Terceira Parte - Canção da Bahia, Canção da Liberdade Capítulo 20 - Vocações

Não havia passado muito tempo sobre a morte de Dora, a imagem da sua presença tão rápida e no entanto tão marcante, da sua morte também, ainda enchia de visões as noites do trapiche. Alguns, quando entravam, todavia, olhavam para o canto onde ela costumava sentar ao lado do Professor e de João Grande. Ainda com a esperança de encontrá-la. Fora um acontecimento sem explicação. Fora o totalmente inesperado na vida deles, o aparecimento de uma mãe, de uma irmã. Motivo por que eles ainda a procuravam, apesar de terem visto o Querido-de-Deus a levar no seu saveiro para o fundo do mar. Só Pedro Bala não a procurava no trapiche. Procurava ver, no céu de tanta estrela, uma que tivesse longa e loira cabeleira.

Um dia Professor entrou no trapiche e não acendeu sua vela, não abriu um livro de histórias, não conversou. Para ele toda aquela vida tinha acabado desde que Dora fora levada pela febre. Quando ela viera, enchera o trapiche com sua presença. Para Professor tudo tinha uma nova significação. O trapiche ficara como a moldura de um quadro: ora os cabelos loiros caindo sobre Gato, que via sua mãe, ora os lábios que beijavam Zé Fuinha para ele dormir. Ou a boca que cantava cantigas de ninar.Também sorrisos de orgulho para a coragem de Volta Seca, como se fosse uma destemida mulata sertaneja. Ou a entrada no trapiche, os cabelos voando, o rosto todo rindo, de volta da aventura do dia nas ruas da cidade. Ou os olhos cheios de amor, a febre queimando seu rosto, as mãos chamando o amado para a posse primeira e última. Agora Professor olhava o trapiche como para uma moldura sem quadro. Inútil. Para ele deixara de ter significação, ou tinha uma significação terrível demais. Mudara muito naqueles meses após a morte de Dora, andava calado, o rosto sério, e entrara em relações com aquele senhor que certa vez, num passeio da rua Chile, conversara com ele, lhe dera uma piteira e seu endereço.

Nesta noite Professor não acendeu vela, não abriu livro de história. Ficou calado quando João Grande veio para seu lado. Arrumava suas coisas numa trouxa. Quase tudo era livro. João Grande olhava sem dizer nada, mas compreendia muito, se bem todos dissessem que não havia negro mais burro que o negrinho João Grande. Mas quando Pedro Bala chegou e sentou também a seu lado e lhe ofereceu um cigarro, Professor falou:

- Vou embora, Bala...

- Pra onde, mano?

Professor olhou o trapiche, os meninos que andavam, que riam, que se moviam como sombras entre os ratos:

- Que adianta a vida da gente? Só pancada na polícia quando pegam a gente. Todo mundo diz que um dia pode mudar... Padre José Pedro, João de Adão, tu mesmo. Agora vou mudar a minha...

Pedro Bala não disse nada, mas a pergunta estava nos seus olhos. João Grande não perguntava nada, compreendia tudo.

- Vou estudar com um pintor do Rio. Dr. Dantas, aquele da piteira, escreveu a ele, mandou uns desenhos meus. Ele mandou dizer que me mandasse... Um dia vou mostrar como é a vida da gente... Faço o retrato de todo mundo... Tu falou uma vez, lembra? Pois faço...

A voz de Pedro Bala o animou:

- Tu também vai ajudar a mudar a vida da gente...

- Como? - fez João Grande.

Professor também não entendeu. Tampouco Pedro Bala sabia explicar. Mas tinha confiança no Professor, nos quadros que ele faria na marca do ódio que ele levava no coração, na marca de amor à justiça e à liberdade que ele levava dentro de si. Não se vive inutilmente uma infância entre os Capitães da Areia. Mesmo quando depois se vai se um artista e não um ladrão, assassino ou malandro. Mas Pedro Bala não sabia explicar tudo isso. Apenas disse:

- A gente nunca te esquece, mano... Tu lia história para gente, era o mais batuta da gente... O mais batuta...

Professor baixou a cabeça. João Grande se levantou, sua voz era um chamado, era um grito de despedida também:

- Gentes! Gentes!

Vieram todos, ficaram em torno. João Grande estendeu os braços:

- Gentes, Professor vai embora. Vai ser um pintor no Rio de Janeiro. Gentes, viva Professor!

O viva apertou o coração do menino. Olhou para o trapiche. Não era como um quadro sem moldura. Era como a moldura de inúmeros quadros. Como quadros de uma fita de cinema. Vida s de luta e de coragem. De miséria também. Uma vontade de ficar. Mas que adiantava ficar? Se fosse, poderia ser de melhor ajuda. Mostraria aquelas vidas... Apertam sua mão, o abraçam. Volta Seca está triste, tão triste como se tivesse morrido um cangaceiro do grupo de Lampião.

Na noite do cais o homem da piteira, que era um poeta, entrega uma carta e dinheiro a Professor:

- Ele o esperará no cais. Telegrafei. Espero que você não traia a confiança que depositei no seu talento.

Nunca um passageiro de terceira teve tanta gente na sua despedida. Volta Seca lhe dá um punhal de presente. Pedro Bala faz tudo para rir, para dizer coisas gozadas.Mas João Grande não esconde a tristeza que vai dentro dele.

Professor ainda de longe vê o boné de Pedro, que se sacode no cais. E no meio daqueles homens desconhecidos, oficiais fardados, comerciantes e senhoritas, fica tímido, não sabe que fazer, sente que toda a sua coragem ficou com os Capitães da Areia. Mas dentro do seu peito vem uma marca de amor à liberdade. Marca que o faria abandonar o velho pintor que lhe ensina coisas acadêmicas para ir pintar por sua conta quadros que, antes de admirar, espantam todo o país.

Passou o inverno, passou o verão, veio outro inverno, e este cheio de longas chuvas, o vento não deixou de correr uma só noite areal. Agora Pirulito vendia jornais, fazia trabalhos de engraxate, carregava bagagens dos viajantes. Conseguira deixar de furtar para viver. Pedro Bata consentira que ele continuasse no trapiche, apesar que ele não levava a mesma vida que os outros. Pedro Bala não entende o que vai dentro de Pirulito. Sabe que ele quer ser padre, que quer fugir daquela vida. Mas acha que aquilo não resolverá nada, não endireitará nada na vida de todos eles. O padre José Pedro fazia tudo para mudar a vida deles. Mas era um só, os outros não achavam que ele fizesse bem. Que tinha adiantado? Só todos unidos, como dizia João de Adão.

Mas Deus chamava Pirulito. Nas noites do trapiche o menino ouvia o chamado de Deus. Era uma voz poderosa dentro dele. Uma voz poderosa como a voz do mar, como a voz do vento que corre em torno ao casarão. Uma voz que não fala aos seus ouvidos, que fala seu coração. Uma voz que o chama, que o alegra e o amedronta mesmo tempo. Uma voz que exige tudo dele para lhe dar a felicidade a servir. Deus o chama. E o chamado de Deus dentro de Pirulito é poderoso como a voz do vento, como a voz potente do mar. Pirulito quer viver para Deus, inteiramente para Deus, uma vida de recolhimento e de penitência, uma vida que o limpe dos pecados, que o torne digno da contemplação de Deus. Deus o chama e Pirulito pensa na sua salvação. Será um penitente, não olhará mais o espetáculo do mundo. Não quer ver nada do que se passa no mundo para ter os olhos suficientemente limpos para poderem ver a face de Deus. Porque para aqueles que não têm os olhos completamente limpos de todo pecado, a face de Deus é terrível como o mar enfurecido. Mas para que têm os olhos e o coração limpos de todo o pecado, a face de Deus é mansa como as ondas do mar numa manhã de sol e de bonança.

Pirulito está marcado por Deus. Mas está marcado também pela vida dos Capitães da Areia. Desiste da sua liberdade, de ver e ouvir o espetáculo do mundo, da marca de aventura dos Capitães da Areia, para ouvir o chamado de Deus. Porque a voz de Deus que fala no seu coração é tão poderosa que não tem comparação. Rezará pelos Capitães da Areia na sua cela de penitente. Porque tem que ouvir e seguir a voz que o chama. É uma voz que transfigura seu rosto na noite invernosa do trapiche.Como se lá fora fosse a primavera.

Padre José Pedro foi chamado novamente ao arcebispado. Desta vez o Cônego está acompanhado do superior dos Capuchinhos. Padre José Pedro treme, pensando que novamente vão lhe ralhar, vão falar dos seus pecados. Fez uma coisa contra as leis para ajudar os Capitães da Areia. Teme ter fracassado, porque em quase nada conseguira melhorara vida deles. Mas em certos momentos cruéis levara um pouco de conforto àqueles pequenos corações. E tinha Pirulito... Era uma conquista para Deus. Se não fizera tudo, se não transformara como queria aquelas vidas, não tinha perdido tudo também. Algo havia conseguido para Deus. Se alegrava, apesar da tristeza do pouco que havia conseguido para os Capitães da Areia. Assim mesmo, em certos momentos fora como a família que lhes faltava. Certas horas tinha sido pai e mãe. Agora os chefes estavam já rapazes, quase homens. Professor já tinha ido embora, outros não tardariam a ir. Mesmo que fossem ser ladrões, levar uma vida de pecado, em certos momentos o padre conseguira minorar o espetáculo de miséria das suas vidas com um pouco de conforto e de carinho. E de solidariedade.

Mas desta vez o Cônego não ralha. Anuncia que o arcebispado resolveu lhe dar uma paróquia. Conclui:

- O senhor nos deu muito que fazer, padre, com suas ideias erradas acerca de educação. Espero que a bondade do Sr. Arcebispo lhe dando esta paróquia fará com que o senhor pense nas suas obrigações e desista dessas inovações soviéticas.

A paróquia nunca tivera cura porque o arcebispo nunca encontrara um padre que se dispusesse a ir para o meio dos cangaceiros, numa perdida vila do alto sertão.Mas o nome do lugarejo alegrou o coração do padre José Pedro. Ia para o meio dos cangaceiros. E os cangaceiros são como crianças grandes. Agradeceu, ia falar, mas o superior dos Capuchinhos o interrompeu:

- O Sr. Cônego me disse que entre estes meninos há um que tem vocação sacerdotal.

- Ia falar disso mesmo disse o padre. - Nunca vi uma vocação tão decidida.

O missionário sorriu:

- Porque nós estamos em falta de um irmão. Não é o mesmo que ser padre, bem sei. Mas está muito próximo. E se a sua vocação verdadeira a ordem pode fazê-lo estudar e mesmo se ordenar.

- Ele vai ficar louco de alegria.

- O senhor responde por ele?

Pirulito irá ser frade. Um dia talvez se ordene. O padre sai agradecendo a Deus.

Levam o padre à estação. O apito do trem é como um lamento. Estão ali vários dos Capitães da Areia. Padre José Pedro os fita com amor. Pedro Bala diz:

- O senhor foi bom pra gente, padre. Um homem bom. A gente não vai esquecer o senhor...

Não reconhecem Pirulito quando ele chega vestido com uma batina de frade, um longo cordão pendendo ao lado. Padre José Pedro diz:

- Conhecem o irmão Francisco da Sagrada Família?

Eles olham Pirulito com certa vergonha. Mas Pirulito sorri. Está mais magro, um ar de asceta. Com o hábito de capuchinho fica muito alto.

- Ele rezará por vocês... - diz o padre José Pedro.

Se despede. Entra para o vagão. O trem apita, é como uma despedida. Da janela, o padre vê os meninos que agitam mãos e bonés, velhos chapéus, trapos que servem de lenço. Uma velha que vai defronte dele, doidinha para puxar conversa, se espanta do padre chorando.

Boa-Vida pouco aparece no trapiche. Tem um violão, faz sambas, está enorme, mais um malandro nas ruas da Bahia. Ninguém tem uma vida igual à dos malandros. Passa o dia conversando nas docas, no mercado, vai às festas dos morros e da Cidade de Palha à noite, ou às macumbas. Toca seu violão, come e bebe do melhor, apaixona as cabrochas bonitas com sua voz e sua música. Arma fuzuê nas festas e quando a polícia o persegue vem se esconder no trapiche entre os Capitães da Areia.

Então toca para eles, ri com eles em gargalhadas como se ainda fosse um deles. Boa-Vida vai se afastando aos poucos, à proporção que vai crescendo. Quando tiver dezenove anos já não voltará. Será um malandro completo, um daqueles mulatos que amam a Bahia acima de tudo, que fazem uma vida perfeita nas ruas da cidade. Inimigo da riqueza e do trabalho, amigo das festas, da música, do corpo das cabrochas. Malandro. Armador de fuzuês. Jogador de capoeira navalhista, ladrão quando se fizer preciso. De bom coração, como canta um ABC que Boa-Vida faz acerca de outro malandro. Prometendo às cabrochas se regenerar e ir para o trabalho, sendo malandro sempre.Um dos valentões da cidade. Figura que os futuros Capitães da Areia amarão e admirarão, como Boa-Vida amou e admirou o Querido-de-Deus.

Um dia, passado muito tempo, Pedro Bala ia com o Sem-Pernas pelas ruas. Entraram numa igreja da Piedade, gostavam de ver as coisas de ouro, mesmo era fácil bater uma bolsa de uma senhora que rezasse. Mas não havia nenhuma senhora na igreja àquela hora. Somente um grupo de meninos pobres e um capuchinho que lhes ensinava catecismo.

- É Pirulito... - disse Sem-Pernas.

Pedro Bala ficou olhando. Encolheu os ombros:

- Que adianta?

Sem-Pernas olhou:

- Não dá de comer...

- Um dia um vai ser padre também. Tem que ser é tudo junto.

Sem-Pernas disse:

- A bondade não basta.

Completou:

- Só o ódio...

Pirulito não os via. Com uma paciência e uma bondade extremas ensinava às crianças buliçosas as lições de catecismo. Os dois Capitães da Areia saíram balançando a cabeça. Pedro Bala botou a mão no ombro do Sem-Pernas.

- Nem o ódio, nem a bondade. Só a luta.

A voz bondosa de Pirulito atravessa a igreja. A voz de ódio do Sem-Pernas estava junto de Pedro Bala. Mas ele não ouvia nenhuma. Ouvia era a voz de João de Adão, o doqueiro, a voz de seu pai morrendo na luta.


Capítulo 21 - Canção de Amor da Vitalina

Gato contou que a solteirona era cheia do dinheiro. Era a última de uma família rica, andava pelos quarenta e cinco anos, feia e nervosa. Corna a notícia de que tinha uma sala cheia de coisas de ouro, de brilhantes e joias acumuladas pela família através de gerações. Pedro Bala pensou que era uma coisa capaz de dar um bocado de dinheiro. Gonzales, o dono da casa de penhor O 14, dava dinheiro por aqueles objetos. Perguntou ao Sem-Pernas:

- Tu é capaz de penetrar?

- Se sou...

- Depois a gente invade.

Riram no trapiche. Gato saiu para ver Dalva. Sem-Pernas avisou:

- Amanhã de manhã vou lá.

A solteirona abriu a porta. Só tinha uma criada, uma negra velha, que parecia fazer parte da herança, pois acompanhava a família há cinquenta anos. A solteirona olhou muito digna para o Sem-Pernas:

- Quer alguma coisa?

- Eu sou um pobre ódio e aleijado mostrava a perna coxa. - Não quero viver furtando, nem pedindo esmola. A senhora tem um trabalho para mim? Posso fazer compras.

A solteirona não tirava os olhos dele. Um menino... Não era a bondade que falava dentro dela. Era a voz do sexo que dava seus últimos latidos. Dentro em pouco seu sexo ficaria inútil, os médicos diziam que então o seu nervoso cessaria. Muito antes, quando ainda era mocinha, houvera um menino na casa para fazer compras.Fora bom... Mas seu irmão descobrira, expulsara o menino. Agora o irmão estava morto, outro menino vinha pedir para fazer compras:

- Tá bem.

Mandou que ele tomasse banho. Pela tarde deu-lhe dinheiro para as compras e mais para uma roupa para ele. Sem-Pernas conseguiu bater mil e duzentos nas contas.Pensou:

- Aqui vou é fazer dinheiro...

Na cozinha a negra contava histórias antigas com sua língua embolada. Sem-Pernas ouvia demonstrando excessivo interesse para ganhar confiança da negra. Mas quando perguntou pelas coisas de ouro a negra não respondeu. Sem-Pernas não insistiu. Sabia ser paciente, estava acostumado àquele trabalho. Na sala a solteirona fazia ponto de cruz numa toalha, mirava Sem-Pernas com interesse, pela porta. Era feia de cara, mas o corpo velhusco ainda tinha certo atrativo.

Chamou Sem-Pernas para ver o trabalho que ela estava fazendo, quando Sem-Pernas olhou ela se curvou, ele viu os seios grandes. Mas não pensou que ela estivesse lhe mostrando. Achou o trabalho muito bonito, disse:

- A senhora é muito inteligente...

Parecia até um menino bem-educado. Apesar da perna coxa e da cara feia, a solteirona o achou lindo. Seria melhor que fosse um pouco menos crescido. Mas assim mesmo... Novamente se curvou, mostrou os seios ao Sem-Pernas. Sem-Pernas desviou o olhar, não pensava que fosse de propósito. Quando ele elogiou novamente o trabalho, ela passou a mão no seu rosto:

- Obrigada, meu filho sua voz era lânguida.

A negra botou um colchão na sala de jantar para o Sem-Pernas dormir. Cobriu com um lençol, arranjou um travesseiro. A solteirona conversava na casa de uma amiga, na mesma rua, e quando voltou Sem-Pernas já estava deitado. Ouviu que ela se despedia de alguém:

- Desculpe este trabalho de trazer uma vitalina pra casa.

- Dona Joana, não diga isso...

Entrou, trancou a porta da rua, tirou a chave. A negra já tinha ido dormir no quarto junto da cozinha. A solteirona veio até a sala de jantar, deu uma espiada em Sem-Pernas, que fez que estava dormindo. Suspirou. Marchou para seu quarto.

As luzes estavam todas apagadas na casa. Apesar de ser muito cedo em relação à hora em que dormiam no trapiche, Sem-Pernas se entregou ao sono.

Por isso não sabe a que horas a vitalina veio. Sentiu foi uma mão que passava em seus cabelos. Pensou que fosse um sonho bom. A mão deslizava, passava no seu peito, na sua barriga, agora segurava de manso no seu sexo. Sem-Pernas despertou completamente, mas ficou de olhos fechados. A solteirona machucava seu sexo, se encostava contra ele. Estava de camisa de dormir, suspendeu a camisa, botou a mão de Sem-Pernas no seu corpo, Sem-Pernas se encostou nela. Quis falar, ela pôs a mão na sua boca, apontou para a cozinha:

- Pode ouvir...

Disse ainda mais baixo:

- Tu vai ser bom para mim, não vai?

Se apertava contra ele. Puxou as calças do Sem-Pernas. Depois se cobriram com o lençol. Mas quando Sem-Pernas quis tudo, ela disse:

- Não. Só em cima.

Era uma coisa incompleta que enraivecia Sem-Pernas.

A solteirona gemia baixinho de amor. Apertava a cabeça do Sem-Pernas contra seus seios enormes, o sexo dele contra suas coxas, a mão do menino no seu sexo.

Sem-Pernas levanta estremunhado. Um grande cansaço nos seus membros. Aquelas noites são como batalhas. Nunca é um gozo completo, uma satisfação total. A solteirona quer uma migalha de amor. Teme o amor completo, o escândalo de um filho. Mas tem sede e fome de amor, quer nem que sejam as migalhas. Mas Sem-Pernas quer fazer o amor completo, aquilo o irrita, faz crescer seu ódio. Ao mesmo tempo se sente preso ao corpo da solteirona, às carícias a meio, trocadas na noite. Uma coisa o retém naquela casa. Se bem ao acordar tenha ódio de Joana, uma raiva impotente, uma vontade de a estrangular já que não a pode possuir totalmente, se a acha feia e velha, quando a noite se acerca fica nervoso pelos carinhos da vitalina, pela mão que movimenta seu sexo de menino, pelos seus seios onde repousa a cabeça, pelas suas coxas grossas. Imagina planos para a possuir, mas a solteirona os frustra, fugindo no último momento, e ralha com ele em voz baixa. Uma raiva surda possui Sem-Pernas.Mas a mão dela vem de novo para seu sexo e ele não pode lutar contra o desejo. E volta àquela luta tremenda da qual sai nervoso e esgotado. Durante o dia responde mal a Joana, diz brutalidades, a solteirona chora. Ele a chama de vitalina, diz que vai embora. Ela lhe dá dinheiro, pede que ele fique. Mas não é pelo dinheiro que ele fica. Fica porque o desejo o retém. Já sabe qual a chave que abre a sala onde Joana guarda seus objetos de ouro. Sabe como tirar a chave para levá-la aos Capitães da Areia. Mas o desejo o retém ali, junto dos seios e das coxas da vitalina. Junto da mão da vitalina.Fora sempre infeliz para o lado de mulher. Quando conseguia uma negrinha no areal era com a ajuda dos outros, era à força. Nenhuma olhava para ele, convidando com os olhos. Outros eram feios, mas ele era repulsivo com a perna coxa, andando feito caranguejo. Demais terminara por se fazer antipático e a se acostumara possuir negrinhas a pulso. Agora vinha uma mulher branca e com dinheiro, velha e feiúsca era verdade, mas bem comível ainda, e se deitava com ele. Acariciava seu sexo com a mão, juntava coxa com coxa, deitava sua cabeça nos seus seios grandes. Sem-Pernas não podia sair dali, se bem cada dia estivesse mais bruto e mais inquieto.Seu desejo reclamava uma posse completa. Mas a vitalina se contentava em colher migalhas do amor.

Sem-Pernas durante o dia a odeia, se odeia, odeia o mundo todo.

Pedro Bala reclamou a demora. Já era tempo do Sem-Pernas saber os segredos da casa. Sem-Pernas diz que sim, que não demora mais. E naquela noite a batalha de amor é mais forte ainda. A solteirona geme de amor, recolhendo as migalhas do amor. Mas não cede a sua honra. Isso dá coragem ao Sem-Pernas para no outro dia arribar com a chave.

A vitalina o espera para o amor. Está como uma esposa a quem o marido abandonasse. Chora e se lastima. Seu amor não vem, ela também precisa de amor, como todas essas moças que passam de vestidos bonitos na rua.

Mas o roubo a enfurece. Porque pensa que Sem-Pernas só amou nas noites longas de vícios para a furtar. Sua sede de amor humilhada. É como se houvessem cuspido na sua cara, dizendo que era por causa da sua feiura. Chora, não geme mais uma canção de amor. Se sente com coragem para estrangular o Sem-Pernas se encontrasse.Porque burlaram do seu amor, da sede de amor que está no seu sangue. A sua desgraça é mais completa porque durante uma semana foi plenamente feliz com as migalhas de amor. Rola no chão com um ataque.

No trapiche, Sem-Pernas ri, relatando sua aventura. Mas no fundo sabe que a solteirona o fez ainda pior, aumentou com seus vícios o ódio que vivia latente no seu coração. Agora um desejo insatisfeito enche suas noites. Um desejo que impede seu sono, que lhe dá raiva.


Capítulo 22 - Na Rabada de um Trem

Os navios chegam a Ilhéus carregados de mulheres. Mulheres que vêm da Bahia, de Aracaju, o mulherio todo de Recife, mesmo do Rio de Janeiro. Os gordos coronéis olham das pontes a chegada das mulheres. Morenas, loiras e mulatas, vêm em busca deles. Porque a notícia da alta do cacau correu pelo país todo. A notícia de que numa cidade relativamente pequena como Ilhéus estavam abertos quatro cabarés. Que os coronéis queimavam nas noites de jogo e de champanha notas de quinhentos mil-réis.Que pela madrugada saíam nus pelas ruas da cidade, formando o chamado terno do Y. A notícia corria pelas ruas de mulheres perdidas. Os caixeiros-viajantes levavam a notícia. O cabaré da Brama, em Aracaju, ficou despovoado de mulheres. Foram para o El-Dorado, cabaré de Ilhéus. O mulherio de Recife desceu todo em alguns navios do Lloyd Brasileiro. Os pernambucanos ficaram sem mulheres, vieram todas para o cabaré Bataclan, apelidado pelos estudantes em férias de Escola. Vieram algumas do Rio de Janeiro e estas foram para o Trianon, ex-Vesúvio, o mais luxuoso dos quatro cabarés da cidade do cacau. Até Rita Tanajura, célebre pelas grandes nádegas reboleantes, deixou a paz da sua cidade de Estância, onde era a rainha do pequeno mulherio de vida fácil e onde se dava com todo mundo, e veio ser a rainha do Far-West, o cabaré da rua do Sapo, onde os beijos e o estalo das garrafas de champanha se misturavam com os tiros, com o barulho das brigas. Porque o Far-West era o cabaré dos capatazes, dos pequenos fazendeiros de repente enriquecidos.

Na rua de Dalva, na zona das mulheres perdidas da Bahia, a casas se despovoaram. Vieram mulheres para o Bataclan, mulheres para o El-Dorado, mulheres para o Far-West.Umas poucas vieram para o Trianon, onde dançavam com os coronéis. No Bataclan mulheres pernambucanas e sergipanas davam parte do dinheiro que ganhavam dos coronéis, e que era muito, aos estudantes que em compensação lhes davam o amor. Os viajantes enchiam o El-Dorado Até no Far-West as mulheres ganhavam joias. Por vezes ganhavam um tiro também, como uma estranha joia vermelha no peito. Rita Tanajura dançava o charleston em cima de uma mesa, entre champanha e tiros. Tudo isso foi naquela alta do cacau de há muitos anos.

Quando Dalva soube que Isabel tinha colares e anel de brilhante e, no entanto, não estava no Trianon, que era o mais luxuoso dos cabarés, estava era no Bataclan, não resistiu. Arrumou as malas. O que não faria ela no Trianon, ela que era a melhor das mulheres da sua rua Enfardou Gato com uma elegantíssima roupa de casimira feita sol medida, de repente Gato não era mais um menino, era o mais jovem dos vigaristas da Bahia.

Na noite que, envergando seu traje novo, sapatos negros de verniz, gravata borboleta, chapéu de palhinha, apareceu no trapiche João Grande soltou uma exclamação de assombro:

- Pois não é o Gato?

Gato não fizera ainda dezoito anos. Fazia quatro que amava Dalva. Virou para João Grande:

- Agora vou começar a vida...

Ofereceu cigarros tirados de uma cigarreira cara, alisou o cabelo bem assentado. Botou a mão no ombro de Pedro Bala:

- Mano, vou para Ilhéus. A patroa vai cavar a vida. Eu vou com ela. Sou capaz de enricar. Quando tiver fazendeiro a gente vai faze uma farra daquelas.

Pedro sorriu. Era outro que ia. Não seriam meninos toda vida... Bem sabia que eles nunca tinham parecido crianças. Desde pequenos na arriscada vida da rua, os Capitães da Areia eram como homens eram iguais a homens. Toda a diferença estava no tamanho. No mais eram iguais: amavam e derrubavam negras no areal desde cedo furtavam para viver como os ladrões da cidade. Quando eram preso apanhavam surras como os homens.Por vezes assaltavam de armas na mão como os mais temidos bandidos da Bahia. Não tinham também conversas de meninos, conversavam como homens. Sentiam mesmo como homens. Quando outras crianças só se preocupavam com brincar, estudar livros para aprender a ler, eles se viam envolvidos em acontecimentos que só os homens sabiam resolver. Sempre tinham sido como homens, na sua vida de miséria e de aventura, nunca tinham sido perfeitamente crianças. Porque o que faz a criança é o ambiente de casa, pai, mãe, nenhuma responsabilidade. Nunca eles tiveram pai e mãe na vida da rua. E tiveram sempre que cuidar de si mesmos, foram sempre os responsáveis por si. Tinham sido sempre iguais a homens. Agora os mais velhos, os que eram desde há anos os chefes do grupo, estavam rapazolas, começavam a ir para seus destinos.Professor já fora, fazia quadros no Rio de Janeiro. Boa-Vida se desligara aos poucos do trapiche, toca violão nas festas, vai aos candomblés, arma fuzuê nas quermesses. É mais um malandro na cidade. Seu nome já é conhecido até nos jornais. Como os outros vagabundos, é conhecido pelos investigadores de polícia, que sempre estão de olho nos malandros. Pirulito é frade num convento, Deus o chamou, nunca mais saberão dele. Agora é o Gato que parte, vai arrancar dinheiro dos coronéis de Ilhéus.O Querido-de-Deus certa vez disse que Gato enricaria. Porque a vida na rua, no abandono, fez de Gato um jogador desonesto, um vigarista, um gigolô de mulheres.

Não demorará que os outros partam. Só Pedro Bala não sabe o que fazer. Dentro em pouco será mais que um rapazola, será um homem e terá que deixar para outro a chefia dos Capitães da Areia. Para onde irá? Não poderá ser um intelectual como Professor, cujas mãos só viviam para pintar, não nasceu para malandro, como Boa-Vida, que não sente o espetáculo da luta diária dos homens, que só ama andar vagabundando pelas ruas, conversar acocorado nas docas, beber nas festas de morro. Pedro sente o espetáculo dos homens, acha que aquela liberdade não é suficiente para a sede de liberdade que tem dentro de si. Tampouco sente o chamado de Deus, como Pirulito o sentiu. Para ele as pregações do padre José Pedro nunca disseram nada. Gostava do padre como de um homem bom. Só as palavras de João de Adão encontravam acolhida no seu coração. Mas João de Adão mesmo sabe muito pouco. O que tem é músculos potentes e voz autoritária, e no entanto amiga, para chefiar uma greve. Tampouco Pedro Bala quer ir como Gato enganar os coronéis de Ilhéus, arranca o dinheiro deles. Quer qualquer coisa que não sabe ainda o que é, e por isso se demora entre os Capitães da Areia.

O trapiche grita se despedindo do Gato. Este sorri, elegantíssimo, alisando o cabelo, no dedo aquele anelão cor de vinho que furtar certa vez.

Do cais Pedro Bala dá adeus ao Gato. Vestido com suas roupas esfarrapadas, agitando o boné, se sente muito longe do Gato, que ao lado de Dalva parece um homem feito com sua roupa bem talhada Pedro sente uma aflição, uma vontade de fugir, de ir para qualquer parte num navio ou na rabada de um trem.

Mas quem vai na rabada de um trem é Volta Seca. Uma tarde a polícia o pegou quando o mulato despojava um negociante da sua carteira. Volta Seca tinha então dezesseis anos. Foi levado para a polícia, o surraram porque ele xingava todos, soldados e delegados com aquele imenso desprezo que o sertanejo tem pela polícia. Ele não soltou um grito enquanto apanhou. Oito dias depois o puseram na rua, e ele saiu quase alegre, porque agora tinha uma missão na vida matar soldados de polícia.

Passou uns dias no trapiche, o rosto sombrio, afogado em pensamentos. O sertão o chamava, a luta do cangaço o chamava. Um dia disse a Pedro Bala:

- Vou passar uns tempos com os Maloqueiros em Aracaju.

Os Índios Maloqueiros eram os Capitães da Areia em Aracaju. Viviam sob as pontes, roubavam e brigavam nas ruas. O juiz de menores Olimpio Mendonça era um homem bom, procurava resolver os conflitos como melhor podia, se abismava com a inteligência das crianças iguais a homens, compreendia que era impossível resolver o problema.Contava aos romancistas coisas dos meninos, no fundo amava os meninos. Mas se sentia aflito porque não podia resolver o problema deles. Quando entre os Índios Maloqueiros aparecia algum novo, ele já sabia que era um baiano que tinha chegado na rabada de um trem. E quando um sumia, sabia que tinha ido para entre os Capitães da Areia na Bahia.

Uma madrugada o trem de Sergipe apitou na estação da Calçada. Ninguém tinha vindo trazer Volta Seca à estação porque ele ia para voltar, ia passar uns tempos entre os Índios Maloqueiros, esquecer a polícia baiana, que o tinha marcado. Volta Seca se meteu no vagão de carga que estava aberto, se escondeu entre uns fardos. Aos poucos o trem abandona a estação. Depois é a estrada do sertão, Índia Nordestina. Nas casas de barro aparecem mulheres e meninas. Os homens seminus lavram a terra.Na estrada de animais que corre paralela à estrada de ferro passam boiadas. Vaqueiros gritam tangendo os animais. Nas estações vendem doces de milho, mingau, mungunzá, pamonha e canjica. O sertão vai entrando pelo nariz e pelos olhos de Volta Seca. Queijos e rapaduras passam em tabuleiros nas pequenas estações, as paisagens agrestes jamais esquecidas enchem novamente os olhos do sertanejo. Estes muitos anos na cidade não tinham arrancado seu amor ao sertão miserável e belo. Nunca fora um menino da cidade igual a Pedro Bala, a Boa-Vida, ao Gato. Fora sempre um deslocado na cidade, com uma fala diferente, falando em Lampião, dizendo meu padrim, imitando as vozes dos animais sertanejos.

Antigamente ele e sua mãe tinham um pedaço de terra. Ela era comadre de Lampião, os coronéis respeitavam sua terra. Mas quando Lampião se internou pelo sertão de Pernambuco os coronéis ficaram com a terra da mãe de Volta Seca. Ela desceu para a cidade para pedir justiça. Morreu no caminho, Volta Seca continuou a caminhada com seu rosto sombrio. Muita coisa aprendeu na cidade, entre os Capitães da Areia. Aprendeu que não era só no sertão que os homens ricos eram ruins para com os pobres.Na cidade, também. Aprendeu que as crianças pobres são desgraçadas em toda parte, que os ricos perseguem e mandam em toda parte. Sorriu por vezes, mas nunca deixou de odiar. Na figura de José Pedro descobriu o motivo por que Lampião respeitava os padre s. Se já pensava que Lampião era um herói, a sua experiência na cidade, o ódio adquirido na cidade, fez com que amasse a figura de seu padrinho acima de tudo. Acima mesmo da de Pedro Bala.

Agora é o sertão. Perfume das flores do sertão. Campos amigos, aves amigas, magros cachorros nas portas das casas. Velhos que parecem missionários indianos, negros de longos rosários no pescoço.

Cheiro bom de comidas de milho e mandioca. Homens magros que lavram a terra para ganhar mil e quinhentos dos donos da terra. Só caatinga é que é de todos, porque Lampião libertou a caatinga expulsou os homens ricos da caatinga, fez da caatinga a terra dos cangaceiros que lutam contra os fazendeiros. O herói Lampião, herói de todo o sertão de cinco estados. Dizem que ele é um criminoso, um cangaceiro sem coração, assassino, desonrador, ladrão. Mas para Volta Seca, para os homens, as mulheres e as crianças do sertão é um novo Zumbi dos Palmares, ele é um libertador, um capitão de um novo exército. Porque a liberdade é como o sol, o bem maior do mundo. E Lampião luta, mata, deflora e furta pela liberdade. Pela liberdade e pela justiça para os homens explorados do sertão imenso de cinco estados: Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia.

O sertão comove os olhos de Volta Seca. O trem não corre, este vai devagar, cortando as terras do sertão. Aqui tudo é lírico, pobre e belo. Só a miséria dos homens é terrível. Mas estes homens são tão fortes que conseguem criar beleza dentro desta miséria. Que não farão quando Lampião libertar toda a caatinga, implantar a justiça e a liberdade?

Passam violeiros, improvisadores de poesia. Passam vaqueiros que tangem o gado, homens plantam mandioca e milho. Nas estações os coronéis descem para estirar as pernas. Levam grandes revólveres. Os violeiros cegos cantam pedindo uma esmola. Um negro de camisa e rosário atravessa essa a estação dizendo estranhas coisas em língua desconhecida. Foi escravo, hoje é um doido na estação. Todos temem, temem suas pragas. Porque ele sofreu muito, o chicote de feitor rasgou suas costas. Também o chicote da polícia, feitor dos ricos, rasgou as costas de Volta Seca. Todos o temerão um dia também.

Caatingas do sertão, olor das flores sertanejas, o manso andar do trem sertanejo. Homens de alpercatas e chapéu de couro. Criança que estudam para cangaceiro na escola da miséria e da exploração do homem.

O trem para no meio da caatinga. Volta Seca pula fora do vagão. Os cangaceiros apontam os fuzis, o caminhão que os trouxe está parado no outro lado da estrada, os fios do telégrafo cortados. Na caatinga agreste não se vê ninguém. Uma moça desmaia num dos carros, um caixeiro-viajante esconde a carteira com dinheiro.Um coronel gordo sai do vagão, fala:

- Capitão Virgulino...

O cangaceiro de óculos aponta o fuzil:

- Para dentro.

Volta Seca pensa que seu coração vai estalar de alegria. Encontrou seu padrinho, Virgulino Ferreira Lampião, herói das crianças sertanejas. Chega para junto dele, um outro cangaceiro o quer afastar, mas ele diz:

- Meu padrim...

- Quem é tu?

- Sou Volta Seca, filho de tua comadre...

Lampião o reconhece, sorri. Os cangaceiros estão entrando nos vagões de primeira, não são muitos, uns doze. Volta Seca pede:

- Meu padrim, deixe eu ficar com você... Me dê um fuzil.

- Tu ainda é um menino... - Lampião olha com seus óculos escuros.

- Não sou mais não, já briguei com soldado...

Lampião grita:

- Zé Baiano, dá um fuzil a Volta Seca...

Olha o afilhado:

- Tu guarda esta saída. Se um quiser arribar, mete fogo.

Entra para a coleta. Desmaios e gritos lá dentro, o soar de um disparo. Depois o grupo volta para a estrada. Traz dois soldados de polícia que viajavam no trem.Lampião divide dinheiro com os cangaceiros. Volta Seca também recebe. De um vagão sai um fio de sangue. O cheiro bom do sertão penetra as narinas de volta Seca.Os soldados são encostados numas árvores. Zé Baiano prepara o fuzil, mas a voz de Volta Seca faz um pedido:

- Deixe pra mim, padrim. Eles me bateram na polícia, bateram em muito menino.

Levanta o fuzil, qual é o sertanejo que não tem boa pontaria?

Seu rosto sombrio tem um riso que o enche todo. Cai o primeiro, o segundo tenta fugir, mas a bala o alcança nas costas Depois Volta Seca corre para cima dele com o punhal, sacia sua vingança. Zé Baiano diz:

- Este menino é dos bons...

- A mãe dele era um bicho, minha comadre... - lembra Lampião orgulhoso.

- Uma verdadeira fera... - pensa o viajante enquanto o trem se move lentamente após os empregados afastarem os toros de madeira de sobre os trilhos. O grupo de cangaceiros se perde na caatinga. O ar do sertão enche o peito de Volta Seca, que para e com o punhal faz dois traços na madeira do fuzil. Os dois primeiros...Ao longe o trem apita angustiosamente.


Capítulo 23 - Como um Trapezista de Circo

Fora demasiada audácia atacar aquela casa da rua rui Barbosa. Perto dali, na praça do Palácio, andavam muitos guardas, investigadores, soldados. Mas eles tinham sede de aventura, estavam cada vez maiores, cada vez mais atrevidos. Porém havia muita gente na casa, deram o alarme, os guardas chegaram. Pedro Bala e João Grande abalaram pela ladeira da Praça. Barandão abriu no mundo também. Mas o Sem-Pernas ficou encurralado na rua. Jogava picula com os guardas. Estes tinham se despreocupado dos outros, pensavam que já era alguma coisa pegar aquele coxo. Sem-Pernas corria de um lado para outro da rua, os guardas avançavam. Ele fez que ia escapuli por outro lado, driblou um dos guardas, saiu pela ladeira. Mas em vez de descer e tomar pela Baixa dos Sapateiros, se dirigiu para a praça do Palácio. Porque Sem-Pernas sabia que se corresse na rua o pegariam com certeza. Eram homens, de pernas maiores que as suas, e além do mais ele era coxo, pouco podia correr. E acima de tudo não queria que o pegassem. Lembrava-se da vez que fora à polícia. Dos sonhos das suas noites más. Não o pegariam e enquanto corre este é o único pensamento que vai com ele. Os guardas vêm nos seus calcanhares. Sem-Pernas sabe que eles gostarão de o pegar, que a captura de um dos Capitães da Areia é uma bela façanha para um guarda. Essa será a sua vingança. Não deixará que o peguem, não tocarão a mão no seu corpo. Sem-Pernas os odeia como odeia a todo mundo, porque nunca pôde ter um carinho. E no dia que o teve foi obrigado ao abandonar porque a vida já o tinha marcado demais. Nunca tivera uma alegria de criança.

Se fizera homem antes dos dez anos para lutar pela mais miserável das vidas: a vida de criança abandonada. Nunca conseguira amar ninguém, a não ser a este cachorro que o segue. Quando os corações das demais crianças ainda estão puros de sentimentos, o do Sem-Pernas já estava cheio de ódio. Odiava a cidade, a vida, os homens.Amava unicamente o seu ódio, sentimento que o fazia forte e corajoso apesar do defeito físico. Uma vez uma mulher foi boa para ele. Mas em verdade não o fora para ele e sim para o filho que perdera e que pensara que tinha voltado. De outra feita outra mulher se deitara com ele numa cama, acariciara seu sexo, se aproveitara dele para colher migalhas do amor que nunca tivera. Nunca, porém, o tinham amado pelo que ele era, menino abandonado, aleijado e triste. Muita gente tinha odiado.E ele odiara a todos. Apanhara na polícia, um homem ria quando o surravam. Para ele é este homem que corre em sua perseguição na figura dos guardas. Se o levarem, o homem rirá novo. Não o levarão. Vêm em seus calcanhares, mas não o levarão. Pensam que elevai parar junto ao grande elevador. Mas Sem-Pernas não para. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo.

A praça toda fica em suspenso por um momento. Se jogou, diz uma mulher, e desmaia. Sem-Pernas se rebenta na montanha como um trapezista de circo que não tivesse alcançado o outro trapézio. O cachorro late entre as grades do muro.


Capítulo 24 - Notícias de Jornal

O Jornal da Tarde publica um telegrama do rio dando conta do sucesso da exposição de um jovem pintor até então desconhecido. Dias depois transcreve uma crítica de arte publicada também num jornal do Rio de Janeiro. Porque o pintor é baiano, e o Jornal da Tarde é muito cioso das glórias baianas. Um trecho da crítica de arte, após falar das qualidades e defeitos do novo pintor social, de usar e abusar de expressões como clima, luz, cor, ângulos, força e outras mais, diz:... um detalhe notaram todos que foram estranha exposição de cenas e retratos de meninos pobres. É que todos os sentimentos bons estão sempre representados na figura de uma menina magra de cabelos loiros e faces febris. E que todos os sentimentos maus estão representados por um homem de sobretudo negro e um ar de viajante. Que representará para um psicanalista a repetição quase inconsciente destas figuras em todos os quadros? Sabe-se que o pintor João José tem uma história...

E continuava o abuso das palavras cor, força, clima, luz, ângulos e outras mais complicadas.

Meses depois uma notícia informava aos leitores do Jornal da Tarde, sob o título de: "Presente de grego".

Presente de grego

A polícia de Belmonte devolve o vigarista gato

Que a polícia de Belmonte, havia recebido da policia de Ilhéus um verdadeiro presente de grego. Um conhecido e jovem vigarista que atuava em Ilhéus com o nome de °Gato ", após ter abiscoitado bons cobres de muitos fazendeiros e comerciantes, fora remetido para Belmonte. Lá continuava a passar contos do vigário, em que era mestre. Conseguira vender uma imensidade de terras, ótimas para o cultivo do cacau, a muitos fazendeiros. Quando estes foram ver as terras, não eram mais que o leito sobre o qual corre o rio Cachoeira. A polícia de Belmonte tinha conseguido deitar mão no temível vigarista e o remetia de volta para Ilhéus. Os ilheenses são mais ricos que nós, terminava com certa ironia o correspondente que assinava a notícia, podem sustentar com mais conforto o elegante Gato que os filhos da bela Belmonte, a Princesa do Sul. Porque se Belmonte é a Princesa, Ilhéus é muito justamente chamada a Rainha do Sul.

Entre fatos policiais sem importância o Jornal da Tarde noticiou um dia que um malandro conhecido pelo nome de Boa-Vida armara um fuzuê tremendo numa festa na Cidade de Palha, abrira a cabeça do dono da casa com uma garrafa de cerveja e estava sendo procurado pela polícia.

Perto de um Natal o Jornal da Tarde apareceu com manchetes em tipos enormes. Uma notícia de tanta sensação como aquela que fizera conhecida a história da mulher que acompanhava o bando de Lampião, a amante do cangaceiro. Porque a população dos cinco estados, de Bahia, Sergipe, Alagoas, Paraíba e Pernambuco, vive com os olhos fitos em Lampião. Com ódio ou com amor, nunca com indiferença. A manchete dizia em letras garrafais:

Uma criança de 16 anos no grupo de lampião

Os tipos das letras dos títulos que encabeçavam a reportagem eram também enormes:

É um dos mais temíveis cangaceiros - Trinta e cinco traços no seu fuzil - pertenceu aos "Capitães da Areia" - A morte de Machadão devida a volta seca

A reportagem era extensa. Contava como as vilas saqueadas há algum tempo vinham notando entre o bando de Lampião uma criança de uns dezesseis anos, que levava o nome de Volta Seca. Apesar da sua idade, o jovem cangaceiro se fizera temido em todo o sertão como um dos mais cruéis do grupo. Constava que seu fuzil tinha trinta e cinco marcas. E cada marca num fuzil de cangaceiro representa um homem morto. Depois vinha a história da morte de Machadão, um dos mais antigos do grupo de Lampião.

Aconteceu que o grupo tinha pegado na estrada um velho sargento de polícia. E Lampião o entregara a Volta Seca para que o despachasse. Volta Seca o despachara devagarinho, à ponta de punhal, cortando os pedacinhos com visível satisfação. Fora tanta a crueldade, que Machadão, horrorizado, levantou o fuzil para acabar com Volta Seca. Mas antes que disparasse, Lampião, que tinha um grande orgulho de Volta Seca, atirou em Machadão. Volta Seca continuara sua tarefa.

A notícia se estendia, narrando diversos outros crimes do cangaceiro de 16 anos. Depois lembrava que entre os Capitães da Areia vivera um menino com o nome de Volta Seca e que era possível que fosse o mesmo. Vinham então várias considerações de ordem moral.

A edição se esgotou.

Meses depois a edição se esgotou novamente porque trazia a notícia da prisão de Volta Seca, enquanto dormia, executada pela coluna volante que percorria o sertão dando caça a Lampião. Anunciava que o cangaceiro chegaria no outro dia à Bahia. Vinham vários clichês onde Volta Seca aparecia com seu rosto sombrio. O Jornal da Tarde dizia que era rosto de criminoso nato.

O que não era verdade, como o próprio Jornal da Tarde noticiou tempos depois, ao relatar em edições extraordinárias e sucessivas o júri que condenou Volta Seca a 30 anos de prisão por 15 mortes conhecidas e provadas. No entanto, seu fuzil tinha 60 marcas. E o jornal lembrava esse fato, repetindo que cada marca era um homem morto. Mas publicava também parte do relatório do médico-legista, cavalheiro de honestidade e cultura reconhecidas, já então um dos grandes sociólogos e etnógrafos do país, relatório que provava que Volta Seca era um tipo absolutamente normal e que se virara cangaceiro e matara tantos homens e com tamanha crueldade não fora por vocação de nascença. Fora o ambiente... e vinham as devidas considerações científicas.

O que aliás não despertou tanta curiosidade entre o público como a descrição de belíssimo, vibrantíssimo e apaixonadíssimo discurso de doutor Promotor Público, que fizera os jurados chorar, e até o próprio juiz tinha limpado as lágrimas, ao descrever o doutor Promotor, com sublime força oratória, o sofrimento das vítimas do feroz cangaceiro-menino.

O público ficou indignado porque Volta Seca não chorou durante o júri. Seu rosto sombrio estava cheio de estranha calma.


Capítulo 25 - Companheiros

Há um movimento novo na cidade. Pedro Bala sai do trapiche com João Grande e Barandão. O cais está deserto, parece que todos o abandonaram. Somente soldados de policia guardam os grandes armazéns. Não há descarga de navios neste dia. Porque os estivadores, com João de Adão à frente, foram prestar solidariedade aos condutores de bonde que estão em greve. Parece que há uma festa na cidade, mas uma festa diferente de todas. Passam grupos de homens que conversam, os automóveis cortam as ruas conduzindo gente para o trabalho, empregados no comércio riem, a ladeira da Montanha está cheia de gente que sobe e desce, pois os elevadores também estão parados.As marinetes vão entupidas, gente sobrando pelas portas. Os grupos de grevistas passam silenciosos para a sede do sindicato, onde vão ouvir a leitura do manifesto dos estivadores, que João de Adão conduz nas suas mãos grandes. Na porta do sindicato grupos conversam, soldados montam guarda.

Pedro Bala anda com João Grande e Barandão pelas ruas. Diz:

- Tá bonito...

João Grande também sorri, o negrinho Barandão fala:

- Hoje vai ter fuzuê.

- Eu é que não queria ser condutor de bonde, nem motorneiro.

Ganha uma porcaria. Eles faz bem... - fala João Grande.

- Vamos espiar? - propõe Pedro Bala.

Vão para a porta do sindicato. Entram homens negros, mulatos, espanhóis e portugueses. Veem quando João de Adão e os outros estivadores saem entre vivas dos operários das linhas de bonde. Eles vivam também. João Grande e Barandão porque gostam do doqueiro João de Adão. Pedro Bala não só por isso como porque acha bonito o espetáculo da greve, é como uma das mais belas aventuras dos Capitães da Areia.

Um grupo de homens bem vestidos entra no sindicato. Da porta eles ouvem uma voz que discursa, uma que interrompe: Vendido, amarelo.

- Tá bonito... - repete Pedro Bala.

Tem vontade de entrar, de se misturar com os grevistas, de gritar e lutar ao lado deles.

A cidade dormiu cedo. A lua ilumina o céu, vem a voz de um negro do mar em frente. Canta a amargura da sua vida desde que a amada se foi. No trapiche as crianças já dormem. Até o negro João Grande ronca estirado na porta, o punhal ao alcance da mão. Somente Pedro Bala vela, estirado na areia, olhando a lua, ouvindo o negro que canta as saudades da sua mulata que partiu. O vento traz trechos soltos da canção e ela faz com que Pedro Bala procure Dora no meio das estrelas do céu. Ela também virou uma estrela, uma estranha estrela de longa cabeleira loira. Os homens valentes têm uma estrela em lugar do coração. Mas nunca se ouviu falar de uma mulher que tivesse no peito, como uma flor, uma estrela. As mulheres mais valentes da terra e do mar da Bahia, quando morriam, viravam santas para os negros, como os malandros que foram também muito valentes. Rosa Palmeirão virou santa num candomblé de caboclo, rezam para ela orações em nagô, Maria Cabaçu é santa nos candomblés de Itabuna, pois foi naquela cidade que ela mostrou sua coragem primeiro. Eram duas mulheres grandes e fortes. De braços musculosos como homens, como grevistas. Rosa Palmeirão era bonita, tinha o andar gingado de marítima, era uma mulher do mar, certa vez teve um saveiro, cortou as ondas da entrada da barra. Os homens do cais a amavam não só pela sua coragem, como pelo seu corpo também. Maria Cabaçu era feia, mulata escura, filha de negro e índia, grossa e zangada. Dava nos homens que a achavam feia. Mas se entregou toda a um cearense amarelo e fraco que a amou como se ela fosse uma mulher bonita, de corpo belo e olhos sensuais. Tinham sido valentes, viraram santas nos candomblés de caboclo, que são candomblés que de quando em vez inventam novos santos, não têm aquela pureza de rito dos candomblés nagôs dos negros. São candomblés dos mulatos. Mas Dora fora mais valente que elas. Era apenas uma menina, vivera igual a um dos Capitães da Areia, e todos sabem que um capitão da areia é igual a um homem valente. Dora vivera com eles, fora mãe para todos eles. Mas fora irmã também, correra com eles pelas ruas, invadira casas, batera carteiras, brigara com o grupo de Ezequiel.Depois, para Pedro Bala, fora noiva e esposa, esposa quando a febre a devorava, quando a morte já a rondava naquela noite de tanta paz. Paz que ia dos olhos dela para a noite em torno. Estivera no orfanato, fugira dele, igual a Pedro Bala fugindo do reformatório. Tivera coragem para morrer, consolando seus filhos, irmãos, noivos e esposo que eram os Capitães da Areia. A mãe de santo Don'Aninha a enrolara numa toalha branca, bordada como se fora para um santo. O Querido-de-Deus a levara no seu saveiro para junto de Yemanjá. Padre José Pedro rezava. Todos a queriam. Mas só Pedro Bala quis ir com ela. Professor fugiu do trapiche porque não pôde mais suportar o casarão depois que ela partiu. Mas só Pedro Bala se jogou na água para seguir o destino de Dora, ir fazer com ela aquela maravilhosa viagem que os valentes fazem com Yemanjá no fundo verde do mar. Por isso só ele viu quando ela virou estrela e cruzou os céus. Ela veio só para ele, com sua longa cabeleira loira. Brilhou sobre sua cabeça de quase afogado e suicida. Deu-lhe novas forças, o saveiro do Querido-de-Deus que voltava o pôde recolher. Agora olha o céu procurando a estrela de Dora. É uma estrela de longa cabeleira loira, uma estrela como não existe nenhuma outra. Porque nunca existiu nenhuma mulher como Dora, que era uma menina. A noite está cheia de estrelas que se refletem no mar calmo. A voz do negro parece se dirigir às estrelas, como que há pranto na sua voz cheia. Ele também procura a amada que fugiu na noite da Bahia. Pedro Bala pensa que a estrela que é Dora talvez ande agora correndo sobre as ruas, becos e ladeiras da cidade a procurá-lo.Talvez o pense numa aventura nas ladeiras. Mas hoje não são os Capitães da Areia que estão metidos numa bela aventura. São os condutores de bonde, negros fortes, mulatos risonhos, espanhóis e portugueses, que vieram de terras distantes. São eles, que levantam os braços e gritam iguais aos Capitães da Areia. A greve se soltou na cidade. É uma coisa bonita a greve, é a mais bela das aventuras. Pedro Bala tem vontade de entrar na greve, de gritar com toda a força do seu peito, de apartear os discursos. Seu pai fazia discursos numa greve, uma bala o derrubou. Ele tem sangue de grevista. Demais a vida da rua o ensinou a amar a liberdade.A canção daqueles presos dizia que a liberdade é como o sol: o bem maior do mundo. Sabe que os grevistas lutam pela liberdade, por um pouco mais de pão, por um pouco mais de liberdade. É como uma festa aquela luta.

Os vultos que se aproximam o fazem levantar desconfiado. Mas logo reconhece a figura enorme do estivador João de Adão. Junto a ele vem um rapaz bem vestido, mas com os cabelos despenteados. Pedro Bala tira o boné, fala para João de Adão:

- Tu hoje ganhou viva, hein?

João de Adão ri. Distende seus músculos, seu rosto está aberto num sorriso para o chefe dos Capitães da Areia:

- Capitão Pedro, eu quero apresentar a tu o companheiro Alberto.

O rapaz estende a mão para Pedro Bala. O chefe dos Capitães da Areia limpa primeiro sua mão no paletó rasgado, depois aperta a do estudante. João de Adão está explicando:

- É um estudante da Faculdade, mas é um companheiro da gente.

Pedro Bala olha sem desconfiança. O estudante sorri:

- Já ouvi falar muito em você e em seu grupo. Você é um batuta...

- A gente é macho, sim responde Pedro Bala.

João de Adão se aproxima mais:

- Capitão, a gente tem que conversar com tu. Tem um assunto com tu. Um troço sério. Aqui o companheiro Alberto...

- Vamos para dentro? - fala Pedro Bala.

Acordam João Grande ao passar. O negro olha com desconfiança o estudante, pensa que é um polícia, levanta um pouco o punhal por detrás do braço. Só Pedro Bala vê e fala:

- É um amigo de João de Adão. Vem com a gente, Grande.

Vão os quatro. Sentam num canto. Alguns dos Capitães da Areia acordam e espiam o grupo. O estudante olha o trapiche, as crianças que dormem. Treme como se um vento frio tivesse passado pelo seu corpo:

- Que horror!

Mas Pedro Bala está dizendo a João de Adão:

- Que coisa porreta a greve! Nunca vi coisa tão bonita. É como uma festa...

- A greve é a festa dos pobres... - diz o estudante.

A voz de Alberto é mansa e boa. Pedro Bala o escuta enlevado, como se fosse a voz de um negro cantando uma canção no mar.

- Meu pai morreu numa greve, tu sabe? Pergunte a João de Adão, se está duvidando...

- Foi uma morte bonita fala o estudante. - Ele foi um campeão da sua classe. Não foi o Loiro?

O estudante sabe o nome de seu pai. Seu pai foi um campeão... Todos o conhecem. Teve uma morte bonita, morreu numa greve, a greve é a festa dos pobres... Escuta a voz do estudante:

- Você acha a greve bonita, Pedro?

- Companheiro, esse é um porreta diz João de Adão. - Tu não conhece os Capitães da Areia nem Capitão Pedro... É um companheiro...

Companheiro... Companheiro... Pedro Bala acha a palavra mais bonita do mundo. O estudante diz como Dora dizia a palavra irmão.

- Pois companheiro Pedro, a gente precisa de você e do seu grupo.

- Pra quê? - pergunta João Grande curioso.

Pedro Bala apresenta:- Este negro é João Grande, um negro bom. Quem for bom é igual a João Grande, melhor não é...

Alberto estende a mão ao negro. João Grande fica um momento indeciso, não está acostumado a apertos de mão. Mas logo aperta aquela mão, meio encabulado. O estudante novamente diz:

- Vocês são uns batutas...

De repente, interessado, pergunta:

- É verdade que Volta Seca foi um de vocês?

- Um dia a gente tira ele da cadeia... - é a resposta de Bala. O estudante olha meio espantado. Dá uma espiada pelo trapiche, João de Adão faz um sinal como que lembrando: Eu não lhe dizia?

Pedro Bala quer conversar sobre a greve, saber o que querem dele:

- É pra greve que precisa da gente?

- Se for? - perguntou o estudante.

- Se for pra ajudar os grevistas, tou decidido. Pode contar com a gente... - levanta-se, está um rapazola, o rosto disposto para a luta.

- Tu não vê... - começa a explicar João de Adão.

Mas cala, porque o estudante está falando:

- A greve está indo muito em ordem. Nós queremos fazer coisas com muita ordem, porque assim venceremos e os operários conseguirão o aumento. Nós não queremos armar barulho, queremos mostrar que os operários são capazes de disciplina. Uma pena, pensa Pedro Bala, que ama os barulhos. Mas acontece que os diretores da Companhia andam contratando fura-greves para trabalhar amanhã. Se os operários dissolverem os grupos de furadores de greve, darão margem a que a polícia intervenha e está todo o trabalho perdido.

Então o companheiro João de Adão lembrou de vocês...

- Pra debandar os fura-greve? Tá certo - diz Bala alegríssimo O estudante pensa na discussão daquela noite na organização. Quando João de Adão fizera a proposta de chamar os Capitães da Areia, muitos companheiros tinham se declarado contra. Sorriam da ideia. João de Adão só dizia:

- Vocês não conhece os Capitães da Areia.

Aquilo, aquela confiança, impressionara Alberto e alguns outros. Por fim a ideia venceu, não perderiam nada em tentar. Agora está satisfeito de ter vindo. E na sua cabeça já fazia planos para aproveitar na luta os Capitães da Areia. Para quanta coisa não serviriam aqueles meninos esfomeados e mal vestidos? Lembrava-se de outros exemplos, da luta antifascista na Itália, os meninos de Lusso. Sorria para Pedro Bala. Explicou o plano: os furadores de greve viriam pela madrugada para os três grandes depósitos de bondes para tomar conta dos carros. Os Capitães da Areia deviam se dividir em três grupos, guardar as entradas dos três depósitos.E impedir, fosse como fosse, que os furadores de greve conseguissem botar os bondes em marcha. Pedro Bala assentia com a cabeça. Virou para João de Adão: - Se Sem-Pernas tivesse vivo e Gato tivesse aqui...

Depois se lembra de Professor:

- Professor inventava um plano bom num minuto... Depois fazia um desenho da briga. Agora tá no Rio.

- Quem é? - pergunta o estudante.

- Um chamado João José, que a gente tratava de Professor. Agora tá pintando quadro no Rio.

- É o pintor João José?

Esse mesmo - fez Bala.

- Eu sempre pensei que fosse lenda essa história. Sabe que ele é um companheiro bom?

- Sempre foi um companheiro bom disse Pedro Bala com força.

O estudante fazia planos sobre os Capitães da Areia. Agora Pedro Bala acordava todos e explicava o que tinham que fazer. O estudante estava entusiasmado com as palavras do moleque. Quando terminou de explicar, Bala resumiu tudo nestas palavras:

- A greve é a festa dos pobres. Os pobres é tudo companheiro, companheiro da gente.

- Você é um batuta disse o estudante.

- Vai ver como a gente acaba com os traidor.

Explicava a Alberto:

- Eu vou com um grupo pro depósito maior. João Grande vai com outro. Barandão com o terceiro para o menor. Não entra ninguém. A gente sabe fazer. Tu vai ver...

- Eu estarei lá para ver fez o estudante. - Então, às quatro horas da madrugada?

- Tá certo.

O estudante faz um gesto.

- Até logo, companheiros...

Companheiros. Palavra bonita, pensa Pedro Bala. Ninguém dorme mais no trapiche nesta noite. Preparam as mais diversas armas.

Na madrugada que nasce, as estrelas começam a desaparecer do céu. Mas Pedro Bala parece ver numa estrela que corre a estrela de Dora que o alegra. Companheira...Também ela tinha sido uma companheira boa. A palavra brinca na sua boca, é a palavra mais bonita que ele já viu. Pedirá a Boa-Vida que faça um samba dela, um samba para um negro cantar à noite no mar. Vão como se fossem para uma festa. Armados com as mais diversas armas: navalhas, punhais pedaços de pau. Vão para uma festa, porque a greve é a festa dos pobres, repete Pedro Bala para si mesmo.

No pé da ladeira da Montanha se dividem em três grupos. João Grande chefia um, Barandão vai com outro, o maior vai com Pedro Bala. Vão para uma festa. A primeira festa verdadeira que têm aquelas crianças. Ainda assim é uma festa de homens. Mas é uma festa dos pobres, dos pobres como eles.

A madrugada é fria. Na esquina do depósito, quando Pedro Bala está colocando os meninos, Alberto se aproxima dele. Pedro se volta o rosto sorridente. O estudante fala:

- Eles já vêm, companheiro.

- Espera pra ver.

Agora é o estudante quem sorri. Evidentemente está entusiasma do com os meninos. Pedirá à organização para trabalhar com eles. Irão fazer muitas coisas juntos.

Os fura-greves vêm num grupo cerrado. Um americano o chefia com a cara fechada. Se dirigem todos para a entrada. Da sombra, dos becos, ninguém sabe de onde, como demônios fugidos do inferno, surgem meninos esfarrapados e de armas na mão. Punhais, navalhas, paus. Tomam a porta, o grupo dos fura-greves para. Logo os demônios se atiram, é um bolo só. São em número maior que o grupo de fura-greves. Estes rolam com os golpes de capoeira, recebem pauladas, alguns já fogem. Pedro Bala derruba o americano, com a ajuda de outro o soqueia.Os fura-greves pensam que são demônios fugidos do inferno.

A gargalhada livre e grande dos Capitães da Areia ressoa na madrugada. A greve não é furada.

Também João Grande e Barandão são vitoriosos. O estudante ri com eles a gargalhada dos Capitães da Areia.

No trapiche diz para alegria dos meninos:

- Vocês são os mais batutas que eu já vi...

- Companheiros, companheiros diz João de Adão.

Diz o vento que passa, diz a voz do coração de Pedro Bala. É como a música de uma canção cantada por um negro:

- Companheiros.


Capítulo 26 - Os Atabaques Ressoam Como Clarins de Guerra

Depois de terminada a greve o estudante continua a vir ao trapiche.Mantém longas conversas com Pedro Bala, transforma os Capitães da Areia numa brigada de choque.

Uma tarde Pedro Bala vai pela rua Chile, o boné desabado sobre os olhos, assoviando, enquanto arrasta os pés no chão. Uma voz exclama:

- Bala!

Se volta. O Gato está elegantíssimo na sua frente. Uma pérola na gravata, um anel no dedo mínimo, roupa azul, chapéu de feltro quebrado num jeito malandro:

- É tu, Gato?

- Vamos sair daqui.

Entram numa rua sem movimento. Gato explica que chegou de lá. Ilhéus há poucos dias. Que arrancou um bocado de dinheiro de lá. Está um homem e todo perfumado e elegante:

- Quase não te conheço... - diz Pedro Bala. - E Dalva?

- Ficou amigada com um coronel. Mas eu já tinha deixado ela. Agora tenho uma moreninha do balacobaco...

- E aquele anelão que Sem-Pernas fazia troça?..

Gato ri:

- Empurrei por quinhentão num coronel cheio da nota... O bicho engoliu sem gritar...

Conversam e riem. Gato pergunta notícia dos outros. Diz que no dia seguinte embarcará para Aracaju com a morena, pois açúcar está dando dinheiro. Pedro Bala o vê ir embora todo elegante. Pensa que se ele tivesse demorado mais algum tempo no trapiche, talvez não fosse um ladrão. Aprenderia com Alberto, estudante, o que ninguém soubera lhe ensinar. Aquilo que Professor como que adivinhara.

A revolução chama Pedro Bala como Deus chamava Pirulito nas noites do trapiche. É uma voz poderosa dentro dele, poderosa como a voz do mar, como a voz do vento, tão poderosa como uma voz sem comparação. Como a voz de um negro que canta num saveiro o samba que Boa-Vida fez:

"Companheiros, chegou a hora..."

A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração. Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. Uma voz que atravessa a cidade, que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da religião ilegal dos negros. Uma voz que vem com o ruído dos bondes onde vão os condutores e motorneiros grevistas. Uma voz que vem do cais, do peito dos estivadores, de João de Adão, de seu pai morrendo num comício, dos marinheiros dos navios, dos saveiristas e dos canoeiros. Uma voz que vem do grupo que joga a luta da capoeira, que vem dos golpes que o Querido-de-Deus aplica. Uma voz que vem mesmo do padre José Pedro, padre pobre de olhos espantados diante do destino terrível dos Capitães da Areia. Uma voz que vem das filhas-de-santo do candomblé de Don'Aninha, na noite que a polícia levou Ogum. Voz que vem do trapiche dos Capitães da Areia. Que vem do reformatório e do orfanato. Que vem do ódio do Sem-Pernas se atirando do elevador para não se entregar. Que vem no trem da Leste Brasileira, através do sertão, do grupo de Lampião pedindo justiça para os sertanejos. Que vem de Alberto, o estudante pedindo escolas e liberdade para a cultura. Que vem dos quadros de Professor, onde meninos esfarrapados lutam naquela exposição da rua Chile. Que vem de Boa-Vida e dos malandros da cidade, do bojo dos seus violões, dos sambas tristes que eles cantam. Uma voz que vem de todos os pobres, do peito de todos os pobres. Uma voz que diz uma palavra bonita de solidariedade, de amizade: companheiros. Uma voz que convida para a festa da luta. Que é como um samba alegre de negro, como ressoar dos atabaques nas macumbas. Voz que vem da lembrança de Dora, valente lutadora. Voz que chama Pedro Bala. Como a voz de Deus chamava Pirulito, a voz do ódio o Sem-Pernas, como a voz dos sertanejos chamava Volta Seca para o grupo de Lampião. Voz poderosa como nenhuma outra. Porque é uma voz que chama para lutar por todos, pelo destino de todos, sem exceção. Voz poderosa como nenhuma outra. Voz que atravessa a cidade e vem de todos os lados. Voz que traz com ela uma festa, que faz o inverno acabar lá fora e ser a primavera. A primavera da luta. Voz que chama Pedro Bala, que o leva para a luta. Voz que vem de todos os peitos esfomeados da cidade, de todos os peitos explorados da cidade. Voz que traz o bem maior do mundo, bem que é igual ao sol, mesmo maior que o sol: a liberdade. A cidade no dia de primavera é deslumbradoramente bela. Uma voz de mulher canta a canção da Bahia. Canção da beleza da Bahia. Cidade negra e velha, sinos de igreja, ruas calçadas de pedra. Canção da Bahia que uma mulher canta. Dentro de Pedro Bala uma voz o chama: voz que traz para a canção da Bahia, a canção da liberdade. Voz poderosa que o chama. Voz de toda a cidade pobre da Bahia, voz da liberdade. A revolução chama Pedro Bala.

Pedro Bata foi aceito na organização no mesmo dia em que João Grande embarcou como marinheiro num navio cargueiro do Lóide. No cais dá adeus ao negro, que parte para a sua primeira viagem. Mas não é um adeus como aqueles que dera aos outros que partiram antes.

Não é mais um gesto de despedida. É um gesto de saudação ao companheiro que parte:

- Adeus, companheiro.

Agora comanda uma brigada de choque formada pelos Capitães da Areia. O destino deles mudou, tudo agora é diverso. Intervêm em comícios, em greves, em lutas obreiras.O destino deles é outro. A luta mudou seus destinos.

Ordens vieram para a organização dos mais altos dirigentes. Que Alberto ficasse com os Capitães da Areia e Pedro Bala fosse organizar os índios Maloqueiros de Aracaju em brigada de choque também. E que depois continuasse a mudar o destino das outras crianças abandonadas do país.

Pedro Bala entra no trapiche. A noite cobriu a cidade. A voz do negro canta no mar. A estrela de Dora brilha quase tanto quanto a lua no céu mais lindo do mundo. Pedro Bala entra, olha as crianças. Barandão vem para junto dele, agora tem 15 anos o negrinho.

Pedro Bala olha. Estão deitados, alguns já dormem, outros conversam, fumam cigarros, riem a grande gargalhada dos Capitães da Areia. Bala reúne a todos, bota Barandão junto de si:

- Gentes, agora eu vou embora, vou deixar vocês. Vou embora, Barandão agora fica o chefe. Alberto vem sempre ver vocês, vocês devem fazer o que ele diz. E todo mundo ouça: Barandão agora é o chefe.

O negrinho Barandão fala:

- Gentes, Pedro Bala vai embora. Viva Pedro Bala!..

Os punhos dos Capitães da Areia se levantam fechados.

- Bala! Bala! - gritam numa despedida.

Os gritos enchem a noite, calam a voz do negro que canta no mar, estremecem o céu de estrelas e o coração de Pedro. Punhos fechados de crianças que se levantam.Bocas que gritam se despedindo do chefe: Ba1a! Bala!

Barandão está na frente de todos. Ele agora é o chefe. Pedro Bala parece ver Volta Seca, Sem-Pernas, Gato, Professor, Pirulito, Boa-Vida, João Grande e Dora, todos ao mesmo tempo entre eles. Agora o destino deles mudou. A voz do negro no mar canta o samba de Boa-Vida:

"Companheiros, vamos pra luta..."

De punhos levantados, as crianças saúdam Pedro Bala, que parte para mudar o destino de outras crianças. Barandão grita na frente de todos, ele agora é o novo chefe.

De longe, Pedro Bala ainda vê os Capitães da Areia. Sob a lua, num velho trapiche abandonado, eles levantam os braços. Estão em pé, o destino mudou.

Na noite misteriosa das macumbas os atabaques ressoam como clarins de guerra.


Capítulo 27 - Uma Pátria e uma Família

Anos depois os jornais de classe, pequenos jornais, dos quais vários não tinham existência legal e se imprimiam em tipografias clandestinas, jornais que circulavam nas fábricas, passados de mão em mão, e que eram lidos à luz de fifós, publicavam sempre notícias sobre um militante proletário, o camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela policia de cinco estados como organizador de greves, como dirigente de partidos ilegais, como perigoso inimigo da ordem estabelecida.

No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar, no ano que foi todo ele uma noite de terror, esses jornais únicas bocas que ainda falavam clamavam pela liberdade de Pedro Bala, líder da sua classe, que se encontrava preso numa colônia.

E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros lares, na hora pobre do jantar, rostos se iluminaram ao saber da notícia. E, apesar de que fora era o terror, qualquer daqueles lares era um lar que se abriria para Pedro Bala, fugitivo da polícia. Porque a revolução é uma pátria e uma família.

Na casa mal-assombrada de Doninha Quaresma (existiam botijas enterradas e a alma de Doninha), hoje do Capitão, na paz de Estância. Sergipe, março de 1937.

A bordo do Rakuyo Maru, subindo a costa da América do pelo Pacífico, em caminho do México, junho de 1937.

Загрузка...