentes problemas da Roffe and Sons e sugeria que a companhia precisava de uma pessoa experiente e capaz de dirigi-la.
- Que mal nos fará esse comentário? - perguntou Elizabeth quando acabou de ler.
- O mal já está feito. Continuaremos a perder mercado.
O interfone tocou e Elizabeth apertou o botão.
- Pronto.
- O Sr. Julius Badrutt está na linha 2. Diz que é urgente.
Elizabeth olhou para Rhys. Ela vinha adiando o encontro com os banqueiros.
- Pode ligar - disse à secretária e, um instante depois: - Bom dia, Sr. Badrutt.
- Bom dia - disse o banqueiro, com uma voz que parecia um pouco áspera do outro lado do fio - Tem algum tempo livre hoje à tarde?
- Acho que sim…
- Está bem. Às quatro horas.
Houve um murmúrio seco ao telefone e Elizabeth compreendeu que Badrutt ainda estava falando.
- Sinto muito o que aconteceu com o Sr. Joeppli - disse ele.
O nome de Joeppli não fora mencionado no noticiário de nenhum jornal a respeito da explosão. Desligou e viu que Rhys a estava olhando.
- Os tubarões farejam o sangue - murmurou ele.
Houve muitos telefonemas à tarde. Entre eles o de Alec.
- Você leu o jornal hoje de manhã, Elizabeth?
- Li, sim. O Wall Street Journal está exagerando.
Houve uma pausa, e então Alec disse:
- Não é só do Wall Street Journal que estou falando. É do Financial Times, que traz um artigo com grande destaque sobre a Roffe and Sons. O artigo não é favorável e os telefones não param de tocar. Os cancelamentos têm sido enormes. O que vamos fazer?
- Falarei com você mais tarde, Alec?
Ivo telefonou.
- Caríssima, prepare-se para levar um choque.
- Estou preparada, Ivo. Pode falar.
- Um banqueiro italiano foi detido há poucas horas, sob a acusação de aceitar suborno. Elizabeth teve um pressentimento do que viria depois.
- Continue.