Segunda Parte - Noite da Grande Paz, da Grande Paz Dos Teus Olhos Capítulo 12 - Filha de Bexiguento
A música já recomeçara no morro. Os malandros voltavam a tocar violão, a cantar modinhas, a inventar sambas que depois vendiam aos sambistas célebres da cidade.Na venda de Deoclécio novamente ficava um grupo todas as tardes. Durante algum tempo tudo cessara no morro para dar lugar ao choro e lamentações das mulheres e crianças.Os homens passavam de cabeça baixa para as suas casas ou para o trabalho. E os caixões negros de adultos, os caixões brancos de virgens, os pequenos caixões de crianças desciam as ásperas ladeiras do morro para o cemitério distante. Isso quando não eram sacos que desciam com os variolosos ainda vivos que eram levados para o lazareto.A família chorava como choraria a um morto, pela certeza de que eles não voltariam jamais. Nem a música de um violão. Nem a voz cheia de um negro cortava então a tristeza do morro. Só a reza das sentinelas, o choro convulsivo das mulheres.
Assim estava o morro quando Estêvão foi levado para o lazareto. Não voltou, certa tarde Margarida soube que ele morrera por lá. Nesta tarde ela já estava com febre.Mas o alastrim parecia ser dos mais mansos no corpo da lavadeira e ela escondeu de todos a notícia, conseguiu não ser metida num saco. Aos poucos foi melhorando. Os dois filhos andavam pela casa, fazendo o que ela mandava. Zé Fuinha era um bocado inútil, ainda não sabia fazer nada, com seus seis anos.
Mas Dora tinha treze para quatorze anos, os seios já haviam começado a surgir sob o vestido, parecia uma mulherzinha, muito séria, a buscar os remédios para a mãe, a tratar dela. Margarida melhorou quando já os violões recomeçavam a tocar no morro, porque a epidemia de varíola tinha se acabado. A música voltou a dominar as noites do morro e Margarida, se bem ainda não estivesse completamente boa, foi ã casa de algumas de suas freguesas em busca de roupa. Voltou com a trouxa nas costas, se atirou para a fonte. Trabalhou o dia todo, sob o sol e a chuva que caiu pela tarde. No outro dia não voltou ao trabalho porque recaiu do alastrime a recaída é sempre terrível. Dois dias depois descia do morro o último caixão feito pela varíola. Dora não soluçava. Corriam as lágrimas pelo seu rosto, mas enquanto o caixão descia ela pensava era em Zé Fuinha, que pedia o que comer. O irmãozinho chorava de dor e de fome. Era muito menino para compreender que tinha ficado sem ninguém na imensidão da cidade.
Os vizinhos deram jantar aos órfãos nesta tarde. No outro dia pela manhã o árabe que era dono dos barracões do morro mandou derramar álcool no de Margarida para desinfetar. E logo o alugou, pois era um barracão bem situado, bem no alto da ladeira. E enquanto os vizinhos discutiam o problema dos órfãos, Dora tomou o irmão pela mão e desceu para a cidade. Não se despediu de ninguém, era como uma fuga. Zé Fuinha ia sem saber para onde, arrastado pela irmã. Dora marchava tranquila. Na cidade havia de encontrar quem lhes desse de comer, quem pelo menos tomasse conta de seu irmão. Ela arranjaria um emprego de copeira numa casa. Ainda era uma menina, mas havia muitas casas que preferiam mesmo uma menina porque o ordenado era menor. Sua mãe certa vez falara em a empregar de copeira na casa de uma freguesa. Dora sabia onde era e se dirigiu para lá. O morro, a música dos violões, o samba que um negro cantava ficaram para trás. Os pés descalços de Dora se queimam no asfalto ardente. Zé Fuinha vai alegre, vendo a cidade para ele desconhecida, os bondes que passam repleto, as marinetes que buzinam, a multidão que corta as ruas. Dora fora com Margarida certa vez à casa desta freguesa. É na Barra, elas tinham ido num bonde bagageiro, levando a trouxa de roupa lavada. A dona da casa fizera festa a Dora, perguntara se ela queria vir trabalhar ali. Margarida ficara de trazê-la quando ela estivesse mais crescida. Era para lá que Dora pensava ir. E perguntando a ume a outro tomou o caminho da Barra. A caminhada era grande, o sol no asfalto queimava seus pés sem sapato. Zé Fuinha começou a pedir de comer e a se queixar do cansaço. Dora o acalentou com promessas e seguiram. Mas no Campo Grande Zé Fuinha não pôde mais. A caminhada era demasiada para ele, para os seus seis anos. Então Dora entrou numa padaria, trocou os únicos quinhentos réis que possuía, comprou dois pães dormidos, deixou Zé Fuinha sentado num banco com os pães: - Tu come e me espera, tá ouvindo? Eu vou ali, volto já. Mas não vá sair daqui, senão você se perde...
Zé Fuinha prometeu com uma cara muito séria, dando dentadas nos pães duros. Ela o beijou e seguiu.
O guarda que a informou olhou para os seus seios que nasciam. 0 cabelo loiro dela, maltratado, voava com o vento. Sentia queimaduras nas solas dos pés e um cansaço no corpo todo. Mas seguiu. O número era 611. Quando chegou ao 53 parou um pouco para descansar e pensar o que diria à dona da casa. Depois retomou a caminhada. Agora a fome ajudava a magoar seu corpo, a fome terrível das crianças de 13 anos, uma fome que exige comida imediatamente. Dora tinha vontade de chorar, de se deixar cair na rua, sob o sol, e não fazer movimentos. Uma saudade dos pais mortos a invadiu. Mas reagiu contra tudo e continuou.
O 611 era uma casa grande, quase um palacete, com árvores na frente. Numa mangueira, um balanço onde uma menina da idade de Dora se divertia. Um rapazote dos seus 17 anos a balançava e riam os dois. Eram os filhos do dono da casa. Dora ficou a olhá-los com inveja uns minutos. Depois tocou a campainha. O rapaz olhou, mas continuou a balançar a irmã. Dora tocou novamente, a empregada veio. Ela explicou que queria falar com dona Laura, a patroa. A empregada a olhou com desconfiança. Mas o rapazola deixou de balançar a irmã e andou até o portão. Espiava os seios mal nascidos de Dora, os pedaços de coxas que apareciam sob o vestido. Perguntou: - O que é que você quer?
- Eu queria falar com dona Laura. Sou filha de Margarida, que foi lavadeira dela... Não vê que ela morreu...O rapaz não despregava os olhos dos seios de Dora. Era bonita a menina, de olhos grandes, cabelo muito loiro, neta de italiano com mulata. Margarida dizia que ela puxara ao avô, que também tinha cabelos muito loiros e um bigodão bem tratado. Dora baixou os olhos porque o rapaz não tirava os dele dos seus peitos.Ele também se desconcertou, falou para a empregada:
- Vá chamar mamãe...
- Sim, senhor.
O rapaz puxou um cigarro, acendeu. Jogou a fumaça para cima estendendo o beiço, deu mais uma espiada para os peitos de Dora:
- Você está procurando emprego?
- Tou, sim senhor.
O vento levantou um pouco o vestido dela. Ele teve pensamento canalhas ao ver o pedaço de coxa. Já se sonhava na cama, Dora trazendo o café pela manhã, a safadeza que se seguiria.
- Vou ver se mamãe arranja um lugar pra você...
Ela agradeceu. Mas estava um pouco assustada, se bem lhe escapasse muito da malícia dos olhares dele. Dona Laura chegou, os cabelos grisalhos, a filha atrás dela, espiando Dora com olhos compridos. Era sardenta, mas tinha certa graça.
Dora contou que a mãe tinha morrido:
- A senhora tinha me prometido um emprego...
- De que foi que Margarida morreu?
- De bexiga, sim senhora.
Dora não sabia que dizendo aquilo tinha perdido a possibilidade do emprego.
- De varíola?
A mocinha se afastou receosa. Até o rapaz se desviou um pouco, pensou nos seios pequenos de Dora marcados de varíola. Cuspiu com nojo. Dona Laura tomou um tom triste:
- É que já tomei outra empregada. Agora não tenho necessidade...
Dora pensou em Zé Fuinha:
- A senhora não tem precisão de um menino pequeno pra faz compra, recados, estas coisas? É meu irmão...
- Não, minha filha, não tenho. - Não sabe de ninguém?
- Não. Se soubesse recomendaria você...
Queria acabar a conversa. Voltou-se para o filho:
- Você tem dois mil-réis aí, Emanuel?
- Pra que, mamãe?
- Me dê.
O rapaz deu, ela pôs em cima da grade. Tinha medo de tocar em Dora, queria que fosse dali, antes de contagiar a casa.
- Leve isso para você. Que Deus lhe ajude...
Dora voltou a descer a rua. O rapaz ainda espiou as nádegas que apareciam redondas sob o vestido apertado. Mas a voz de dona Laura o interrompeu. Ela falava para a empregada:
- Dos Reis, passe um pano com álcool no portão, onde esta menina pegou. Não é bom brincar com varíola...
O rapaz voltou a balançar a irmã sob as mangueiras. Mas de vez em quando suspirava para si mesmo: tinha uns peitos muito bons...
Zé Fuinha não estava no banco. Dora levou um susto. Era capaz que o irmão tivesse saído andando pela cidade e se perdesse. E como ela o iria encontrar, ela que tão pouco conhecia a cidade? Demais um grande cansaço a invadia, um desânimo, saudade da mãe morta, vontade de chorar. Os pés doíam e ela tinha fome. Pensou em comprar pão agora possuía dois mil e quatrocentos, mas em vez disto saiu em busca do irmão. Foi encontrá-lo embaixo das árvores do jardim comendo ameixas verdes. Dora deu-lhe uma pancada na mão:
- Tu não sabe que isso faz dor de barriga?
- Tou com fome...
Ela comprou pão, comeram. A tarde toda foi uma caminhada de um lado para outro à procura de emprego. Em todas as casas diziam que não, o medo da varíola era maior que qualquer bondade. No começo da noite Zé Fuinha não se agüentava mais de cansado. Dora estava triste e pensava em voltar ao morro. Ia ser uma carga para os vizinhos pobres. Não queria voltar. Do morro sua mãe tinha saído num caixão, seu pai metido num saco. Mais uma vez deixou Zé Fuinha sozinho num jardim para ir comprar o que comer numa padaria, antes que fechasse. Gastou os últimos níqueis. As luzes se acenderam e ela achou a princípio muito bonito. Mas logo depois sentiu que a cidade era sua inimiga, que apenas queimara os seus pés e a cansara. Aquelas casas bonitas não a quiseram. Voltou curvada, afastando com as costas das mãos as lágrimas. E novamente não encontrou Zé Fuinha. Depois de andar em volta do jardim foi dar com o irmão, que espiava um jogo de gude entre dois garotos: um negro forte e um magrelo branco. Dora sentou num banco, chamou o irmão.
Os garotos que jogavam se levantaram também. Ela desembrulhou os pães, deu um a Zé Fuinha. Os garotos a olhavam. O preto estava com fome, ela bem viu. Ofereceu do pão a eles. Ficaram os quatro comendo o pão dormido era mais barato em silêncio. Quando terminaram, o preto bateu as mãos uma na outra, falou:
- Teu irmão disse que a mãe de você morreu de bexiga...
- Papai também...
- Lá também morreu um...
- Teu pai?
- Não. Foi Almiro, um do grupo.
O branco magrelo, que tinha estado calado, perguntou:
- Você arranjou onde trabalhar?
- Ninguém quer filha de bexiguento...
Agora chorava. Zé Fuinha brincava no chão com as bolas que os outros tinham deixado perto das árvores. O preto coçava a cabeça. 0 magrelo olhou para ele, depois para Dora:
- Tu tem onde dormir?
- Não.
O magrelo falou para o negro:
- A gente leva ela pro trapiche...
- Uma menina... O que é que Bala vai dizer?
- Tá chorando disse o magrelo em voz muito baixa.
O negro olhou. Evidentemente estava atarantado. O branco coçou o pescoço, espantando uma mosca. Botou a mão no ombro de Dora muito devagarinho, como se tivesse medo de a tocar:
- Vem com a gente. A gente dorme num trapiche...
O preto fez esforço para sorrir: - Não é um palacete, mas é melhor que a rua...
Andaram. João Grande e Professor iam na frente. Ambos tinham vontade de conversar com Dora, mas nenhum sabia o que dizer, não tinham se visto ainda num apuro assim.A luz das lâmpadas batia nos cabelos loiros dela. O preto disse:
- É uma lindeza.
- Batuta fez Professor.
Mas não olhavam nem os seios, nem as coxas. Olhavam o cabelo loiro batido pela luz das lâmpadas elétricas.
No areal Zé Fuinha não pôde mais ir andando. O negro João Grande pegou a criança apesar de ser também criança... e a botou nas costas. Professor ia junto de Dora, mas estavam calados na noite.
Entraram no trapiche meio desconfiados. João Grande arriou Zé Fuinha no chão, ficou parado, esperando que o Professor e Dora entrassem. Foram todos para o canto do Professor, que acendeu a vela. Os outros espiavam para o canto com surpresa. O cachorro do Sem-Pernas latiu.
- Gente nova... - murmurou o Gato, que ia sair.
Gato andou até onde eles estavam:
- Quem é, Professor?
- A mãe e o pai morreu de bexiga. Tavam na rua, sem ter onde dormir. Gato olhou para Dora ensaiando seu melhor sorriso. Fez uma espécie de saudação tinha visto num cinema um galã fazendo com o corpo, ensaiou uma frase que tinha ouvido certa vez:
- Boas-vindas, madame...
Não se lembrou do resto, ficou meio encabulado, foi embora ver Dalva. Mas os demais já se aproximavam. Sem-Pernas e Boa-Vida vinham na frente. Dora olhava assustada.Zé Fuinha dormia de cansaço. João Grande se pôs na frente de Dora. A luz da vela iluminava o cabelo loiro da menina, de quando em vez pousava nos seios. se levantou, encostou-se na parede. Agora a lua aparecia pelos buracos do teto.
Boa-Vida estava diante deles. Sem-Pernas vinha coxeando, e os outros logo atrás, os olhos estirados para Dora. Boa-Vida falou:
- Quem é essa lasca?
Professor se adiantou:
- Tava com fome. Ela e o irmão. A bexiga matou o pai e a mãe.
Boa-Vida riu um riso largo. Empinou o corpo:
- É um peixão...
Sem-Pernas riu seu riso burlão, apontou os outros:
- Tá tudo como urubu em cima da carniça...
Dora se chegou para junto de Zé Fuinha, que acordara e tremia de medo. Uma voz disse entre os meninos:
- Professor, tu tá pensando que a comida é só pra tu e pra João Grande? Deixa pra nós também...
Outro gritou:
- Já tou com o ferro em brasa...
Muitos riram. Um se adiantou, mostrou o sexo a João Grande - Vê como a bichinha está, Grande. Doidinha...
João Grande e se pôs na frente de Dora. Não dizia nada, mas puxou o punhal. O Sem-Pernas gritou:
- Tu assim não arranja nada. Ela tem que ser pra todos.
Professor replicou:
- Não tão vendo que é uma menina...
- Já tem peito! - gritou uma voz.
Volta Seca saiu de entre o grupo. Trazia os olhos muito excitado um riso no rosto sombrio:
- Lampião também não respeita cara. Dá ela pra gente Grande...
Sabiam que Professor era fraco, não agüentava pancada. Estava doidamente excitados, mas ainda temiam João Grande, que segurava o punhal. Volta Seca se via como no meio do grupo de Lampião, pronto para deflorar junto com todos uma filha de fazendeiro. A vela iluminava os cabelos loiros de Dora. Ia um pavor pelo rosto dela.
João Grande não dizia nada, mas segurava o punhal na mão. Professor abriu a navalha, ficou junto dele. Então Volta Seca também puxou do punhal, começou a avançar.Os outros vinham por detrás dele, o cachorro latia. Boa-Vida falou mais uma vez:
- Desaparta, Grande. É melhor...
Professor pensava que se o Gato estivesse ali, estaria do lado deles, porque o Gato já, tinha mulher. Mas o Gato já tinha saído.
Dora via o grupo avançar. O medo foi vencendo o desânimo e o cansaço em que estava. Zé Fuinha chorava. Dora não tirava os olhos de Volta Seca. A cara sombria do mulato estava aberta em desejo, um riso nervoso a sacudia. Viu também os sinais da varíola no rosto de Boa-Vida quando este passou em frente da vela, e então se lembrou da mãe morta. Um soluço a sacudiu e deteve um momento os meninos. Professor disse:
- Não vê que ela tá chorando.
Eles pararam um momento. Mas Volta Seca falou:
- E nós com isso? A babaca é a mesma...
Continuaram avançando. Iam vagarosamente, os olhos fixos ora em Dora, ora no punhal que João Grande tinha na mão. De repente se apressaram, chegaram muito mais perto. João Grande falou pela primeira vez:
- Furo o primeiro...
Boa-Vida riu, Volta Seca manejou o punhal. Zé Fuinha chorava, Dora o olhou com os olhos apavorados. Se abraçou nele, viu João Grande derrubar Boa-Vida. A voz de Pedro Bala, que entrava, fez com que parassem:
- Que diabo é isso?
Professor levantou-se. Volta Seca o soltou, já o havia cortado no braço. Boa-Vida ficou deitado como estava, um talho no rosto. João Grande continuou em guarda na frente de Dora. Pedro Bala se adiantou:
- Que é isso?
Boa-Vida falou do chão mesmo:
Estes frescos arranjaram uma comida e quer que seja para ele só. A gente também tem direito...
- Também. Eu pelo menos quero trepar hoje... - esganiçou Sem-Pernas.
Pedro Bala olhou para Dora. Viu os peitos, o cabelo loiro.
- Tão com o direito... - falou. - Arreda, João Grande.
O negro olhou Pedro Bala espantado. O grupo avançava novamente, agora chefiado por Pedro Bala. João Grande estendeu os braços, gritou:
- Bala, eu como o primeiro que chegar aqui.
Pedro Bala adiantou mais um passo:
- Sai, Grande.
- Tu não tá vendo que é uma menina? Tu não tá vendo?
Pedro Bala parou, o grupo parou atrás dele. Agora Pedro Bala olhava Dora com outros olhos. Via o terror no rosto dela, as lágrimas que caíam dos olhos. Ouviu o choro de Zé Fuinha. João Grande falava:
- Eu sempre tive contigo, Bala. Sou teu amigo, mas ela é uma menina, fui eu e Professor que trouxe ela. Eu sou teu amigo, mas se tu vier eu te mato. É uma menina, ninguém faz mal a ela...
- A gente te derruba e depois... - disse Volta Seca.
- Cala a boca gritou Pedro Bala.
João Grande continuou:
- O pai dela, a mãe dela morreu de bexiga. A gente encontrou ela, não tinha onde dormir, a gente trouxe ela. Não é uma puta, é uma menina, não vê que é uma menina? Ninguém toca nela, Bala.
Pedro Bala disse baixinho:
- É uma menina...
Pulou para o lado de João Grande e de Professor.
- Tu é um negro bom. Tu tá com o direito... - voltou-se para os outros. - Quem quiser vir, venha...
- Tu não pode fazer isso, Bala... - e Boa-Vida passava a mão no talho. - Tu agora quer comer ela só com o Grande e Professor...
- Juro que não quem comer ela, nem eles quer. É uma menina. Mas ninguém toca nela. Quem quiser que venha...
Os menores e mais medrosos foram se afastando. Boa-Vida se levantou, foi para seu canto, limpando o sangue. Volta Seca falou para Pedro Bala devagar:
- Eu não vou não é de medo. É que tu disse que é uma menina.
Pedro Bala se aproximou de Dora:
- Tem medo, não. Ninguém toca em você.
Ela saiu do seu canto, arrancou um pedaço da fralda, começou a ver a ferida do Professor. Depois marchou para onde estava Boa-Vida que se encolheu todo, molhou a ferida do malandro, botou um pano em cima. Todo o temor, todo o cansaço tinham desaparecido. Porque confiava em Pedro Bala. Depois perguntou a Volta-Seca:
- Também tá ferido?
- Não... - fez o mulato sem compreender. E fugiu para seu canto. Parecia ter medo de Dora.
Sem-Pernas espiava. O cachorro saiu do colo dele, veio lamber os pés de Dora. Ela o acarinhou, perguntou ao Sem-Pernas:
- É teu?
- É, sim. Mas pode ficar com ele.
Ela sorriu. Pedro Bala andou ao léu no trapiche. Depois disse para todos:
- Amanhã ela vai embora. Não quero menina aqui.
- Não - disse Dora. - Eu fico, ajudo vocês. Eu sei cozinhar, coser, lavar roupa.
- Por mim pode ficar falou Volta Seca.
Dora olhou Pedro Bala:
- Tu disse que ninguém me fazia mal?..
Pedro Bala olhou os cabelos loiros. A lua entrava pelo trapiche.
Capítulo 13 - Dora, Mãe
O gato veio gingando o corpo naquele seu caminhar característico. Andara procurando enfiar a linha na agulha uma imensidade de tempo. Dora fizera Zé Fuinha dormir, agora se preparava para ouvir Professor ler aquela história tão bonita que estava no livro de capa azul. O Gato veio gingando o corpo, se aproximou devagar:
- Dora...
- Que é, Gato?
- Tu quer fazer uma coisa?
Mirava a agulha e a linha que tinha na mão. Parecia estar diante de um problema grave. Não sabia como se arranjar. Professor parou a leitura, Gato mudou de conversa:
- Tu ainda fica cego de tanto lê, Professor... Se ainda fosse luz elétrica... - olhou Dora sem se resolver.
- Que é, Gato?
- Esse diabo desta linha... Nunca vi coisa mais difícil. Meter isso no rabo desta agulha...
- Dê cá...
Enfiou a linha, deu um nó numa das pontas. Gato disse para Professor:
- Só mulher é que sabe fazer esse troço...
Estendeu a mão para receber a agulha, mas Dora não entregou.
Perguntou o que é que Gato tinha que coser. Gato mostrou o paletó roto no bolso. Era aquela roupa de casimira que fora do Sem-Pernas quando ele andara feito menino rico numa casa da Graça:
- É uma roupa porreta! - fez o Gato.
- Boa mesmo apoiou Dora. - Tira o casaco.
Professor e Gato ficaram vendo ela coser. Em verdade não era uma maravilha de costura, mas eles nunca tinham tido ninguém que remendasse suas roupas. E somente Gato e Pirulito tinham costume de remendar eles mesmos as suas. Gato porque era metido a elegante e tinha uma amante, Pirulito porque gostava de andar limpo. Os outros deixavam que os farrapos que arranjavam se esfarrapassem ainda mais, até se tornarem trapos inúteis. Então mendigavam ou furtavam outra calça e outro paletó. Dora acabou o serviço:
- Tem mais?
Gato alisou o cabelo cheio de brilhantina:
- As costas da camisa...
Virou-se. A camisa estava rasgada de cima a baixo. Dora mandou que ele sentasse, começou a coser no corpo dele mesmo. Quando os dedos dela tocaram pela primeira vez nas costas de Gato, ele sentiu um arrepio. Como quando Dalva passava as unhas crescidas e tratadas, arranhando suas costas e dizendo:
- A gatinha arranha o gatinho...
Mas Dalva não cosia suas roupas, talvez nem soubesse enfiar uma linha no fundo de uma agulha. Gostava era de se bater com ele na cama, arranhar suas costas, mas de propósito, pra o arrepiar e o excitar, para que o amor se fizesse ainda melhor. E Dora, não. Não era de propósito. A mão dela unhas maltratadas e sujas, roídas a dente não queria excitar, nem arrepiar. Passava como a mão de uma mãe que remendava camisas do filho. A mãe do Gato morrera cedo. Era uma mulher frágil e bonita.Também tinha as mãos maltratadas, que esposa de operário não tem manicura. E era dela também aquele gesto de remendar as camisas de Gato, mesmo nas costas de Gato.A mão de Dora o toca de novo. Agora a sensação é diferente. Não é mais um arrepio de desejo. É aquela sensação de carinho bom, de segurança que lhe davam as mãos de sua mãe. Dora está por detrás dele, ele não vê. Imagina então que é sua mãe que voltou. Gato está pequenino de novo, vestido com um camisolão de bulgariana e nas brincadeiras pelas ladeiras do morro o rompe todo. E sua mãe vem, faz com que ele se sente na sua frente e suas mãos ágeis manejam a agulha, de quando em vez o tocam e lhe dão aquela sensação de felicidade absoluta. Nenhum desejo. Somente felicidade. Ela voltou, remenda as camisas do Gato. Uma vontade de deitar no colo de Dora e deixar que ela cante para ele dormir, como quando era pequenino. Se recorda que ainda uma criança. Mas só na idade, porque no mais é igual a um homem furtando para viver, dormindo todas as noites com uma mulher da vida, tomando dinheiro dela. Mas nesta noite é totalmente criança esquece Dalva, suas mãos que o arranham, lábios que prendem os seus em beijos longos, sexo que o absorve. Esquece sua vida de pequeno batedor de carteiras, de dono de um baralho marcado, jogado desonesto. Esquece tudo, é apenas um menino de quatorze anos com uma mãezinha que remenda suas camisas. Vontade de que ela cante para ele dormir... Uma daquelas cantigas de ninar que falam em bicho-papão. Dora morde a linha, se inclina para ele. Os cabelos loiro dela tocam no ombro do Gato. Mas ele não tem outro desejo senão que ela continue a ser sua mãezinha. Sua felicidade naquele momento é quase absurda. É como se não houvesse existido toda a sua vida depois da morte da sua mãe. É como se tivesse se conservado um criança igual a todas. Porque nesta noite sua mãe voltou. Por isso a inconsciente carícia dos cabelos loiros de Dora não excita seu desejo.
Mas aumenta sua felicidade. E a voz dela que diz: tá pronto, Gato, soa aos seus ouvidos direitinho a voz doce e musical de sua mãe que cantava, a cabeça do Gato recostada no seu colo, cantigas de ninar.
Levanta, olha Dora com olhos agradecidos:
- Você é a mãezinha da gente, agora... - mas fica encabulada do que diz, pensa que Dora não compreenderá mesmo porque ela esta rindo com seu rosto sério de quase mulherzinha. Mas Professor compreende, e Gato, na frente de Dora, falando numa voz feliz, mas sem desejo, chamando-a de mãe, e ela sorrindo com seu ar maternal de quase mulherzinha, fica gravado na cabeça de Professor como um quadro.
Gato joga o paletó nas costas e sai com seu passo gingado. Sente que há qualquer coisa de novo no trapiche: eles encontraram mãe, carinho e cuidados de mãe. Dalva o estranha nesta noite:
- Que foi que Gatinho teve? Que foi?
Mas ele guarda seu segredo. É uma coisa tão grande demais encontrar na terra uma mãe que já morreu. Dalva não o entenderia.
Quando Professor estava começando a história, João Grande chegou e sentou-se ao lado deles. A noite era chuvosa. Na história que Professor lia, a noite era chuvosa também e o navio estava em grande perigo. Os marinheiros apanhavam de chicote, o capitão era um malvado. O barco a vela parecia soçobrar a cada momento, o chicote dos oficiais caía sobre as costas nuas dos marinheiros. João Grande tinha uma expressão de dor no rosto. Volta Seca chegou com um jornal, mas não interrompeu a história, ficou ouvindo. Agora o marinheiro John apanhava chibatadas porque escorregara e caíra no meio do temporal. Volta Seca interrompeu: - Se Lampião tivesse aí, já tinha comido esse capitão no fuzil...
Foi o que fez o marinheiro James, um homenzarrão. Se atirou em cima do capitão, a revolta estalou no buque. Lá fora chovia. Chovia na história também, era a história de um temporal e de uma revolta. Um dos oficiais ficou do lado dos marinheiros.
- É do balacobaco... - disse João Grande.
Amavam o heroísmo. Volta Seca espiou Dora. Os olhos dela brilhavam, ela amava o heroísmo também. Isso agradou ao sertanejo. Depois o marinheiro James sustentou uma luta feroz. Volta Seca assoviou como um passarinho de tanto contentamento. Dora riu também, satisfeita. Riram os dois juntos, logo foi uma gargalhada dos quatro, como era costume dos Capitães da Areia. Gargalharam alguns minutos, outros se aproximaram, a tempo de ouvir o resto da história.
Olhavam o rosto sério de Dora, rosto de uma quase mulherzinha que os fitava com carinho de mãe. Sorriam e, quando o marinheiro James jogou o capitão do navio num barco salva-vidas e o chamou de cobra sem veneno, eles todos gargalharam junto com Dora, e a olharam com amor. Como crianças olham a mãe muito amada. Quando a história acabou, eles voltaram para os seus cantos entre comentários:
- Porreta...
- Macho bamba...
- Também era um prensa...
- O capitão fez uma cara, hein?
Volta Seca espichou o jornal para Professor Dora olhou o mulato, ele sorriu meio confuso.
- É que traz notícias de Lampião... - seu rosto sombrio clareava. - Tu sabe que Lampião é meu padrim?
- Padrinho?
- Pois é... Foi minha mãe que tomou, porque Lampião é um macho de verdade, não respeita cara... Minha mãe era uma mulher valente, uma mulher capaz de agüentar um fuzil. Um dia fez correr dois soldados que se fizeram de besta. Era um mulherão... Valia um homem.
Dora ouvia encantada. Seu rosto sério fitava com a maior simpatia o rosto sombrio do mulato. Volta Seca ficou calado, mas num jeito de quem queria dizer alguma coisa. Por fim falou.
- Tu também é valente... Sabe? Minha mãe era um mulherão destas grandes. Era mulata, não tinha cabelo loiro, tinha uma carapinha danada... Não era mais menina também, podia ser tua avó... Mas tu parece com ela...
Olhou Dora, mas baixou a cabeça:
- Parece mentira, mas tu me lembra ela. Parece mentira, mas tu parece com ela...
Professor olhou com seus olhos de míope. Volta Seca quase gritava, seu rosto sombrio tinha a alegria de uma descoberta. Também ele descobriu sua mãe, pensou Professor.Dora estava séria, mas sei olhar era carinhoso. Volta Seca riu, ela riu, virou logo gargalhada. Mas Professor não os acompanhou na gargalhada. Começou a ler muito rápido o relato do jornal.
Lampião fora pegado de surpresa ao entrar numa vila. O chofer de um caminhão que o vira na estrada com o grupo tocara para a vila e avisara. Dera tempo de pedirem reforços de vilas próximas e a coluna volante também veio. Quando Lampião entrou na vila encontrou foi bala muita pela frente, bala que ele não esperava. O tiroteio foi grande, Lampião só pôde mesmo abrir para a caatinga, que é sua casa. Um dos homens do grupo ficou estirado com um balaço no peito. Cortaram a cabeça dele, que foi enviada para a Bahia em triunfo. Vinha a fotografia no jornal. A boca aberta, os olhos furados, um homem segurando pela carapinha rala. Tinham cortado o pescoço a facão.
Dora comentou:
- Coitado dele... Que judiaria!
Volta Seca olhou agradecido. Seus olhos estavam injetados, seu rosto todavia mais sombrio. Dolorosamente sombrio.
- Filho de uma égua... - disse baixo. - Filho de uma égua de chofer... Se um dia eu te pegar...
A notícia adiantava que Lampião devia ter outros homens feridos, pois a retirada do grupo fora por demais rápida. Volta Seca falou em surdina. Era como se falasse para si mesmo...
- Já tá em tempo de eu ir...
- Pra onde? - perguntou Dora.
- Pra junto de meu padrim. Ele tá precisando de mim...
Ela o olhou com tristeza:
- Tu vai mesmo, Volta Seca?
- Vou, sim.
- E se a polícia te matar, cortar tua cabeça?
- Juro que eu eles não topa vivo. Vou com um, mas eu eles não topa vivo... Não tem medo, não...
Afirmava à sua mãe, forte e valente mulata sertaneja, capaz de brigar com soldados, comadre de Lampião, amásia de cangaceiro, que podia confiar nele, que não o pegariam vivo, que lutaria até morrer... Dora ouvia com orgulho.
Professor apertou os olhos e viu também, em lugar de Dora, uma sertaneja forte, defendendo seu pedaço de terra contra os coronéis, com a ajuda amiga dos cangaceiros.Viu a mãe de Volta Seca. E era o que o mulato via. Os cabelos loiros eram carapinha rala, os olhos doces eram os olhos achinesados da sertaneja, o rosto grave era o rosto sombrio da camponesa explorada. E o sorriso era o mesmo sorriso de orgulho de mãe para filho.
Pirulito a viu chegar com desconfiança. Para ele Dora era o pecado. Havia bastante tempo que ele desistira das negrinhas do areal e da quentura dos corpos se embolando no areal. Se despia aos poucos dos seus pecados para aparecer puro aos olhos de Deus e poder merecer a graça de se vestir com as vestes dos sacerdotes. Pensava mesmo em arranjar um lugar de vendedor de jornais para fugir do pecado diário do furto.
Olhava Dora com receio: a mulher era o pecado. Em verdade ela era apenas uma criança, uma criança abandonada como eles. Não ria como as negrinhas do areal um riso insolente de convite, um riso de dentes apertados pelo desejo. Seu rosto era sério, parecia o rosto de uma mulherzinha muito digna. Mas os pequenos seios que nasciam se empinavam no vestido, o pedaço de coxa que aparecia era branco e redondo. Pirulito tinha medo. Não tanto da tentação de Dora. Ela não parecia das que tentavam, era uma criança, era muito cedo para isto. Mas tinha medo da tentação que vinha dentro dele, que o demônio punha dentro dele. E procurava rezar em voz baixa enquanto ela se aproximava.
Dora ficou olhando os quadros de santo. Professor parou atrás dela, olhava também. Havia flores sob a imagem do Menino Deus que Pirulito furtara um dia. Dora chegou mais perto:
- É uma beleza...
O medo começou a desaparecer do coração do Pirulito. Ela se interessava pelos seus santos, santos para os quais ninguém ligava no trapiche. Dora perguntou:
- É tudo teu?
Pirulito fez que sim com a cabeça e sorriu. Se adiantou, mostrou tudo que possuía. Os quadros, o catecismo, o terço, tudo. Ela olhava com satisfação. Sorria também enquanto Professor a espiava com os olhos míopes. Pirulito contava a história de Santo Antônio, que tinha estado em dois lugares ao mesmo tempo. Isso para salvar seu pai da forca, para a qual fora condenado injustamente. Contava do mesmo modo como Professor lia histórias heroicas de marinheiros corajoso e revoltosos. Dora escutava com a mesma atenção e a mesma simpatia. Conversavam os dois, Professor calado, ouvindo. Pirulito contou coisas da sua religião, milagres de santos, a bondade do padre José Pedro: - Quando tu conhecer ele, vai gostar...
Ela disse que com certeza. Ele já havia esquecido que ela podia trazer a tentação nos seios de menina, nas coxas gordas, na cabeleira loira, agora falava como a uma mulher mais velha que o ouvia com carinho. Como a uma mãe. Só então compreendeu. Porque naquele momento lhe veio uma vontade de contar a ela que queria ser sacerdote, que queria seguir aquela vocação, que sentia o chamado de Deus. Só à sua mãe teria coragem de contar isso. E ela está na sua frente. Ele fala:
- Tu sabe que eu quero ser padre?
- Que bom... - fez ela.
O rosto de Pirulito se iluminou. Olhou para Dora, falou com a voz exaltada:
- Tu pensa que eu mereço? Deus é bom, mas também sabe castigar...
- Por quê? - havia espanto na pergunta de Dora.
- Tu não vê que a vida da gente é cheia de pecado?.. Todo dia...
- A culpa não é da gente... - esclareceu Dora. - A gente não tem ninguém.
Mas agora Pirulito tinha a ela. A sua mãe. Riu satisfeito:
- Padre José Pedro também já disse isso. É capaz...
Riu mais, ela sorriu também animando.
- ...é capaz de que um dia eu seja padre.
- Tu vai ser, sim.
- Tu quer esse Deus Menino pra tu? - perguntou ele de repente.
Era como um filho que levasse parte da sua guloseima para sua mãe, que lhe dera o níquel para que comprasse.
E Dora aceitou, como uma mãe aceita parte da guloseima do filho querido para que este fique satisfeito.
Professor via a mãe de Pirulito, que não sabia como era, como fora. Mas a via ali no lugar de Dora. Sentiu inveja da felicidade de Pirulito.
Encontraram Pedro Bala estendido na areia. O chefe dos Capitães da Areia não entrara para o trapiche nesta noite. Ficara espiando a lua, deitado na quentura boa da areia. A chuva tinha cessado e vento que corna agora era morno. Professor deitou também, Dora sentou entre os dois. Pedro Bala a espiou pelo canto dos olhos, puxou o boné mais para a cara. Dora disse voltada para ele:
- Tu ontem foi bom comigo e meu irmão...
- Tu devia ir embora... - respondeu Bala.
Ela não disse nada, mas ficou triste. Professor então falou.
- Não, Bala. É como uma mãe... Como uma mãe, sim. Pra todos...
Repetia:
- É como uma mãe... Como uma mãe...
Pedro Bala olhou os dois. Suspendeu o boné, sentou na areia. Mas Dora o olhava com carinho. Para ele... Para ele era tudo: esposa, irmã e mãe. Sorriu confuso para Dora:
- Pensei que fosse ser uma tentação pra todos...
Ela fez que não, ele continuou:
- Depois podiam aproveitar uma hora que a gente não estava...
Riram. Professor repetiu mais uma vez:
- Não. É como uma mãezinha...
- Tu pode ficar-disse Pedro Bala, e Dora sorriu para ele, era o seu herói, uma figura que ela nunca tinha imaginado, mas que um dia haveria de imaginar. Amava-o como a um filho sem carinho, um irmão corajoso, um amado tão belo como não havia outro.
Mas Professor viu os sorrisos dos dois. E disse ainda uma vez com voz sombria:
- É como mãe!
Capítulo 14 - Dora, Irmã e Noiva
Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela queria ser totalmente um dos Capitães da Areia, o trocou por umas calças que deram a Brandão numa casa da cidade alta. As calças tinham ficado enormes para o negrinho, ele então as ofereceu a Dora. Também estavam grandes para ela, teve que as cortar nas pernas para que dessem. Amarrou com cordão, seguindo o exemplo de todos, o vestido servia de blusa. Se não fosse a cabeleira loira e os seios nascentes, todos a poderiam tomar como um menino, um dos Capitães da Areia.
No dia em que, vestida como um garoto, ela apareceu na frente de Pedro Bala, o menino começou a rir. Chegou a se enrolar no chão de tanto rir. Por fim conseguiu dizer:
- Tu tá gozada...
Ela ficou triste, Pedro Bala parou de rir.
- Não tá direito que vocês me dê de comer todo dia. Agora eu tomo parte no que vocês fizer.
O assombro dele não teve limites:
- Tu quer dizer...
Ela o olhava calma, esperando que ele concluísse a frase.
- ...que vai andar com a gente pela rua, batendo coisas...
- Isso mesmo - sua voz estava cheia de resolução.
- Tu endoidou...
Dizia com voz soturna, porque, para ele, ela também não era mãe. Também para o Professor ela era a Amada.
- Não sei por quê.
- Tu não tá vendo que tu não pode? Que isso não é coisa pra menina. Isso é coisa pra homem.
- Como se vocês fosse tudo uns homão. É tudo uns menino.
Pedro Bala procurou o que responder:
- Mas a gente veste calça, não é saia.
- Eu também e mostrava as calças.
De momento ele não encontrou nada que dizer. Olhou para ela e pensativo, já não tinha vontade de rir. Depois de algum tempo falou:
- Se a polícia pegar a gente não tem nada. Mas se pegar tu?
- É igual.
- Te metem no orfanato. Tu nem sabe o que é...
- Tem nada, não. Eu agora vou com vocês.
Ele encolheu os ombros num gesto de quem não tinha nada com aquilo. Havia avisado. Mas ela bem sabia que ele estava preocupado.
Por isso ainda disse:
- Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um...
- Tu já viu uma mulher fazer o que um homem faz? Tu não agüenta um empurrão...
- Posso fazer outras coisa.
Pedro Bala se conformou. No fundo gostava da atitude dela, se bem tivesse medo dos resultados.
Andava com eles pelas ruas, igual a um dos Capitães da Areia. Já não achava a cidade inimiga. Agora a amava também, aprendi a andar nos becos, nas ladeiras, a pongar nos bondes, nos automóveis em disparada. Era ágil como o mais ágil. Andava sempre com Pedro Bala, João Grande e Professor. João Grande não a largava, era como uma sombra de Dora, e se babava de satisfação quando ela o chamava com sua voz amiga de meu irmão. O negro a seguia como um cachorro e se dedicara totalmente a ela. Vivia num assombro das qualidades de Dora. Quase a achava tão valente como Pedro Bala. Dizia o Professor num espanto: - É valente como um homem...
Professor preferia que não fosse assim. Sonhava com um olhar de carinho dos olhos da Dora. Mas não daquele carinho maternal que ela tinha para os menores e para os mais tristes, Volta Seca, Pirulito. Tampouco um olhar fraternal, como os que ela lançava a João Grande, a Sem-Pernas, a Gato, a ele mesmo. Queria um daqueles olhares plenos de amor que ela lançava a Pedro Bala quando o via na carreira, fugindo da polícia ou de um homem que dizia na porta de uma loja:
- Ladrão! Ladrão! Me furtaram...
Daqueles olhares ela só tinha para Pedro Bala, e este nem reparava. Professor ouve os elogios de João Grande mas não sorri. Pedro Bala naquela noite chegou no trapiche com um olho inchado e o lábio roxo, sangrando. Topara com Ezequiel, chefe de outro grupo de meninos mendigos e ladrões, grupo muito menor que o dos Capitães da Areia e muito mais sem ordem. Ezequiel vinha com uns três do grupo, inclusive um que fora expulso dos Capitães da Areia por ter sido pegado furtando um companheiro. Pedro Bala tinha ido deixar Dora e Zé Fuinha no pé da ladeira do Taboão para que eles fossem para o trapiche. João Grande tinha um serviço a fazer e não pudera ir com Dora. Pedro Bala pensou em ir com ela, em não deixá-la sozinha no areal. Mas como ainda não caíra a noite, não havia perigo de um negro dar em cima dela. Demais ele tinha que ir receber uns cobres da mão de Gonzales do 14, dinheiro que era devido a uma batida que o grupo fizera nuns objetos de ouro de um árabe rico.
Enquanto andava para o 14, Pedro Bala pensava em Dora. No cabelo loiro que caía no pescoço, nos olhares dela. Era bonita, era igual a uma noiva. Noiva... Nem podia pensar nisso. Não queria que os outros do grupo se sentissem com direito de pensar em safadezas com ela. E se ele dissesse a Dora que ela era como uma noiva para ele, outro poderia se julgar no direito de também dizer. E então não haveria mais lei nem direito entre os Capitães da Areia. Pedro Bala se recorda de que é o chefe...
Vai tão distraído que quase esbarra com Ezequiel. Estão os quatro parados diante dele. Ezequiel é um mulato alto, fuma uma ponta de charuto. Pedro Bala fica parado também, esperando.
Ezequiel cospe:
- Não vê onde pisa?.. Agora anda cego?
- O que é que tu quer?
O menino que fora dos Capitães da Areia pergunta:
- Como vão aqueles frescos?
- Tu ainda se lembra da surra que apanhou lá? Tu ainda deve guardar a marca.
O menino range os dentes, quer avançar. Mas Ezequiel faz um gesto com a mão e avisa a Pedro Bala:
- Um dia destes vou fazer uma visita a vocês.
- Uma visita? - pergunta Bala desconfiado.
- Diz-que agora vocês tem uma putinha lá pra todo mundo...
- Dobre a língua, filho da mãe.
Com o soco Ezequiel rolou. Mas os outros três já estavam em cima de Pedro Bala. Ezequiel meteu o pé na cara de Bala. O que for, dos Capitães da Areia gritou:
- Segura ele bem e meteu um soco na boca de Pedro.
Ezequiel deu dois pontapés na cara de Bala:
- Fique sabendo que sou teu patrão.
- Quatro... - começou a xingar Pedro Bala, mas um soco o calou.
O guarda vinha marchando para eles, debandaram. Pedro Bala apanhou o boné, as lágrimas de raiva desciam junto com sangue. Estendeu a mão fechada para o lado por onde Ezequiel e os seus haviam desaparecido. O guarda falou:
- Desaperta, corneta. Dá o fora antes que lhe leve pro xilindró.
Pedro Bala cuspiu puro sangue. Desceu a ladeira devagar, nem pensou em ir buscar o dinheiro de Gonzales. Descia resmungando consigo mesmo: Só são homem quatro contra um. E pensava vinganças.
Entrou no trapiche, Dora estava sozinha com o irmão, que dormia. Os últimos raios do sol entravam pelo teto, dando uma estranha claridade ao casarão. Dora o viu entrar e andou para ele:
- Segurou os cobres?..
Mas enxergou o olho inchado de Pedro, o beiço partido:
- Que foi, meu irmão?
- Ezequiel mais três. Só são homem de quatro pra cima...
- Fez isso em tu?
- Foi quatro. Assim mesmo porque me pegaram desprevenido.
Eu caí na besteira de pensar que Ezequiel vinha só. Era quatro.
Ela o sentou, foi ao canto de Pirulito, trouxe água. Com um pedaço de pano limpou as feridas dele. Pedro arquitetava plano de vingança. Ela apoiou:
- A gente acaba com eles desta vez.
Pedro riu:
- Tu vai também?
- Se vou...
Agora limpava os lábios dele, estava curvada na sua frente, seu rosto bem próximo do de Bala, os cabelos loiros misturados com os dele.
- Por que foi a briga?
- Por nada.
- Diga...
- Ele disse umas coisas...
- Foi por causa de mim, não foi?
Ele abanou a cabeça afirmando. Então ela chegou os lábios para junto dos de Pedro Bala, os beijou e depois fugiu. Ele saiu correndo atrás dela, mas ela se escondia, não se deixava pegar. Aos poucos foram chegando os outros. Ela de longe sorna para Pedro Bala. Não havia nenhuma malícia no seu sorriso. Mas seu olhar era diferente do olhar de irmã que lançava aos outros. Era um doce olhar de noiva, de noiva ingênua e tímida. Talvez mesmo não soubessem que era amor. Apesar de não ser noite de lua, havia um romântico romance no casarão colonial. Ela sorria e baixava os olhos, por vezes piscava com um olhe porque pensava que isto era namorar. E seu coração batia rápido quando olhava. Não sabia que isso era amor. Por fim a lua veio estendeu sua luz amarela no trapiche. Pedro Bala se deitou na areia e mesmo de olhos fechados via Dora. Sentiu quando ela chegou e deitou a seu lado. Disse: - Tu agora é minha noiva. Um dia a gente se casa.
Continuou de olhos fechados. Ela disse baixinho:
- Tu é meu noivo.
Mesmo não sabendo que era amor, sentiam que era bom.
Quando Sem-Pernas e João Grande chegaram, Pedro Bala se levantou da areia e reuniu os chefes. Foram para junto da vela do Professor. Dora veio também e sentou entre João Grande e Boa-Vida.
O malandro acendeu um cigarro, falou para Dora:
- Tou aprendendo tocar uma samba porreta. E tou cavando um violão, irmã.
- Tu tá tocando batuta mesmo, mano.
- É um tal de sucesso nas festa...
Pedro Bala interrompeu a conversa. Olhavam para o lábio dele, o olho inchado. Ele narrou o caso:
- Quatro contra um...
- Precisa duma lição - falou Sem-Pernas rindo. - Eu não vou com aquele cara.
Formaram um plano de batalha. E pelo meio da noite saíram uns trinta. O grupo de Ezequiel dormia para as bandas do Porto da Lenha, nuns barcos virados e na ponte.Dora foi junto a Pedro Bala e levava uma navalha também. Sem-Pernas disse:
- Até parece Rosa Palmeirão.
Nunca houvera mulher tão valente como Rosa Palmeirão. Dera em seis soldados de uma vez. Todo marítimo sabe o seu ABC no cais da Bahia. Por isso Dora gosta da comparação e sorri:
- Obrigado, mano.
Irmão... É uma palavra boa e amiga. Se acostumaram a chamá-la de irmã. Ela também os trata de mano, de irmão. Para os menores é como uma mãezinha, igual a uma mãezinha. Cuida deles. Para os mais velhos é como uma irmã que diz palavras boas e brinca inocentemente com eles e com eles passa os perigos da vida aventurosa que levam. Mas nenhum sabe que para Pedro Bala ela é a noiva. Nem mesmo o Professor sabe. E dentro do seu coração Professor também a chama de noiva.
O cachorro que o Sem-Pernas arranjou vai latindo. Volta Seca imita o latir de um cachorro, todos riem. João Grande assovia um samba. Boa-Vida começa a cantá-lo em voz alta:
"A mulata me abandonou..."
Vão alegres. Levam navalhas e punhais nas calças. Mas só o sacarão se os outros puxarem. Porque os meninos abandonado também têm uma lei e uma moral, um sentido de dignidade humana.
De repente João Grande grita:
- É ali.
Com a algazarra que fazem, Ezequiel sai de sob um barco:
- Quem vem lá?
- Os Capitães da Areia, que não engole desaforo... respondeu Pedro Bala.
E arrancaram para cima dos outros.
A volta foi um triunfo. Apesar do Sem-Pernas ter um talho e Barandão vir quase nos braços de tanta pancada um grandão do grupo de Ezequiel o surrara até que Volta Seca o rebentou, voltavam todo alegres, comentando a vitória. Os que tinham ficado no trapiche deram vivas. Ainda demoraram muito conversando, comentando. Falavam na coragem de Dora, que brigara igual a um menino. Igual a um homem, dizia João Grande. Era como uma irmã, exatamente igual a uma irmã...
Igual a uma noiva, exatamente igual a uma noiva, pensava Pedro Bala, estendido na areia. A lua amarelava o areal, as estrelas se refletiam no mar azul da Bahia.Ela veio, deitou ao lado dele. E começaram a falar de coisas tolas. Igual a uma noiva. Não se beijaram, não se abraçaram, o sexo não os chamava naquele momento.Só de leve o loiro cabelo dela tocava em Pedro Bala.
- Tu tem um cabelo bonito... - disse ele.
Ela riu, olhou o cabelo dele:
- O teu também.
Riram os dois e logo foi uma gargalhada. Era um hábito dos Capitães da Areia. Ela começou a contar coisas do morro, histórias dos vizinhos, ele relembrava fatos da vida agitada do grupo:
- Vim pra rua com cinco anos. Menor que teu irmão...
Riam inocentemente, felizes de estarem um ao lado do outro. Depois o sono veio. Estavam separados, Pedro tomou a mão dela, segurou. Dormiram como dois irmãos.
Capítulo 15 - Reformatório
O Jornal da Tarde trouxe a notícia em grandes títulos.
Uma manchete ia de lado a lado na primeira página:
Preso o chefe dos "Capitães da Areia"
Depois vinham os títulos que estavam em cima de um clichê, onde se viam Pedro Bala, Dora, João Grande, Sem-Pernas e Gato cercados de guardas e investigadores:
Uma menina no grupo - A sua história - Recolhida a um orfanato - O chefe dos "Capitães da Areia" é filho de um grevista - Os outros conseguem fugir - "O reformatório o endireitará", nos afirma o diretor.
Sob o clichê vinha esta legenda: Após ser batida esta chapa o chefe dos peraltas armou uma discussão e um barulho que deu lugar a que os demais moleques presos pudessem fugir. O chefe é o que está marcado contra cruz e ao seu lado vê-se Dora, a nova gigolete dos moleques baianos.
Vinha a notícia:
Ontem a polícia baiana lavrou um tento. Conseguiu prender o chefe do grupo de menores delinquentes conhecidos pelo nome de "Capitães da Areia". Por mais de uma vez este jornal tratou do problema dos menores que viviam nas ruas e da cidade dedicados ao furto.
Por várias vezes também noticiamos os assaltos levados a efeito por este mesmo grupo. Realmente a cidade vivia sob o temor constante destes meninos, que ninguém sabia onde moravam, cujo chefe ninguém conhecia. Há alguns meses tivemos ocasião de publicar cartas do doutor Chefe de Polícia, do doutor Juiz de Menores e do diretor do Reformatório Baiano sobre este problema. Todos eles prometiam incentivar a campanha contra os menores delinquentes e em particular contra os "Capitães da Areia".
Esta campanha tão meritória deu os seus primeiros frutos ontem com a prisão do chefe desta malta e de vários do grupo, inclusive uma menina. Infelizmente, devido a uma sagaz burla de Pedro Bala, o chefe, os demais conseguiram escapar de entre as mãos dos guardas. Em todo caso, a polícia já conseguiu muito prendendo o chefe e a romântica inspiradora dos roubos: Dora, uma figura interessantíssima de menor delinquente. Feitos estes comentários, narremos os fatos:
A tentativa de furto
Ontem, às últimas horas da tarde, cinco meninos e uma menina penetraram no palacete do doutor Alcebíades Menezes, na ladeira de São Bento. Foram porém pressentidos pelo filho do dono da casa, estudante de medicina, que deixou que eles penetrassem num quarto, onde os trancou. Chamou então os guardas e investigadores, a quem os entregou.
A reportagem do "Jornal da Tarde", informada do fato, partiu para a casa do doutor Alcebíades. Lá chegando, encontrou os menores que eram levados à chefia de polícia.Pedimos então para tirar um retrato do grupo· A polícia muito gentilmente consentiu. Pois no momento em que o fotógrafo acabava de fazer funcionar o magnésio e batera chapa, Pedro Bala, o temível chefe dos "Capitães da Areia", facilitou a evasão.
Evasão
Pondo em prática uma agilidade incomum Pedro Bala se livrou dos braços do investigador que o segurava e com um golpe de capoeira o derrubou. No entanto não fugiu.É claro que os demais guardas e investigadores se precipitaram em cima dele para impedir a sua fuga. Só então foi possível compreender o plano do chefe dos "Capitães da Areia" pois este gritou para os companheiros presos.
- Arriba, pessoal.
Um único guarda ficara a tomar conta dos outros, e um deles, muito ágil, o derrubou também com um golpe de capoeira. E desabaram para a ladeira da Montanha.
Na polícia
Na chefia de polícia quisemos ouvir Pedro Bala. Mas ele nada nos disse, como tampouco quis declarar às autoridades o lugar onde dormiam e guardavam seus furtos os "Capitães da Areia". Só declarou seu nome, disse que era filho de um antigo grevista que foi morto num "meeting" na célebre greve das docas de 191... que não tinha ninguém no mundo. Quanto a Dora, é filha de uma lavadeira que morreu de varíola quando da epidemia que alastrou a cidade. Não faz senão quatro meses que está entre os "Capitães da Areia", mas já tomou parte em muitos assaltos. E parece ter uma grande honra nisso.
Noivos
Dora declarou à nossa reportagem que era noiva de Pedro Bala e que iam se casar. É uma menina ainda ingênua, mais digna de piedade que de castigo. Fala no seu noivado com maior das ingenuidades. Não tem mais de quatorze anos, enquanto Pedro Bala anda pelos seus dezesseis. Dora foi leva da ao Orfanato Nossa Senhora da Piedade.Neste santo ambiente não tardará a esquecer Pedro Bala, o romântico noivo-bandido, e a sua vida criminosa entre os "Capitães da Areia".
Quanto a Pedro Bala, será recolhido ao Reformatório de Menores logo que a polícia consiga que ele declare qual o local onde se esconde o grupo. A polícia tem grandes esperanças de consegui-lo ainda hoje.
Ouvindo o diretor no reformatório
O diretor do Reformatório Baiano de Menores Abandonados e Delinquentes é um velho amigo do "Jornal da Tarde". Certa vez uma reportagem nossa desfez um círculo de calúnias jogada contra aquele estabelecimento de educação e seu diretor.Hoje ele se achava na polícia esperando poder levar consigo o menor Pedro Bala. A uma pergunta nossa, respondeu.
- Ele se regenerará. Veja o título da casa que dirijo: "Reformatório". Ele se reformará.
E a outra pergunta nossa, sorriu:
- Fugir? Não é fácil fugir do Reformatório. Posso lhe garantir que não o fará.
Professor, à noite, leu a notícia para todos. Sem-Pernas disse.
- Ele já tá no reformatório. Eu vi quando saiu da polícia.
- E ela no orfanato... - completou João Grande.
- A gente livra eles - afirmou Professor. Depois virou-se para o Sem-Pernas. - Até Pedro Bala chegar tu fica como chefe, Sem-Pernas.
João Grande estendeu os braços para os outros, falou:
- Gentes, até Bala voltar Sem-Pernas é o chefe...
Sem-Pernas disse:
- Ele ficou pra livrar a gente. É preciso que a gente livre ele. Não direito?
Todos estavam decididos.
Quando o levaram para aquela sala Pedro Bala calculava o que o esperava. Não veio nenhum guarda. Vieram dois soldados de polícia, um investigador, o diretor do reformatório. Fecharam a sala. O investigador disse numa voz risonha:
- Agora os jornalistas já foram, moleque. Tu agora vai dizer que sabe queira ou não queira.
O diretor do reformatório riu:
- Ora, se diz...
O investigador perguntou:
- Onde é que vocês dormem?
Pedro Bala o olhou com ódio:
- Se tá pensando que eu vou dizer...
- Se vai...
- Pode esperar deitado.
Virou as costas. O investigador fez um sinal para os soldados. Pedro Bala sentiu duas chicotadas de uma vez. E o pé do investigador na sua cara. Rolou no chão, xingando.
- Ainda não vai dizer? - perguntou o diretor do reformatório. - Isso é só o começo.
- Não foi tudo o que Pedro Bala disse.
Agora davam-lhe de todos os lados. Chibatadas, socos pontapés. O diretor do reformatório levantou-se, sentou-lhe o pé Pedro Bala caiu do outro lado da sala. Nem se levantou. Os soldados vibraram os chicotes. Ele via João Grande, Professor, Volta Seca, Sem-Pernas, o Gato. Todos dependiam dele. A segurança de todos dependia da coragem dele. Ele era o chefe, não podia trair. Lembrou-se da cena da tarde. Conseguira dar fuga aos outros, apesar de estar preso também. O orgulho encheu seu peito. Não falaria, fugiria do reformatório, libertaria Dora. E se vingaria... Se vingaria...
Grita de dor. Mas não sai uma palavra dos seus lábios. Vai te fazendo noite para ele. Agora já não sente dores, já não sente nada. No entanto, os soldados ainda o surram, o investigador o soqueia. Mas e não sente mais nada.
- Desmaiou - diz o investigador.
- Deixe ele por minha conta - explica o diretor do reformatório. - Eu levo ele pro reformatório, lá ele abre a boca. Garanto. E eu dou o aviso a vocês.
O investigador assentiu. Com a promessa de no dia seguinte mandar buscar Pedro Bala, o diretor retirou-se.
Na madrugada, quando Pedro acordou, os presos cantavam. Era uma moda triste. Falava do sol que havia nas ruas, em quanto é grande e bela a liberdade.
O bedel Ranulfo, que o tinha ido buscar na polícia, o levou à presença do diretor. Pedro Bala sentia o corpo todo doer das pancadas do dia anterior. Mas ia satisfeito, porque nada tinha dito, porque não revelara o lugar onde os Capitães da Areia viviam. Lembram-se da canção que os presos cantavam na madrugada que nascia. Dizia que a liberdade é o bem maior do mundo. Que nas ruas havia sol e luz e nas células havia uma eterna escuridão porque ali a liberdade era desconhecida. Liberdade.João de Adão, que estava nas ruas, sob o sol, falava nela também. Dizia que não era só por salários que fizera aquelas greves nas docas e faria outras. Era pela liberdade que os doqueiros tinham pouca. Pela liberdade o pai de Pedro Bala morrera.n Pela liberdade - pensava Pedro - dos seus amigos, ele apanhara uma surra na polícia. Agora seu corpo estava mole e dolorido, seus ouvidos cheios da moda que os presos cantavam. Lá fora, dizia a velha canção, é o sol, a liberdade e a vida.Pela janela Pedro Bala vt o sol. A estrada passa adiante dó grande portão do reformatório. Aqui dentro é como se fosse uma eterna escuridão. Lá fora é a liberdade e a vida. E a vingança, pensa Pedro Bala.
O diretor entra. O bedel Ranulfo o cumprimenta e mostra Bala. O diretor sorri, esfrega as mãos uma na outra, senta ante uma alta secretária. Olha Pedro Bala uns minutos:
- Afinal... Faz bastante tempo que espero este pássaro, Ranulfo.
O bedel sorri aprovando as palavras do diretor.
- É o chefe dos tais de Capitães da Areia. Veja... O tipo do criminoso nato. É verdade que você não leu Lombroso... Mas se lesse, conheceria. Traz todos os estigmas do crime na face. Com esta idade já tem uma cicatriz. Espie os olhos... Não pode ser tratado como um qualquer. Vamos lhe dar honras especiais...
Pedro Bala o espia com os olhos injetados. Sente cansaço, uma vontade doida de dormir. Bedel Ranulfo aventura uma pergunta:
- Levo pra junto dos outros?
- O quê? Não. Para começar, meta-o na cafua. Vamos ver se ele sai um pouco mais regenerado de lá...
O bedel cumprimenta e vai saindo com Pedro Bala. O diretor ainda recomenda:
- Regime número 3.
- Água e feijão... - murmura Ranulfo. Dá uma espiada em Pedro Bala, balança a cabeça. - Vai sair bem mais magro.
Lá fora é a liberdade e o sol. A cadeia, os presos na cadeia, a surra ensinaram a Pedro Bala que a liberdade é o bem maior do mundo.
Agora sabe que não foi apenas para que sua história fosse contada no cais, no Mercado, na Porta do Mar, que seu pai morrera pela liberdade. A liberdade é como o sol. É o bem maior do mundo.
Ouviu o bedel Ranulfo fechar o cadeado por fora. Fora atirado dentro da cafua. Era um pequeno quarto, por baixo da escada, onde não se podia estar em pé, porque não havia altura, nem tampouco estar deitado ao comprido, porque não havia comprimento. Ou ficava sentado, ou deitado com as pernas voltadas para o corpo numa posição mais que incômoda. Assim mesmo Pedro Bala se deitou. Seu corpo dava uma volta e seu primeiro pensamento era que a cafua só servia para o homem-cobra que vira, certa vez, no circo. Era totalmente cerrado o quarto, a escuridão era completa. O ar entrava pelas frestas finas e raras dos degraus da escada. Pedro Bala, deitado como estava, não podia fazer o menor movimento. Por todos os lados as paredes o impediam. Seus membros doíam, ele tinha uma vontade doida de esticar as pernas. Seu rosto estava cheio de equimoses das pancadas na polícia, e desta vez Dora não estava ali para trazer um pano frio e cuidar do seu rosto ferido. A liberdade era Dora também.Não era só o sol, andar livre nas ruas, rir no cais a grande gargalhada dos Capitães da Areia. Era também sentir junto a si o cabelo loiro de Dora, ouvir ela contar coisas do morro, sentir os lábios dela sobre os seus lábios feridos. Noiva. Também ela estava sem liberdade. Os membros de Pedro Bala doem e agora dói sua cabeça também. Dora está como ele, sem sol, sem liberdade. Foi levada para um orfanato. Noiva. Antes que ela aparecesse ele nunca pensara nesta palavra: noiva. Gostava de derrubar negrinhas no areal. De encostar peito com peito, cabeça com cabeça, pernas com pernas, sexo com sexo. Mas nunca pensara em deitar na areia ao lado de uma menina, menina como ele, e conversar de coisas tolas e correr picula como os outros meninos, sem a derrubar para fazer o amor. Era outra maneira do amor, pensava numa confusão. Ele nunca tivera uma ideia perfeita do amor. Que era ele, senão uma criança abandonada nas ruas, que pela força e agilidade e coragem conseguira chefiar o grupo mais valente de meninos abandonados, os Capitães da Areia? Que podia saber de amor? Sempre pensara que o amor fosse o momento gostoso em que uma negrinha ou uma mulata gemia sob seu corpo no areal do cais. Isto cedo aprendeu, quando não tinha ainda 13 anos. Isto sabiam todos os Capitães da Areia, mesmo os mais pequenos, aqueles que ainda não tinham forças para derrubar uma cabrocha. Mas já o sabiam, e pensavam com alegria no dia em que o fariam. Os membros e a cabeça de Pedro Bala doem. Tem sede, ainda não bebeu nem comeu neste dia. Com Dora foi diferente. Logo que ela chegou, tanto ele como todos os que estavam no trapiche pensaram em a derrubar, em a possuir, em praticar com ela, que era bonita, o único amor de que tinham notícia. Mas como era apenas uma menina, eles a tinham respeitado. Depois ela foi como uma mãe para todos. E como uma irmã também, João Grande dizia certo. Mas para ele desde o primeiro momento fora diferente. Fora também uma companheira de brinquedos como para os demais, irmã querida. Mas fora também uma alegria diversa da que dá uma irmã. Noiva. Gostaria, sim. Mesmo quando quer negar a si próprio não pode. É verdade que nada faz para isso, que se contenta de conversar com ela, de ouvir a sua voz, pegar timidamente na sua mão. Mas gostaria de possuí-la também, de vê-la gemer de amor. Não, porém, por uma noite. Por todas as noites de toda uma vida. Como outros têm esposa, esposa que é mãe, irmã e amiga. Ela era mãe, irmã e amigados Capitães da Areia. Para Pedro Bala é noiva, um dia será esposa. Não a podem ter num orfanato como uma menina sem ninguém. Ela tem um noivo, uma legião de irmãos e de filhos de quem cuidar. O cansaço desaparece dos membros de Pedro Bala. Ele precisa de movimento, de andar, de correr, para poder conceber um plano para livrar Dora. Ali naquela escuridão é que não pode. Fica inútil pensando que ela está talvez numa cafua também. Senta-se como pode. Ratos correm na cafua. Mas ele está por demais acostumado com os ratos, não liga. Mas Dora terá medo deste ruído contínuo. É de enlouquecer um que não seja o chefe dos Capitães Areia. Quanto mais uma menina... É verdade que Dora é a menina valente de quantas mulheres já nasceram na Bahia, que é a terra das mulheres valentes. Mais valente mesmo que Rosa Palmeirão, que deu em seis soldados, que Maria Cabaçu, que não respeitava cara, que a companheira de Lampião, que maneja um fuzil igual a um cangaceiro. Mais valente porque é apenas uma menina, apenas está começando a viver. Pedro Bala sorri com orgulho, apesar das dores, do cansaço, sede que aos poucos o aperta. Como seria bom um copo d'água! Diante do areal do trapiche é o mar, um nunca acabar de água. Mar que o Querido-de-Deus, o grande capoeirista, corta com seu saveiro para as pescarias nos mares do Sul. O Querido-de-Deus é um bom sujeito. Se Pedro Bala não houvesse aprendido com ele o jogo capoeira de Angola, a luta mais bonita do mundo, porque é também uma dança, não teria podido dar fuga a João Grande, Gato e Sem-Pernas. Agora ali, na cafua, sem poder se mexer, a capoeira não vai lhe servir de nada. Gostaria era de beber água. Será que Dora também tem sede a estas horas? Deve estar também numa cafua, Pedro Bala imagina o orfanato igualzinho ao reformatório. A sede é pior que uma cobra cascavel. Faz mais medo que a bexiga. Porque vai apertando a garganta de um, vai fazendo os pensamentos confusos. Um pouco de água. Um pouco de luz também. Porque se houver um pouco de luz talvez ele veja o rosto de Dora risonho. Assim na escuridão ele o vê cheio de sofrimento, cheio de dor. Uma raiva surda, impotente, cresce dentro dele. Levanta-se um pouco, a cabeça encosta nos degraus escada que lhe serve de teto. Esmurra a porta da cafua. Mas parece que lá fora não tem ninguém que o ouça. Vê a cara malvada do diretor. Enterrará seu punhal até o mais fundo do coração do diretor. Sem que sua mão trema, sem remorsos, gozando. Seu punhal ficou na polícia. Mas Volta Seca lhe dará o seu, ele tem uma pistola.Volta Seca quer ir para o bando de Lampião, que é seu padrinho. Lampião mata soldado, mata homem ruim. Pedro Bala neste momento ama Lampião como a um seu herói, a um seu vingador. É o braço armado dos pobres no sertão. Um dia ele poderá ser do grupo de Lampião também. E quem sabe se não poderiam invadir a cidade da Bahia, abrir a cabeça do diretor do reformatório? Que cara ele não faria quando visse Pedro Bala entrar no reformatório na frente de uns cangaceiros... Soltaria a garrafa de pinga, presente de um amigo de Santo Amaro, e Pedro Bala lhe abriria a cabeça. Não. Antes o deixaria naquela mesma cafua, sem ter o que comer, sem ter o que beber. Sede... A sede o maltrata. Faz com que ele veja na escuridão da parede o rosto triste e doloroso de Dora. Aquela certeza de que ela está sofrendo... Fecha os olhos. Procura pensar em Professor, Volta Seca, João Grande, Gato, Sem-Pernas, Boa-Vida, todos os do trapiche salvando Dora. Mas não pode. Mesmo de olhos fechados vê o rosto dela, amargurado pela sede. Esmurra a porta novamente.
Grita, xinga nomes. Ninguém o atende, ninguém o vê, ninguém o ouve. Assim deve ser o inferno. Pirulito tem razão de ter medo do inferno. É por demais terrível.Sofrer sede e escuridão. A canção dos presos dizia que lá fora é a liberdade e o sol. E também a água, os rios correndo muito alvos sobre pedras, as cascatas caindo, o grande mar misterioso. Professor, que sabe muitas coisas, porque à noite lê livros furtados, à luz de uma vela (está comendo os olhos...) lhe disse certa vez que tem mais água no mundo que terra. Tinha lido num livro. Mas nem um pingo de água na sua cafua. Na de Dora não deve ter também. Para que esmurrar a porta como o faz neste momento? Ninguém o atende, suas mãos já doem. Na véspera o surraram na polícia. Suas costas estão negras, seu peito ferido, o rosto inchado. Por isso o diretor disse que ele tinha cara de criminoso. Não tem, não. Ele quer é liberdade. Um dia um velho disse que não se mudava o destino de ninguém. João de Adão disseque se mudava, sim, ele acreditara em João de Adão. Seu pai morrera para mudar o destino dos doqueiros. Quando ele sair, irá ser doqueiro também, lutar pela liberdade, pelo sol, por água e de comer para todos. Cospe um cuspe grosso. A sede aperta sua garganta. Pirulito quer ser padre para fugir daquele inferno. Padre José Pedro sabia que o reformatório era assim, falava contra meterem os meninos lá. Mas que podia um pobre padre sem paróquia contra todos? Porque todos odeiam os meninos pobres, pensa Pedro Bala. Quando sair, pedirá à mãe de santo Don'Aninha que faça um feitiço forte para matar o diretor. Ela tem força com Ogum, e ele uma vez tirara Ogum da polícia. Fizera muita coisa para a sua idade. Dora também fizera muita coisa naqueles meses entre eles. Agora passavam sede, Pedro Bala esmurra inutilmente uma porta. A sede o rói por dentro como uma legião de ratos.Cai enrodilhado no chão e o cansaço o vence. Apesar da sede, dorme. Mas tem sonhos terríveis, ratos roem o rosto belo de Dora.
Acorda porque alguém bate pancadas leves num dos degraus da escada. Levanta-se curvado, não pode ficar de pé direito, que a escada não consente. Pergunta em voz baixa:
- Tem alguém aí?
Uma alegria doida o invade quando respondem:
- Quem é que tá aí?
- Pedro Bala.
- Tu é o chefe dos Capitães da Areia?
- Sou.
Ouve um assovio. A voz continua, agora rápida:
- Tenho um recado pra você, um trouxe hoje..
- Solta logo...
- Agora vem gente. Depois volto.
Pedro Bala ouve os passos que se afastam. Mas está mais alegre.
Pensa em seguida que o recado é de Dora, mas vê que é uma tolice pensar isso. Como Dora havia de lhe enviar um recado? Deve ser um do grupo. Devem estar tratando de tirá-lo dali. Mas primeiro é preciso que ele saia da cafua. Enquanto ele estiver ali, os Capitães da Areia não poderão fazer nada. Depois que ele estiver andando no reformatório todo, aí a fuga será fácil. Pedro Bala senta-se para pensar. Que hora serão, que dia será? Ali é sempre noite, nunca brilha a luz do sol. Espera impaciente que o seu informante volte. Porém este demora, ele se agita. Que estarão fazendo os outros sem ele? Professor conceberá algum plano para o tirarem dali.Mas enquanto ele estive na cafua é inútil. E enquanto não o tirarem, ele não poderá tirar Dora do orfanato. Abrem a porta. Pedro Bala se atira para a frente, pensando que o vão soltar. Uma mão o empurra: - Ei, calma...
Vê o bedel Ranulfo na porta. Traz um caneco com água, que Pedro Bala arranca das suas mãos e bebe em grandes goles. Mas é tão pouca... Não chega para matar a sede.O bedel lhe entrega um prato de barro com uma água onde boiam alguns caroços de feijão. Pedro Bala pede:
- Pode me dar um pouco mais de água?
- Amanhã... - ri o bedel.
- Só um pouco mais.
- Amanhã tem mais. E se você continuar a bater na porta e gritar em vez de 8 passa 15 dias - empurra a porta na cara de Pedro Bala.
Ouve a chave que o tranca. Tateia na escuridão até encontrar o prato. Bebe a água escura do feijão. Nem repara que é salgadíssima. Depois come os grãos duros.Mas a sede o ataca novamente. O feijão muito salgado ativa a sede. O que é um caneco de água para aquela sede que exigia uma moringa? Deita. Já não pensa em nada.Passam-se horas. Ele apenas vê na escuridão o rosto triste de Dora. E sente dores no corpo todo.
Muito mais tarde ouve novamente baterem na escada. Pergunta:
- Tá aí?
- Um capenga mandou dizer que vão te tirar daqui. Logo que tu saia da cafua...
- Já é de noite? - pergunta Pedro.
- Tá começando...
- Tou morto de sede.
A voz não responde. Pedro pensa com desespero que é capaz do menino ter ido embora. No entanto, ele não ouviu passos na escada...
Mas volta a voz:
- Água não posso. Não tem como passar. Mas quer um cigarro?
- Quero, sim.
- Então espera.
Minutos depois as pancadas soam muito de leve na porta. A vi por debaixo da porta:
- Vou passar o cigarro por aqui. Ponha as mãos embaixo, bem no meio da greta da porta.
Pedro Bala faz o que lhe mandam. Um cigarro amassado chega às suas mãos. Ele acaba de o retirar de sob a porta. Logo depois é um fósforo que vem sobre um pedaço de caixa, o pedaço onde se risca.
- Obrigado diz Pedro Bala.
Mas neste momento ouve um barulho lá fora. O som de uma bofetada, um corpo que rola. E uma voz que ele não conhece fala:
- Se tentar se comunicar com os de fora, seu castigo será aumentado.
Pedro se encolhe. Agora um vai sofrer castigo por causa dele. Quando fugir, levará aquele para os Capitães da Areia. Para o sol e liberdade. Acende o cigarro.Com muito cuidado para não perder fósforo que é o único. Esconde a brasa do cigarro sob a mão para que ninguém o possa ver pelas frestas da escada. O silêncio o envolve de novo, e com o silêncio os pensamentos, as visões.
Quando termina de fumar, se enrodilha no chão. Se pudesse dormir... Pelo menos não veria o rosto cheio de sofrimento de Dora.
Quantas horas? Quantos dias? A escuridão é sempre a mesma, a sede é sempre igual. Já lhe trouxeram água e feijão três vezes. Aprendeu a não beber caldo de feijão, que aumenta a sede. Agora está muito mais fraco, um desânimo no corpo todo. O barril onde defeca exala um cheiro horrível. Não o retiraram ainda. E sua barriga dói, sofre horrores para defecar. É como se as tripas fossem sair. As pernas não o ajudam. O que o mantém em pé é o ódio que enche seu coração.
- Filhos da mãe... Desgraçados...
É tudo quanto consegue dizer. Assim mesmo, em voz baixa. Já não tem forças para gritar, para esmurrar a porta. Agora está certo de que morrerá ali. Cada vez sofre maiores dores para defecar. Vê Dora estendida no chão, morrendo de sede, chamando por ele. João Grande está do lado dela, mas separado por grades. Professore Pirulito choram.
Trouxeram-lhe água e feijão pela quarta vez. Ele bebe a água, mas demora a comer o feijão. Só sabe dizer em voz baixa:
- Filhos da mãe... Filhos da mãe...
Antes que a comida se poderia chamar aquilo de comida? chegasse naquele dia para Pedro era sempre noite, a voz voltou a chamá-lo na escada. Ele perguntou, sem se levantar sequer:
- Quantos dias já tem que tou aqui?
- Cinco.
- Me dá outro cigarro.
O cigarro o reanima um pouco. Pode pensar que com mais cinco dias morrerá. Aquilo é castigo para um homem, não para um menino. O ódio não cresce mais em seu coração.Já atingiu o máximo.
É sempre noite. Dora morre lentamente ante suas vistas. João Grande ao seu lado, as grades separando. Professor e Pirulito choram. Ele dorme ou está acordado? A barriga dói violentamente.
Quanto tempo durará ainda a escuridão? E a agonia de Dora? O cheiro do barril é insuportável. Dora agoniza ante seus olhos. Será que ele agoniza também?
A cara do diretor aparece ao lado do rosto de Dora. Vem torturar sua agonia ainda mais? Quanto tempo ela leva para morrer... Pedro Bala pede que ela morra logo, logo... Será melhor. Agora o direto veio, veio para aumentar a tortura. Ouve a voz dele:
- Levanta... - e um pé o toca.
Abre mais os olhos. Agora não vê mais Dora. Só a cara do diretor que sorri:
- Vamos ver se agora fica mais manso.
Não pode fitar a claridade que entra pelas janelas. Mal se agüenta nas pernas. Cai no meio do corredor. Dora teria morrido ou não? - pensa ao cair.
Está novamente na sala do diretor. Este o olha sorridente:
- Gostou do apartamento? Continua com muita vontade de roubar? Eu sei ensinar, quebrar moleque aqui.
Pedro Bala está irreconhecível de tão magro. Os ossos aparecem junto à pele. O rosto, verdoso da complicação intestinal. O bedel Fausto, dono daquela voz que ele ouvira certa vez na porta da cafua, está ao seu lado. E um tipo forte, tem fama de ser tão malvado quanto o diretor. Pergunta:
- Na oficina de ferreiro?
- Acho que é melhor na plantação de cana. Lavrar terra... - ri. Fausto diz que está bem, o diretor recomenda:
- Olho nele. Este é um pássaro ruim. Mas eu te ensino...
Pedro Bala sustenta seu olhar. O bedel o empurra.
Agora vê detidamente o casarão. No meio do pátio o cabeleireiro raspa a sua cabeça a zero. Vê a cabeleira loira rolar no chão. Dão-lhe umas calças e paletó de mescla azul. Veste-se ali mesmo. O bedel leva o a uma oficina de ferreiro:
- Tem um facão? E uma foice?
Entrega os objetos a Pedro Bala. Marcham para o canavial, onde outros meninos trabalham. Neste dia, de tão fraco, Pedro Bala mal sustém o facão. Por isso os bedéis o soqueiam. Ele nada diz.
À noite, na fila, olha para todos, querendo descobrir aquele que lhe falava e dava cigarros. Sobem as escadas, andam para o dormitório, que fica no terceiro andar para impedir qualquer ideia de fuga. A porta é fechada. O bedel Fausto diz:
- Graça, puxe a reza.
Um menino avermelhado faz o pelo-sinal. Todos repetem as palavras e os gestos. Depois é um padre-nosso e uma ave-maria, ditas com voz forte apesar do cansaço. Pedro se joga na cama. Uma coberta suja o espera. Mudam a roupa de cama de 15 em 15 dias. E a roupa de cama é apenas uma coberta e uma fronha para um travesseiro de pedra.
Já está dormindo quando alguém toca no seu ombro.
- Tu que é Pedro Bala, não é?
- Sim.
- Fui eu que trouxe o recado.
Pedro olha o mulato que está a seu lado. Pode ter dez anos:
- Eles têm voltado?
- Todo santo dia. Só quer saber quando tu sai da cafua.
- Diz que eu tou no canavial...
- Tu não quer comer um sacana hoje? Tem uns aqui, a gente de noite...
Tou morto de sono... Quanto tempo levei?
- Oito dias. Já morreu um ali.
O menino vai embora. Pedro nem perguntou seu nome. Tudo o que quer é dormir. Mas os que andam para as camas dos pederastas fazem ruído. O bedel Fausto sai do seu quarto de tabiques:
- Que barulho é esse?
Silêncio. Ele bate as mãos:
- Todos de pé.
Fita a todos:
- Ninguém sabe?
Silêncio. O bedel esfrega os olhos, anda entre as camas. Um enorme relógio dá dez horas na parede.
- Ninguém diz?
Silêncio. O bedel range os dentes:
- Então ficarão todos uma hora de pé... Até as onze. E o primeiro que tentar deitar vai pra cafua. Agora está desocupada...
Uma voz de menino corta o silêncio:
- Seu bedel...
É um pequeno, meio amarelento.
- Fale, Henrique.
- Eu sei...
Os olhos todos estão fitos nele. Fausto anima a delação:
- Diga o que sabe.
- Foi Jeremias, que ia pra cama de Berto fazer coisa feia.
- Seu Jeremias, seu Berto!
Os dois saem das suas camas.
- De pé na porta. Até meia-noite. Os outros podem deitar - olha mais uma vez a todos. Os castigados estão de pé na porta.
Quando o bedel se recolhe, Jeremias ameaça Henrique. Os outros comentam. Pedro Bala dorme.
No refeitório, enquanto bebiam o café aguado e mastigavam o bolachão duro, seu vizinho de mesa fala:
- Tu é o chefe dos Capitães da Areia? - sua voz é baixíssima.
- Sou, sim.
- Vi teu retrato no jornal... Tu é um macho! Mas te acabaram - olha o rosto magro de Bala.
Mastiga o bolachão. Continua:
- Tu vai ficar aqui?
- Vou arribar...
- Eu também. Tenho um plano... Quando eu bater asa, posso ir pra teu grupo?
- Pode.
- Onde fica o buraco?
Pedro Bala olha com desconfiança:
- Tu encontra a gente no Campo Grande toda tarde - Pensa que vou dizer?
O bedel Campos bate as mãos Todos se levantam. Dirigem-se para as diversas oficinas ou para os terrenos cultivados.
Pelo meio da tarde Pedro Bala vê o Sem-Pernas que passa na estrada. Vê também um bedel que o tange.
Castigos... Castigos... É a palavra que Pedro Bala mais ouve no reformatório. Por qualquer coisa são espancados, por um nada são castigados. O ódio se acumula dentro de todos eles.
No extremo do canavial passa um bilhete a Sem-Pernas. No outro dia encontra a corda entre as moitas de cana. Com certeza a puseram durante a noite. É um rolo de corda fina e resistente. Está novinha. No meio dela o punhal que Pedro mete nas calças. A dificuldade é levar o rolo para o dormitório. Fugir durante o dia é impossível, com a vigilância dos bedéis. Não pode levar o rolo entre a roupa, que notariam.
De repente surge uma briga. Jeremias se joga sobre o bedel Fausto com o facão na mão. Outros meninos se atiram também, mas vem um grupo de bedéis armados de chicotes.Estão sujeitando Jeremias.
Pedro mete o rolo de corda debaixo do paletó, abre para o dormitório. Um bedel vem descendo a escada com um revólver na mão. Pedro se esconde atrás de uma porta.O bedel vem rápido, passa.
Empurra a corda para baixo do colchão, volta para o canavial. Jeremias foi levado para a cafua. Os bedéis agora juntam os meninos. Ranulfo e Campos foram em perseguição de Agostinho, que pulou a cerca na confusão da briga. O bedel Fausto, com um talho no ombro, foi para a enfermaria. O diretor está entre eles, os olhos fuzilando de raiva. Um bedel conta os meninos. Pergunta a Pedro Bala:
- Onde estava metido?
- Saí pra não me meter no barulho.
O bedel o olha desconfiado, mas passa.
Voltam Ranulfo e Campos com Agostinho. O fujão é surrado na vista de todos. Depois o diretor diz:
- Metam-no na cafua.
- Já está Jeremias - fala Ranulfo.
- Ficam os dois. Assim podem conversar...
Pedro Bala se arrepia. Como irão ficar dois na pequenez da cafua?
Nesta noite a vigilância é grande, ele não tenta nada. Os meninos rangem os dentes de raiva.
Duas noites depois, quando o bedel Fausto já tinha se recolhido há muito ao seu quarto de tabiques e quando todos dormiam, Pedro Bala se levantou, tirou a corda de sob o colchão. Sua cama ficava junto a uma janela. Abriu. Amarrou a corda num dos armadores de rede que existiam na parede. Deixou que a corda caísse pela janela.Era curta. Faltava ainda muito. Recolheu. Procurava fazer o menor barulho possível, mas assim mesmo um dos seus vizinhos de cama acordou:
- Tu vai bater asa?
Aquele não tinha boa fama. Costumava delatar. Por isso mesmo fora colocado ao lado de Pedro Bala. Bala puxou o punhal, mostrou a ele.
- Olha, xereta, trata de dormir. Se tu piar, eu te abro a garganta, palavra de Pedro Bala. E se tu disser alguma coisa depois que eu sair... Tu já viu falar nos Capitães da Areia?
- Já.
- Pois eles me vinga.
Põe o punhal ao alcance da mão. Recolhe completamente a corda, amarra o lençol na ponta com um daqueles nós que o Querido-de-Deus lhe ensinou. Ameaça mais uma vez o menino, joga a corda, passa o corpo pela janela, começa a descida. Ainda no meio ouve os gritos denunciadores do delator. Se deixa escorregar pela corda, salta ao chão. O pulo é grande, mas ele já salta correndo. Pula a cerca, após evitar os cachorros policiais que estão soltos. Desaba pela estrada. Tem alguns minutos de vantagem. O tempo dos bedéis se vestirem e saírem em sua perseguição e soltarem os cachorros também. Pedro Bala prende o punhal nos dentes, tira a roupa. Assim os cachorros não o conhecerão pelo faro. E nu, na madrugada fria, inicia a carreira para o sol, para a liberdade.
Professor lê a manchete do Jornal da Tarde:
O chefe dos "Capitães da Areia" consegue fugir do reformatório
Trazia uma longa entrevista com o diretor furioso. Todo o trapiche ri. Até o padre José Pedro, que está com eles, ri em gargalhadas, como se fosse um dos Capitães da Areia.
Capítulo 16 - Orfanato
Um mês de orfanato bastou para matar a alegria e a saúde de Dora. Nascera no morro, infância em correrias no morro. Depois a liberdade das ruas da cidade, a vida aventurosa dos Capitães da Areia. Não era uma flor de estufa. Amava o sol, a rua, a liberdade.
Fizeram duas tranças do seu cabelo, amarraram com fitas. Fitas cor-de-rosa. Deram-lhe um vestido de pano azul, um avental de um azul mais escuro. Faziam com que ela ouvisse aulas junto com meninas de cinco e seis anos. A comida era má, havia castigo também.
Ficar em jejum, perder os recreios. Veio uma febre, ela esteve na enfermaria. Quando voltou estava macilenta. Tinha sempre febre, mas não dizia nada, porque odiava o silêncio da enfermaria, onde o sol não entrava e das as horas pareciam a hora agonizante do crepúsculo. Quando podia, chegava perto das grades, porque por vezes divisava Professor ou João Grande que rondavam por ali. Um dia lhe passaram um bilhete. Pedro Bala fugira do reformatório. Viria tirá-la dali. Nem sentiu a febre em que estava.
A visaram por intermédio de outro bilhete, que Professor escreveu e lhe jogou, que ela arranjasse um meio de ir para a enfermaria. Mas nem foi preciso, porque uma irmã notou o avermelhado das suas faces. Pôs a mão no seu rosto:
- Estás queimando de febre.
Era sempre crepúsculo na enfermaria. Era como uma antessala do túmulo, com as pesadas cortinas que impediam a luz de entrar. O médico que a vira balançara a cabeça com tristeza.
Mas a luz entrou com eles. Como Pedro Bala estava magro, pensou Dora ao se pôr ao seu lado. João Grande, Gato, Professor, estavam com ele. Professor mostrou anavalha à Irmã, que abafou um grito. A menina que estava com catapora na outra cama tremia sob os lençóis. Dora queimava de febre, mal podia estar de pé. A Irmã murmurou:
- Ela está muito doente...
Dora respondeu:
- Eu vou, Pedro.
Saíram pela porta. Volta Seca tinha o grande cachorro preso pela coleira. Tinham trazido um pedaço de carne. Gato abriu o portão. Na rua disse:
- Foi canja...
Professor avisou:
- Vamos embora antes que alarmem.
Se atiraram por uma ladeira. Dora nem sentia a febre porque ia junto com Pedro Bala, ele pegando na sua mão.
Volta Seca fechava a marcha, a mão no punhal, um sorriso no rosto sombrio.
Capítulo 17 - Noite de Grande Paz
Os Capitães da Areia olham mãezinha Dora, a irmãzinha Dora, Dora noiva, Professor vê Dora, sua amada. Os Capitães da Areia olham em silêncio. A mãe de santo Don'Aninha reza oração forte para a febre que consome Dora desaparecer. Com um galho de sabugueiro manda que a febre se vá. Os olhos febris de Dora sorriem. Parece que a grande paz da noite da Bahia está também nos seus olhos.
Os Capitães da Areia olham em silêncio sua mãe, irmã e noiva.
Mal a recuperaram, a febre a derrubou. Onde está a alegria dela, por que ela não corre picula com seus filhinhos menores, não vai para a aventura das ruas com seus irmãos negros, brancos e mulatos? Onde está a alegria dos olhos dela? Só uma grande paz, a grande paz da noite. Porque Pedro Bala aperta sua mão com calor.
A paz da noite da Bahia não está no coração dos Capitães da Areia. Tremem com receio de perder Dora. Mas a grande paz da noite está nos olhos dela. Olhos que se fecham docemente, enquanto a mãe de santo Aninha enxota a febre que a devora.
A paz da noite envolve o trapiche.
Capítulo 18 - Dora, Esposa
O cachorro late a lua na areia. Sem-Pernas sai do trapiche, acompanha Don'Aninha através do areal. Ela disse que a febre não tardaria a ir embora. Pirulito sai também, vai chamar o padre José Pedro. Tem confiança no padre, ele pode saber um remédio.
Dentro do trapiche os Capitães da Areia estão silenciosos. Dora pediu que eles fossem dormir. Se deitaram pelo chão, mas são raros os que dormem. Na paz imensa da noite pensam na febre que consome Dora. Ela beijou Zé Fuinha, mandou que ele fosse dormir. Ele não compreende bem. Sabe que ela está doente, mas não pensa um momento que ela o poderá abandonar.Mas os Capitães da Areia temem que isso aconteça. Então ficarão novamente sem mãe, sem irmã, sem noiva.
Agora só João Grande e Pedro Bala estão a seu lado. O negro sorri, mas Dora sabe que o sorriso dele é forçado, é um sorriso para a animar, um sorriso arrancado à força da tristeza que o negro sente.
Pedro Bala segura sua mão. Mais retirado, Professor está dobrado sobre si mesmo, a cabeça enterrada nas mãos.
Dora diz:
- Pedro?
- Que é?
- Chegue aqui.
Ele se aproxima. A voz dela é um fio de voz. Pedro fala com carinho:
- Tu quer alguma coisa?
- Tu gosta de mim?
- Tu bem sabe...
- Deita aqui.
Pedro deita ao seu lado. João Grande se afasta, chega para perto de Professor. Mas não conversam, ficam entregues à sua tristeza. No entanto é uma noite de paz que envolve o trapiche. E a paz da noite está também nos olhos doentes de Dora.
- Mais perto...
Ele se chega mais, os corpos estão juntos. Ela toma a mão dele, leva ao seu peito. Arde de febre. A mão de Pedro está sobre seu seio de menina. Ela faz com que ele a acaricie, diz:
- Tu sabe que já sou moça?
A mão dele pousada nos seus seios, os corpos juntos. Uma grande paz nos olhos dela:
- Foi no orfanato... Agora posso ser tua mulher.
Ele a olha espantado:
- Não, que tu tá doente...
- Antes de eu morrer. Vem...
- Tu não vai morrer.
- Se tu vier, não.
Se abraçam. O desejo é abrupto e terrível. Pedro não a quer magoar, mas ela não mostra sinais de dor. Uma grande paz em todo seu ser.
- Tu é minha agora fala ele com voz agitada.
Ela parecia não sentir a dor da posse. Seu rosto acendido pela febre se enche de alegria. Agora a paz é só da noite, com Dora está a alegria. Os corpos se desunem. Dora murmura:
- É bom... Sou tua mulher.
Ele a beija. A paz voltou ao rosto dela. Fita Pedro Bala com amor.
- Agora vou dormir - diz.
Deita ao lado dela, segura sua mão ardente. Esposa.
A paz da noite envolve os esposos. O amor é sempre doce e bom, mesmo quando a morte está próxima. Os corpos não se balançam mais no ritmo do amor. Mas nos corações dos dois meninos não há mais nenhum medo. Somente paz, a paz da noite da Bahia.
Na madrugada, Pedro põe a mão na testa de Dora. Fria. Não tem mais pulso, o coração não bate mais. O seu grito atravessa o trapiche, desperta os meninos. João Grande a olha de olhos abertos. Diz a Pedro Bala:
- Tu não devia ter feito...
- Foi ela que quis - explica e sai para não rebentar em soluços.
Professor se chega, fica olhando. Não tem coragem de tocar no corpo dela. Mas sente que para ele a vida do trapiche acabou, não lhe resta mais nada que fazer ali. Pirulito entra com o padre José Pedro. O padre pega no pulso de Dora, bota a mão na testa:
- Está morta.
Inicia uma oração. E quase todos rezam em voz alta.
- Padre nosso que estais no céu...
Pedro Bala se lembra das rezas à noite no reformatório. Seus ombros se encolhem, tapa os ouvidos. Volta-se, vê o corpo de Dora. Pirulito pôs uma flor roxa entre seus dedos. Pedro Bala rompe em soluços.
Veio a mãe de santo Don'Aninha, veio também o Querido-de-Deus. Pedro Bala não toma parte da conversa. Aninha diz:
- Foi como uma sombra nesta vida. Vira santa na outra Zumbi dos Palmares é santo dos candomblés de caboclo, Rosa Palmeirão também. Os homens e as mulheres valentes viram santo dos negros...
- Foi como uma sombra... - repete João Grande.
Foi como uma sombra para todos, um acontecimento sem explicação. Menos para Pedro Bala, que a teve. Menos para Professor que a amou.
Padre José Pedro fala - Vai pro céu, não tinha pecado. Não sabia o que era pecado...
Pirulito reza. Querido-de-Deus sabe o que esperam dele. Que leve o cadáver no seu saveiro e o jogue no mar, adiante do forte velho. Como poderá sair um enterro do trapiche? É difícil explicar tudo isso ao padre José Pedro. O Sem-Pernas o faz numa voz apressada. O padre a princípio se horroriza. É um pecado, ele não pode consentir num pecado. Mas consente, que não vai denunciar onde moram os Capitães da Areia. Pedro Bala não fala.
Em torno é a paz da noite. Nos olhos mortos de Dora, olhos de mãe, de irmã, de noiva e de esposa, há uma grande paz. Alguns meninos choram. Volta Seca e João Grande vão levar o corpo. Mas, parado ante ele, está Pedro Bala, imóvel. Volta Seca não pode estende as mãos. João Grande chora como uma mulher. Don'Aninha toma do braço de Pedro, tira-o dali e envolve o corpo de Dora numa toalha branca de rendas:
- Vai para Yemanjá - diz. - Ela também vira santo...
Mas ninguém pode levar o cadáver. Porque Pedro Bala está abraçado com ele, não o larga. Professor o chama:
- Deixa. Eu também gostava dela. Agora...
Levam-na para a paz da noite, para o mistério do mar. O padre reza, é uma estranha procissão que se dirige na noite para o saveiro do Querido-de-Deus. Do areal, Pedro Bala vê o saveiro que se afasta. Morde as mãos, estende os braços.
Voltam para o trapiche. A vela branca do saveiro se perde no mar. A lua ilumina o areal, as estrelas tanto estão no céu como no mar. Há uma paz na noite. Paz que veio dos olhos de Dora.
Capítulo 19 - Como uma Estrela de Loira Cabeleira
Contam no cais da Bahia que quando morre um homem valente vira estrela no céu. Assim foi com Zumbi, com Lucas da Feira, com Besouro, todos os negros valentes.Mas nunca se viu um caso de uma mulher, por mais valente que fosse, virar estrela depois de morta.
Algumas, como Rosa Palmeirão, como Maria Cabaçu, viraram santas nos candomblés de caboclo. Nunca nenhuma virou estrela.
Pedro Bala se joga na água. Não pode ficar no trapiche, entre os soluços e as lamentações. Quer acompanhar Dora, quer ir com ela, se reunir a ela nas Terras do Sem Fim de Yemanjá. Nada para diante sempre. Segue a rota do saveiro do Querido-de-Deus. Nada, nada sempre. Vê Dora em sua frente, Dora, sua esposa, os braços estendidos para ele. Nada até já não ter forças. Boia então, os olhos voltados para as estrelas e a grande lua amarela do céu. Que importa morrer quando se vai em busca da amada, quando o amor nos espera?
Que importa tampouco que os astrônomos afirmem que foi um cometa que passou sobre a Bahia naquela noite? O que Pedro Bala viu foi Dora feita estrela, indo para o céu. Fora mais valente que todas mulheres, mais valente que Rosa Palmeirão, que Maria Cabaçu. Tão valente que antes de morrer, mesmo sendo uma menina, se dera ao seu amor. Por isso virou uma estrela no céu. Uma estrela de longa cabeleira loira, uma estrela como nunca tivera nenhuma na noite de paz da Bahia.
A felicidade ilumina o rosto de Pedro Bala. Para ele veio também a paz da noite. Porque agora sabe que ela brilhará para ele entre mil estrelas no céu sem igual da cidade negra.
O saveiro do Querido-de-Deus o recolhe.