Primeira Parte - Sob a Lua Num Velho Trapiche Abandonado Capítulo 1 - O Trapiche
Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem.
Antigamente aqui era o mar. Nas grandes e negras pedras dos alicerces do trapiche as ondas ora se rebentavam fragorosas, ora vinham se bater mansamente. A água passava por baixo da ponte sob a qual muitas crianças repousam agora, iluminadas por uma réstia amarela de lua. Desta ponte saíram inúmeros veleiros carregados, alguns eram enormes e pintados de estranhas cores, para a aventura das travessias marítimas. Aqui vinham encher os porões e atracavam nesta ponte de tábuas, hoje comidas. Antigamente diante do trapiche se estendia o mistério do mar-oceano, as noites diante dele eram de um verde escuro, quase negras, daquela cor misteriosa que é a cor do mar à noite.
Hoje a noite é alva em frente ao trapiche. É que na sua frente se estende agora o areal do cais do porto. Por baixo da ponte não há mais rumor de ondas. A areia invadiu tudo, fez o mar recuar de muitos metros. Aos poucos, lentamente, a areia foi conquistando a frente do trapiche. Não mais atracaram na sua ponte os veleiros que iam partir carregados. Não mais trabalharam ali os negros musculosos que vieram da escravatura. Não mais cantou na velha ponte uma canção um marinheiro nostálgico.A areia se estendeu muito alva em frente ao trapiche. É nunca mais encheram de fardos, de sacos, de caixões, o imenso casarão. Ficou abandonado em meio ao areal, mancha negra na brancura do cais.
Durante anos foi povoado exclusivamente pelos ratos que ai atravessavam em corridas brincalhonas, que rolam a madeira das portas monumentais, que o habitavam como senhores exclusivos. Em certa época um cachorro vagabundo o procurou como refúgio contra o vento e contra a chuva. Na primeira noite não dormiu, ocupado em despedaçar ratos que passavam na sua frente. Dormiu depois de algumas noites, ladrando à lua pela madrugada, pois grande parte do teto já ruíra e os raios da lua penetravam livremente, iluminando o assoalho de tábuas grossas. Mas aquele era um cachorro sem pouso certo e cedo partiu em busca de outra pousada, o escuro de uma porta, o vão de urna ponte, o corpo quente de uma cadela. E os ratos voltaram a dominas até que os Capitães da Areia lançaram as suas vistas para o casarão abandonado.
Neste tempo a porta caíra para um lado e um do grupo, certo dia em que passeava na extensão dos seus domínios porque toda a zona do areal do cais, como aliás toda a cidade da Bahia, pertence aos Capitães da Areia, entrou no trapiche.
Seria bem melhor dormida que a pura areia, que as pontes dos demais trapiches onde por vezes a água subia tanto que ameaçava levá-los. E desde esta noite uma grande parte dos Capitães da Areia dormia no velho trapiche abandonado, em companhia dos ratos, sob a lua amarela. Na frente, a vastidão da areia, uma brancura sem fim.Ao longe, o mar que arrebentava no cais. Pela porta viam as luzes dos navios que entravam e saiam. Pelo teto viam o céu de estrelas, alua que os iluminava.
Logo depois transferiram para o trapiche o depósito dos objetos que o trabalho do dia lhes proporcionava. Estranhas coisas entraram então para o trapiche. Não mais estranhas, porém, que aquela meninos, moleques de todas as cores e de idades as mais variadas, desde os 9 aos 16 anos, que à noite se estendiam pelo assoalho e por debaixo da ponte e dormiam, indiferentes ao vento que circundava o casarão uivando, indiferentes à chuva que muitas vezes os lavava, mas com os olhos puxados para as luzes dos navios, com os ouvidos presos às canções que vinham das embarcações...
É aqui também que mora o chefe dos Capitães da Areia: Pedro Bala. Desde cedo foi chamado assim, desde seus cinco anos. Hoje tem 15 anos. Há dez que vagabundeia nas ruas da Bahia. Nunca soube de sua mãe, seu pai morrera de um balaço. Ele ficou sozinho e empregou anos em conhecer a cidade. Hoje sabe de todas as suas ruas e de todos os seus becos. Não há venda, quitanda, botequim que ele não conheça. Quando se incorporou aos Capitães da Areia o cais recém-construído atraiu para as suas areias todas as crianças abandonadas da cidade o chefe era Raimundo, o Caboclo, mulato avermelhado e forte.
Não durou muito na chefia o caboclo Raimundo. Pedro Bala era muito mais ativo, sabia planejar os trabalhos, sabia tratar com os outros, trazia nos olhos e na voz a autoridade de chefe. Um dia brigaram. A desgraça de Raimundo foi puxar uma navalha e cortar o rosto de Pedro, um talho que ficou para o resto da vida. Os outros se meteram e como Pedro estava desarmado deram razão a ele e ficaram esperando a revanche, que não tardou. Uma noite, quando Raimundo quis surrar Barandão, Pedro tomou as dores do negrinho e rolaram na luta mais sensacional a que as areias do cais jamais assistiram. Raimundo era mais alto e mais velho. Porém Pedro Bala, o cabelo loiro voando, a cicatriz vermelha no rosto, era de uma agilidade espantosa e desde esse dia Raimundo deixou não só a chefia dos Capitães da Areia, como o próprio areal. Engajou tempos depois num navio.
Todos reconheceram os direitos de Pedro Bala à chefia, e foi desta época que a cidade começou a ouvir falar nos Capitães da Areia, crianças abandonadas que viviam do furto. Nunca ninguém soube o número exato de meninos que assim viviam. Eram bem uns cem e destes mais de quarenta dormiam nas ruínas do velho trapiche.
Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas.
Capítulo 2 - Noite dos Capitães da Areia
A grande noite de Paz da Bahia veio do Cais, envolveu os saveiros, o forte, o quebra-mar, se estendeu sobre as ladeiras e as torres das igrejas. Os sinos já não tocam as ave-marias que as seis horas há muito que passaram. E o céu está cheio de estrelas, se bem a lua não tenha surgido nesta noite clara. O trapiche se destaca na brancura do areal, que conserva as marcas dos passos dos Capitães da Areia, que já se recolheram. Ao longe, a fraca luz da lanterna da Porta do Mar, botequim de marítimos, parece agonizar. Passa um vento frio que levanta a areia e torna difíceis os passos do negro João Grande, que se recolhe. Vai curvado pelo vento como a vela de um barco. E alto, o mais alto do bando, e o mais forte também, negro de carapinha baixa e músculos retesados, embora tenha apenas treze anos, dos quais quatro passados na mais absoluta liberdade, correndo as ruas da Bahia com os Capitães da Areia. Desde aquela tarde em que seu pai, carroceiro gigantesco, foi pegado por um caminhão quando tentava desviar o cavalo para um lado da rua, João Grande não voltou pequena casa do morro. Na sua frente estava a cidade misteriosa, e ele partiu para conquistá-la. A cidade da Bahia, negra e religiosa, é quase tão misteriosa como o verde mar. Por isso João Grande não voltou mais. Engajou com 9 anos nos Capitães da Areia, quando o Caboclo ainda era o chefe e o grupo pouco conhecido, pois o Caboclo não gostava de se arriscar. Cedo João Grande se fez um dos chefes e nunca deixou de ser convidado para as reuniões que os maiorais faziam planejar os furtos. Não que fosse um bom organizador de assalta uma inteligência viva. Ao contrário, doía-lhe a cabeça se tinha que pensar. Ficava com os olhos ardendo, como ficava também quando via alguém fazendo maldade com os menores. Então seus músculos se retesavam e estava disposto a qualquer briga. Mas a sua enorme força muscular o fizera temido. O Sem-Pernas dizia dele: - Este negro é burro mas é uma prensa...
E os menores, aqueles pequeninos que chegavam para o grupo cheios de receio tinham nele o mais decidido protetor. Pedro, o chefe, também gostava de ouvi-lo. E João Grande bem sabia que não era por causa da sua força que tinha a amizade do Bala. Pedro achava que o negro era bom e não se cansava de dizer:
- Tu é bom, Grande. Tu é melhor que a gente. Gosto de você - e batia pancadinhas na perna do negro, que ficava encabulado.
João Grande vem vindo para o trapiche. O vento quer impedir passos e ele se curva todo, resistindo contra o vento que levanta a areia. Ele foi à Porta do Mar beber um trago de cachaça com o Querido-de-Deus, que chegou hoje dos mares do Sul, de uma pescaria. O Querido-de-Deus é o mais célebre capoeirista da cidade. Quem não o respeita na Bahia? No jogo de capoeira de Angola ninguém pode se medir com o Querido-de-Deus, nem mesmo Zé Moleque, que deixou fama no Rio de Janeiro. O Querido-de-Deus contou as novidades e avisou que no dia seguinte apareceria no trapiche para continuar as lições de capoeira que Pedro Bala, João Grande e o Gato tomam. João Grande fuma um cigarro e anda para o trapiche. As marcas dos seus grandes pés ficam na areia, mas o vento logo as destrói. O negro pensa que nessa noite de tanto vento são perigosos os caminhos do mar.
João Grande passa por debaixo da ponte - os pés afundam na areia - evitando tocar no corpo dos companheiros que já dormem. Penetra no trapiche. Espia um momento indeciso até que nota a luz da vela do Professor. Lá está ele, no mais longínquo canto do casarão, lendo à luz de uma vela. João Grande pensa que aquela luz ainda é menor e mais vacilante que a da lanterna da Porta do Mar e que o Professor está comendo os olhos de tanto ler aqueles livros de letra miúda. João Grande anda para onde está o Professor, se bem durma sempre na porta do trapiche, como um cão de fila, o punhal próximo da mão, para evitar alguma surpresa.
Anda entre os grupos que conversam, entre as crianças que dormem, e chega para perto do Professor. Acocora-se junto a ele e fica espiando a leitura atenta do outro.
João José, o Professor, desde o dia em que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra, se tomara perito nestes furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando num canto do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Lia-os todos numa ânsia que era quase febre. Gostava de saber coisas e era ele quem muitas noites, contava aos outras histórias de aventureiros, de borne do mar, de personagens heroicos e lendários, histórias que faziam aqueles olhos vivos se espicharem para o mar ou para as misteriosas ladeiras da cidade, numa ânsia de aventuras e de heroísmo. João José era o único que lia correntemente entre eles e, no entanto, só estive na escola ano e meio. Mas o treino diário da leitura despertara completamente sua imaginação e talvez fosse ele o único que tivesse uma certa consciência do heroico das suas vidas. Aquele saber, aquela vocação para contar histórias, fizera-o respeitado entre os Capitães Areia, se bem fosse franzino, magro e triste, o cabelo moreno caindo sobre os olhos apertados de míope. Apelidaram-no de Professor porque num livro furtado ele aprendera a fazer mágicas com lenços níqueis e também porque, contando aquelas histórias que lia e muitas que inventava, fazia a grande e misteriosa mágica de os transportar para mundos diversos, fazia com que os olhos vivos dos Capitães da Areia brilhassem como só brilham as estrelas da noite da Bahia. Pedro Bala nada resolvia sem o consultar e várias vezes foi a imaginação Professor que criou os melhores planos de roubo. Ninguém sabia, entanto, que um dia, anos passados, seria ele quem haveria de contar em quadros que assombrariam o país a história daquelas vidas e muitas outras histórias de homens lutadores e sofredores. Talvez só o sou se Don'Aninha, a mãe do terreiro da Cruz de Opô Afonjá, porque Don'Aninha sabe de tudo que Yá lhe diz através de um búzio noites de temporal.
João Grande ficou muito tempo atento à leitura. Para o negro aquelas letras nada diziam. O seu olhar ia do livro para a luz oscilante da vela, e desta para o cabelo despenteado do Professor. Terminou por se cansar e perguntou com sua voz cheia e quente:
- Bonita, Professor?
Professor desviou os olhos do livro, bateu a mão descarnada no ombro do negro, seu mais ardente admirador:
- Uma história porreta, seu Grande. - Seus olhos brilhavam.
- De marinheiro?
- É de um negro assim como tu. Um negro macho de verdade.
- Tu conta?
- Quando findar de ler eu conto. Tu vai ver só que negro...
E volveu os olhos para as páginas do livro. João Grande acendeu um cigarro barato, ofereceu outro em silêncio ao Professor e ficou fumando de cócoras, como que guardando a leitura do outro. Pelo trapiche ia um rumor de risadas, de conversas, de gritos. João Grande distinguia bem a voz do Sem-Pernas, estrídula e fanhosa.O Sem-Pernas falava alto, ria muito. Era o espião do grupo, aquele que sabia se meter na casa de uma família uma semana, passando por um bom menino perdido dos pais na imensidão agressiva da cidade. Coxo, o defeito físico valera-lhe o apelido. Mas valia-lhe também a simpatia de quanta mãe de família o via, humilde e tristonho, na sua porta pedindo um pouco de comida e pousada por uma noite. Agora, meio do trapiche, O Sem-Pernas metia a ridículo o Gato, que perde todo um dia para furtar um anelão cor de vinho, sem nenhum valo, real, pedra falsa, de falsa beleza também.
Fazia já uma semana que o Gato avisara a meio mundo:
- Vi um anelão, seu mano, que nem de bispo. Um anelão bom pro meu dedo. Batuta mesmo. Tu vai ver quando eu trouxer...
- Em que vitrine?
- No dedo de um pato. Um gordo que todo dia toma o bonde de Brotas na Baixa do Sapateiro.
E o Gato não descansou enquanto não conseguiu, no aperto um bonde das seis horas da tarde, tirar o anel do dedo do homem, escapulindo na confusão, porque o dono logo percebeu. Exibia o anel no dedo médio, com vaidade. O Sem-Pernas ria:
- Arriscar cadeia por uma porcaria! Um troço feio...
- Que tem tu com isso? Eu acho bom, tá acabado.
- Tu é burro mesmo. Isso no prego não dá nada.
- Mas dá simpatia no meu dedo. Tou arranjando uma comida.
Falavam naturalmente em mulher apesar do mais velho ter apenas 16 anos. Cedo conheciam os mistérios do sexo.
Pedro Bala, que ia entrando, desapartou o começo de briga. João Grande deixou o Professor lendo e veio para junto do chefe. O Sem-Pernas ria sozinho, resmungando acerca do anel. Pedro o chamou e foi com ele e com João Grande para o canto onde estava Professor...
- Vem cá, Professor.
Ficaram os quatro sentados. O Sem-Pernas acendeu uma ponta de charuto caro, ficou saboreando. João Grande espiava o pedaço de mar que se via através da porta, além do areal. Pedro falou:
- Gonzales do 14 falou hoje comigo...
- Quer mais corrente de ouro? Da outra vez... - atalhou O Sem-Pernas.
- Não. Tá querendo chapéu. Mas só topa de feltro. Palhinha não vale, diz que não tem saída. E também...
- Que é que tem mais? - novamente interrompeu O Sem-Pernas.
- Tem que muito usado não presta.
- Tá querendo muita coisa. Se ainda pagasse que valesse a pena.
- Tu sabe, Sem-Pernas, que ele é um bicho caiado. Pode não pagar bem, mas é uma cova. Dali não sai nada, nem a gancho.
- Também paga uma miséria. E é interesse dele não dizer nada. Se ele abrir a boca no mundo não há costas largas que livre ele do xilindró...
- Tá bom, Sem-Pernas, você não quer topar o negócio, vá embora, mas deixe a gente combinar as coisas direito.
- Não tou dizendo que não topo. Tou só falando que trabalhar pra um gringo ladrão não é negócio. Mas se tu quer...
- Ele diz que desta vez vai pagar melhor. Uma coisa que pague a pena. Mas só chapéu de feltro bom e novo. Tu, Sem-Pernas, podia ir com uns fazer esse negócio.Amanhã de noite Gonzales manda um empregado do 14 aqui pra trazer os miúdos e levar as carapuças.
- Bom lugar e nos cinemas - disse o Professor voltando-se para O Sem-Pernas.
- Bom é na Vitória... - e o Sem-Pernas fez um gesto de desprezo. - É só entrar nos corredores e aquilo é chapéu garantido... Tudo gente de nota.
- Também tem guarda em penca...
- Tu liga pra guarda? Se ainda fosse "tira"... Guarda é pra correr "picula". Tu vai comigo, Professor?
- Vou. Mesmo que tou precisando de um chapéu.
Pedro Bala falou:
- Arranja os que quiser, Sem-Pernas. Este negócio fica por tua conta. Menos o Grande e o Gato, que eu tenho um negócio com eles pra amanhã - virou-se para João Grande. - Um negócio do Querido-de-Deus.
- Ele já teve me avisando. E diz-que de noite vem pra capoeira. Pedro voltou-se para o Sem-Pernas, que já se retirava para ir combinar com Pirulito a formação do grupo que ia em cata de chapéus no dia seguinte:
- Olha, Sem-Pernas, tu trata de avisar que se algum for bispado trate de dar o suíte para outro lado. Não venha pra cá.
Pediu um cigarro, João Grande deu. O Sem-Pernas, já afastado, chamava Pirulito. Pedro foi em busca do Gato, tinha um assunto a conversar com ele. Depois voltou, se estendeu perto do lugar onde estava Professor. Este retornou ao seu livro, sobre o qual se debruçou até que a vela queimou-se toda e a escuridão do trapiche o envolveu. João Grande caminhou vagarosamente para a porta, onde se deitou ao comprido, o punhal no cinto. Pirulito era magro e muito alto, uma cara seca, meio amarelada, os olhos encovados e fundos, a boca rasgada e pouco risonha. O Sem-Pernas primeiro fez pilhéria perguntando se ele já estava rezado, depois entrou no assunto da pilhagem de chapéus, acertaram que a levariam um certo número de meninos que escolheram cuidadosamente, marcaram as zonas onde operariam e se separaram. Pirulito então foi para o seu canto costumeiro. Dormia invariavelmente ali, onde as paredes do trapiche faziam um ângulo. Tinha disposto carinhosamente as suas coisas: um cobertor velho, um travesseiro que trouxera certa vez de um hotel onde penetrara levando as malas de um viajante, um par de calças que vestia aos domingos junto com uma blusa de cor indefinida, porém mais ou menos limpa. E pregados na parede, com pregos pequenos, dois quadros de santos: um Santo Antônio carregando um Menino Deus Pirulito se chamava Antônio e tinha ouvido dizer que Santo Antônio era brasileiro e uma Nossa Senhora das Sete Dores que tinha o peito cravado de setas: sob o seu quadro uma flor murcha. Pirulito recolheu a flor, aspirou-a, viu que não tinha mais perfume. Então a amarrou junto ao bentinho que trazia no peito e do bolso do velho paletó que vestia retirou um cravo vermelho que colhera num jardim, mesmo sob as vistas do guarda, naquela hora indecisa do crepúsculo. E colocou o cravo por baixo do quadro, enquanto fitava a santa com um olhar comovido. Logo ajoelhou-se. Os outros, a princípio, faziam muita pilhéria quando o viam de joelhos, rezando. Porém já haviam se acostumado e ninguém mais reparava. Começou a rezar e seu ar de asceta se pronunciou ainda mais, seu rosto de criança ficou mais pálido e mais grave, suas mãos longas e magras se levantaram ante o quadro. Todo seu rosto tinha uma espécie de auréola e a sua voz tonalidades e vibrações que os companheiros não conheciam. Era como se estivesse fora do mundo, não no velho e arruinado trapiche, mas numa outra terra, junto com Nossa Senhora das Sete Dores. No entanto, sua reza era simples e não fora sequer aprendida em catecismos. Pedia que a Senhora o ajudasse a um dia poder entrar para aquele colégio que estava no Sodré, e de onde saíam os homens transformados em sacerdotes.
O Sem-Pernas, que vinha combinar um detalhe da questão dos chapéus e que, desde que o vira rezando, trazia uma pilhéria preparada, uma pilhéria que só como pensar nela ele ria e que iria desconcertar completamente Pirulito, quando chegou perto e viu Pirulito rezando, de mãos levantadas, olhos fixos ninguém sabia onde, o rosto aberto em êxtase estava como que vestido de felicidade, parou, o riso burlão murchou nos seus lábios e ficou a espiá-lo meio a medo, possuído de um sentimento que era um pouco de inveja e um pouco de desespero.
O Sem-Pernas ficou parado, olhando. Pirulito não se mona. Apenas seus lábios tinham um lento movimento. O Sem-Pernas costumava burlar dele, como de todos os demais do grupo, mesmo de Professor, de quem gostava, mesmo de Pedro Bala, a quem respeitava. Logo que um novato entrava para os Capitães da Areia formava uma ideia ruim de Sem-Pernas. Porque ele logo botava um apelido, ria de um gesto, de uma frase do novato. Ridicularizava tudo, era dos que mais brigavam. Tinha mesmo fama de malvado.Uma vez fez tremendas crueldades com um gato que entrara no trapiche. E um dia cortara de navalha um garçom de restaurante para furtar apenas um frango assado. Um dia em que teve um abscesso na perna o rasgou friamente a canivete e na vista de todos o espremeu rindo. Muitos do grupo não gostavam dele, mas aqueles que passavam por cima de tudo e se faziam seus amigos diziam que ele era um sujeito bom. No mais fundo do seu coração ele tinha pena da desgraça de todos. E rindo, e ridicularizando, era que fugia da sua desgraça. Era como um remédio. Ficou parado olhando Pirulito, que rezava concentrado. No rosto do que rezava ia uma exaltação, qualquer coisa que ao primeiro momento o Sem-Pernas pensou que fosse alegria ou felicidade. Mas fitou o rosto do outro e achou que era uma expressão que ele não sabia definir.E pensou, contraindo o seu rosto pequeno, que talvez por isso ele nunca tivesse pensado em rezar, em se voltar para o céu de que tanto falava o padre José Pedro quando vinha vê-los. O que ele queria era felicidade, era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava. Havia, é verdade, a grande liberdade das ruas. Mas havia também o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras boas. Pirulito buscava isso no céu, nos quadros de santo, nas flores murchas que trazia para Nossa Senhora das Sete Dores, como um namorado romântico dos bairros chiques da cidade traz para aquela a quem ama com intenção de casamento. Mas o Sem-Pernas não compreendia que aquilo pudesse bastar. Ele queria uma coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre, que o livrasse da necessidade de rir de todos e de rir de tudo. Que o livrasse também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de inverno.Não queria o que tinha Pirulito, o rosto cheio de uma exaltação. Queria alegria, uma mão que, o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava meu padrinho e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, uma mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A perna coxa se recusava a ajudá-lo. E a borracha zunia nas suas costas quando o cansaço o fazia parar. A princípio chorou muito, depois, não sabe como, as lágrimas secaram. Certa hora não resistiu mais, abateu-se no chão. Sangrava. Ainda hoje ouve como os soldados riam e como nu aquele homem de colete cinzento que fumava um charuto. Depois encontrou os Capitães da Areia foi o Professor quem o trouxe, haviam feito camaradagem num banco de jardim e ficou com eles. Não tardou a se destacar porque sabia como nenhum afetar uma grande dor e assim conseguir enganar senhoras, cujas casas eram depois visitadas pelo grupo já ciente de todos os lugares onde havia objetos de valor e de todos os hábitos da casa. E o Sem-Pernas tinha verdadeira satisfação ao pensar em quanto o xingariam aquelas senhoras que o haviam tomado por um pobre órfão. Assim se vingava, porque seu coração estava cheio de ódio. Confusamente desejava ter uma bomba como daquelas de certa história que o Professor contara que arrasasse toda a cidade, que levasse todos pelos ares. Assim ficaria alegre. Talvez ficasse também se viesse alguém, possivelmente uma mulher de cabelos grisalhos e mãos suaves, que o apertasse contra o peito, que acarinhasse seu rosto e o fizesse dormir um sono bom, um sono que não estivesse cheio dos sonhos da noite na cadeia. Assim ficaria alegre, o ódio não estaria mais no seu coração. E não teria mais desprezo, inveja, ódio de Pirulito que, de mãos levantadas e olhos fixos, foge do seu mundo de sofrimentos para um mundo que conheceu nas conversas do padre José Pedro.
Um rumor de conversas se aproxima. Vem um grupo de quatro entrando no silêncio que já reina na noite do trapiche. O Sem-Pernas se estremece, ri nas costas de Pirulito, que continua a rezar. Encolhe os ombros, decide deixar para a manhã do dia seguinte o acerto dos detalhes do furto dos chapéus. E como tem medo de dormir, vai ao encontro do grupo que chega, pede um cigarro, diz dichotes sobre a aventura de mulheres que os quatro contam:
- Uns franguinhos como vocês, quem é que vai acreditar que seja capaz de derrubar uma mulher? Isso devia ser algum xibungo vestido de menina.
Os outros se irritam:
- Tu também se faz de besta. Se quer é só vim com a gente amanhã. Assim tu pode conhecer a zinha, que é um peixão.
O Sem-Pernas ri, sardônico:
- Não gosto de xibungo.
E sai andando pelo trapiche.
O Gato ainda não está dormindo. Sempre sai depois das onze horas. É o elegante do grupo. Quando chegou, alvo e rosado, Boa-Vida tentou conquistá-lo. Mas já naquele tempo o Gato era de uma agilidade incrível e não vinha, como Boa-Vida pensava, da casa de uma família. Vinha do meio dos Índios Maloqueiros, crianças que m vivem sob as pontes de Aracaju. Fizera a viagem na rabada de um trem. Conhecia bem a vida de um grupo de crianças abandonadas. E já tinha da mais de 13 anos. Assim conheceu logo os motivos por que Boa-Vida, mulato troncudo e feio, o tratou com tanta consideração, lhe ofereceu cigarros e lhe deu parte do seu jantar e correu com ele acidade. Depois bateram juntos um par de sapatos novos que estava exposto na porta de uma casa na Baixa dos Sapateiros. Boa-Vida tinha dito:
- Deixa estar, que eu sei onde se pode vender.
O Gato espiou seus sapatos puídos.
- Eu tava querendo eles pra mim. Já tou precisando...
- Tu com um sapato ainda tão bom... - se admirou Boa-Vida, que raras vezes levava sapatos e que, naquele momento, estava descalço.
- Eu pago a tua parte. Quanto tu pensa?
Boa-Vida olhou para ele. O Gato levava gravata, um paletó remendado e, coisa espantosa!, levava meias.
- Tu é da elegância, hein? - sorriu.
- Não nasci para essa vida. Nasci para o grande mundo - disse o Gato, repetindo uma frase que ouvira certa vez de um caixeiro-viajante num cabaré de Aracaju.
Boa-Vida achava-o decididamente lindo. O Gato tinha um ar petulante, e embora não fosse uma beleza efeminada, agradava a Boa-Vida, que, além de tudo, não tinha muita sorte com mulheres, pois aparentava muito menos que 13 anos, baixo e acachapado. O Gato era alto e sobre os seus lábios de 14 anos começava a surgir uma penugem de bigode que ele cultivava. Boa-Vida naquele momento o amou com certeza, porque disse:
- Tu pode ficar com eles... Eu te dou minha parte.
- Tá certo. Fico te devendo.
Boa-Vida quis aproveitar os agradecimentos do outro para iniciar sua conquista. E baixou a mão pelas coxas do Gato, que se esquivou só com o jogo do corpo. O Gato riu consigo mesmo e não disse nada. Boa-Vida achou que não devia insistir, senão era capaz de espantar o menino. Ele não sabia nada do Gato e nem imaginava que este conhecia seu jogo. Andaram juntos parte da noite, vendo a iluminação da cidade o Gato estava assombrado, e por volta das onze foram para o trapiche. Boa-Vida mostrou o Gato a Pedro e levou-o depois para o lugar onde dormia:
- Tenho aqui um lençol. Dá pra nós dois.
O Gato deitou. Boa-Vida se estendeu ao lado. Quando pensou que o outro estava dormindo o abraçou com uma mão e com a outra começou a puxar-lhe as calças devagarinho. Num minuto o Gato estava de pé:
- Tu te enganou, mulato. Eu sou é homem.
Mas Boa-Vida já não via nada, só via seu desejo, a vontade que tinha do corpo alvo do Gato, de enrolar o rosto nos cabelos morenos do Gato, de apalpar as carnes duras das coxas do Gato. E se atirou em cima dele com intenção de derrubá-lo e forçá-lo. Mas o Gato desviou o corpo, passou-lhe a perna, Boa-Vida se estendeu de nariz. Já tinha se formado um grupo em torno. O Gato disse:
- Ele pensava que eu era maricas. Tu te faz de besta.
Arrancou com o lençol de Boa-Vida para outro canto e dormiu e dormiu. Levaram algum tempo inimigos, mas depois voltaram às boas e agora, quando o Gato se cansa de uma pequena, entrega ao Boa-Vida.Uma noite o Gato andava pelas ruas das mulheres, o cabelo muito lustroso de brilhantina barata, uma gravata enrolada no pescoço, assoviando como se fosse um daqueles malandros da cidade. As mulheres o olhavam e riam:
- Olha aquele frangote... O que quererá por aqui?
O Gato respondia aos sorrisos e seguia. Esperava que uma o chamasse e fizesse o amor com ele. Mas não queria por dinheiro, não só porque os níqueis que possuía não passavam de mil e quinhentos, ou como porque os Capitães da Areia não gostavam de pagar mulher.
Tinham as negrinhas de dezesseis anos para derrubar no areal.
As mulheres olhavam para a sua figura de garoto. Sem dúvida achavam-no belo na sua meninice viciada e gostariam de fazer o amor com ele. Mas não o chamavam porque aquela era a hora em que agi esperavam os homens que pagavam, e elas tinham que pensar na casa e no almoço do dia seguinte. Se contentavam assim com rir e fazer pilhérias. Sabiam que dali sairia um daqueles vigaristas que enchem a vida de uma mulher, que lhe tomam dinheiro, dão pancadas, mas também dão muito amor. Muitas delas gostariam de ser a primeira mulher deste malandro tão jovem. Mas eram dez horas, hora dos homens que pagavam. E o Gato andava de um lado para ou inutilmente. Foi quando viu Dalva, que vinha pela rua embuçada num capote de peles apesar da noite deverão. Ela passou por ele quase da o ver. Era uma mulher de uns trinta e cinco anos, corpo forte, rosto cheio de sensualidade. O Gato a desejou imediatamente. Foi a dela. Viu quando entrou em casa sem se voltar. Ficou na esq esperando.Minutos depois ela apareceu na janela. O Gato subiu desceu a rua, mas ela nem o olhava. Depois passou um velho, atendeu ao chamado dela, entrou. O Gato ainda esperou, porém, mesmo depois do velho ter saído muito apressado, procurando não ser visto, ela não voltou à janela.
Noites e noites o Gato volveu à mesma esquina só para vê-la. Agora tudo o que conseguia em dinheiro era para comprar trajes usados e se pôr elegante. Tinha o dom da elegância malandra, que está mais no jeito de andar, de colocar o chapéu e dar um laço despreocupado na gravata que na roupa propriamente. O Gato desejava Dalva do mesmo modo como desejava comida ao ter fome, como desejava dormir ao ter sono. Já não atendia ao chamado das outras mulheres quando, passada a meia-noite, elas já tinham feito para as despesas do dia seguinte e então queriam o amor juvenil do pequeno malandro. Uma vez foi com uma só para saber da vida de Dalva. Foi assim que se inteirou de que ela tinha um amante, um tocador de flauta num café, que tomava o dinheiro que ela fazia e ainda tomava porres colossais na sua casa, atrapalhando a vida de todas as rameiras do prédio.
O Gato voltava todas as noites. Dalva nunca lhe deu sequer um olhar. Por isso ele ainda a amava mais. Ficava numa espera dolorosa até meia hora depois de meia-noite, quando o flautista chegava e, depois de a beijar na janela, entrava pela porta mal iluminada. Então o Gato ia para o trapiche, a cabeça cheia de pensamentos: se um dia o flautista não viesse... Se o flautista morresse... Era fraco, talvez não agüentasse nem o peso dos quatorze anos do Gato. E apertava a navalha que levava na blusa.
E uma noite o flautista não veio. Nesta noite Dalva andara pelas ruas como uma doida, voltara tarde para casa, não recebera nenhum homem e agora estava ali, postada na janela, apesar de já ter dado as doze horas há muito tempo. Aos poucos a rua foi ficando deserta. Não restaram senão o Gato na esquina e Dalva, que ainda esperava na janela. O Gato sabia que aquela era a sua noite e estava alegre. Dalva desesperava. Então o Gato começou a passear de um lado para o outro da rua até que a mulher o notou e fez um sinal. Ele veio logo, sorrindo.
- Tu não é um frangote que fica na esquina toda noite?
- Quem fica na esquina sou eu. Agora essa coisa de frangote...
Ela sorriu tristemente:
- Tu quer me fazer um favor? Te dou uma coisa - mas logo pensou e fez um gesto. - Não. Tu com certeza tá esperando tua comida e não vai perder tempo.
- Posso, sim. A que estou esperando não vem agora.
- Então eu quero, filhinho, que tu vá na rua Rui Barbosa. O número é 35. Procura seu Gastão. E no primeiro andar. Diz a ele que estou esperando.
O Gato saiu humilhado. Primeiro pensou em não ir e em nunca mais voltar a ver Dalva. Mas depois se decidiu a ir para ver de perto o flautista que tinha coragem de abandonar uma mulher tão bonita. Chegou no prédio um sobrado negro de muitos andares, subiu as escadas, no primeiro andar perguntou a um garoto que dormia no corredor qual era o quarto do Sr. Gastão. O garoto mostrou o último quarto, o Gato bateu na porta. O flautista veio abrir, estava de cuecas e na cama o Gato viu uma mulher magra. Estavam os dois bêbados.
O Gato falou:
- Venho da parte de Dalva.
- Diga àquela bruaca que não me amole. Tou chateado dela até aqui... - e punha a mão aberta na garganta.
De dentro do quarto a mulher falou:
- Quem é esse cocadinha?
- Não te mete - disse o flautista, mas logo acrescentou:
- É um recado da bruaca da Dalva. Tá se pelando que eu volte.
A mulher riu um riso canalha de bêbada:
- Mas tu agora só quer tua Bebezinha, não é? Vem me dar um beijinho, anjo sem asas.
O flautista riu também:
- Tá vendo, pedaço de gente? Diz isso a Dalva.
- Tou vendo um couro espichado ali, sim senhor. Que urubu você arranjou, hein, camarada?
O flautista o olhou muito sério:
- Não fale de minha noiva - e logo:
- Quer tomar um trago? É caninha da boa.
O Gato entrou. A mulher na cama se cobriu. O flautista riu:
- É um filhote somente. Não faz medo.
- Mesmo esse couro - disse o Cato - não me tenta. Nem pra me tocar bronha.
Bebeu a cachaça. O flautista já voltara para a cama e beijava a mulher. Nem viram que o Gato saía e que levava a bolsa da prostituta, que estava esquecida na cadeira, sobre vestidos. Na rua o Gato contou sessenta e oito mil-réis. Jogou a bolsa no pé da escada, meteu o dinheiro no bolso. E foi para rua de Dalva, assoviando.
Dalva o esperava na janela. O Gato olhou para ela fixamente:
- Vou emborcar... - e foi entrando sem esperar resposta.
Dalva, mesmo no corredor, perguntou:
- O que foi que ele disse?
- No quarto te digo. Me mostre onde é.
Entraram no quarto. A primeira coisa que o Gato viu foi um retrato de Gastão tocando flauta, vestido de smoking. Sentou na cama olhando o retrato.
Dalva espiava espantada e mal pôde novamente interrogar:
- O que foi que ele disse?
O Gato respondeu:
- Senta aqui - e indicou a cama.
- Esse frangote... - murmurou ela.
- Olha, bichinha, ele tá grudado com outra, sabe? Também eu disse as boas aos dois. E depois pelei a bruaca - meteu a mão no bolso, tirou o dinheiro. - Vamos rachar isso.
- Tá com outra, não é? Mas meu Senhor do Bonfim há de fazer com que os dois fique entrevado. Senhor do Bonfim é meu santo.
Foi até onde estava o quadro do santo. Fez a promessa e voltou.
- Guarda teu dinheiro. Tu ganhou direito.
O Gato repetiu:
- Senta aqui.
Desta vez ela sentou, ele a pegou e a derrubou na cama. Depois que ela gemeu com o amor e com os tabefes que ele lhe deu, murmurou:
- O frangote parece um homem...
Ele se levantou, endireitou as calças, foi até onde estava o retrato do flautista Gastão e o rasgou.
- Vou tirar um retrato pra tu botar ai.
A mulher riu e disse:
- Vem, bichinho bom. Que malandro não vai sair dai! Vou te ensinar tanta coisa, meu cachorrinho.
Fechou a porta do quarto. O Gato tirou a roupa.
Por isso o Gato sai toda meia-noite e não dorme no trapiche. Só volta pela manhã para ir com os outros para as aventuras do dia.
O Sem-Pernas se aproximou e pilheriou:
- Agora tu vai mostrar o anel, não é?
- Tu não tem nada com isso - o Gato fumava um cigarro. - Tu quer vir pra ver se topa alguma mulher que te queira assim coxo?
- Não vou em casa de couros. Sei onde tem coisas que valha a pena.
Mas o Gato não estava disposto a conversar e o Sem-Pernas continuou a sua peregrinação através do trapiche.
O Sem-Pernas encostou-se junto a uma parede e deixou que o tempo passasse. Viu o Gato sair por volta das onze e meia. Sorriu porque ele havia lavado a cara, posto brilhantina no cabelo e ia marchando com aquele passo gingado que caracteriza os malandros e os marítimos. Depois o Sem-Pernas ficou muito tempo olhando as crianças que dormiam. Ali estavam mais ou menos cinquenta crianças, sem pai, sem mãe, sem mestre. Tinham de si apenas a liberdade de correr as ruas. Levavam vida nem sempre fácil, arranjando o que comer e o que vestir, ora carregando uma mala, ora furtando carteiras e chapéus, ora ameaçando homens, por vezes pedindo esmola. E o grupo era de mais de cem crianças, pois muitas outras não dormiam no trapiche. Se espalhavam nas portas dos arranha-céus, nas pontes, nos barcos virados na areia do Porto da Lenha. Nenhuma delas reclamava. Por vezes morria um de moléstia que ninguém sabia tratar, Quando calhava vir o padre José Pedro, ou a mãe de santo Don'Aninha ou também o Querido-de-Deus, o doente tinha algum remédio. Nunca, porém, era como um menino que tem sua casa. O Sem-Pernas ficava pensando.
E achava que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça daquela vida.
Voltou-se porque ouviu movimento. Alguém se levantava no meio do casarão. O Sem-Pernas reconheceu o negrinho Barandão, que se dirigia de manso para o areal de fora do trapiche. O Sem-Pernas pensou que ele ia esconder qualquer coisa que furtara e não quem mostrar aos companheiros. E aquilo era um crime conta as Leis dobando. O Sem-Pernas seguiu Barandão, atravessando ente os que dormiam. O negrinho já tinha transposto a porta do trapiche e dava a volta no prédio para o lado esquerdo. Em cima era o céu de estrelas.
Barandão agora caminhava apressadamente. O Sem-Pernas notou que ele se dirigia para o outro extremo do trapiche, onde a areia era mais fina ainda. Foi então pelo outro lado e chegou a tempo de ver Barandão que se encontrava com um vulto. Logo o reconheceu: era Almiro, um do grupo, de doze anos, gordo e preguiçoso. Deitaram-se juntos, o negro acariciando Admiro. O Sem-Pernas chegou a ouvir palavras. Um dizia: meu filhinho, meu filhinho. O Sem-Pernas recuou e a sua angústia cresceu. Todos procuravam um carinho, qualquer coisa fora daquela vida: o Professor naqueles livros que lia a noite toda, o Gato na cama de uma mulher da vida que lhe dava dinheiro, Pirulito na oração que o transfigurava, Barandão e Almiro no amor na areia do cais. O Sem-Pernas sentia que uma angústia o tomava e que era impassível dormir. Se dormisse viriam os maus sonhos da cadeia. Queria que aparecesse alguém a quem ele pudesse torturar com dichotes. Queria uma briga. Pensou em ir acender um fósforo na perna de um que dormisse. Mas quando olhou da porta do trapiche, sentiu somente pena e uma doida vontade de fugir. E saiu correndo pelo areal, correndo sem fito, fugindo da sua angústia.
Pedro Bala acordou com um ruído perto de si. Dormia de bruços e olhou por baixo dos braços. Viu que um menino se levantava e se aproximava cautelosamente do canto de Pirulito. Pedro Bala, no meio do sana em que estava, pensou, a princípio, que se tratasse de um caso de pederastia. E ficou atento para expulsar o passivo do grupo, pois uma das leis do grupo era que não admitiriam pederastas passivos. Mas acordou completamente e logo recordou que era impossível, pois Pirulito não era destas coisas. Devia se tratar de furto. Realmente o garoto já abria o baú de Pirulito. Pedro Bala se atirou em cima dele.
A luta foi rápida. Pirulito acordou, mas os demais dormiam.
- Tu tá roubando um companheiro?
O outro ficou calado, coçando o queixo ferido. Pedro Bala continuou:
- Amanhã tu vai embora... Não quero mais tu com a gente. Vai ficar com a gente de Ezequiel, que vive roubando uns dos outros.
- Eu só queria era ver...
- Que era que tu vinha ver com as mãos?
- Juro que era só para ver aquela medalha que ele tem.
- Desembucha esta história direito senão leva porrada.
Pirulito se meteu:
- Deixa ele, Pedro.
Era bem capaz de querer ver mesmo a medalha. É uma medalha que o padre José Pedro me deu.
- E isso mesmo - disse o menino, - eu só queria ver. Juro - mas tremia de medo. Sabia que a vida de um expulso dos Capitães da Areia ficava difícil.
Ou entrava para o grupo de Ezequiel, que vivi todo dia na cadeia, ou acabava no reformatório.
Pirulito intercedeu de novo e Pedro Bala voltou para perto do Professor. Então o menino disse com a voz ainda temendo:
- Vou contar pra você saber. Foi uma menina que eu vi hoje. Tava na Cidade de Palha. Eu tinha entrado na casa com ideia ti abafar um paletó, quando ela veio e ficou perguntando o que eu queria. Aí topamos a conversar. Eu disse que amanhã ia levar um presente pra ela. Porque foi boa, boa assim comigo, sabe? - e agora gritava parecia que tinha raiva.
Pirulito tomou a medalha que o padre lhe dera, ficou mirando. De repente estendeu para o menino:
- Tome. Dê a ela. Mas não conte a Pedro Bala.
Volta Seca entrou no trapiche quando a madrugada já ia alta. O cabelo de mulato sertanejo estava revolto. Calçava alpercatas como quando viera da caatinga. O seu rosto sombrio se projetou dentro do casarão. Passou por cima do corpo do negro João Grande. Cuspiu adiante, passou o pé em cima. Apertado no braço trazia um jornal.Olhou todo o salão procurando alguém. Segurou o jornal com as mãos grandes e calosas logo que distinguiu onde estava Professor. E sem se importar da hora tardias e dirigiu para lá e começou a chamá-lo:
- Professor... Professor...
- O que é? - Professor estava semiadormecido.
- Eu quero uma coisa.
Professor sentou-se. O rosto sombrio de Volta Seca estava meio invisível na escuridão.
- É tu, Volta Seca? Que é que tu quer?
- Quero que tu leia pra eu ouvir essa notícia de Lampião que o Diário traz. Tem um retrato.
- Deixa pra amanhã que eu leio.
- Lê hoje, que eu amanhã te ensino a imitar direitinho um canário.
O Professor buscou uma vela, acendeu, começou a ler a notícia do jornal. Lampião tinha entrado numa vila da Bahia, matara oito soldados, deflorara moças, saqueara os cofres da Prefeitura. O rosto sombrio de Volta Seca se iluminou. Sua boca apertada se abriu num sorriso. E ainda feliz deixou o Professor, que apagava a vela, e foi para o seu canto. Levava o jornal para cortar o retrato do grupo de Lampião. Dentro dele ia uma alegria de primavera.
Capítulo 3 - Ponto das Pitangueiras
Esperavam que o guarda andasse. Este demorou olhando o céu, mirando a rua deserta. O bonde desapareceu na curva. Era o último dos bondes da linha de Brotas naquela noite. O guarda acendeu um cigarro. Com o vento que fazia, gastou três fósforos. Depois suspendeu a gola da capa, pois havia um frio úmido que o vento trazia das chácaras onde balouçavam mangueiras e sapotizeiros. Os três meninos esperavam que o guarda andasse para poder atravessar de um lado para o outro da rua e entrar na travessa sem calçamento. O Querido-de-Deus não tinha podido vir. Toda a tarde tinha passado na Porta do Mar esperando o homem que não veio. Se ele tivesse vindo seria mais fácil, pois com o Querido-de-Deus ele não ia discutir, mesmo porque devia muita coisa ao capoeirista. Mas não tinha vindo, a informação fora errada, e o Querido-de-Deus já tinha uma viagem acertada para essa noite. Ia a Itaparica. Durante a tarde, num terreninho que havia no findo da Porta do Mar, fizeram treinos do jogo capoeira. O Gato prometia ser, com algum tempo, um lutador capaz de se pegar com o próprio Querido-de-Deus. Pedro Bala também tinha muito jeito. Dos três o menos ágil era o negro João Grande muito bom numa luta onde pudesse empregar sua enorme força física Assim mesmo aprendia o bastante para se livrar de um mais forte ele. Quando se cansaram passaram para a sala. Pediram quatro pi e o Gato sacou um baralho do bolso das calças. Um velho bar sebento, de canas muito grossas.O Querido-de-Deus afirmava o homem viria, o camarada que lhe dera a informação era um sujeito seguro. Era negócio para render muito e o Querido-de-Deus preferia chamar os Capitães da Areia, seus amigos, a um dos malandros do cais. Sabia que os Capitães da Areia valiam mais que muitos homens e tinham a boca calada. A Portado Mar estava quase deserto àquela hora. Somente dois marinheiros de um baiano bebiam cerveja ao fundo, conversando, O Gato pôs o baralho em cima da mesa e propôs: - Quem topa uma ronda?
O Querido-de-Deus pegou no baralho:
- Tá mais que marcado, seu Gato. Um baralhinho bem velho...
- Se tu tem outro eu não me importa.
- Não. Vamos com esse mesmo.
Começaram o jogo. O Gato descobria duas cartas na mesa, os outros apostavam numa, a banca ficava com a outra. A princípio Pedro Bala e o Querido-de-Deus ganharam.
João Grande não estava jogando conhecia demais o baralho do Gato, só fazia espiar, rindo com seus dentes alvos, quando o Querido-de-Deus dizia que estava com sorte neste dia porque era o dia de Xangô, seu santo. Sabia que a sorte seria só no princípio e que quando o Gato começasse a ganhar não pararia mais. Certo momento o Gato começou a ganhar. Quando ganhou a primeira vez, disse com uma voz meio triste:
- Também já era tempo. Tava com um peso da mãe!
João Grande abriu mais seu sorriso, O Gato ganhou de novo.
Pedro Bala se levantou, recolheu os níqueis que havia ganho. O Gato olhou desconfiado: Tu não vai botar nada agora?
- Agora não que vou mijar... - e foi para os fundos do bar.
O Querido-de-Deus ficou perdendo. João Grande ria e o capoeirista se afundava. Pedro Bala tinha voltado, mas não jogava. Ria com João Grande, O Querido-de-Deus passou tudo quanto tinha ganho. João Grande disse entre dentes:
- Vai entrar no capital...
- Ainda tou perdendo - falou o Gato.
Reparou que Pedro tinha voltado:
- Tu não arrisca mais nada? Não vai na dama?
- Tou cansado de jogar... - e Pedro Bala piscou para o Gato como que dizendo que ele se contentasse com o Querido-de-Deus.
O Querido-de-Deus passou cinco mil-réis do capital. Só ganhara duas vezes durante as últimas jogadas e estava meio desconfiado. O Gato abriu o baralho na mesa.Puxou um rei e um sete.
- Quem vai? - perguntou.
Ninguém foi. Nem mesmo o Querido-de-Deus, que olhava o ar baralho muito desconfiado. O Gato perguntou:
- Tá pensando que tem treita? Pode espiar. Eu faço jogo limpo...
João Grande soltou uma daquelas suas gargalhadas escandalosas. Pedro Bala e o Querido-de-Deus riram também. O Gato olhou para João Grande com raiva:
- Esse negro é burra como uma porta. Tu não tá vendo...Mas não completou a frase, porque os dois marinheiros baiano, que já miravam o jogo há bastante tempo, se aproximaram. Um deles, o mais baixo, que estava bêbado, falou para o Querido-de-Deus:
- Pode-se entrar nesta brincadeira?
- A banca é deste moço.
Os marinheiros olharam desconfiados para o menino. Mas baixo cutucou o outro com o cotovelo e murmurou qualquer coisa ao ouvido. O Gato riu para dentro porque sabia que ele estava dizendo que seria fácil arrancar o dinheiro daquela criança. Se abancaram os dois e o Querido-de-Deus achou estranho que Pedro Bala se abancasse também. João Grande, no entanto, não só não achou estranho se abancou também. Ele sabia que era preciso tapear os marinheiros e então era necessário que a gente do grupo perdesse também. Os marinheiros, do mesmo modo que tinha acontecido com o Querido-de-Deus, começaram ganhando. Mas durou pouca a aragem da sorte e em breve só o Gato ganhava dos quatro. Pedro Bala soltava aclamações:
- Esse Gato quando tem sorte é um caso sério...
- Também, quando dá de perder, perde a noite toda - replicou João Grande e esta sua réplica deu grande confiança aos marinheiros sobre a honestidade do jogo e a possibilidade da sorte virar. E continuaram a jogar e a perder. O baixo só dizia:
- A sorte tem de virar...
O outro, que tinha um bigodinho, jogava calado e cada vez apostava mais alto. Também Pedro Bala subia o valor das suas apostas. Certa hora o de bigodinho virou pro Gato:
- A banca topa cinco mil?
O Gato coçou o cabelo cheio de brilhantina barata, aparentando uma indecisão que os companheiros sabiam que não possuía.
Vá lá. Topo. Só pra dar meio de você livrar teu prejuízo.
O de bigodinho apostou cinco mil. O baixo foi com três mil-réis. Foram ambos num ás contra um valete da banca. Pedro Bala e João Grande foram no ás também. O Gato começou a virar as cartas. A primeira era um nove. O baixo batia com os dedos, o outro puxava o bigodinho. Veio em seguida um dois e o baixo disse:
- Agora é o ás. Dois, depois um... - e batia com os dedos.
Mas veio um sete e depois um dez e então veio um valete. O Gato arrastou a mesa, enquanto Pedro Bala fazia uma cara de grande aborrecimento e dizia:
- Amanhã, quando o peso te pegar, tu vai ver que te arraso.
O baixo confessou que estava limpo. O de bigodinho meteu as mãos nos bolsos:
- Tou só com os níqueis pra pagar a cerveja. O garoto é um braço.
Se levantaram, cumprimentaram o grupo, pagaram a cerveja que tinham bebido na outra mesa. O Gato os convidou a voltarem no outro dia. O baixo respondeu que o navio deles saía aquela noite para Caravelas. Só quando voltasse. E se foram, de braço dado, comentando a pouca sorte.
O Gato contou o lucro. Sem juntar o dinheiro que Pedro Bala e João Grande haviam perdido, existia um lucro de trinta e oito mil-réis. O Gato devolveu o dinheiro de Pedro Bala, depois o de João Grande, ficou um minuto pensando. Meteu a mão no bolso, tirou os cinco mil réis que o Querido-de-Deus havia perdido anteriormente:
- Toma, batuta. Tinha trapaça, eu não quero embolsar teu cobre...
O Querido-de-Deus beijou a nota com satisfação, bateu a mão nas costas do Gato:
- Tu vai longe, menino. Tu pode enricar com essas treitas.
Mas já o sol se punha e o homem não vinha. Eles pediram outra pinga. Com o cair da tarde o vento que vinha do mar aumentou. O Querido-de-Deus começava a ficar impaciente. Fumava cigarro sobre cigarro. Pedro Bala espiava para a porta. O Gato dividiu os trinta e oito mil-réis pelos três. João Grande perguntou:
- Como teria ido o Sem-Pernas com o abafa de chapéus?
Ninguém respondeu. Esperavam o homem e agora tinham a impressão que ele não viria. A informação tinha sido errada. Não ouviam sequer a canção que vinha do mar.A Porta do Mar estava deserta e seu Felipe quase dormia no balcão. Não tardaria, no entanto, a estar cheia, e então todo acerto seria impossível com o homem. Ele não haveria de querer conversar ali com o salão cheio. Poderiam conhecê-lo, e ele não queria isto. Tampouco o queriam os Capitães da Areia. Em verdade, o Gato não sabia de que se tratava. E pouco má sabiam Pedro Bala e João Grande. Sabiam quanto sabia o Querido-de-Deus, a quem o negócio tinha sido proposto e que o tinha aceito para Pedro Bala e os Capitães da Areia. No entanto, ele mesmo tinha apenas vagas informações e iam saber de tudo pelo homem que marcara uma entrevista à tarde na Porta do Mar. Mas até as seis horas não chegou. Em lugar dele chegou o tal que tinha falado ao Querido-de-Deus. Chegou na hora em que o grupo ia sair. Explicou que homem não tinha podido vir. Mas que esperava o Querido-de-Deus à noite, na rua em que morava. Viria por volta de uma da madrugada O Querido-de-Deus declarou que não podia ir, mas que entregava o assunto aos Capitães da Areia. O intermediário mirou os meninos, desconfiado. O Querido-de-Deus perguntou: - Nunca ouviu falar nos Capitães da Areia?
- Já, sim. Mas...
- De qualquer jeito quem ia tratar do negócio era eles. Daí...
O intermediário pareceu se conformar. Combinaram pan um da manha e se separaram. O Querido-de-Deus foi para seu barco, os Capitães da Areia para o trapiche, o intermediário desapareceu no cais.
O Sem-Pernas não havia ainda voltado. Não havia ninguém no trapiche. Deviam estar todos espalhados pelas ruas da cidade, cavando o jantar. Os três saíram novamente e foram comer num restaurante barato que havia no mercado. Na saída do trapiche, o Gato, que estava muito alegre com o resultado do jogo, quis passar uma rasteira em Pedro Bala. Mas este livrou o corpo e derrubou o Gato:
- Tou treinado nisso, bestão.
Entraram no restaurante fazendo barulho. Um velho, que era o garçom, se aproximou com desconfiança. Sabia que os Capitães da Areia não gostavam de pagar e que aquele de talho na cara era o mais temível de todos. Apesar de haver bastante gente no restaurante, o velho disse:
- Acabou tudo. Não tem mais boia.
Pedro Bala replicou:
- Deixa de conversa fiada, meu tio. Nós quer comer.
João Grande bateu a mão na mesa:
- Senão a gente vira esse frege-mosca de cabeça pra baixo.
O velho ficava indeciso. Então o Gato bateu o dinheiro em cima da mesa:
- Hoje nós vai fazer gasto.
Foi um argumento suficiente. O garçom começou a trazer os pratos: um prato de sarapatel e depois uma feijoada. Quem pagou foi o Gato. Depois Pedro Bala propôs que fossem andando até Brotas, pois já que iam a pé tinham muito que caminhar.
- Não vale a pena tomar a taioba - disse Pedro Bala. - É melhor que ninguém saiba que a gente foi pra lá.
O Gato então disse que chegaria depois e os encontraria lá. Tinha uma coisa que fazer antes. Ia avisar a Dalva para que não o esperasse essa noite.
E agora estavam ali, no Ponto das Pitangueiras, esperando que o guarda se alistasse. Escondidos no vão de um portal, não falavam. Ouviam o voo dos morcegos que atacavam os sapotis maduros nos pés. Finalmente, o guarda andou, eles ficaram espiando até que a sua figura desapareceu na curva que a rua fazia. Então atravessaram e entraram na alameda das chácaras e novamente se esconderam num portal. O homem não tardou muito. Saltou de um automóvel na esquina, pagou a corrida e veio subindo a alameda. Tudo o que se ouvia eram os seus passos e o rumor das folhas que o vento balançava nas árvores. Quando o homem vinha próximo, Pedro Bala saiu do portal.Os outros vieram logo depois e como que o guardavam, pareciam dois guarda-costas. O homem se aproximou mais do muro junto ao qual vinha andando. Pedro caminhava para ele. Quando estava defronte, parou:
- Pode me dar o fogo, senhor? - levava na mão um cigarro apagado.
O homem não disse nada. Sacou a caixa de fósforos, estendeu ao menino. Pedro riscou um e, enquanto acendia o cigarro, olhou para o homem. Depois, ao entregara caixa de fósforos, perguntou:
- É o senhor que se chama Joel?
- Porquê? - quis saber o homem. - Foi o Querido-de-Deus que nos mandou.
João Grande e o Gato se aproximavam. O homem mirou os três com espanto:
- Porém são uns meninos! Isso não é negócio para - Diga o que é, a gente sabe fazer o trabalho direito - retrucou Pedro Bala, quando os outros dois tinham se aproximado.
- Mas se um negócio que talvez nem homens... - e o homem pôs a mão na boca, como quem teme ter dito mais do que convinha.
- Nós sabe guardar um segredo tão bem como um cofre. E Capitães da Areia sempre faz os serviços bem feito...
- Os Capitães da Areia? Esse grupo de que falam os jornais? meninos abandonados? São vocês?
- É a gente, sim. E dos que manda.
O homem parecia refletir. Enfim se decidiu:
- Eu preferia entregar esse negócio a homens. Mas como tem que ser esta noite mesmo... O jeito...
- Vai ver como a gente sabe trabalhar. Não fique assustado.
- Venham comigo. Mas deixem que eu vá na frente. Vocês irão uns passos atrás de mim.
Os meninos obedeceram. Num portão o homem parou, abriu, ficou esperando. Veio de dentro um grande cão que lhe lambia as mãos. O homem fez os três entrarem, atravessaram uma rua de árvores, o homem abriu a porta da casa. Entraram para uma saleta, o homem pôs a capa e o chapéu numa cadeira e sentou-se. Os três estavam de pé. O homem fez sinal para que sentassem e primeiro eles miraram desconfiados as largas e cômodas poltronas. Isso Pedro Bala e João Grande, porque o Gato já estava se sentando muito a gosto, numa atitude displicente. A outro sinal do homem, Pedro e o Grande se sentaram, sendo que João Grande ficou sentado apenas na ponta da cadeira, como se temesse sujá-la. O homem tinha um ar de riso. De repente levantou-se e falou, mirando a Pedro, em quem reconhecera o chefe:
- O que vocês vão fazer é difícil e ao mesmo tempo é fácil. Agora o que tem é que é uma coisa que necessita que ninguém saiba.
- Não passa daqui - disse Pedro Bala.
O homem puxou o relógio do bolso: São uma e um quarto. Ele só volta às duas e meia... - olhava os Capitães da Areia ainda com indecisão.
- Então não é muito tempo - falou Pedro. - Se quer que a gente vá, é bom desembuchar logo...
O homem se decidiu:
- Duas ruas adiante desta. É a penúltima chácara à direita. Tem que evitar um cachorro que já deve estar solto. E bravo.
João Grande interrompeu:
- O senhor tem ai um pedaço de carne?
- Pra quê?
- Pro cachorro. Um pedaço chega.
Verei já. - Olhava os meninos. Parecia perguntar a si mesmo se devia confiar neles. - Vocês entram pelos fundos. Junto da cozinha, na parte de fora da casa, tem um quarto por cima da garagem. É o do empregado, que agora deve estar dentro de casa esperando o patrão. É no quarto dele que vocês vão entrar. Devem procurar um embrulho igual a este, igualzinho... Foi ao bolso da capa, trouxe um pequeno pacote amarrado com uma fita cor-de-rosa. - É igualzinho. Não sei se ainda estará no quarto.Também pode ser que o empregado o tenha no bolso. Se assim for, nada mais se pode fazer - e um desespero repentino pareceu tomá-lo. - Se eu tivesse podido ir esta tarde... Então, com certeza, ainda estaria no quarto.Mas agora quem sabe? - e cobriu o rosto com as mãos.
- Mesmo que esteja com o empregado se pode trazer... - disse Pedro.
- Não. É essencial que ninguém saiba que houve furto deste embrulho. O que vocês vão fazer é trocar os embrulhos, se o outro estiver no quarto.
- E se estiver com o empregado?
- Então... - e a fisionomia do homem novamente se alterou. João Grande pensou ouvir um nome que soava como Elisa. Mas talvez fosse ilusão de João Grande, que por vezes ouvia e via coisas que ninguém percebia. O negro era muito mentiroso.
- Então a gente troca os embrulhos do mesmo jeito. Pode ficar descansado. O senhor não conhece os Capitães da Areia.
Apesar do seu desespero, o homem sorriu da bravata de Pedro Bala:
- Então podem ir. Depois, tem que ser antes de duas horas, voltem aqui. Mas só quando a rua estiver deserta. Eu os esperarei. Acertaremos nossas contas então.Mas quero dizer outra coisa lealmente. Se vocês forem percebidos e presos, não me envolvam no caso Nada farei por vocês, porque meu nome não pode aparecer nisso tudo. Tratem de dar fim a este embrulho e não me chamem para nada. É ganhar ou perder...
- Neste caso - replicou Pedro Bala - é preciso marcar o preço. Quanto o senhor paga à gente?
- Dou 100$. Trinta para cada e mais 10$ para você - apontou para Pedro.
O Gato se mexeu na cadeira. Pedro fez sinal para que ele se calasse.
- O senhor dá cinquenta a cada e parece que ainda vai fazer negócio. São 150 bicos pros três. Senão, não tem embrulho.
O homem não vacilou muito. Olhava o relógio, onde os ponteiros corriam:
- Está bem.
Aí o Gato falou:
- Não é que a gente desconfie do senhor. Mas a coisa pode sair pelo avesso e o senhor mesmo disse que não se importaria com o que acontecesse à gente.
- E daí?
- É justo que o senhor nos passe logo algum.
João Grande apoiava o Gato com um gesto de cabeça. Pedro Bala repetiu as últimas palavras do outro:
- É justo, - repetiu também o homem. Tirou uma carteira do ou uma nota de cem mil-réis. Entregou a Pedro:
- Agora toca a andar. Se faz tarde.
Saíram. Pedro Bala disse:
- Pode ficar descansado. Daqui a uma hora a gente volta com o embrulho.
Em frente da casa a rua estava completamente deserta, numa janela da casa havia luz e eles viam a sombra de uma mulher que andava de um lado para outro o Grande bateu na testa:
- Me esqueci da carne pro cachorro.
Pedro Bala estava olhando a janela com luz, se voltou: Não tem nada. Isso me cheira a coisa de amigamento. O sujeito aquele derrubava a zinha daqui e agora o empregado tem as cartas que os dois se escrevia e quer dar o alarme. Esse pacote tá com perfume. É que o outro há de ter.
Fez sinal para os dois esperarem do outro lado da rua, chegou para perto do portão da casa. Logo que se encostou, um grande cão se aproximou latindo. Pedro Bala amarrou um cordel no ferrolho do portão, enquanto o cão andava de um lado para outro, latindo baixo. Depois chamou os outros dois:
- Tu - apontou pro Gato - fica aqui na rua pra dar o alarma se vem alguém. Tu, Grande, entra comigo.
Treparam na gradezinha do muro. Pedro Bala puxou com o cordão o ferrolho e o portão abriu. O Gato tinha ido para a esquina O cão ao ver o portão aberto se precipitou para a rua, ficou remexendo uma lata de lixo. Pedro Bala e João Grande pularam o muro, cerraram o portão para que o cachorro não pudesse entrar, se adiantaram entre as árvores. Na janela iluminada da casa o vulto de mulher continuava a andar. João Grande disse baixinho:
- Tenho pena dela.
- Quem manda deitar com outros... Perto da casa o negro ficou para transmitir o aviso do Gato se viesse alguém. Tinham assovios especiais para estes casos. Pedro Bala rodeou a casa, chegou à cozinha.A porta estava aberta, como também a do quarto sobre a garagem. Porém, antes de subir a escada que dava para o quarto, Pedro espiou pela porta da cozinha. Na copa havia luz e um homem jogava paciência. "Deve ser o tal empregado", pensou Pedro e rápido se afastou para a escada da garagem. Subiu de quatro, entrou no quarto do homem.Não havia luz. Pedro fechou a porta, acendeu um fósforo. Havia apenas uma cama, um baú e um cabide na parede. O fósforo se apagou, mas Pedro já estava em cima da cama, que co toda com as mãos. Depois viu embaixo do colchão. Tampouco nada. Desceu então da cama, se aproximou, sem fazer ruído, do baú. Suspendeu a tampa, acendeu um fósforo que prendeu nos dentes. Remexeu a roupa com cuidado, não havia nada. Cuspiu o fósforo depois se lembrou que o homem podia não fumar e então o recolheu ao bolso e foi até o cabide. Nada nos bolsos da roupa ali dependurada Pedro Bala acendeu outro fósforo, mirou todo o quarto: - Com certeza está com o homem. Agora é que vão ser elas.
Abriu a porta do quarto, desceu as escadas. Chegou na porta da cozinha, o homem ainda estava sentado. Então Pedro Bala reparou que ele estava sentado em cima do embrulho. Aparecia uma ponta sob a perna do homem. Pedro pensou que tudo estava perdido. Como iria ele tirar o embrulho de baixo da perna do homem? Saiu da porta da cozinha, foi andando para onde estava o Grande. Só se ele e o Grande atacassem o homem. Mas aí haveria gritaria, todo mundo saberia do roubo. E o senhor que os tinha empregado não queria saber disso. De repente teve uma ideia. Chegou perto de onde tinha deixado o Grande, assoviou baixinho. João Grande apareceu logo. Pedro falou em voz muito baixa:
- Olha, Grande, o tal empregado tá sentado em riba do embrulho. Tu vai chegar na porta da rua, apertar a campainha e sumir depois. É pro homem se levantar e eu abafar o embrulho. Mas dá o suíte logo pro homem não te ver, pensar que foi sonho. Deixa passar o tempo de eu chegar na cozinha.
Voltou rápido para a porta da cozinha. Dai a um minuto a campainha soou. O empregado levantou-se às pressas, abotoou o paletó e se dirigiu para a frente da casa pelo corredor, onde acendeu uma luz. Pedro Bala penetrou na copa, trocou os pacotes e abriu para os lados da chácara. Saltou o muro, assoviou para o Gato e João Grande. O Gato veio logo. Mas João Grande não apareceu. Andaram de um lado para outro e o negro não chegava. Pedro começava a ficar impaciente pensando que o empregado podia ter surpreendido João Grande e agora estar atracado com ele. Mas quando ele passara por aqueles lados não havia escutado nenhum ruído... Disse:
- Se ele demorar, a gente entra.
Assoviaram novamente, não tiveram resposta. Pedro Bala resolveu:
- Vamos entrar de novo...
Mas ouviram o assovio de João Grande, que não tardou a estar ao lado deles. Pedro perguntou:
- Onde tu te meteu?
O Gato tinha pegado o cachorro pela coleira e o punha para dentro do portão. Tiraram o cordel do ferrolho e desapareceram pelo outro lado da rua. Aí o Grande aplicou:
- Na hora que meti o dedão na campainha entonce a dama lá em cima ficou muito assustada. Pegou, abriu a janela, parecia que ia se atirar mesmo.Espiava que fazia medo. Tava mesmo chorando. Entonces eu tava com pena e trepei pela bica pra dizer a ela que não chorasse mais, que não tinha mais de quê. Que agente tinha abafado os papéis. E como tive que aplicar tudo a ela, tive que demorar...
O Gato perguntou muito curioso:
- Era boa, era?
- Era boa, sim. Passou a mão na minha cabeça, depois me disse que muito obrigado, que Deus ia me ajudar.
- Deixa de ser burro, negro. Eu tava perguntando se era boa mas pra cama. Se tu viu o coxame...
O negro não respondeu. Um automóvel entrava pela rua. Pedro Bala bateu no ombro do negro e João Grande sabia que o chefe estava aprovando o que ele fizera. Então seu rosto se abriu de satisfação e murmurou:
- Eu só queria ver acara do galego quando o patrão abrir o pacote não encontrar o que esperavam.
E, já em outra rua, os três soltaram a larga, livre e ruidosa. gargalhada dos Capitães da Areia, que era como um hino do povo da Bahia.
Capítulo 4 - As Luzes do Carrossel
O Grande Japonês não era senão um pequeno carrossel nacional, que vinha de uma triste peregrinação pelas paradas cidades do interior naqueles meses de inverno, quando as chuvas são longas e o Natal está muito distante ainda. De tão desbotada que estava a tinta, tinta que antigamente fora azul e vermelha e agora o azul era um branco sujo e o vermelho um quase cor-de-rosa, e de tantos pedaços que faltavam em certos cavalos e em certos bancos, Nhozinho França resolveu não armá-lo numa das praças centrais da cidade e sim em Itapagipe. Ali as famílias não são tão ricas, há muitas ruas só de operários e as crianças pobres saberiam gostar do velho carrossel desbotado. O pano tinha muitos buracos também, além de um rasgão enorme que fazia o carrossel depender da chuva. Já fora belo, fora mesmo o orgulho da meninada de Maceió noutros tempos. Ficava então ao lado de uma roda-gigante e de uma sombrinha, sempre na mesma praça, e nos domingos e feriados as crianças ricas, vestidas de marinheiro ou de pequeno lorde inglês, as meninas de holandesa ou de finos vestidos de seda, vinham se aboletar nos cavalos preferidos, indo os menores nos bancos com as aias. Os pais iam para a roda-gigante, outros preferiam a sombrinha onde podiam empurrar as mulheres, tocando muitas vezes nas coxas e nas nádegas.O parque de Nhozinho França era naquele tempo a alegria da cidade. E, mais que tudo, o carrossel dava dinheiro, rodando incansavelmente com as suas luzes de todas as cores. Nhozinho achava a vida boa, as mulheres belas, os homens amáveis para com ele, mas achava que a bebida era boa também, fazia os homens mais amáveis e as mulheres mais belas. E bebeu assim primeiro a sombrinha, depois a roda-gigante. Depois, como não queria se separar do carrossel, ao qual tinha um pegadio especial, o desarmou uma noite com o auxílio de amigos e começou a peregrinar nas cidades de Alagoas e Sergipe. Enquanto isto, os credores o xingavam de quanto nome feio conheciam.Andou muito Nhozinho França com o seu carrossel. Depois de percorrer todas as cidadezinhas dos dois estados, de se embriagar em todos os seus bares, penetrou no estado da Bahia e até para o bando de Lampião e lê deu uma função. Estava numa pobre vila do sertão e não lhe faltava o dinheiro apenas para o transporte do seu carrossel. Faltava para o miserável hotel onde se hospedara e que era o único da vila, e também o trago de pinga, para a cerveja, que não era gelada ali, assim mesmo ele gostava. O carrossel armado no capim da praça da Matriz estava parado fazia uma semana. Nhozinho França esperava a noite de sábado e a tarde de domingo para ver se fazia algum cobre para arribar para um lugar melhor. Mas na sexta-feira Lampião entrou na vila com vinte e dois homens e então o carrossel teve muito que trabalhar. Como as crianças, os grandes cangaceiros, homens que tinham vinte e trinta mortes, acharam belo o carrossel, acharam que mirar suas luzes rodando, ouvir a música velhíssima da sua pianola e montar naqueles estropiados cavalos de pau era a maior felicidade. E o carrossel de Nhozinho França salvou a pequena vila de ser saqueada, as moças de serem defloradas, os homens de serem mortos. Só mesmo os dois soldados da polícia baiana que lustravam as botas na frente do posto policial foram fuzilados pelos cangaceiros, assim mesmo antes que eles vissem o carrossel armado na praça da Matriz. Porque talvez ai aos soldados da polícia baiana Lampião perdoasse nessa noite de suprema felicidade para o bando de cangaceiros. Então eles foram como crianças, gozaram daquela felicidade que nunca haviam gozado na sua meninice de filhos de camponeses: montar e rodar num cavalo de madeira de um carrossel, onde havia música de uma pianola e onde as luzes eram de todas as cores: azuis, verdes, amarelas, roxas vermelhas como o sangue que sai do corpo dos assassinados.
Isso mesmo contou Nhozinho a Volta Seca que ficou excitadíssimo e ao Sem-Pernas naquela tarde em que os encontrou na Porta do Mar e os convidou para que o ajudassem no serviço de carrossel durante os dias que estivesse armado na Bahia, em Itapagipe. Não podia marcar ordenado, mas talvez desse para tirar cada um uns cinco mil-réis por noite. E quando Volta Seca mostrou suas habilidades em imitar animais os mais vários, Nhozinho França se entusiasmou por completo, mandou baixar mais uma garrafa de cerveja declarou que Volta Seca ficaria na porta chamando o público, enquanto o Sem-Pernas o ajudaria com as máquinas e tomaria conta pianola. Ele mesmo venderia as entradas enquanto o carrossel estivesse parado. Quando estivesse rodando, Volta Seca o faria. E de quando em vez, disse piscando o olho, um sai pra tomar uma pinga enquanto o outro faz o serviço de dois.
Volta Seca e o Sem-Pernas nunca haviam acolhido uma com tanto entusiasmo. Eles muitas vezes já tinham visto um carrossel mas quase sempre ouviam de longe, cercado de mistério, cavalgadas seus rápidos ginetes por meninos ricos e choraminguentos. O Se Pernas já tinha mesmo certo dia em que penetrou num Parque de Diversões armado no Passeio Público chegado a comprar entrada para um, mas o guarda o expulsou do recinto porque ele estava vestido de farrapos. Depois o bilheteiro não quis lhe devolver o bilhete da entrada, o que fez com que o Sem-Pernas metesse as mãos na gaveta da bilheteria, que estava aberta, abafasse o troco, e tivesse que desaparecer do Passeio Público de uma maneira muito rápida, enquanto em todo o Parque se ouviam os gritos de: Ladrão!, ladrão! Houve uma tremenda confusão, enquanto o Sem-Pernas descia muito calmamente a Gamboa de Cima, levando nos bolsos pelo menos cinco vezes o que tinha pago pela entrada. Mas o Sem-Pernas preferiria, sem dúvida, ter rodado no carrossel, montado naquele fantástico cavalo de cabeça de dragão, que era sem dúvida a coisa mais estranha e tentadora na maravilha que era o carrossel para os seus olhos. Criou ainda mais ódio aos guardas e maior amor aos carrosséis distantes. E agora, de repente, vinha um homem que pagava cerveja e fazia o milagre de o chamar para viver uns dias junto a um verdadeiro carrossel, movendo com ele, montando nos seus cavalos, vendo de perto rodarem as luzes de todas as cores. E para o Sem-Pernas, Nhozinho França não era o bêbado que estava em sua frente na pobre mesa da Porta do Mar. Para seus olhos era um ser extraordinário, algo como Deus, para quem rezava Pirulito, algo como Xangô, que era o santo de João Grande e do Querido-de-Deus. Porque nem o padre José Pedro e nem mesmo a mãe de santo Don'Aninha seriam capazes de realizar aquele milagre. Nas noites da Bahia, numa praça de Itapagipe, as luzes do carrossel girariam loucamente movimentadas pelo Sem-Pernas.Era como num sonho, sonho muito diverso dos que o Sem-Pernas costumava ter nas suas noites angustiosas. E pela primeira vez seus olhos sentiram-se úmidos de lágrimas que não eram causadas pela dor ou pela raiva. E seus olhos úmidos miravam Nhozinho França como a um ídolo. Por ele até a garganta de um homem o Sem-Pernas abriria com a navalha que traz entre a calça e o velho colete preto que lhe serve de paletó.
- É uma beleza - disse Pedro Bala olhando o velho carrossel armado. E João Grande abria os olhos para ver melhor. Penduradas estavam as lâmpadas azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas.
É velho e desbotado o carrossel de Nhozinho França. Mas tem a sua beleza. Talvez esteja nas lâmpadas, ou na música da pianola velhas valsas de perdido tempo, ou talvez nos ginetes de pau. Entre eles tem um pato que é para sentar dentro os mais pequenos.. Tem a sua beleza, sim, porque a opinião unânime dos Capitães da Areia é que ele é maravilhoso. Que importa que seja velho, roto e de cores apagadas se agrada às crianças?
Foi uma surpresa quase incrível quando naquela noite o Sem-Pernas chegou ao trapiche dizendo que ele e Volta Seca iam trabalhar uns dias num carrossel. Muitos não acreditaram, pensaram que fosse mais uma pilhéria do Sem-Pernas. Então iam perguntar a Volta Seca que, como sempre, estava metido no seu canto sem falar, examinando um revólver que furtara numa casa de armas. Volta Seca fazia que sim com a cabeça e por vezes dizia:- Lampião já rodou nele, Lampião é meu padrim... O Sem-Pernas convidou a todos para irem ver o carrossel na outra noite, quando o acabariam de armar. E saiu para encontrar Nhozinho - França. Naquele momento todos os pequenos corações que pulsavam no trapiche invejaram a suprema felicidade do Sem-Pernas, piano mesmo Pirulito, que tinha quadros de santos na sua parede, Volta mesmo João Grande, que nessa noite iria com o Querido-de-Deus ao candomblé de Procópio, no Matatu, até mesmo o Professor, que lia livros, e quem sabe se também Pedro Bala, que nunca tivera inveja de nenhum porque era o chefe de todos? Todos o invejaram, sim. Como invejaram Volta Seca, que no seu canto, o cabelo mestiço e despenteado, os olhos apertados e a boca rasgada naquele rictus raiva, apontava o revólver ora para um dos meninos, ora para um todos que passava, ora para as estrelas, que eram muitas no céu.
Na outra noite foram todos com o Sem-Pernas e Volta Seca e tinham passado o dia fora, ajudando Nhozinho a armar o carrossel ver o carrossel armado. E estavam parados diante dele, extasiados beleza, as bocas abertas de admiração. O Sem-Pernas mostrava tu Volta Seca levava um por um para mostrar o cavalo que tinha s cavalgado por seu padrinho Virgulino Ferreira Lampião. Eram quase cem crianças olhando o velho carrossel de Nhozinho França, estas horas estava encornado num pifão tremendo na Porta do Mar.
O Sem-Pernas mostrou a máquina um pequeno motor que falhava muito com um orgulho de proprietário. Volta Seca não se desprendia do cavalo onde rodara Lampião.O Sem-Pernas estava muito cuidadoso do carrossel e não deixava que eles o tocassem, que bulissem em nada.
Foi quando o Professor perguntou:
- Tu já sabe mover com as máquinas?
- Amanhã é que vou saber... - disse o Sem-Pernas com um certo desgosto. - Amanhã seu Nhozinho vai me ensinar.
- Então amanhã, quando acabar a função, tu pode botar ele pra rodar só com a gente. Tu bota as coisas pra andar, a gente se aboleta.
Pedro Bala apoiou a ideia com entusiasmo. Os outros esperavam a resposta do Sem-Pernas ansiosos. O Sem-Pernas disse que sim, e então muitos bateram palmas, outros gritaram. Foi quando Volta Seca deixou o cavalo onde montara Lampião e veio para eles:
- Quer ver uma coisa bonita?
Todos queriam. O sertanejo trepou no carrossel, deu corda na pianola e começou a música de uma valsa antiga. O rosto sombrio de Volta Seca se abria num sorriso.Espiava a pianola, espiava os meninos envoltos em alegria. Escutavam religiosamente aquela música que saía do bojo do carrossel na magia da noite da cidade da Bahia só para ai ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães da Areia. Todos estavam silenciosos. Um operário que vinha pela rua, vendo a aglomeração de meninos na praça, veio para o lado deles. E ficou também parado, escutando a velha música. Então a luz da lua se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso talvez que Yemanjá tivesse vindo também ouvir a música e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia. Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música. Volta Seca não pensava com certeza em Lampião neste momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar, onde os sonhos são todos belos. Porque a música saía do bojo do velho carrossel só para eles e para o operário que parara. E era uma unidade valsa velha e triste, já esquecida por todos os homens da cidade.
Desemboca gente de todas asmas. E noite de sábado, amanhã os homens não irão para o trabalho. Podem demorar na rua essa noite. Muitos preferiram ir para os bares, a Porta do Mar está cheia, mas co que tinham filhos vieram com eles para a praça, que é mal iluminada. Em compensação aí estão as luzes do carrossel que rodam. As crianças olham para elas e batem palmas. Em frente à bilheteria Volta Seca imita vozes de animais e chama o público. Leva uma cartucheira como se estivesse no sertão. Nhozinho França achou que isto chamaria a atenção do povo e Volta Seca parece mesmo um cangaceiro com o chapéu de couro e a cartucheira atravessada. E imita animais até que se reúnam homens, mulheres e crianças na sua frente. Então oferece entradas, que as crianças compram. Vai uma alegria por toda a praça. As luzes do carrossel alegram a todos. No centro, agachado, o Sem-Pernas ajuda Nhozinho França a botar o motor para trabalhar. E carrossel gira, carregado de meninos, a pianola toca suas velhas valsas, Volta Seca vende entradas.
Na praça, casais de namorados passeiam. Mães de família compram picolés e sorvetes, um poeta sentado perto do mar faz um poema sobre as luzes do carrossel e a alegria das crianças. O carrossel ilumina toda a praça e todos os corações. A cada momento desemboca das ruas e dos becos. Volta Seca imita os animais, vestido de cangaceiro. Quando o carrossel para de girar, os meninos o invadem, exibindo o bilhete de ingresso, e é difícil conte-los. Quando um encontra mais lugar, fica comum rosto magoado de desilusão e impaciente a sua vez. E quando o carrossel para, os que vão nele querem saltar, é preciso que o Sem-Pernas venha e diga:
- Pula fora! Pula fora! Ou então compra outra entrada.
Só assim deixam os velhos cavalos, que nunca se cansam da corrida. Outros cavalgam os ginetes e a corrida recomeça, as girando, todas as cores fazendo uma cor única e estranha, a pi tocando sua antiga música. Também vão casais de namorados bancos e enquanto gira o carrossel murmuram palavras de amor. Há mesmo quem troque um beijo na corrida, quando o motor falha e as luzes se apagam. Então Nhozinho França e o Sem-Pernas se debruçam sobre o motor e examinam o defeito até a corrida recomeçar, abafando os protestos dos meninos. O Sem-Pernas já aprendeu todos os mistérios do motor.
Certa hora Nhozinho França manda que o Sem-Pernas vá substituir Volta Seca na venda de bilhetes. E manda que Volta Seca vá andar no carrossel. E o menino toma o cavalo que serviu a Lampião. E enquanto dura a corrida, vai pulando como se cavalgasse um verdadeiro cavalo. E faz movimentos com o dedo, como se atirasse nos que vão na sua frente, e na sua imaginação os vê cair banhados em sangue, sob os tiros da sua repetição. E o cavalo corre e cada vez com mais, e ele mata a todos, porque são todos soldados ou fazendeiros ricos. Depois possui nos bancos a todas as mulheres, saqueia vilas, cidades, tens de ferro, montado no seu cavalo, armado com seu rifle.
Depois vai o Sem-Pernas. Vai calado, uma estranha comoção o possui. Vai como um crente para uma missa, um amante para o seio da mulher amada, um suicida para a morte. Vai pálido e coxeia. Monta um cavalo azul que tem estrelas pintadas no lombo de madeira. Os lábios estão apertados, seus ouvidos não ouvem a música da pianola só vê as luzes que giram com ele e prende em si a certeza de que está num carrossel, girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os ame. Pensa que é um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza. Já Se vê os soldados que o surraram, o homem de colete queria. Volta Seca os matou na sua corrida. O Sem-Pernas vai teso no seu cavalo. É como se corresse sobre o mar para as estrelas, na mais maravilhosa viagem do mundo.Uma viagem como o Professor nunca leu nem inventou. Seu coração bate tanto, tanto, que ele o aperta com a mão.
Nesta noite os Capitães da Areia não vieram. Não só a função carrossel na praça terminou muito tarde às duas horas da manhã os homens ainda rodavam, como muitos deles, inclusive Pedro Bala Boa-Vida, Barandão e o Professor, estavam ocupados em viria assuntos. Marcaram para o dia seguinte, das três para as quatro da manhã. Pedro Bala perguntou ao Sem-Pernas se ele já sabia manobrar bem com o motor: Não paga a pena dar um prejuízo ao teu patrão - explicou.
- Já sei aquilo tudo de cor e decorado. É o tipo da coisa canja.
O Professor, que jogava damas com João Grande, perguntou:
- Não era bom agente de tarde dá um pulo na praça? Quem sabe se não vale a pena?
- Eu vou - falou Pedro Bala. - Mas acho que não pode ir muitos. A turma pode desconfiar de ver tanto junto.
O Gato disse que de tarde não ia. Tinha o que fazer, já que à noite ia estar ocupado no carrossel. O Sem-Pernas mangou:
- Tu não pode passar um dia sem bater coxas com essa bruaca, não é? Tu vai acabar tatu...
O Gato não respondeu. João Grande também não iria à tarde. Tinha que ir encontrar como Querido-de-Deus para irem comer uma feijoada na casa de Don'Aninha, a mãe de santo.Finalmente ficou resolvido que fosse um grupo pequeno operar à tarde na praça. Os outros iriam para onde bem quisessem. Só à noite se reuniriam para irem todos correr no carrossel.
- É preciso levar gasolina, gente, pro motor.
O Professor tinha vencido João Grande já em três partidas fez uma coleta para comprarem dois litros de gasolina:
- Eu levo.
Mas na tarde do domingo chegou o padre José Pedro, que era uma das raríssimas pessoas que sabiam onde ficava a pousada mais permanente dos Capitães da Areia. O padre José Pedro se fizera amigo deles há bastante tempo. A amizade veio por intermédio do Boa-Vida. Este, um dia, penetrara, após uma missa, na sacristia de uma igreja onde oficiava padre José Pedro. Penetrara mais por curiosidade que por outra qualquer coisa. Boa-Vida não era dos que mais faziam pela vida. Gostava de deixara vida correr, sem se preocupar muito. Era mais um parasita do grupo. Um dia, quando lhe dava ganas, entrava numa casa de onde trazia um objeto de valor ou batia o relógio de um homem. Quase nunca o punha ele mesmo na mão dos intermediários. Trazia e entregava a Pedro Bala, assim como uma contribuição que dava ao grupo. Tinha muitos amigos entre os estivadores do cais, em várias casas pobres da Cidade de Palha, em muitos pontos da Bahia Comia em casa de um, em casa de outro.Em geral não aborrecia a nenhum. Se contentava com as mulheres que sobravam do Gato e mais que nenhum conhecia a cidade, suas ruas, seus lugares curiosos, uma festa onde podiam ir beber e dançar. Quando já tinha algum tempo que havia contribuído com algum objeto de valor para a economia do grupo, fazia um esforço, arranjava algo que rendesse dinheiro e entregava a Pedro Bala. Mas realmente não gostava de nenhuma espécie de trabalho, fosse honesto ou desonesto. Gostava era de deitar na areia do cais, horas e horas espiando os navios, de ficar de cócoras tardes inteiras nos portões dos armazéns do porto ouvindo histórias de valentias. Vestia-sede farrapos, pois só providenciava arranjar uma roupa quando seu traje caía aos pedaços. Gostava de andar ao léu nas ruas da cidade, entrando nos jardins para fumar um cigarro sentado num banco, entrando nas igrejas para espiar a beleza do ouro velho, flanando pelas ruas calçadas de grandes pedras negras.
Naquela manhã, quando viu o povo saindo da missa, entrou a igreja displicentemente e foi furando até a sacristia. Espiava tudo, os altares, os santos, riu de um São Benedito muito preto. Na sacristia não tinha ninguém e ele viu um objeto de ouro que devia dar muito dinheiro. Espiou mais uma vez, não viu ninguém. Foi passando a mão mas alguém tocou no seu ombro. O padre José Pedro acabara de entrar:
- Por que faz isso, meu filho? - perguntou com um sorris enquanto tirava da mão do Boa-Vida o relicário de ouro.
- Tava só dando uma espiada, reverendo. É batuta - responde Boa-Vida com certo receio. - E batuta mesmo. Mas não vá pensando que ia levar. Ia deixar aí direitinho.Sou de boa família.
O padre José Pedro espiou as roupas do Boa-Vida e riu. Boa-Vida olhou também para seus trapos:
- É que meu pai morreu, sabe? Mas até num colégio estive... Tou falando a verdade. Pra que é que eu ia roubar essa coisa? apontava o relicário. - Demais numa igreja. Não sou pagão.
O padre José Pedro sorriu de novo. Sabia perfeitamente que Boa-Vida estava mentindo. Há muito que ele aguardava uma oportunidade para travar relações comas crianças abandonadas da cidade. Pensava que aquela era a missão que lhe estava reservada. Já fizera umas tantas visitas ao reformatório de menores, mas ali lhe punham todas as dificuldades porque ele não esposava as ideias do diretor de que é necessário surrar uma criança para a emendar de um erro. E mesmo o diretor tinha ideias únicas sobre os erros. Há bastante tempo que o padre José Pedro ouvia falar nos Capitães da Areia e sonhava entrar em contato com eles, poder trazer todos aqueles corações a Deus. Tinha uma vontade enorme de trabalhar com aquelas crianças, de ajudá-las a serem boas. Por isso tratou o melhor que pôde a Boa-Vida. Quem sabe se por intermédio dele não chegaria, aos Capitães da Areia? E assim foi.
O padre José Pedro não era considerado uma grande inteligência entre o clero. Era mesmo um dos mais humildes entre aquela legião de padre s da Bahia. Em verdade fora cinco anos operário numa fábrica de tecidos, antes de entrar para o seminário. O diretor da fábrica, num dia em que o bispo a visitara, resolveu dar mostra de generosidade e disse que já que o senhor bispo se queixava da falta de vocação sacerdotal, ele estava disposto a custear os estudos de um seminarista ou de alguém que quisesse estudar para padre. José Pedro, que estava no seu tear, ouvindo, se aproximou e disse que ele queria ser padre. Tanto o patrão como o bispo tiveram uma surpresa. José Pedro já não era moço e não tinha estudo algum. Mas o patrão, diante do bispo, não quis voltar atrás. E José Pedro foi para o seminário. Os demais seminaristas riam dele. Nunca conseguiu ser um bom aluno. Bem comportado, isso era. Também dos mais devotos, daqueles que mais se acercavam da igreja. Não estava de acordo com muitas das coisas que aconteciam no seminário e por isso os meninos o perseguiam. Não conseguia penetrar os mistérios da filosofia, da teologia e do latim. Mas era piedoso e tinha desejos de catequizar crianças ou índios. Sofreu muito, principalmente depois que, passados dois anos, o dono da fábrica deixou de pagar seus gastos e ele teve que trabalhar de bedel no seminário para poder continuar. Mas conseguiu se ordenar e ficou adido a uma igreja da capital, esperando uma paróquia. Porém seu grande desejo era catequizar as crianças abandonadas da cidade, os meninos que, sem pai e sem mãe, viviam do roubo, em meio a todos os vícios.O padre José Pedro queria levar aqueles corações todos a Deus. Assim começou a frequentar o reformatório de menores, onde a princípio o diretora recebia com muita cortesia. Mas quando ele declarou contra os castigos corporais, contra deixar as crianças co fome dias seguidos, então as coisas mudaram. Um dia teve escrever uma carta sobre o assunto para a redação de um jornal. Então sua entrada foi proibida no reformatório e até uma queixa contra foi dirigida ao arcebispado. Por isso não teve uma freguesia Porém seu maior desejo era conhecer os Capitães da Areia, problema dos menores abandonados e delinquentes, que quase preocupava a ninguém em toda a cidade, era a maior preocupação padre José Pedro. Ele queria se aproximar daquelas crianças não para trazê-las para Deus, como para ver se havia algum meio melhorar sua situação. Pouca influência tinha o padre José Pedro. Não tinha mesmo influência nenhuma, nem tampouco sabia como agir para ganhar a confiança daqueles pequenos ladrões. Mas s que a vida deles era falta de todo o conforto, de todo carinho, uma vida de fome e de abandono. E se o padre José Pedro não cama, comida e roupa para levar até eles, tinha pelo menos pala de carinho e, sem dúvida, muito amor no seu coração. Numa se enganou, a princípio, o padre José Pedro: em lhes oferecer, trocado abandono da liberdade que gozavam, soltos na rua, possibilidade de vida mais confortável. O padre José Pedro sabia que não podia acenar com o reformatório àquelas crianças. Ele conhecia demais as leis do reformatório, as escritas e as que cumpriam. E sabia que não havia possibilidade de nele uma criança tomar boa e trabalhadora.Mas o padre José Pedro confiava em amigas que possuía, beatas velhas e religiosas. Elas podiam se encarregar de vários dos Capitães da Areia, de educá-los e alimentá-los.Mas isso seria o abandono de tudo de grande que tinha a vida a aventura da liberdade nas ruas da mais misteriosa e bela das cidades do mundo, nas ruas da Bahia de Todos os Santos. E logo que, intermédio de Boa-Vida, o padre José Pedro fez relações com Capitães da Areia, viu que se lhes fizesse essa proposta perderia a confiança que já depositavam nele e que se mudariam do trapiche ele nunca mais os veria. Além do mais não tinha absoluta co naquelas solteironas velhuscas que viviam metidas na igreja e aproveitavam os intervalos das missas para comentarem a vida Lembrava-se que, a princípio, elas tinham ficado magoadas com ele porque, ao acabar de celebrar pela primeira vez naquela igreja, um grupo de beatas se acercou dele com o evidente propósito de o ajudar a mudar os trajes do oficio da missa. E ressoaram em torno a ele exclamações comovidas: - Reverendozinho... Anjo Gabriel...
Uma velhusca magra juntava as mãos em adoração:
- Meu Jesuscristozinho...
Pareciam adorá-lo e o padre José Pedro se revoltou. Em verdade ele sabia que a grande maioria dos padre s não se revoltava e ganhava tons presentes de galinhas, perus, lenços bordados e por vezes até antigos relógios de ouro que passavam através de gerações na mesma família. Mas o padre José Pedro tinha outra ideia da sua missão, pensava que os outros estavam errados e foi com um furor sagrado que disse:
- As senhoras não têm o que fazer? Não têm casa de que cuidar? Eu não sou Jesuscristozinho, nem Anjo Gabriel... Vão para suas casas trabalhar, preparar o almoço, coser.
As beatas o olhavam assombradas. Era como se ele fosse o próprio Anticristo. O padre completou:
- Em suas casas trabalhando servem melhor a Deus que aqui cheirando as fraldas dos padre s... Vão, vão...
E enquanto elas saíam atemorizadas, ele repetia mais com magoa que com raiva:
- Jesuscristozinho... O nome de Deus em vão.
As beatas foram diretas ao padre Clóvis, que era gordo, calvo e muito bem-humorado, confessor preferido de todas elas. Narraram-lhe entre exclamações de assombro o que acabara de se passar. O padre Clóvis mirou as beatas com um olhar terno e as consolou:
- Logo passará... Isto é começo. Depois ele verá que vocês são mis santas, umas verdadeiras filhas do Senhor. Isso passará. Não fiquem tristes. Vão rezar um padre-nosso e não se esqueçam que há benção hoje.
Ficou rindo quando elas partiram. E murmurava de si para si:
- Esses padre s recém-ordenados estragam a vida da gente...
Depois as beatas foram aos poucos se aproximando novamente do padre José Pedro. A verdade é que nunca chegaram a ter com uma perfeita intimidade. O seu ar sério, a sua bondade que se reservava para quando se fazia necessária, e seu horror às intriguinhas sacristia faziam com que elas o respeitassem mais que o amassem. Algumas, no entanto, aquelas que em geral eram ou viúvas ou esposas de maus maridos, se fizeram mais ou menos suas amigas. Outra cais o afastava das beatas: ele era a negação do pregador. Nunca havia conseguido descrever o inferno com a força de convicção do padre Clóvis, por exemplo. Sua retórica era pobre e falha. No entanto, ele acreditava, ele era um crente. E dificilmente se poderia dizer que padre Clóvis acreditasse pelo menos no inferno.
A princípio o padre José Pedro pensara em levar os Capitães da Areia às beatas. Pensava que assim salvaria não só as crianças de vida miserável, como salvaria também as beatas de uma inutilidade perniciosa. Poderia conseguir que elas se dedicassem aos meninos com a mesma fervorosa devoção com que se dedicavam às igrejas, aos gordos padre s. O padre José Pedro adivinhava mais do que sabia se elas passavam os dias em inúteis conversas nas igrejas, ou aba lenços para o padre Clóvis, era porque não haviam tido, na malograda existência de virgens, um filho, um esposo, a quem dedicar seu tempo e seu carinho. Agora ele levaria filhos para elas.Muito tempo o padre José Pedro acariciou este projeto. Chegou mesmo levar para casa de uma um menino do reformatório. Isso muito de conhecer os Capitães da Areia, quando apenas ouvia falar nela experiência deu maus resultados: o menino arribou da casa da solteirona levando uns objetos de prata, preferindo a liberdade da rua mesmo vestido de farrapos e sem muita certeza de almoço, aos trajes e ao almoço garantido com a obrigação de rezar o terço em alta, assistir várias missas e bênçãos todos os dias. Depois o padre José Pedro compreendeu que a experiência tinha fracassado mais por culpa da solteirona que do menino. Porque evidentemente - pensa padre José Pedro - é impossível converter uma criança abandona e ladrona em um sacristão. Mas é muito possível convertê-la em um homem trabalhador... E esperava quando conhecesse os Capitães da Areia entrar num acordo com alguns deles e com as beatas para tá uma nova experiência, agora bem dirigida. Mas logo depois que Boa-Vida o apresentou ao grupo, que aos poucos ganhou a confiança da maioria, viu que era totalmente inútil pensar nesse projeto. Viu que era absurdo, porque a liberdade era o sentimento mais arraigado nos corações dos Capitães da Areia e que tinha que tentar outros meios.
Nas primeiras vezes os meninos o olhavam com desconfiança. Ouviam muitas vezes na rua dizer que padre dava peso, que negócio de padre era para mulher. Mas o padre José Pedro tinha sido operário e sabia como tratar os meninos. Tratava-os como a homens, como a amigos. E assim conquistou a confiança deles, se fez amigo de todos, mesmo daqueles que, como Pedro Bala e o Professor, não gostavam de rezar. Dificuldade grande só teve mesmo com o Sem-Pernas. Enquanto que o Professor, Pedro Bala, o Gato eram indiferentes às palavras do padre o Professor, no entanto, gostava dele, pois lhe trazia livros, Pirulito, Volta Seca e João Grande, principalmente o primeiro, muito atentos ao que ele dizia, o Sem-Pernas lhe fazia uma oposição que a princípio tinha sido muito tenaz. Porém o padre José Pedro terminara por conquistara confiança de todos. E pelo menos em Pirulito descobrira uma vocação sacerdotal.
Mas naquela tarde não foi com muita satisfação que o viram chegar. Pirulito se aproximou e beijou a mão do padre. Volta Seca também. Os demais o cumprimentaram.O padre José Pedro explicou:
- Hoje venho fazer um convite a todos vocês.
Os ouvidos se fizeram atentos. O Sem-Pernas resmungou:
- Vai chamar a gente pra bênção. Só quero ver quem topa...
Mas se calou porque Pedro Bala o olhava com raiva. O padre sorriu com bondade. Sentou-se num caixão, João Grande viu que a batina dele era suja e velha. Tinha remendos feitos com linha preta e era grande para a magreza do padre. Cutucou Pedro Bala, que espiou também. Então o Bala disse:
- Minha gente, o padre José Pedro, que é amigo de nós, tem uma bisa pra gente. Viva o padre José Pedro!
João Grande sabia que tudo era por causa da batina rasgada e grande para a magreza do padre. Os outros responderam viva, o padre sorriu acenando com a mão, João Grande não tirava os olhos da batina. Pensou que Pedro Bala era mesmo um chefe, sabia de tudo, sabia fazer tudo. Por Pedro Bala, João Grande se deixaria cortar a facão como aquele negro de Ilhéus por Barbosa, o grande senhor do cangaço. O padre José Pedro meteu a mão no bolso da batina, tirou o breviário negro. Abriu e de dentro sacou algumas notas de dez mil-réis:
- Isso é pra gente andar no carrossel hoje... Convido vocês todos para andarem hoje no carrossel da praça de Itapagipe.
Esperava que os rostos se animassem mais. Que uma extraordinária alegria reinasse em toda sala. Porque assim ficaria ainda mais convicto de que estava servindo a Deus quando daqueles quinhentos mil-réis que dona Guilhermina Silva dera para comprar velas pano altar da Virgem tirara cinquenta mil-réis para levar os Capitães da Areia ao carrossel. E como os rostos não ficaram subitamente alegres, ele ficou desconcertado, as notas na mão, olhando a multidão de meninos. Pedro Bala coçou o cabelo que lhe caía sobre as orelhas, quis falar, não acertou. Olhou então para o Professor, e foi este quem aplicou:
- Padre, o senhor é um homem bom. - Teve vontade de dir que o padre era bom como João Grande, mas pensou que talvez o padre se ofendesse se ele o comparasse ao negro. - Mas o que temi que o Sem-Pernas e Volta Seca tão os dois trabalhando no carrossel. E a gente tá convidado - aí fez uma pequena pausa - pelo proprietário, que é amigo deles, pra andar à noite de graça. Agente não esquece do convite do senhor... - O Professor falava pausado escolhendo as palavras, pensando que aquele era um momento delicado, adivinhando muita coisa, e Pedro Bala o apoiava com a cabeça.
- Fica pra outra vez. Mas o senhor não vai zangar com a gente porque a gente não aceita? Não vai, não é? - e espiava o padre, cujo rosto agora estava novamente alegre.
- Não. Fica pra outra vez. - Olhou para os meninos sorrindo - Foi até melhor assim. Porque o dinheiro que eu tinha... - e se calou de repente ante o fato que ia contar. E pensou que talvez tive, sido uma lição de Deus, um aviso, e que tivesse feito uma com malfeita. Seu olhar foi tão estranho, que os meninos se aproximam um passo.
Olhavam para o padre sem compreender. Pedro Bala franzia testa como quando tinha um problema a resolver, o Professor tentou falar. Mas, João Grande compreendeu tudo, apesar de ser o mais burro de todos:
- Era da igreja, padre? -e bateu na boca com raiva de si mesmo.
Os outros entenderam. Pirulito pensou que tivesse sido um grande pecado, mas sentiu que a bondade do padre era maior que o pecado. Então o Sem-Pernas veio coxeando ainda mais que o seu natural, como se viesse lutando consigo mesmo, chegou peno do padre e quase gritou a princípio, se bem logo baixasse muito a voz:
- A gente pode botar no lugar onde estava... É coisa canja pra gente. Não fique triste... - e sorria.
E o sorriso do Sem-Pernas e a amizade que o padre lia nos olhos de todos haveria lágrimas nos olhos do Grande lhe restituíram a calma, a serenidade, a confiança no seu ato e no seu Deus. Disse com sua voz natural:
- Uma velha viúva deu quinhentos mil-réis para vela. Eu tirei cinquenta para vocês andarem no carrossel. Deus julgará se fiz bem. Agora compro mesmo de vela.
Pedro Bala sentia que tinha uma dívida a saldar com o padre. Queria que o padre soubesse que todos eles compreendiam. E como não achasse nada mais à mão, se dispôs a perder o trabalho que poderiam fizer naquela tarde e convidou o padre:
- A gente vai pro carrossel ver Volta Seca e Sem-Pernas agora de tarde. Quer ir com a gente, padre?
Padre José Pedro disse que sim, porque sabia que aquilo era mais um passo na sua intimidade com os Capitães da Areia. E foi um grupo pm o padre para a praça. Vários não foram, o Gato inclusive, que foi ver Dalva. Mas os que iam pareciam um bando de bons meninos que tinham do catecismo. Se estivessem bem vestidos e limpos, pareceria um colégio de tão em ordem que eles iam.
Na praça rodaram tudo com o padre. Mostravam com orgulho Volta Seca imitando animais, vestido de cangaceiro, o Sem-Pernas fazendo sozinho o carrossel girar, porque Nhozinho França fora tomar uma cerveja num bar. Uma pena que à tarde as luzes do carrossel não estivessem acesas. Não era tão belo como à noite, as luzes girando de todas as cores. Mas eles tinham orgulho de Volta Seca imitando animais, do Sem-Pernas movimentando o carrossel, fazendo as crianças subirem, as crianças baixarem. O Professor, com um pedaço de lápis e uma tampa de caixa, desenhou Volta Seca vestido de cangaceiro. Tinha um jeito especial para desenhar e por vem ganhava dinheiro fazendo desenho, nas calçadas, de homens que passavam, de senhoritas que iam com os noivos. Estes paravam um minuto, riam do desenho ainda indeciso, as noivas diziam:
- Está muito parecido...
Ele recolhia os níqueis e então ficava a retocar o desenho feito a giz, a ampliá-lo, a colocar homens decais e mulheres da vida, até um guarda o expulsava da calçada.Por vezes já tinha um grupo espiando e havia quem dissesse:
- Este menino promete. É pena que o governo não olhe e vocações... - e lembravam casos de meninos da rua que, ajudados famílias, foram grandes poetas, cantores e pintores.
O Professor acabou o desenho no qual pôs o carrossel e Nhozinho França caindo de bêbado e deu ao padre. Estavam todos num cerrado espiando o desenho, que o padre elogiava, quando ouviram:
- Mas é o padre José Pedro...
E o lorgnon da velha magra se assestou contra o grupo como arma de guerra. O padre José Pedro ficou meio sem jeito, os me olhavam com curiosidade os ossos do pescoço e do peito da velha onde um barret custosíssimo brilhava à luz do sol. Houve um m to em que todos ficaram calados, até que o padre José Pedro ânimo e disse:
- Boa tarde, dona Margarida.
Mas a viúva Margarida Santos assestou novamente o lorgnon de ouro.
- O senhor não se envergonha de estar nesse meio, padre? Um sacerdote do Senhor? Um homem de responsabilidade no meio desta gentalha...
- São crianças, senhora.
A velha olhou superiora e fez um gesto de desprezo com a boca. O padre continuou:
- Cristo disse: Deixai vir a mim as criancinhas...
- Criancinhas... Criancinhas... - cuspiu a velha.
- Ai de quem faça mala uma criança, falou o Senhor - e o padre José Pedro elevou a voz acima do desprezo da velha.
- Isso não são crianças, são ladrões. Velhacos, ladrões. Isso não do são crianças. São capazes até de ser dos Capitães da Areia... Ladrões - repetiu com nojo.
Os meninos a fitavam com curiosidade. Só o Sem-Pernas, que tinha vindo do carrossel pois Nhozinho França já voltara, a olhava com raiva. Pedro Bala se adiantou um passo, quis explicar:
- O padre só quer aju...
Mas a velha deu um repelão e se afastou.
- Não se aproxime de mim, não se aproxime de mim, imundície.
Se não fosse pelo padre eu chamava o guarda.
Pedro Bala aí riu escandalosamente, pensando que se não fosse pelo padre a velha já não teria o barret nem tampouco o lorgnon. A velha se afastou com um ar de grande superioridade, não sem dizer es para o padre José Pedro:
- Assim o senhor não vai longe, padre. Tenha mais cuidado com suas relações.
Pedro Bala ria cada vez mais, e o padre também riu, se bem sentisse triste pela velha, pela incompreensão da velha. Mas o carrossel girava com as crianças bem vestidas e aos poucos os olhos dos Capitães da Areia se voltaram para ele e estavam cheios de desejo de ar nos cavalos, de girar com as luzes. Eram crianças, sim- pensou padre.
No começo da noite caiu uma carga d'água. Também as nuvens logo depois desapareceram do céu e as estrelas brilharam, ou também a lua cheia. Pela madrugada os Capitães da Areia vieram. O Sem-Pernas botou o motor para trabalhar. E eles esqueceram não eram iguais às demais crianças, esqueceram que não tinham, nem pai, nem mãe, que viviam de furto como homens, que temidos na cidade como ladrões. Esqueceram as palavras da velha de lorgnon. Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel, girando com as luzes. As estrelas brilhavam, brilhava a lua cheia. Mas, mais que tudo, brilhavam noite da Bahia as luzes azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas, do Grande Carrossel Japonês.
Capítulo 5 - Docas
Pedro Bala bateu a moeda de quatrocentos réis na parede da Alfândega, ela caiu adiante da de Boa-Vida. Depois Pirulito bate dele, a moeda ficou entre a de Boa-Vida e a de Pedro Bala. Boa-Vida estava acocorado, espiando. Tirou o cigarro da boca:
- Eu gosto é assim mesmo. De começar ruim...
E continuaram o jogo, mas Boa-Vida e Pirulito perderam moedas de quatrocentão, que Pedro Bala embolsou:
- Eu sou é bamba mesmo.
Diante deles estavam os saveiros ancorados. Do Mercado mulheres e homens. Eles esperavam nesta tarde o saveiro do Querido-de-Deus. O capoeirista estava numa pescaria, que sua profissão e pescador. Continuaram o jogo do cruzado até que Pedro Bala limpou os outros dois. A cicatriz do seu rosto brilhava. Gostava de vai assim num jogo limpo, principalmente quando os parceiros eram da força do Pirulito que fora muito tempo o campeão do grupo e de Boa-Vida. Quando terminaram, Boa-Vida puxou o bolso para fora:
- Tu vai me emprestar nem que seja um cruzado. Tou a nem-nem.
Depois mirou o mar, os saveiros ancorados:
- Querido-de-Deus vai chegar de tardinha. Vamos pias a Pirulito disse que ficava esperando o Querido-de-Deus, mas Pedro Bala foi com Boa-Vida para as docas. Atravessaram as ruas do cais, afundaram os pés na areia.Um navio desatracava do armazém 5, haviam movimento de gente que entrava e saía. Pedro Bala perguntou ao Boa-Vida:
- Tu não tem vontade de ser marítimo?
- Tá vendo... Gosto daqui. Não quero arribar, não.
- Pois eu tenho vontade. É bonito trepar num mastro. E um temporal, bem? Tu te lembra daquela história que o Professor leu pra gente? Aquela que tinha um temporal.Batuta...
- Era porreta, sim.
Pedro Bala ficou se lembrando da história. Boa-Vida achava besteira sair da Bahia, onde, quando crescesse, seria tão fácil viver uma boa existência de malandro, navalha na calça, violão debaixo do braço, uma morena para derrubar no areal. Era a existência que desejava ter quando se fizesse completamente homem.
Chegaram ao portão do armazém sete. João de Adão, um estivador negro e fortíssimo, antigo grevista, temido e amado em toda a estiva, estava sentado num caixão.Fumava cachimbo e os músculos saltavam sob sua camisa. Quando viu os meninos foi saudando:
- Olha o amigo Boa-Vida. E o Capitão Pedro.
Só chamava Pedro de Capitão Pedro e gostava de conversar com eles. Ofereceu um pedaço de caixão a Pedro Bala, Boa-Vida se acocorou na sua frente. Num canto, uma negra velha vendia laranjas cocadas, vestida com uma saia de chitão e uma anágua que deixava ver os seios ainda duros apesar da sua idade. Boa-Vida ficou espiando os peitos da negra, enquanto descascava uma laranja que apanhara no bueiro.
- Tu ainda tem uma peitam a bem boa, hein, tia?
A negra sorriu:
- Esses meninos de hoje não respeita os mais velho, compadre João de Adão. Onde já se viu um capetinha destes falar em peito pra a velha encongrujada como eu?
Deixa de conversa, tia. Tu ainda topa a coisa...
A negra riu com vontade:
- Já fechei a cancela, Boa-Vida. Passei da idade. Pergunta este... - aponta João de Adão. - Vi quando ele, quase menino as como tu, fez a primeira greve aqui nas doca. Naquele tempo ninguém sabia que diabo era greve. Tu te lembra, compadre?
João de Adão balançou a cabeça que sim, fechou os o recordando os longínquos tempos da primeira greve que chefiara docas. Era um dos doqueiros mais velhos, embora ninguém lhe d a idade que tinha.
Pedro Bala falou:
- Negro quando pinta, três vezes trinta.
A negra mostrou a carapinha toda pintada de branco. Tinha tirado o lenço que enrolava na cabeça e Boa-Vida chalaceou:
- Por isso tu anda com esse lenço. O negra cheia de proso João de Adão perguntou:
- Tu te lembra de Raimundo, comadre Luisa?
- O Loiro, que morreu na greve? Como não me lembro? Era que toda tarde vinha dar dois dedo de prosa comigo, gostava de pilhéria...
- Mataram ele bem aqui, naquele dia que a cavalaria ato a gente. - Olhou para Pedro Bala. - Tu nunca ouviu falar Capitão?
- Não.
- Tu tinha uns quatro anos. Depois disso tu andou um ano casa de um pra casa de outro até que tu fugiu. Depois a gente só saber de tu quando tu já era chefe dos Capitães da Areia. Mas a gente sabia que tu havia de te arranjar. Quantos anos tu tem agora?
Pedro ficou fazendo cálculos e o próprio João de Adão interrompeu.
- Tu tá com uns quinze anos. Não é, comadre?
A negra fez que sim. João de Adão continuou:
- No dia que tu quiser tu tem um lugar aqui nas docas. A gente tem um lugar guardado pra tu.
- Por quê? - perguntou Boa-Vida, já que Pedro apenas olhava espantado.
- Porque o pai dele era Raimundo e morreu foi aqui mesmo lutando pela gente, pelo direito da gente. Era um homem e tanto. Valia dez destes que a gente encontra por ai.
- Meu pai? -fez Pedro Bala, que daquelas histórias só conhecia vagas rumores.
- Teu pai, era. A gente chamava ele de Loiro. Quando foi da greve fazia discurso pra gente, nem parecia um estivador. Foi pegado por uma bala. Mas tem um lugar pra tu nas docas.
Pedro Bala riscava o asfalto com um graveto. Olhou João de Adão:
- Por que tu nunca me contou isso?
- Tu era pequeno para entender. Agora tu tá ficando um homem - e riu com satisfação.
Pedro Bala riu também. Estava contente de saber a história de seu pai, porque ele tinha sido um homem valente. Mas perguntou lentamente:
- E minha mãe tu conheceu?
João de Adão pensou um momento:
- Não sei, não. Quando conheci o Loiro, ele não tinha mulher.
Mas tu vivia com ele.
- Eu conheci - era a negra que estava falando. - Um pedaço mulher. Corria uma história que teu pai tinha fintado ela de casa, ela era de uma família rica lá de cima - e apontava a cidade alta. Morreu quando tu nem tinha seis meses. Nesse tempo Raimundo trabalhava na fábrica de ciganos de Itapagipe. Depois foi que veio pras docas.
João de Adão repetiu:
- Quando tu quiser...
Pedro Bala fez um aceno com a cabeça. Depois perguntou:
- Foi uma coisa batuta a greve, não foi?
E ficaram ouvindo João de Adão narrar a greve. Quando ele acabou, Pedro Bala disse:
- Eu gostava de fazer uma greve. Deve ser porreta.
Vinha entrando um navio. João de Adão se levantou:
- Agora a gente vai carregar aquele holandês.
O navio apitava nas manobras de atracação. De todos os cantos surgiam estivadores que se iam dirigindo para o grande armazém Pedro Bala os olhou com carinho. Seu pai fora um deles, morrera defesa deles. Ali iam passando homens brancos, mulatos, negros muitos negros. Iam encher os porões de um navio de sacos de cacau, fardos de fumo, açúcar, todos os produtos do estado que iam para pátrias longínquas, onde outros homens como aqueles, talvez altos loiros, descarregariam o navio, deixariam vazios os seus porões, pai fora um deles. Só agora o sabia. E por eles fizera discursos trepado em um caixão, brigara, recebem uma bala no dia em que a cavalaria enfrentou os grevistas. Talvez ali mesmo, onde ele se sentava, ti caldo o sangue de seu pai. Pedro Bala mirou o chão agora asfaltado. Por baixo daquele asfalto devia estar o sangue que correra do corpo seu pai. Por isso, no dia em que quisesse, teria um lugar nas d entre aqueles homens, o lugar que fora de seu pai. E teria também carregar fardos... Vida dura aquela, com fardos de sessenta quilos costas. Mas também poderia fazer uma greve assim como seu pai João de Adão, brigar com policias, morrer pelo direito deles, vingaria seu pai, ajudaria aqueles homens a lutar pelo seu vagamente Pedro Bala sabia o que era isso. Imaginava-se n greve, lutando.E sorriam os seus olhos como sorriam os seus Boa-Vida, que chupava a terceira laranja, interrompeu seu sonho: - Tá pensando na morte da bezerra, seu mano?
A preta velha olhou Pedro Bala com carinho:
- É a cara do pai, Só que tem o cabelo ondeado da mãe. Se fosse esse talho na cara, não tinha que tirar nem pôr pan Raimundo. Um homem bonito...
Boa-Vida riu entre dentes. Perguntou quanto devia, pagou duzentos réis. Depois olhou mais uma vez os peitos da ri perguntou:
- Tu não tem uma fia, minha tia?
- Pra que tu quer saber, desgraçado?
Boa-Vida riu:
- Eu podia me amigar com ela...
A negra atirou o chinelo, Boa-Vida desviou o corpo:
- Se eu tivesse uma filha, não era pra teu bico, malandro.
Depois se lembrou:
- Tu não vai hoje ao Gantois? Vai ser uma batida daquelas. Um fandango de primeira. É festa de Omolu.
- Muita boia? E aluá?
- Se tem... - mirou Pedro Bala. - Por que tu não vai, branco?
Omolu não é só santo de negro. É santo dos pobres todos.
Boa-Vida estendeu a mão numa saudação quando ela falou em Omolu, o deus da bexiga. A tarde caía. Um homem comprou cocada. As luzes se acenderam de repente. A negra se levantou, boa-vida ajudou a que ela botasse o tabuleiro na cabeça. Ao longe, Pirulito apontava com o Querido-de-Deus. Pedro Bala olhou mais uma vez os homens que nas docas carregavam fardos para o navio holandês. Nas largas costas negras e mestiças brilhavam gotas de suor. Os pescoços musculosos iam curvados sob os fardos.E os guindastes rodavam ruidosamente. Um dia iria fazer uma greve como seu pai... Lutar gelo direito... Um dia um homem assim como João de Adão poderia contar a outros meninos na porta das docas a sua história, como contavam a de seu pai. Seus olhos tinham um intenso brilho na noite recém-chegada.
Ajudaram o Querido-de-Deus a desembarcar a pescaria, que fora boa. Yemanjá o tinha ajudado. Um homem que tinha banca de peixe no mercado comprou toda a pescaria.Depois foram comer num restaurante próximo. Pirulito foi ver o padre José Pedro, que estava lhe ensinando a ler e a escrever. Passou pelo trapiche antes, para apanhar uma caixa de penas que tinha levantado numa papelaria pela manhã. Pedro Bala, Boa-Vida e o Querido-de-Deus andaram para o candomblé do Gantois o Querido era ogã, onde Omolu apareceu com suas vestimentas vermelhas e avisou a seus filhinhos pobres, no cântico mais lindo que pode haver, que em breve a miséria acabaria, que ele levaria a bexiga para a casa dos ricos e que os pobres seriam alimentados e felizes. Os atabaques tocavam na noite de Omolu. E ele anunciava que o dia de vingança dos pobres chegaria. As negras dançavam, os homens estavam alegres. O dia da vingança chegaria.
Pedro Bala veio sozinho pelas ruas da cidade, pois o Boa-Vida fora com o Querido-de-Deus dançar num bleforé. Desceu as ladeiras que o conduziam à cidade baixa. Ia devagar, como se carregasse um peso dentro de si, ia como que curvado por dentro. Pensava na conversa da tarde com João de Adão, conversa que o alegrara porque ficara sabendo que seu pai fora um homem valente do cais, um homem que chegara a deixar uma história. Mas João de Adão falara também dos direitos dos doqueiros. Pedro Bala nunca tinha ouvido falar naquilo e, no entanto, fora por estes direitos que seu pai morrera. E depois, na macumba do Gantois, Omolu, paramentado de vermelho, dissera que odiada vingança dos pobres não tardaria a chegar.E isso oprimia o coração de Pedro Bala, como aqueles fardos de sessenta quilos oprimem o cangote dos estivadores.
Quando acabou a descida da ladeira se dirigiu para o areal, vontade de ir para o trapiche ver se dormia. Um cachorro latiu à sua passagem, pensando que ele ia lhe disputar o osso que estava roendo. No fim da rua Pedro Bala viu um vulto. Parecia uma mulher andava apressada. Sacudiu seu corpo de menino como se sacode animal jovem ao ver a fêmea, e com passo rápido se aproximou mulher que agora entrava no areal. A areia chiava sob os pés e a mulher notou que era seguida. Pedro Bala podia vê-la bem quando ela passava sob os postes: era uma negrinha bem jovem, talvez tivesse apenas anos como ele. Mas os seios saltavam pontiagudos e as nádegas rolavam no vestido, porque os negros mesmo quando estão andando naturalmente é como se dançassem. E o desejo cresceu deu Pedro Bala, era um desejo que nascia da vontade de afogar a angústia que o oprimia. Pensando nas nádegas rebolantes da negrinha pensava na morte de seu pai defendendo o direito dos grevistas, Omolu pedindo vingança na noite de macumba. Pensava em derrubar a negrinha sobre a areia macia, em acariciar seus seios duros talvez seios de virgem, sempre seios de menina, em possuir seu corpo quente de negra.
Apressou seus passos, porque a negrinha se desviara da rua que cortava o areal e se internara por este, se afastando dos postes de iluminação. Mas quando ela notou que Pedro Bala estava cada vez mais próximo, se lançou para a frente quase correndo. Pedro compreendeu que ele ia para uma daquelas ruas perdidas entre o morro e o mar, e que se atravessava o areal era para caminho mais curto e com mais facilidade poder fugir dele. Ia um silêncio por todo o cais, só chiar da areia sob os passos deles fazia estremecer de medo o coração da negrinha e de impaciência o coração de Pedro Bala. Mas estava cada vez mais próximo. Andava muito mais rápido que a negra e a alcançaria com mais dez passos. E ela tinha ainda muito que andar no areal antes de atingir os trapiches e as ruas que ficam além dos trapiches. Pedro sorria, um sorriso de dentes apertados, era igual a um animal feroz caçando no deserto um outro animal para seu almoço.
Quando já ia levando a mão para tocarem seu ombro e fazer com que ela voltasse o rosto, a negrinha começou a correr. Pedro Bala se lançou em sua perseguição e logo a alcançou. Mas ia a tal velocidade esbarrou nela e ambos rolaram na areia. Pedro se levantou de um rindo, chegou para o lado dela, que procurava se pôr em pé:
- Não precisa, lindeza. Assim mesmo tá bom.
O rosto da negrinha era de terror. Mas quando viu que seu seguidor era um menino de quinze para dezesseis anos se animou is um pouco e perguntou com raiva:
- Que é que tu quer?
- Deixa de orgulho, morena. Vamos bater um papozinho...
E a agarrou pelo braço e novamente a derrubou na areia. O medo voltou a possuí-la, um terror doido. Vinha da casa da avó e ia para sua onde mãe e irmãs a esperavam.Para que tinha vindo de noite, para que se arriscara na areia do cais? Não sabia que a Meia das docas é a cama de amor de todos os malandros, de todos os ladrões, de todos marítimos, de todos os Capitães da Areia, de todos os que não podem pagar mulher e têm sede de um corpo na cidade santa da Bahia? Ela não sabia disto, mal fizera quinze anos, havia muito pouco tempo que era mulher. Pedro Bala também só tinha quinze anos, mas há muito tempo conhecia não só o areal e os seus segredos, como os segredos do amor das mulheres.Porque se os homens conhecem esses segredos muito antes que as mulheres, os Capitães da Areia os conheciam muito antes que qualquer homem. Pedro Bala a queria porque há muito sentia os desejos de homem e conhecia as carícias do amor. Ela não o queria porque fazia pouco que se tornara mulher e pretendia reservar seu corpo para um mulato que a soubesse apaixonar.
Não o queria entregar assim ao primeiro que a encontrasse no areal. E está com os olhos entupidos de medo.
Pedro Bala passou a mão na carapinha da negra:
- Tu é um pancadão, morena. Nós vai fazer um filho lindo...
Ela lutou por se afastar dele:
- Me deixa. Me deixa, desgraçado!
E olhava em torno de si para ver se enxergava alguém a quem gritar, a quem pedir socorro, alguém que a ajudasse a conservar a sua virgindade, que tinham lhe ensinado que era preciosa. Mas à noite no areal do cais da Bahia não se veem senão sombras e não se ouvem mais que gemidos de amor, baques de corpos que rolam confundidos na areia.
Pedro Bala acariciava seus seios e ela, no fundo de seu terror, começava a sentir um fio de desejo, como um fio de água que corre entre montanhas e vai engrossando aos poucos até se transformar em caudaloso rio. E isso fez com que crescesse o seu terror. Se ela não resistisse contra o desejo e deixasse que ele a possuísse, estaria perdida, iria deixar uma mancha de sangue no areal, da qual ririam os estivadores na madrugada seguinte. A certeza da sua fraqueza lhe deu novo alento e novas forças. Baixou a cabeça, mordeu a mão de Pedro que segurava seu seio. Pedro deu um grito, retirou a mão, ela se levantou e correu. Mas ele a pegou e agora seu desejo estava misturado com raiva.
- Vamos deixar de chove-não-molha e tentava derrubá-la.
- Deixa eu ir embora, desgraçado. Tu quer fazer minha desgraça, filho da mãe? Deixa eu ir embora, que não tenho nada com tu.
Pedro não respondia. Conhecia outras que faziam chiquê. Em geral porque tinham um amante a esperá-las. Nem por um momento pensou que a negrinha fosse virgem.Mas ela resistia e o xingava, e mordia, batia suas frágeis mãos no peito de Pedro Bala.
- Mas que é que tu viu, cabocla? Tu pensa que eu vou te deixar antes de tu me dar? Deixa de orgulho. Teu macho não vai saber, ninguém fica sabendo. E tu vai ver o que é um homem bom...
E agora fazia por acariciá-la, queria dominar sua raiva, fazer com que ela sentisse desejo. Suas mãos desciam ao longo do seu corpo, deitou-a com esforço. Ela agora repetia num refrão:
- Me deixa, desgraçado... Me deixa, desgraçado...
Ele suspendeu as saias pobres de chita, apareceram as duras coxas da negra. Mas estavam uma sobre a outra e Pedro Bala tentou separá-las. A negrinha reagiu de novo, mas como o menino a estava acariciando e ela sentiu a chegada impetuosa do desejo, não o xingou mais, senão que disse num pedido angustioso:
- Me deixa, que eu sou virgem. Tu pode ser bom, não me querer.
Depois tu encontra outra. Eu sou donzela, tu vai me fazer mal.
Ele olhou, ela estava chorando de medo e também porque sua vontade estava enfraquecendo, seus peitos estavam intumescidos.
- Tu é donzela mesmo?
- Juro por Deus Nosso Senhor, pela Virgem - beijava os dedos postos em cruz.
Pedro Bala vacilava. Os seios da negrinha intumescidos sob seus dedos. As coxas duras, a carapinha do sexo.
- Tu tá falando a verdade? - e não deixava de acariciá-la.
- Tou, juro. Deixa eu ir embora, minha mãe tá me esperando.
Chorava, e Pedro Bala tinha pena, mas o desejo estava solto dentro dele. Então propôs ao ouvido da negra e fazia cócegas a língua dele:
- Só boto atrás.
- Não. Não.
- Tu fica virgem igual. Não tem nada.
- Não. Não, que dói.
Mas ele a acarinhava, uma cócega subiu pelo corpo dela. Começou a compreender que se não o satisfizesse como ele queria, sua virgindade ficaria ali. E quando ele prometeu novamente sua língua a excitava no ouvido se doer eu tiro... ela consentiu.
- Tu jura que não vai na frente?
- Juro.
Mas depois que tinha se satisfeito pela primeira vez e ela gritara e mordera as mãos, vendo que ela ainda estava possuída pelo desejo, tentou desvirginá-la.Mas ela sentiu e saltou como uma louca:
- Tu não te contenta, desgraçado, com o que me fez? Tu quer me desgraçar?
E soluçava alto, e levantava os braços, estava como uma louca, toda sua defesa eram seus gritos, suas lágrimas, suas imprecações contra o chefe dos Capitães da Areia. Mas para Pedro a maior defesa da negrinha eram os olhos cheios de pavor, olhos de animal mais fraco que não tem forças para se defender. E como seu maior desejo fosse satisfizera, e como aquela angústia do princípio da noite voltava a dominá-lo, ele falou:
- Se eu te deixar, tu volta amanhã?
- Volto, sim.
- Sô faço o que fiz hoje. Te deixo donzela...
Ela fez que sim com a cabeça. Seus olhos estavam iguais aos de um doido e naquele momento só sentia dor e pavor, vontade de fugir. Agora que as mãos dele, os lábios dele, o sexo de Pedro, não tocavam mais nas carnes dela, seu desejo desaparecera e pensava unicamente em defender sua virgindade. Respirou quando ele disse:
- Então tu pode ir. Mas se tu não voltar amanhã... Quando eu te pegar tu vai ver com quantos paus se faz uma cangalha...
Ela começou a andar sem nada responder. Mas o menino a acompanhou:
- Vou te levar para um malandro não lhe pegar.
Foram os dois e ela chorava. Ele quis pegar na mão dela, ela não deixou e se afastou dele. Ele tentou novamente, novamente ela retirou a mão. Então ele disse:
- Que diabo é isso?
E foram de mãos dadas. Ela chorava e aquele choro foi angustiando Pedro Bala, foi fazendo com que voltasse sua inquietação do começo da noite, a visão de seu pai morrendo na luta, a visão de Omolu anunciando vingança. Começou a maldizer intimamente o encontro da cabrocha e apressou o passo para chegar quanto antes ao começo da rua. Ela soluçava e ele falou com raiva:
- Que foi que tu teve? Tu não teve nada...
Ela apenas o olhou e seus olhos apesar de ainda ir com ele e ainda estar apavorada estavam cheios de ódio e desprezo. Pedro baixou a cabeça, não sabia o que dizer, não tinha mais desejo nem raiva, só tristeza no seu coração. Ouviram a música de um samba que um homem cantava na rua. Ela soluçou mais alto, ele foi chutando a areia. Agora se sentia mais fraco que ela, a mão da negrinha pesava na sua como se fosse chumbo. Largou a mão, ela se afastou dele. Pedro não protestou. Queria não a ter encontrado, não ter também João de Adão nem ter ido ao Gantois. Chegaram na rua, ele disse:
- Agora tu pode ir, ninguém te faz mal.
Ela olhou novamente com ódio deitou a correr. Mas na esquina mais próxima parou, virou para ele que ainda olhava e rogou praga com uma voz que o encheu de medo:
- Peste, fome e guerra te acompanha, desgraçado. Deus te castiga, desgraçado. Filho de uma mãe, desgraçado, desgraçado - sua voz solitária atravessa a rua, abalava Pedro Bala.
Ela, antes de desaparecer na esquina, cuspiu no chão num supremo desprezo e ainda repetiu:
- Desgraçado... Desgraçado Primeiro ele ficou parado, depois deitou a correr no areal ia como se os ventos o açoitassem, como se fugisse das pragas da negrinha. E tinha vontade de se jogar no mar para se lavar de toda aquela inquietação, a vontade de se vingar dos homens que tinham matado seu pai, o ódio que sentia contra a cidade rica que se estendia do outro lado do mar, na Barra, na Vitória, na Graça, o desespero da sua vida de criança abandonada e perseguida, a pena que sentia pela pobre negrinha, uma criança também.
"Uma criança também" - ouvia na voz do vento, no samba que cantavam, uma voz dizia dentro dele.
Capítulo 6 - Aventura de Ogum
Outra noite, uma noite de inverno, na qual os saveiros não se aventuraram no mar, noite da cólera de Yemanjá e Xangô, quando os relâmpagos eram o único brilho no céu carregado de nuvens negras e pesadas, Pedro Bala, o Sem-Pernas e João Grande foram levar a mãe de santo, Don'Aninha, até sua casa distante. Ela viera ao trapiche pela tarde, precisava de um favor deles, e enquanto explicava, a noite caiu espantosa e terrível.
- Ogum esta zangado... - explicou a mãe de santo Don'Aninha.
Fora este assunto que trouxera ali. Numa batida num candomblé que se bem não fosse o seu, porque nenhum polícia se aventurava a dar batida no candomblé de Aninha, estava sob a sua proteção, a polícia tinha carregado com Ogum, que repousava no seu altar. Don'Aninha tinha usado da sua força junto a um guarda para conseguir a volta do santo fora mesmo à casa de um professor da Faculdade de Medicina, seu amigo, que vinha estudar a religião negra no seu candomblé, pedir que ele conseguisse a restituição do deus. O professor realmente pensava em conseguir que a policia lhe entregasse a imagem. Mas para juntar à sua coleção de ídolos negros e não para reintegrá-la no seu altar no candomblé distante. Por isso, por estar Ogum numa sala de detidos na polícia, Xangô descarrega os raios nessa noite.
Por último Don'Aninha veio aonde estavam os Capitães da Areia, seus amigos de há muito, porque são amigos da grande mãe de santo todos os negros e todos os pobres da Bahia. Para cada um ela tem uma palavra amiga e materna. Cura doenças, junta amantes, seus feitiços matam homens ruins. Explicou que tinha acontecido a Pedro Bala. O chefe dos Capitães da Areia ia pouco aos candomblés, como pouco ouvia as lições do padre José Pedro. Mas era amigo tanto do padre como da mãe de santo, e entre os Capitães da Areia quando se é amigo se serve ao amigo.
Agora levavam Aninha para sua casa. A noite em torno era tormentosa e colérica. A chuva os curvava sob o grande guarda-chuva branco da mãe de santo. Os candomblés batiam em desagravo a Ogum e talvez num deles ou em muitos deles Omolu anunciasse a vingança do povo pobre. Don'Aninha disse aos meninos com uma voz amarga:
- Não deixam os pobres viver... Não deixam nem o deus dos pobres em paz. Pobre não pode dançar, não pode cantar pra seu deus, não pode pedir uma graça a seu deus sua voz era amarga, uma voz que não parecia da mãe de santo Don'Aninha. - Não se contentam de matar os pobres a fome... Agora tiram os santos dos pobres... - alçava os punhos.
Pedro Bala sentiu uma onda dentro de si. Os pobres não tinham nada. O padre José Pedro dizia que os pobres um dia iriam para o reino dos céus, onde Deus seria igual para todos. Mas a razão jovem de Pedro Bala não achava justiça naquilo. No reino do céu seriam iguais.
Mas já tinham sido desiguais na terra, a balança pendia sempre para um lado.
As imprecações da mãe de santo enchiam a noite mais que o ruído dos agogôs e atabaques que desagravavam Ogum. Don'Aninha era magra e alta, um tipo aristocrático de negra, e sabia levar como nenhuma das negras da cidade suas roupas de baiana. Tinha o rosto alegre, se bem bastasse um olhar seu para inspirar absoluto respeito. Nisso se parecia com o padre José Pedro. Mas agora estava com um ar terrível e suas imprecações contra os ricos e a polícia enchiam a noite da Bahia e o coração de Pedro Bala.
Quando a deixaram, rodeada das suas filhas-de-santo, que beijavam sua mão, Pedro Bala prometeu:
- Deixa estar, mãe Aninha, que amanhã te trago Ogum.
Ela bateu a mão na cabeça loira dele, sorriu. João Grande e o Sem-Pernas beijaram a mão da negra. Desceram a ladeira. Os agogôs e atabaques ressoavam desagravando Ogum.
O Sem-Pernas não acreditava em nada, mas devia favores a Don'Aninha. Perguntou:
- O que é que a gente vai fazer? O troço está na polícia..
João Grande cuspiu, estava com certo receio.
- Não chame Ogum de troço, Sem-Pernas. Ele castiga...
- Tá preso, não pode fazer nada - riu o Sem-Pernas.
João Grande calou a boca, porque sabia que Ogum era grande demais, mesmo na cadeia podia castigar o Sem-Pernas. Pedro Bala coçou o queixo, pediu um cigarro:
- Deixa eu matutar. A gente tem que dar conta. A gente garantiu a Aninha. Agora tem que fazer.
Desceram para o trapiche. A chuva entrava pelos buracos do teto, a maior parte dos meninos se amontoavam nos cantos onde ainda havia telhado. O Professor tentara acender sua vela, mas o vento parecia brincar com ele, apagava-a de minuto a minuto. Afinal ele desistiu de ler essa noite e ficou peruando um jogo de sete-e-meio que o Gato bancava, ajudado por Boa-Vida, num canto. Moedas no chão, mas nenhum rumor desviava Pirulito das suas orações diante da Virgem e de Santo Antônio.Nestas noites de chuva eles não podiam dormir. De quando em vez a luz de um relâmpago iluminava o trapiche e então se viam as caras magras e sujas dos Capitães da Areia. Muitos deles eram tão crianças que temiam ainda dragões e monstros lendários: Se chegavam para junto dos mais velhos, que apenas sentiam frio e sono. Outros, os negros, ouviram no trovão a voz de Xangô. Para todos estas noites de chuva eram terríveis. Mesmo para o Gato, que tinha uma mulher em cujo seio escondia a jovem cabeça, as noites de temporal eram noites más. Porque nestas noites homens que na cidade não têm onde reclinar a sua cabeça amedrontada, que não têm senão uma cama de solteiro e querem esconder num seio de mulher o seu temor, pagavam para dormir com Dalva e pagavam bem. Assim o Gato ficava no trapiche, bancando jogos com seu baralho marcado, ajudado na roubalheira pelo Boa-Vida. Ficavam todos juntos, inquietos, mas sós todavia, sentindo que lhes faltava algo, não apenas uma cama quente num quarto coberto, mas também doces palavras de mãe ou de irmã que fizessem o temor desaparecer. Ficavam todos amontoados e alguns tiritavam de frio, sob as camisas e calças esmolambadas. Outros tinham paletós furtados ou apanhado sem lata de lixo, paletós que utilizavam como sobretudo. O Professor tinha mesmo um sobretudo, de tão grande arrastava no chão.
Uma vez, e era no verão, um homem parara vestido com um grosso sobretudo para tomar um refresco numa das cantinas da cidade. Parecia um estrangeiro. Era pelo meio da tarde e o calor doía nas carnes. Mas o homem parecia não senti-lo, vestido com seu sobretudo novo. O Professor achou o homem engraçado e com cara de sujeito de dinheiro e começou a fazer um desenho dele com o sobretudo enorme, maior que o homem, era o próprio homem o sobretudo, a giz no passeio. E ria de satisfação, porque provavelmente o homem lhe daria uma prata de dois mil-réis. O homem voltou-se na sua cadeira e olhou o desenho quase concluído. O Professor ria, achava o desenho bom, o sobretudo dominando o homem, era mais que o homem. Mas o homem não gostou da coisa, se deixou possuir por uma grande raiva, levantou-se da cadeira e deu dois pontapés no Professor. Um atingiu o menino nos rins e ele rolou pela calçada gemendo. O homem ainda meteu o pé no seu rosto, dizendo congestionado ao se afastar: - Toma, corneta, para aprender a não fazer burla de um homem.
E saiu batendo moedas na mão, após meio apagar com o pé o desenho. A garçonete veio e ajudou o Professor a se levantar. Olhou com piedade o menino, que apalpava o lugar dos rins doloridos, olhou o desenho, disse:
- Que bruto! Até que o retrato estava parecido... Um estúpido!
Meteu a mão no bolso onde guardava as gorjetas, tirou uma prata de um mil-réis, quis dar ao Professor. Mas ele recusou com a mão, sabia que ia fazer falta a ela.Olhou o desenho semiapagado, seguiu seu caminho ainda com as mãos nos rins. Ia quase sem pensar, com um nó na garganta. Ele quisera agradar o homem, merecer uma prata dele. Tivera dois pontapés e palavras brutais. Não compreendia. Por que eram odiados assim na cidade? Eram pobres crianças sem pai, sem mãe. Por que aqueles homens bem vestidos tanto os odiavam? Foi com sua dor. Mas aconteceu que no caminho para o trapiche, no deserto do areal sob o sol, encontrou novamente, minutos depois, o homem de sobretudo. Parecia que ia para um dos navios atracados no porto e levava agora o sobretudo no braço porque o sol estava abrasador. Professor tirou a navalha poucas vezes a usava e se aproximou do homem. O calor tinha alijado do areal todos os homens e o do sobretudo cortava pela areia para fazer o caminho mais curto para o cais. O Professor foi silenciosamente por detrás do homem quando chegou perto tomou a frente com a navalha na mão. A vista do homem tinha transformado a confusão de seus sentimentos num único sentimento: vingança. O homem o olhou aterrorizado. 0 Professor crescia em sua frente com a navalha aberta. Murmurou entre dentes: - Sai, moleque.
O Professor avançou com a navalha, o homem ficou branco.
- Que é isso? Que é isso? - e mirava todos os lados na esperança de ver alguém. Mas só ao longe, nas docas, apareciam perfis de homens. Então o do sobretudo largou a correr quando o Professor saltou em cima dele e lhe cortou a mão com a navalha. O sobretudo ficou abandonado no chão e o sangue caía da mão do homem na areia. O Professor tomou pelo outro lado, ficou um instante sem saber que fazer. Não tardaria a vir um guarda, logo muitos, acompanhando o homem em sua perseguição. Se o navio do homem saísse logo, tudo estava bem, a perseguição pouco demoraria. Mas se tardasse a sair, com certeza o homem o perseguiria até dar com ele e pô-lo no xadrez. Então o Professor lembrou-seda garçonete. Caminhou para a cantina, do jardim que ficava em frente fez sinal para a garçonete. Ela veio e logo compreendeu quando o viu com o sobretudo. O Professor avisou:
- Ele tá com um talho na mão.
Ela riu:
- Tu te vingou, hein?
Levou o sobretudo para a cantina, guardou. O Professor sumiu até que o navio saiu barra afora. Mas de onde estava viu a batida dos guardas pelo areal e pelas ruas adjacentes. Foi assim que o Professor tinha conseguido aquele sobretudo, que nunca quis vender. Adquirira um sobretudo e muito ódio. E tempos depois, quando as suas pinturas murais admiraram todo o país eram motivos de vidas de crianças abandonadas, de velhos mendigos, de operários e doqueiros que rebentavam cadeias, notaram que nelas os gordos burgueses apareciam sempre vestidos com enormes sobretudos que tinham mais personalidade que eles próprios.
Pedro Bala, João Grande e o Sem-Pernas entraram no trapiche. Foram para o grupo que jogava em torno ao Gato. Quando eles chegaram, o jogo parou um momento, o Gato ficou espiando os três:
- Quer topar um sete-e-meio?
- Tou com cara de besta? respondeu o Sem-Pernas.
João Grande sentou para espiar, Pedro Bala se afastou com o Professor para um canto. Queria combinar uma maneira de roubar a imagem de Ogum da polícia. Discutiram parte da noite e já eram onze horas quando Pedro Bala, antes de sair, falou para todos os Capitães da Areia:
- Minha gente, eu vou fazer um troço difícil. Se eu não aparecer até de manhã, vocês fica sabendo que eu tou na polícia e não demoro a tá no reformatório, até fugir. Ou até vocês me tirar de lá...
E saiu. João Grande o acompanhou até a porta. O Professor veio para junto do Gato novamente. Os menores olhavam a partida do chefe com certo receio. Tinham uma grande confiança em Pedro Bala e sem ele muitos não saberiam como se arranjar.
Pirulito veio do seu canto, deixara uma oração pelo meio:
- O que foi?
- Pedro foi fazer um troço difícil. Se não voltar de manhã, é que tá na chave...
- A gente tira ele respondeu Pirulito naturalmente, e nem parecia que minutos antes estava ante um quadro da Virgem rezando pela salvação da sua pequena alma de ladrão. E voltou aos seus santos a rezar por Pedro Bala.
O jogo recomeçou. Chuva e raios, trovões e nuvens no céu. O frio intenso no trapiche. Gotas de água caíam sobre os meninos que jogavam. Mas o jogo agora era sem atenção, o próprio Gato se esquecia de ganhar, havia como que uma confusão em todo o trapiche. Durou até que Professor disse:
- Eu vou ver as coisas...
João Grande e o Gato foram com ele. Nesta noite foi Pirulito que se deitou na porta do trapiche com o punhal sob a cabeça. E perto dele Volta Seca espiava a noite com sua cara sombria. E pensava em que lugar estaria nesta noite de temporal o grupo de Lampião na imensidade das caatingas. Talvez que nessa noite de temporal lutassem com a polícia como ia fazer agora Pedro Bala. E Volta Seca pensou que quando Pedro Bala fosse grande como um homem seria tão corajoso como Lampião. Lampião era o dono do sertão, das caatingas sem fim. Pedro Bala seria dono da cidade, do casario, das ruas, do cais. E Volta Seca, que era do sertão, poderia andar nas caatingas e nas cidades.
Porque Lampião era seu padrinho e Pedro Bala seu amigo. Imitou o cocorocó de um galo e isso era sinal de que Volta Seca estava alegre.
Pedro Bala, enquanto subia a ladeira da Montanha, revia mentalmente seu plano. Fora arquitetado com a ajuda do Professor e era a coisa mais arriscada em que se metera até hoje. Mas Don'Aninha bem que merecia que um corresse risco por ela. Quando tinha um doente ela trazia remédios feitos com folhas, tratava dele, muitas vezes curava. E quando aparecia um Capitão da Areia no seu terreiro ela o tratava como a um homem, como a um ogã, dava-lhe do melhor para comer, do melhor para beber. O plano era arriscado, possivelmente não daria certo, Pedro Bala comeria cadeia uns dias e terminaria remetido para o reformatório, onde a vida era pior que vida de cão.
Mas havia uma possibilidade de dar certo, e Pedro Bala jogaria tudo nesta possibilidade. Chegou ao largo do Teatro. A chuva caía e os guardas se abrigavam sob as capas. Começou a subir a ladeira de São Bento vagarosamente. Tomou por São Pedro, atravessou o largo da Piedade, subiu o Rosário, agora estava nas Mercês, diante da Central de Policia, olhando as janelas, o movimento de guardas e secretas que entravam e safam. De minuto em minuto um bonde passava fazendo ruídos nos trilhos, iluminando ainda mais a rua já bastante iluminada. O guarda amigo de Don'Aninha tinha dito que Ogum estava na sala de detidos, jogado sobre um armário, em meio a diversos outros objetos apreendidos em batidas várias em casas de ladrões. Naquela sala colocavam os que eram presos durante a noite antes de serem ouvidos ou pelo delegado ou pelos comissários de turno e que depois ou eram remetidos para as prisões ou para a rua. Ali, num canto, a princípio dentro de um armário que logo se encheu, depois junto ou sobre ele, colocavam objetos sem valor apreendidos nas batidas policiais. O plano de Pedro Bala era passar a noite ou parte dela na sala de detidos e levar ao sair se conseguisse sair a imagem de Ogum consigo. Tinha uma grande vantagem: não era conhecido entre a polícia. Mesmo só raros guardas o conheciam como moleque das ruas, se bem todos os guardas e mesmo alguns investigadores desejassem ardentemente capturar o chefe dos Capitães da Areia. Sabiam dele apenas que tinha aquele talho no rosto e Pedro Bala passou a mão no talho. Mas o pensavam maior do que era em verdade e também faziam a ideia de que Pedro Bala devia ser mulato e de mais idade. Se chegassem a descobrir que ele era o chefe dos Capitães da Areia talvez nem para o reformatório o mandassem. Muito provavelmente iria diretamente para a penitenciária.Porque do reformatório se consegue fugir, mas da penitenciária não é fáciL Enfim... - e Pedro Bala andou até o Campo Grande. Mas já não ia com aquele seu passo despreocupado de moleque das ruas da cidade. Ia agora gingando como um filho de marítimo, o boné puxado por causa da chuva, a gola do paletó devia ter sido anteriormente de um homem muito grande levantada.
O guarda estava debaixo de uma árvore por causa da chuva. Pedro veio chegando assim como quem tem medo. E quando falou ao guarda, sua voz era a de uma criança que estava temerosa da noite tempestuosa da cidade.
- Seu guarda...
O guarda olhou:
- O que é, moleque?
- Eu não sou daqui. Eu sou de Mar Grande, vim com meu pai hoje.
O guarda não deixou que ele continuasse:
- E o que tem isso?
- Eu não tenho onde dormir. Queria que o senhor deixasse eu dormir na polícia...
- A policia não é hotel, malandro. Desaperta, desaperta... - e fez sinal para que Pedro se afastasse.
Pedro tentou novamente puxar conversa, mas o guarda o ameaçou com o cassetete:
- Vai dormir num jardim... Vai embora...
Pedro saiu com cara de choro. O guarda ficou espiando o menino. Pedro parou no ponto de bonde, esperou. Do primeiro carro não desceu ninguém, mas do segundo saltou um casal. Pedro se atirou em cima da mulher, o homem viu que ele queria abafar a carteira dela, segurou Pedro por um braço. A coisa fora tão mal feita que se um dos Capitães da Areia passasse ali sem dúvida não reconheceria o seu chefe. O guarda, que via acena, já estava junto a eles:
- Então era assim que você não era daqui? Um moleque ladrão.
Se afastou levando Pedro pelo braço. O menino ia com uma cara entre amedrontada e risonha:
- Só fiz isso pro senhor me pegar mesmo...
- Hein?
- Tudo que eu disse é verdade. Meu pai é marítimo, tem um saveiro em Mar Grande. Hoje me deixou aqui, não voltou com o temporal. Eu não sei onde dormir, pedi pra dormir na polícia. O senhor não deixou, eu fiz que ia roubar a mulher só pro senhor me pegar... Agora tenho onde dormir.
- E por muito tempo foi a única resposta do guarda.
Entraram na Central. O guarda atravessou um corredor, largou Pedro Bala na sala dos detidos. Havia uns cinco ou seis homens. O guarda disse troçando:
- Agora você pode dormir, filho da mãe. E depois que o comissário chegar vamos ver quanto tempo você vai dormir aqui...
Pedro ficou calado. Os outros presos nem ligavam para ele, estavam muito interessados em fazer troça com um pederasta que tinha sido preso e se dizia chamar Mariazinha.A um canto Pedro Bala viu o armário. A imagem de Ogum estava ao lado, junto de uma cesta para papéis inúteis. Pedro se adiantou para ali, tirou o paletó, pôs sobre a imagem. E enquanto os outros conversavam, enrolou Ogum não era grande, havia outras imagens muito maiores no seu paletó e deitou-se no chão. Pôs a cabeça sobre o embrulho e fez que dormia.
Os presos daquela noite continuavam a rir com o pederasta, exceto um velho que tremia num canto, Pedro não sabia se de frio ou de medo. Mas ouvia a voz de um negro jovem que dizia a Mariazinha:
- Quem tirou teu cabaço?
- Ora, me deixe... respondeu o pederasta rindo.
- Não. Conta. Conta! disseram os outros.
- Ah! Foi Leopoldo... Ah!
O velho continuava a tremer. Um malandro de cara chupada pela tísica percebeu o velho no canto:
- Tu por que não vai te enrabar com aquele velhote? - perguntou a Mariazinha, que fez bico.
- Não tá vendo logo que não me passo pra velho. Olhe, não quero mais conversa, não...
Agora um guarda gozava na porta e o de cara chupada se virou para o velho, que se encolheu todo:
- Mas tu bem que gostava se ele lhe desse hoje, hein, tio?
- Eu sou um velho... Eu não fiz nada... murmurou o velho, mais que falou. - Não fiz nada, minha filha está me esperando...
Pedro, que estava de olhos fechados, adivinhou que o velho chorava. Mas continuou fingindo que estava dormindo. Ogum doía nos ossos da sua cabeça. Os presos continuavam a pilheriar com o pederasta e o velho, até que chegou outro guarda e falou para o velho:
- Você, velhote. Vamos...
- Eu não fiz nada... falou mais uma vez o velho. - Minha filha está me esperando... se dirigia a todos, guardas e presos. E tremia tanto, que todos tiveram pena e até o malandro de cara chupada baixou a cabeça. Só o pederasta sorria.
O velho não voltou. Depois foi o pederasta. Demorou muito. O de cara chupada explicava que Mariazinha era de boa família.
Naturalmente estavam telefonando para casa dele, pedindo que o viessem buscar para não terem que o prender de novo naquela noite. De quando em vez, quando tomava cocaína demais, dava escândalos na rua e era trazido por um guarda. Quando Mariazinha voltou, foi só para pegar o chapéu. Então viu Pedro Bala deitado e disse:
- Tão novinho este. Mas é um amorzinho...
Pedro cuspiu de olhos fechados:
- Sai, xibungo, antes que eu te pranche a cara...
Os outros riram, e só então atentaram em Pedro:
- Que é que tu tá fazendo aqui, rato de igreja?
- O que não é da tua conta, macaqueio... - respondeu Pedro Bala ao de cara chupada.
Até o guarda riu e explicou para os outros a história de Pedro. Mas o negro jovem foi chamado e eles ficaram silenciosos. Sabiam que o negro tinha esfaqueado um homem num breforé nesta noite. Quando o preto voltou trazia as mãos inchadas dos bolos. Explicou:
- Disse que vou ser processado por ferimentos leves. E me dero duas dúzia...
Não conversou mais, procurou um canto, se arriou. Os outros também ficaram calados. E foram indo um por um para o despacho do comissário. Uns eram postos em liberdade, outros iam para o calabouço, outros voltavam apanhados. O temporal cessara e a madrugada chegava. Pedro foi o último a ser chamado. Deixou o paletó onde enrolara Ogum.
O comissário era um jovem advogado que reluzia um rubi no dedo e um charuto no queixo. Quando Pedro entrou com o guarda, pedia café em voz alta. Pedro ficou diante da escrivaninha, parado. O guarda disse:
- Esse é o menino do roubo no Campo Grande.
O comissário fez um sinal com a mão:
- Veja se esse café sai ou não sai...
O guarda retirou-se. O comissário leu a parte do guarda que prendera Pedro Bala, olhou o menino:
- O que é que você tem a dizer? E não venha me mentir, não.
Pedro contou com uma voz amedrontada uma história comprida.
Que seu pai era saveirista em Mar Grande e naquele dia pela manhã viera com o saveiro e o trouxera. Mas voltara em seguida para buscar outra carga e o deixara na cidade passeando, porque o saveiro tornaria à Bahia ainda à tardinha e então ele poderia voltar com seu pai. Mas com o temporal seu pai não tinha podido voltar e ele, que não conhecia ninguém, ficou na chuvas em ter onde dormir. Perguntou a um homem na rua onde poderia dormir, o homem respondera que na polícia. Então ele pedira ao guarda que o levasse a dormir na policia, o guarda não deixara, ele fizera então que ia furtar a mulher só para ser levado, para poder dormir sob um teto.
- Tanto que não roubei e nem fugi... - concluiu.
O delegado, que sorvia o café em golinhos, disse de si para si:
- Não é possível que uma criança desta idade inventasse essa história...
Depois, como tinha veleidades literárias, murmurou:
- Eis aí um conto formidável... e sorriu com bom humor.
- Como é o nome de teu pai? - perguntou a Pedro.
- Augusto Santos - respondeu o menino, dando o nome de um saveirista de Mar Grande.
- Se o que você contou for verdade, eu vou lhe soltar. Mas se você quis me tapear com essa história, vai ver...
Tocou a campainha chamando o guarda. Pedro estava com os nervos todos em tensão. O guarda chegou, o comissário perguntou se na polícia havia um livro de registro de saveiristas de Mar Grande que ancoravam no cais do Mercado.
- Tem, sim senhor.
- Vá ver se tem um tal Augusto Santos e volte para me dizer. E ande depressa, que minha hora está acabando.
Pedro Bala olhou para o relógio: marcava cinco e meia da manhã. O guarda demorou uns minutos, o comissário não se ocupou mais de Pedro, que estava de pé ante sua secretária. Só quando o guarda voltou e disse: Tem, sim senhor... Hoje mesmo teve no cais, mas voltou logo... - o comissário fez um gesto com a mão e falou para o guarda:
- Ponha esse moleque em liberdade Pedro pediu para ir buscar seu paletó. Acomodou debaixo do braço, nem parecia trazer a imagem envolvida nele. Atravessaram o corredor novamente, o guarda o deixo una porta. Pedro tomou para o largo dos Aflitos, rodeou o velho quartel, desabou pela Gamboa de Cima. Agora ia correndo, mas ouviu passos atrás de si. Parecia que o perseguiam. Olhou. Professor, João Grande e o Gato vinham atrás dele. Esperou que eles chegassem e perguntou curioso:
- Que é que vocês tava fazendo por estas bandas?
O Professor coçou a cabeça:
- Não vê que a gente saiu agora cedo. E velo vindo por aqui, andando sem que fazer, foi quando topou com tu, que vinha desabalado..
Pedro abriu o paletó, mostrou a imagem de Ogum. João Grande riu com satisfação:
- Como foi que tu tapeou eles?
Foram descendo a ladeira escorregadia da chuva. E Pedro Bala ia narrando as aventuras da noite. O Gato perguntou:
- Tu não teve nem um pingo de medo?
Primeiro Pedro Bala pensou em dizer que não, depois confessou:
- Pra falar verdade, tive um cagaço da desgraça...
E riu da cara gozada que João Grande fazia. O céu agora estava azul, sem nuvens, o sol brilhava e da ladeira eles viam os saveiros que partiam do cais do Mercado.
Capítulo 7 - Deus Sorri Como um Negrinho
O menino era tentação por demais grande.
Nem parecia um meio-dia de inverno. O sol deixava cair sobre ruas uma claridade macia, que não queimava, mas cujo calor acariciava como a mão de uma mulher. No jardim próximo as flores desabrochavam em cores. Margaridas e onze-horas, rosas e cravos, dália e violetas. Parecia haver na rua um perfume bom, muito sutil, mas que Pirulito sentia entrar nas suas narinas e como que embriagá-lo. Tinha comido na porta de uma casa de portugueses ricos as sobras de almoço que fora quase um banquete. A criada, que lhe trouxera o prato cheio, dissera, mirando as ruas, o sol de inverno, os homens que passavam sem capa:
- Tá fazendo um dia lindo.
Essas palavras foram com Pirulito pela rua. Um dia lindo, e o menino ia despreocupado, assoviando um samba que lhe ensinara o Querido-de-Deus, recordando que o padre José Pedro prometera tudo fazer para 1he conseguir um lugar n o seminário. Padre José Pedro lhe dissera que toda aquela beleza que caía envolvendo a terra e homens era um presente de Deus e que era preciso agradecer a Deus. Pirulito mirou o céu azul onde Deus devia estar e agradeceu num sorriso e pensou que Deus era realmente bom. E pensando em Deus pensou também nos Capitães da Areia. Eles furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e polícias. Mas, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros. Se faziam tudo aquilo é que não tinham casa, nem pai, nem mãe, a vida deles era uma vida sem ter comida certa e dormindo num casarão quase sem teto. Se não fizessem tudo aquilo morreriam de fome, porque eram raras as casas que davam de comer a um, de vestir a outro. E nem toda a cidade poderia dar a todos. Pirulito pensou que todos estavam condenados ao inferno. Pedro Bala não acreditava no inferno, Professor tampouco, riam dele.
João Grande acreditava era em Xangô, em Omolu, nos deuses dos negros que vieram da África. O Querido-de-Deus, que era um pescador valente e um capoeirista sem igual, também acreditava neles, misturava-os com os santos dos brancos que tinham vindo da Europa. O padre José Pedro dizia que aquilo era superstição, que era coisa errada, mas que a culpa não era deles. Pirulito se entristeceu na beleza do dia. Estariam todos condenados ao inferno? O inferno era um lugar de fogo eterno, era um lugar onde os condenados ardiam uma vida que nunca acabava. E no inferno havia martírios desconhecidos mesmo na polícia, mesmo no reformatório de menores. Pirulito vira há poucos dias um frade alemão que descrevia o inferno num sermão na Igreja da Piedade. Nos bancos, homens e mulheres recebiam as palavras de fogo do frade como chicotadas no lombo. O frade era vermelho e de seu rosto pingava o suor. Sua língua era atrapalhada e dela o inferno saía mais terrível ainda, as labaredas lambendo os corpos que foram lindos na terra e se entregaram ao amor, as mãos que foram ágeis e se entregaram ao furto, ao manejo do punhal e da navalha. Deus no sermão do frade era justiceiro e castigador, não era o Deus dos dias lindos do padre José Pedro. Depois explicaram a Pirulito que Deus era a suprema bondade, a suprema justiça. E Pirulito envolveu seu amor a Deus numa capa de temor a Deus e agora vivia entre os dois sentimentos.Sua vida era uma vida desgraçada de menino abandonado e por isso tinha que ser uma vida de pecado, de furtos quase diários, de mentiras nas portas das casas ricas.Por isso na beleza do dia Pirulito mira o céu com os olhos crescidos de medo e pede perdão a Deus tão bom mas não tão justo também... pelos seus pecados e os dos Capitães da Areia. Mesmo porque eles não tinham culpa. A culpa era da vida...
O padre José Pedro dizia que a culpa era da vida e tudo fazia para remediar a vida deles, pois sabia que era a única maneira de fazer com que eles tivessem uma existência limpa. Porém uma tarde em que estava o padre e estava o João de Adão, o doqueiro disse que a culpa era da sociedade mal organizada, era dos ricos...Que enquanto tudo não mudasse, os meninos não poderiam ser homens de bem. E disse que o padre José Pedro nunca poderia fazer nada por eles porque ricos não deixariam.O padre José Pedro naquele dia tinha ficado muito triste, e quando Pirulito o foi consolar, explicando que ele não ligasse ao que João de Adão dizia, o padre respondeu balançando a cabeça magra.
- Tem vezes que eu chego a pensar que ele tem razão, que isso tudo está errado. Mas Deus é bom e saberá dar o remédio...
Padre José Pedro achava que Deus perdoaria e queria ajudá-los. E como não encontrava meios, e sim uma barreira na sua frente todos queriam tratar os Capitães da Areia ou como a criminosos ou como crianças iguais àquelas que foram criadas com um lar e uma família ficava como que desesperado, por vezes ficava atarantado.Mas esperava que Deus o inspirasse um dia e até lá ia acompanhando meninos, conseguindo por vezes evitar atos de malvadeza das crianças. Fora mesmo ele um dos que mais concorreram para extermina pederastia no grupo. E isto foi uma das suas grandes experiências sentido de como agir para tratar com os Capitães da Areia. Enquanto ele lhes disse que era necessário acabar pecado, uma coisa imoral e feia, os meninos riram nas suas costa e continuaram a dormir com os mais novos e bonitos. Mas no dia e que o padre, desta vez ajudado pelo Querido-de-Deus, afirmou que aquilo era coisa indigna num homem, fazia um homem igual a uma mulher, pior que uma mulher, Pedro Bala tomou medidas violentas, expulsou os passivos do grupo. E por mais que o padre fizesse não quis mais ali.
- Se eles voltar, a safadeza volta, padre.
Por assim dizer, Pedro Bala arrancou a pederastia entre os Capitães da Areia como um médico arranca um apêndice doente do corpo de um homem. O difícil para o padre José Pedro era conciliar as coisas. Mas ia tenteando e por vezes sorna satisfeito dos resultados.
A não ser quando João de Adão ria dele e dizia que só a revolução acertaria tudo aquilo. Lá em cima, na cidade alta, os homens ricos e as mulheres queriam que os Capitães da Areia fossem para as prisões para o reformatório, que era pior que as prisões. Lá embaixo, nas docas, João de Adão queria acabar com os ricos, fazer tudo igual, dar escola aos meninos. O padre queria dar casa, escola, carinho e conforto aos meninos sem a revolução, sem acabar com os ricos. Mas de todos os lados era uma barreira. Ficava como perdido e pedia a Deus que o inspirasse. E com certo pavor via que, quando pensava no problema, dava, sem sequer o sentir, razão ao doqueiro João de Adão. Então era possuído de temor, porque não fora assim que lhe haviam ensinado, e rezava horas seguidas para que Deus o iluminasse.
Pirulito fora a grande conquista do padre José Pedro entre os Capitães da Areia. Tinha fama de ser um dos mais malvados do grupo, contavam dele que uma vez pusera o punhal na garganta de um menino que não queria lhe emprestar dinheiro e o fora enfiando devagarinho, sem tremer, até que o sangue começou a correr e o outro lhe deu tudo que queria. Mas contavam também que outra vez cortou de navalha a Chico Banha quando o mulato torturava um gato que se aventurara no trapiche atrás dos ratos. No dia que o padre José Pedro começou a falar de Deus, do céu, de Cristo, da bondade e da piedade, Pirulito começou a mudar. Deus o chamava e ele sentia sua voz poderosa no trapiche. Via Deus nos seus sonhos e ouvia o chamado de Deus de que falava o padre José Pedro. E se voltou de todo para Deus, ouvia a voz de Deus, rezava ante os quadros que o padre lhe dera. No primeiro dia começaram a mofar dele no trapiche. Ele espancou um dos menores, os outros se calaram. No outro dia o padre disse que ele fizera mal, que era preciso sofrer por Deus, e Pirulito então dera a sua navalha quase nova ao menino a que espancara. E não espancara mais nenhum, evitava as brigas e se não evitava os furtos era que aquilo era o meio de vida que eles tinham, não tinham mesmo outro. Pirulito sentia o chamado de Deus, que era intenso, e queria sofrer por Deus. Ajoelhava horas e horas no trapiche, dormia no chão nu, rezava mesmo quando o sono o queria derrubar, fugia das negrinhas que ofereciam o amor na areia quente do cais. Mas então amava Deus-pura-bondade e sofria para pagar o sofrimento que Deus passara na terra. Depois veio aquela revelação de Deus justiça para Pirulito ficou Deus-vingança e o temor de Deus invadiu o seu coração e se misturou ao amor de Deus. Suas orações foram mais longas, o terror do inferno se misturava à beleza de Deus. Jejuava dias inteiros e sua face ficou macilenta como a de um anacoreta. Tinha olhos de místico e pensava ver Deus nas noites de sonho. Por isso conservava seus olhos afastados das nádegas e seios das negrinhas que andavam como que dançando ante os olhos de todos nas ruas pobres da cidade. Sua esperança era um dia ser sacerdote do seu Deus, viver só para a sua contemplação, viver só para Ele.A bondade de Deus fazia com que ele esperasse conseguí-lo. O temor de Deus vingando-se dos pecados de Pirulito fazia com que ele desesperasse.
E é esse amor e esse temor que fazem Pirulito indeciso ante a vitrina nesta hora de meio-dia, cheia de beleza. O sol é brando e claro, as flores desabrocham no jardim, vem uma calma e uma paz de todos os lados. Mas, mais belo que tudo é a imagem da Conceição com o Menino, que está na prateleira daquela loja de uma só porta. Na vitrina, quadros de santos, livros de orações em encadernações luxuosas, terços de ouro, relicários de prata. Mas dentro, bem na ponta da prateleira que chega até a porta, a imagem da Virgem da Conceição estende o Menino para Pirulito. Pirulito pensa que a Virgem está a lhe entregar Deus, Deus criança e nu, pobre como Pirulito. O escultor fez o Menino magro e a Virgem triste da magreza do seu Menino, mostrá-lo aos homens gordos e ricos. Por isso a imagem está ali e não se vende. O Menino nas imagens é sempre gordo, um ar de menino rico, um Deus Rico. Ali é um Deus Pobre, um menino pobre, mesmo igual a Pirulito, ainda mais igual àqueles mais novos do grupo exatamente igual a um de colo, de poucos meses de idade, que fico abandonado na rua no dia que sua mãe morreu de um ataque, quando levava nos braços, e que João Grande trouxe para o trapiche, onde ficou até o fim da tarde os meninos vinham e espiavam e riam do Professor e do Grande, afobados para arranjar leite e água para o bebê quando a mãe de santo Don'Aninha viera e o levara consigo, recostado ao seu seio. Só que aquele era um menino negro e o Menino branco. No mais a parecença é absoluta. Até uma cara de choro tem o Menino, magro e pobre, nos braços da Virgem. E esta o oferece Pirulito, aos carinhos de Pirulito, ao amor de Pirulito. Lá fora o dia é lindo, o sol é brando, as flores desabrocham. Só o Menino tem for e frio neste dia. Pirulito o levará consigo para o trapiche dos Capitães da Areia. Rezará para ele, cuidará dele, o alimentará com seu amor. Não veem que, ao contrário de todas as imagens, ele não está preso nos braços da Virgem, está solto nas suas mãos, ela o está oferecendo carinho de Pirulito? Ele dá um passo. Dentro da loja só uma senhorita espera os fregueses, pintando os lábios com uma nova marca de batom. É facílimo levar o Menino. Pirulito estende o pé noutro passo, mas o temor de Deus o assalta, E fica parado, pensando.
Ele tinha jurado a Deus, no seu temor, que só furtaria para comer ou quando fosse uma coisa ordenada pelas leis do grupo, um assalto para o qual fosse indicado por Pedro Bala. Porque ele pensava que trair as leis nunca tinham sido escritas, mas existiam na consciência de cada um deles dos Capitães da Areia era um pecado também. E agora ia furtar só para ter o Menino consigo, alimentá-lo com seu carinho. Era um pecado, não era para comer, para matar o frio, nem para cumprir as leis do grupo. Deus era justo e o castigaria, lhe daria o fogo do inferno. Suas carnes arderiam, suas mãos que levassem o Menino queimariam durante uma vida que nunca acabava. O Menino era do dono da loja. Mas o dono da loja rinha tantos Meninos, e todos gordos, e rosados, não iria sentir falta de um só, e de um magro e friorento! Os outros estavam como ventre envolto em panos caros, sempre panos azuis, mas de rica fazenda. Este estava totalmente nu, tinha frio no ventre, era magro, nem do escultor tivera carinho.E a Virgem o oferecia a Pirulito, o Menino estava solto nos braços dela... O dono da loja tinha tantos Meninos, tantos... Que falta lhe faria este? Talvez nem se importasse, talvez até se risse quando soubesse que haviam furtado aquele Menino que nunca tinha conseguido vender, que estava solto nos braços da Virgem, diante do qual as beatas que vinham comprar diziam horrorizadas: - Este não... Ele é tão feio, Deus me perdoe... E ainda por cima solto dos braços de Nossa Senhora. Cai no chão e pronto. Esse não...
E o Menino ia ficando. A Virgem o oferecia ao carinho dos que passavam, mas ninguém o queria. As beatas não queriam levá-lo para seus oratórios, onde havia Meninos calçados de sandálias de ouro, com coroa de ouro na cabeça. Só Pirulito viu que o Menino tinha fome e sede, tinha frio também e quis levá-lo. Mas Pirulito não tinha dinheiro e tampouco tinha o costume de comprar as coisas. Pirulito podia levá-lo consigo, podia dar ao Menino que comer, que beber, que vestir, tudo tirado do seu amor a Deus. Mas se o fizesse, Deus o castigaria, o fogo do inferno comeria, durante uma vida que nunca acabava, suas mãos que levassem o Menino, sua cabeça que pensava em levar o Menino. Então Pirulito lembrou-se que só o pensar já era pecado. Que se pecava só de pensar em cometer o pecado. O frade alemão dissera que muitas vezes um estava pecando e nem o sabia porque estava pecando com o pensamento. Pirulito estava pecando, sentiu que estava pecando, teve medo de Deus e deitou a correr para não continuar a pecar. Mas não correu muito, ficou na esquina, pôde se afastar para longe da imagem. Olhou outras vitrines, assim não pecava. Meteu as mãos no bolso prendia as mãos... desviou pensamento. Mas agora os homens que volviam ao trabalha após o almoço passavam na sua frente e um pensamento o assaltou: dentro em pouco os outros empregados da loja voltariam e então seria impossível levar o Menino. Seria impossível... E Pirulito voltou a frente da loja de objetos religiosos.
Lá estava o Menino, e a Virgem o oferecia a Pirulito. Um relógio deu a primeira hora da tarde. Não tardariam a voltar os outros empregados. Quantos seriam? Mesmo que fosse somente um, a loja era tão pequena que ficaria impossível levar o Menino. Parece que é a Virgem que está lhe dizendo isso. Que é a Virgem a lhe dizer que se ele não levar o Menino agora não o poderá levar mais, parece que está mesmo dizendo isso. E com certeza foi ela, sim, foi ela quem com que a senhorita entrasse pela cortina que tem no fundo da loja e a deixasse sozinha. Sim, foi a Virgem, que agora estende o Menino para Pirulito o quanto podem seus braços e o chama com sua doce voz:
- Leve e cuide dele...Cuide bem... Pirulito avança. Vê o inferno, o castigo de Deus, suas mãos e cabeça a arder uma vida que nunca acaba. Mas sacode o corpo como que jogando longe a visão, recebe o Menino que a Virgem lhe entrega, o encosta ao peito e desaparece na rua.
Não olha o Menino. Mas sente que agora, encostado ao seu peito, o Menino sorri, não tem mais fome nem sede nem frio. Sorri o Menino como sorria o negrinho de poucos meses quando se encontrou no trapiche e viu que João Grande lhe dava leite às colheradas com suas mãos enormes, enquanto o Professor o sustinha encostado ao calor do seu peito.
Assim sorri o Menino.
Capítulo 8 - Família
Foi Boa-Vida que contou a Pedro Bala que naquela casa da Graça tinha coisa de ouro de fazer medo. O dono da casa, pelo jeito, parecia colecionador, o Boa-Vida tinha ouvido um malandro dizer que na casa havia uma sala entupida de objetos de ouro e prata que no emprego haviam de dar uma fortuna. À tarde Pedro Bala foi como Boa-Vida ver a casa. Era um prédio moderno e elegante, jardim na frente, garagem ao fundo, espaçosa residência de gente rica. O Boa-Vida cuspiu por entre os dentes, desenhando uma flor no passeio com o cuspe, e disse:
- E dizer que nesse mundo só mora dois velhos, hein?
- Toca batuta... - comentou Pedro Bala.
Uma empregada abriu a porta da frente, saiu para o jardim. No hall, que ficou à vista, eles perceberam quadros pela parede, estatuetas sobre as mesas. Pedro Bala riu:
- Se o Professor visse isso ficava doidinho... Nunca vi tanto pegadio com livro e pintura.
- Ele vai fazer uma pintura como eu, deste tamanho... e Boa-Vida mostrava o tamanho separando as mãos uma da outra.
Pedro Bala olhou mais uma vez a casa, se acercou um pouco do jardim, assoviando. A empregada colhia flores e os seios alvos apareciam sob o decote, pois ela estava curvada. Pedro Bala espiou. Eram seios alvos terminando em bicos vermelhos. Boa-Vida suspirou ao seu lado.
- Que montanha, Bala.
- Cala a boca.
Mas a empregada já os vira e os olhava como a perguntar o que desejavam. Pedro Bala sacou o boné e pediu:
- Podia dar uma caneca de água à gente, por favor? O sol encalistrando... - e sorria, limpando com o boné a testa, onde o suor corria. Estava muito vermelho sob o sol, seus cabelos loiros crescidos desabando sobre as orelhas em ondas maltratadas, e a empregada mirou com simpatia. Ao lado Boa-Vida fumava uma ponta de charuto, com um pé em cima da gradezinha do jardim. A criada primeiro falou para Boa-Vida com desprezo:
- Tira esta pata daí de cima...
Depois sorriu para Pedro Bala:
- Trago a água já...
Voltou com dois copos d'água e eram copos como eles nunca tinham visto de tão bonitos. Beberam a água, Pedro Bala agradeceu - Muito obrigado... e baixinho lindeza.
A empregada falou também baixinho:
- Frangote atrevido...
- Que hora tu sai daqui?
- Te repara. Tenho meu homem. Ele me espera às nove horas da noite naquela esquina...
- Pois hoje tou na outra...
Saíram pela rua, Boa-Vida fumando sua ponta de charuto, abanando o rosto com o chapéu-coco que usava. Pedro Bala com, comentou:
- Eu sou é mesmo simpático... Aquela tá no papo...
Boa-Vida cuspiu novamente entre os dentes:
- Também com essa cabeleira de mulher, toda cheia de cachos...
Pedro Bala nu, mostrou o punho fechado ao Boa-Vida:
- Deixa de inveja, mulato pachola...
Boa-Vida desviou a conversa: souber onde fica os troço melhor a gente vem, uns cinco ou seis, tira o ourame...
- E tu perde a comida?
- A criada? Como hoje mesmo... Nove horas tou firme aí...
Voltou-se. Olhou a casa. A criada se debruçava na grade, Pedro Bala deu adeus. Ela respondeu, Boa-Vida cuspiu:
- Ó peste de sorte, nunca vi...
No outro dia, por volta de onze e meia da manhã, o Sem-Pernas apareceu em frente à casa. Quando ele tocou a campainha a empregada com certeza ainda pensava na noite que passara com Pedro Bala no seu quarto no Garcia, porque não ouviu o tilintar. O menino tocou de novo e na janela de um quarto do primeiro andar assomou a cabeça grisalha de uma senhora, que mirou com os olhos apertados ao Sem-Pernas:
- Que é, meu filho?
- Dona, eu sou um pobre órfão...
A senhora fez com a mão sinal que ele esperasse e dentro de poucos minutos estava no portão sem ouvir sequer as desculpas da empregada por não ter atendido à porta:
- Pode dizer, meu filho olhava os farrapos do Sem-Pernas.
- Dona, eu não tenho pai, faz só poucos dias que minha mãe foi chamada pro céu - mostrava um laço preto no braço, laço que tinha sido feito com a fita do chapéu novo do Gato, que se danara. - Não tenho ninguém no mundo, sou aleijado, não posso trabalhar muito, faz dois dias que não vejo de comer e não tenho onde dormir.
Parecia que ia chorar. A senhora olhava muito impressionada:
- Você é aleijado, meu filho?
O Sem-Pernas mostrou a perna capenga, andou na frente da senhora forçando o defeito. Ela o fitava com compaixão:
- De que morreu sua mãe?
- Mesmo não sei. Deu uma coisa esquisita na pobre, uma febre de mau agouro, ela bateu a caçoleta em cinco dias. E me deixou só no mundo... Se eu ainda agüentasse o repuxo do trabalho, ia me arranja. Mas com esse aleijão só mesmo numa casa de família... A senhora não tá precisando de um menino pra fazer compra, ajudar no trabalho da casa? Se tá, dona...
E como o Sem-Pernas pensasse que ela ainda estava indecisa completou com cinismo, uma voz de choro:
- Se eu quisesse me metia aí com esses meninos ladrão. Com os tal de Capitães da Areia. Mas eu não sou disso, quero é trabalhar.Só que não agüento um trabalho pesado. Sou um pobre órfão, tou com fome...
Mas a senhora não estava indecisa. Estava era se lembrando seu filho, que tinha morrido com a idade daquele e que ao morrer matara toda a sua alegria e a do marido.Este ainda tinha as suas coleções de obras de arte, mas ela tinha apenas a recordação daquele filho que a deixara tão cedo. Por isso olha o Sem-Pernas, esfarrapado, com um grande carinho e ao lhe falar sua voz tem uma doçura diferente da de sempre. Há como que um pouco de alegria na doçura da sua voz, e isso espanta a criada:
- Entre, meu filho. Deixe estar que vou arranjar um trabalho para você... - pôs a mão fina e aristocrática, onde brilhava solitário, na cabeça suja do Sem-Pernas e falou para a criada:
- Maria José, prepare o quarto de cima da garagem para este menino.
Mostre o banheiro a ele, dê um roupão de Raul, depois dê comida a ele...
- Antes de botar o almoço, dona Ester?
- Antes, sim. Faz dois dias que ele não come, pobrezinho...
O Sem-Pernas nada dizia, apenas secava com as costas da mão lagrimas fingidas.
- Não chore... - falou a senhora, e acariciou o rosto da criança.
- A senhora é tão boa. Deus lhe paga...
Depois perguntou como ele se chamava, e o Sem-Pernas deu o primeiro nome que lhe passou pela cabeça:
- Augusto... - e como repetia o nome para si mesmo, para não se esquecer que se chamava Augusto, não viu no primeiro momento a emoção da senhora, que murmurava:
- Augusto, o mesmo nome...
Disse em voz alta, porque agora o Sem-Pernas olhava seu rosto emocionado:
- Meu filho também se chamava Augusto... Morreu quando tinha assim o seu tamanho... Mas entre, meu filho, vá se lavar para comer.
Dona Ester o acompanhou comovida. Viu que a empregada mostrava o banheiro ao Sem-Pernas, dava-lhe um roupão e se dirigia pata o quarto em cima da garagem para arrumá-lo o chofer tinha se despedido, o quarto estava vazio. Dona Ester se aproximou, disse ao Sem-Pernas que parara na porta do banheiro:
- Pode jogar essas roupas fora. Maria José depois vai lhe trazer roupa...
O Sem-Pernas agora olhava a senhora que desaparecia, e tinha raiva, mas não sabia se era dela ou de si mesmo.
Dona Ester sentou-se em frente ao seu penteador, ficou com os olhos parados, quem a visse pensaria que ela olhava o céu através da janela. Porém, em verdade, ela nada olhava, nada via. Olhava, sim, para dentro de si, para as suas recordações de muitos anos, e via um menino da idade do Sem-Pernas, vestido com uma roupa de marinheiro, correndo no jardim da outra casa, da qual se mudaram depois que ele morreu. Era um menino cheio de vida e de alegria, gostava de rir e de saltar. Quando se cansava de correr com o gato, de montar na gangorra do jardim, de jogar a bola de borracha no quintal para o cão lobo a apanhar, vinha e passava os braços em torno ao colo de dona Ester, a beijava no rosto e ficava com ela, vendo livros de figuras, aprendendo a ler e a desenhar as letras. Para tê-lo junto a si o maior tempo possível dona Ester e o marido resolveram ensinar ao filho as primeiras letras mesmo em casa. Um dia e os olhos de dona Ester se enchem de lágrimas veio a febre. Depois o pequeno caixão saiu pela porta e ela o olhava de olhos espantados, não podia compreender seu filho houvesse morrido.O retrato dele ampliado num quadro no seu quarto, mas uma cortina o cobre sempre, porque ela não gosta de rever a face do filho para não renovar sua angústia. Também roupas que ele usou estão todas trancadas na sua pequena mala jamais buliram nela. Mas agora dona Ester tira as chaves da sua caixa de joias.
E, lentamente, muito lentamente, se dirige para onde está a mala. Puxa uma cadeira na qual senta. Abre com mãos trêmulas a maleta. Mira as calças e blusas, a roupa de marinheiro, os pequenos pijamas e camisolas com que ele dormia. Aperta a roupa de marinheiro ao peito como se abraçasse seu filho. As lágrimas rebentam.
Agora um menino pobre e órfão viera bater à sua porta. Depois da morte de seu filho ela não quisera ter outro, não gostava mesmo de ver e brincar com crianças para não avivar a dor das suas recordações. Mas um, pobre e órfão, aleijado e triste, que se dissera chamar Augusto como seu filho, batera em sua porta pedindo pão, pousada e carinho. Por isso ela tem coragem de abrir a mala onde guarda roupas que seu filho usou. Por isso tira esta roupa azul de marinheiro, a roupa da qual ele mais gostava. Porque para dona Ester seu filho voltou hoje na figura desta criança andrajosa e aleijada, sem pai, sem mãe. Seu filho voltou e suas lágrimas não são apenas de dor. Voltou seu filho macilento e esfomeado, com uma perna aleijada e vestido de farrapos. Mas em breve será novamente o Augusto alegre e feliz daqueles anos passados, e novamente virá e passará os braços em torno ao seu pescoço e lerá as grandes letras da cartilha.
Dona Ester se levanta. Leva consigo a roupa azul de marinheiro. E é vestido com ela que o Sem-Pernas come o melhor almoço da sua vida.
Se a roupa de marinheiro tivesse sido feita de propósito para ele não estaria tão bem. Estava perfeita no Sem-Pernas e quando ele se olhou no espelho da sala quase não se reconheceu. Estava lavado, a empregada tinha posto brilhantina no seu cabelo e perfume no seu rosto. A roupa de marinheiro era um a beleza. O Sem-Pernas se mirava no espelho. Passou a mão na cabeça, depois no peito alisando a roupa, sorriu pensando no Gato. Daria muito para que o Gato o visse tão elegante.Tinha também sapatos novos, mas a verdade é que os sapatos o desgostavam um pouco porque tinham um laço de fita, pareciam um pouco sapatos de mulher. O Sem-Pernas achava esquisito estar vestido de marinheiro com sapatos de mulher. Andou para o jardim, pois queria fumar, nunca tinha deixado de tragar o seu cigarro após o almoço. Por vezes não havia almoço, mas havia sempre uma ponta de cigarro ou de charuto. Ali era preciso cuidado, não podia fumar abertamente. Se o houvessem deixado na cozinha de mistura com a criadagem, como o deixavam nas outras casas onde penetrara para depois roubar, poderia fumar, conversar na língua de poucos termos dos Capitães da Areia. Mas desta vez o tinham lavado, vestido de novo, posto brilhantina no seu cabelo e perfume no rosto. Depois tinham lhe dado comida na sala de jantar. E durante o almoço a senhora conversara com ele como se ele fosse um menino bem criado. Agora mandara que ele brincasse no jardim, onde o gato amarelo que se chamava Berloque esquentava ao sol. O Sem-Pernas chega para um banco, tira do bolso o maço de cigarros baratos. Quando mudara a roupa não se esquecera dos cigarros. Acende um e começa a saborear as tragadas, pensando na sua nova vida. Muitas vezes já fizera aquilo: penetrar em casa de uma família como um menino pobre, órfão e aleijado e neste título passar os dias necessários para fazer um reconhecimento completo da casa, dos lugares onde guardávamos objetos de valor, das saídas fáceis para uma fuga. Depois os Capitães da Areia invadiam a casa numa noite, levavam os objetos valiosos, e no trapiche o Sem-Pernas gozava invadido por uma grande alegria, alegria da vingança. Porque naquelas casas, se o acolhiam, se lhe davam comida e dormida, era como cumprindo uma obrigação fastidiosa. Os donos da casa evitavam se aproximar dele, e o deixavam na sua sujeira, nunca tinham uma palavra boa para ele. Olhavam-no sempre como a perguntar quando ele iria. E muitas vezes a senhora que se comovera com a sua história, contada na porta em voz soluçante, e o acolhera, mostrava evidentes sinais de arrependimento.
Para o Sem-Pernas elas o acolhiam de remorso. Porque o Sem-Pernas achava que eles eram todos culpados da situação de todas as crianças pobres. E odiava a todos, com um ódio profundo. Sua grande e quase única alegria era calcular o desespero das famílias após o roubo, ao pensar que aquele garoto esfomeado a quem tinham dado comida quem fizera o reconhecimento da casa e indicara a outras criar esfomeadas onde estavam os objetos de valor.
Mas desta vez estava sendo diferente. Desta vez não o deixa na cozinha com seus molambos, não o puseram a dormir no quintal. Deram-lhe roupa, um quarto, comida na sala de jantar. Era como hóspede, era como um hóspede querido. E fumando o seu cigarro escondido o Sem-Pernas pergunta a si mesmo por que está se escondendo para fumar, o Sem-Pernas pensa sem compreender. Não compreende nada do que se passa. Sua cata está franzida. Lembra os dias da cadeia, a surra que lhe deram, os sonhos que nunca deixaram de persegui-lo. E, de súbito, tem medo de que nesta casa sejam bons para ele. Sim, um grande medo de que sejam bons para ele. Não sabe mesmo porque, mas tem medo. E levanta-se, sai do seu esconderijo e vai fumar bem por baixo da janela da senhora. Assim verão que é um menino perdido, que não merece um quarto, roupa nova, comida na sala de jantar. Assim o mandarão para a cozinha, ele poderá 1evar para diante sua obra de vingança, conservar o ódio no seu coração. Porque se esse ódio desaparecer, ele morrerá, não terá nenhum motivo para viver. E diante dos seus olhos passa a visão do homem de colete que vê os soldados a espancar o Sem-Pernas e ri numa gargalhada brutal. Isso há de impedir sempre o Sem-Pernas de ver o rosto bondoso de dona Ester, o gesto protetor das mãos do padre José Pedro, a solidariedade dos músculos grevistas do estivador João de Adão. Será sozinho e seu ódio alcança a todos, brancos e negros, homens e mulheres, ricos e pobres. Por isso teme que sejam bons para cons Pela tarde o dono da casa, Raul, chegou do seu escritório. Era advogado de muito nome, enriquecera na profissão, era catedrático na Faculdade de Direito, mas antes de tudo era um colecionador. Tinha uma boa galeria de quadros e tinha moedas antigas, obras raras de arte. O Sem-Pernas viu quando ele entrou. Neste momento o Sem-Pernas via as gravuras de um livro para crianças e ria sozinho do elefante tolo a quem o macaco enganava. Raul não o viu, subiu as escadas. Mas depois a empregada veio chamar o Sem-Pernas e o levou ao quarto de dona Ester. Raul ali estava de manga a de camisa, fumando um cigarro e olhou o menino com um sorriso divertido, já que o Sem-Pernas mostrava uma cara muito atrapalhada na entrada do quarto: - Passe...
O Sem-Pernas entrou capengando, não tinha onde botar as mãos. Dona Ester falou com bondade:
- Sente, meu filho, não tenha medo, não...
O Sem-Pernas sentou-se na ponta de uma cadeira e ficou esperando. O advogado o estudava, mirando seu rosto, mas era com simpatia, e o Sem-Pernas preparava as respostas para as inevitáveis perguntas. Contou novamente a história inventada pela manhã, mas quando começou a chorar abundantes lágrimas o advogado mandou que ele parasse e se levantou, dirigindo-se à janela. O Sem-Pernas compreendeu que ele estava comovido, e este resultado da sua arte o fez ficar orgulhoso. Sorriu só para si. Mas agora o advogado se aproximava de dona Ester e a beijava na testa e depois nos lábios. O Sem-Pernas baixou os olhos. Raul andou até ele, botou a mão no seu ombro e falou:
- Deixe estar, que agora você não passa mais fome. Vá... Vá brincar, vá ver os livros. À noite nós vamos ao cinema. Você gosta de cinema?
- Gosto, sim senhor.
O advogado o despedia com um gesto. O Sem-Pernas saiu, mas ainda viu Raul se aproximar de dona Ester e dizer:
- És uma santa. Vamos fazer dele um homem...
Era a hora do crepúsculo, as luzes se acendiam e o Sem-Pernas pensou que nesta hora os Capitães da Areia percorriam a cidade procurando o que comer.
Pena que no cinema não pudesse gritar quando o mocinho surrava o vilão, como fazia nas vezes que conseguira penetrar no galinheiro do Olímpia ou do cinema de Itapagipe. Ali, no Guarani, luxuoso e de cômodas cadeiras, tinha que ouvir o filme em silêncio e num momento que não se conteve e soltou um assovio, Raul o olhou.
É verdade que sorria, mas também é certo que fez um gesto para que Sem-Pernas não assoviasse mais.
Depois o levaram a tomar sorvete no bar que havia em frente ao cinema. O Sem-Pernas, enquanto tomava seu gelado, pensava em que ia cometendo uma irremediável tolice quando o advogado perguntara o que ele queria. Estivera para pedir uma cerveja bem geladinha. Mas se contivera em tempo e pedira o sorvete.
No automóvel o advogado foi na frente guiando e o Sem-Pernas foi atrás com dona Ester, que conversava com ele. A conversa era difícil para o Sem-Pernas, que tinha que controlar sua terminologia que era escassa e repleta de palavrões. Dona Ester perguntava coisas de sua mãe, o Sem-Pernas respondia como podia, fazendo grande esforço para reter os detalhes que inventava para posteriormente cair em contradição. Por fim chegaram na casa da Graça e dona Ester conduziu o Sem-Pernas para o quarto em cima da garagem:
- Não tem medo de dormir aí sozinho?
- Não, senhora...
- Isso é por poucos dias. Depois lhe porei lá em cima, no quarto que foi de Augusto...
- Não precisa, dona Ester, aqui tá muito bom.
Ela se acercou dele e o beijou na face:
- Boa noite, meu filho.
Saiu, cerrando a porta. O Sem-Pernas ficou parado, sem um gesto, sem responder sequer o boa noite, a mão no rosto, no lugar em que dona Ester o beijara. Não pensava, não via nada. Só a suave carícia do beijo, uma carícia como nunca tivera, uma carícia de mãe. Só a suave carícia no seu rosto. Era como se o mundo houvesse parado naquele momento do beijo e tudo houvesse mudado. Só havia no universo inteiro a sensação suave daquele beijo maternal na face do Sem-Pernas.
Depois foi o horror dos sonhos da cadeia, o homem de colete que ria brutalmente, os soldados que surravam o Sem-Pernas, que corria com a perna aleijada em voltada saleta. Mas de repente chegou dona Ester e o homem de colete e os soldados morreram entre infinitas torturas, porque agora o Sem-Pernas estava vestido com uma roupa de marinheiro e tinha um chicote na mão como o mocinho do cinema.
Oito dias se passaram. Pedro Bala por várias vezes já andara em frente da casa para saber notícias do Sem-Pernas, que tardava a voltar ao trapiche. Já havia tempo mais que suficiente para que o Sem-Pernas soubesse onde se quedavam todos os objetos facilmente transportáveis da casa e as saídas que podiam auxiliar a fuga. Mas em vez de ver o Sem-Pernas, Pedro Bala via era a empregada, que pensava que ele vinha por ela. Certo dia em que conversava com a empregada, Pedro Bala tocou com muito jeito no assunto do Sem-Pernas:
- A moça daí tem um filho, não tem?
- É um menino que ela tá criando. Muito bonzinho.
Pedro Bala sorriu, porque sabia que o Sem-Pernas, quando queria, se fazia passar pelo melhor menino do mundo. A empregada continuou:
- É um pouco mais moço que você, mas é mesmo um menino.
Não é assim um perdido como você, que até já dorme com mulher... - e ria para Pedro Bala.
- Foi tu que tirou meu cabaço...
- Não diga coisa feia. Demais é mesmo mentira.
- Juro.
Ela gostaria que fosse, e se bem desconfiasse muito que não, gostava que ele lhe dissesse aquilo. Se sentia não só como amante do menino, mas um pouco como mãe também.
- Vem hoje, que eu te ensino um modo gostoso...
- De noite, na esquina... Mas diz um troço: tu não trepa com esse menino daqui?
- Esse nem sabe que é isso... É um tolinho. Menino mimado.
Tu tá feito bobo. Não vê que eu não me passo...
De outra vez Pedro Bala conseguiu ver o Sem-Pernas. Este estava estirado no jardim o gato roncava ao seu lado, espiando um livro de figuras, e Pedro Bala ficou espantadíssimo quando o viu vestido com uma calça de casimira cinza e uma blusa de seda. Até o cabelo do Sem-Pernas estava penteado, e Pedro Bala quedou um momento boquiaberto, sem sequer assoviar para o Sem-Pernas. Afinal voltou a si e assoviou. O Sem-Pernas se pôs logo de pé, viu o Bala do outro lado da rua. Fez um sinal para que ele o esperasse, saiu pelo portão, após ver que ninguém da casa estava próximo.
Pedro Bala andava para a esquina, e Sem-Pernas o acompanhou. Quando chegou perto, ainda mais se espantou Pedro Bala: