- Peste! Tu tá até cheirando, Sem-Pernas.

O Sem-Pernas fez uma cara de aborrecimento, mas Bala continuou:

- Tu tá dez vez mais elegante que o Gato. Puxa! Se tu aparecer assim na toca assim tratavam o trapiche os outros vai dar em cima de tu. Tu tá mesmo uma teteia...

- Não chateia... Tou vendo as coisas. Não demora dou o fora, tu pode vim com os outros.

- Desta vez tu tá demorando...

- É que os troço melhor tão trancado mentiu o Sem-Pernas - Vê se tu te arranja.

Depois lembrou-se:

- O Gringo andou ruim. Quase bate o trinta e sete. Andou por pouco. Se não fosse Don'Aninha, que deu beberagem a ele que botou ele em pé, tu não via mais ele. Tá mais magro que um espeto...

E com essa notícia se despediu, dando mais uma vez pressa ao Sem-Pernas.

O Sem-Pernas voltou a se estender no jardim. Mas agora não via as figuras do livro. Via era o Gringo. O Gringo fora um dos mais perseguidos pelo Sem-Pernas no grupo. Filho de árabes, falava com uma pronúncia esquisita, e isso dava lugar a piadas consecutivas do Sem-Pernas. O Gringo não era forte e nunca conseguira ser importante entre os Capitães da Areia, se bem Pedro Bala e Professor procurassem dar lugar a isso. Gostavam de ter entre eles um estrangeiro ou quase estrangeiro. Mas o Gringo se contentava com pequenos furtos, evitava os assaltos arriscados e ideava um baú cheio de bugigangas para vender nas ruas às criadas das casas ricas. O Sem Pernas o maltratava sem piedade, burlando dele, do seu falar arrevesado, da sua falta de coragem. Mas agora, deitado sobre a grama macia do jardim rico, vestido com boa roupa, penteado e com perfume, um livro de figuras ao lado, o Sem-Pernas pensava no Gringo quase morrendo, enquanto ele comia bem e vestia bem. Não só o Gringo estivera quase morrendo. Durante aqueles oito dias os Capitães da Areia continuaram mal vestidos, mal alimentados, dormindo sob a chuva no trapiche ou embaixo das pontes. Enquanto isso, o Sem-Pernas dormia em boa cama, comia boa comida, tinha até uma senhora que o beijava e o chamava de filho. Se sentiu como um traidor do grupo. Era igual àquele doqueiro do qual fala João de Adão cuspindo no chão e passando o pé em cima com desprezo. Aquele doqueiro que na greve grande se passara para o outro lado, para o lado dos ricos, furara a greve, fora contratar homens de fora para trabalhar nas docas. Nunca mais um homem do cais apertou sua mão, nunca mais um o tratou como amigo. E se para alguém o Sem-Pernas abria exceção no seu ódio, que abrangia o mundo todo, era para as crianças que formavam os Capitães da Areia. Estes eram seus companheiros, eram iguais a ele, eram as vítimas de todos os demais, pensava o Sem-Pernas. E agora sentia que os estava abandonando, que estava passando para o outro lado. Com este pensamento se sobressaltou, sentou-se. Não, ele não os trairia.Antes de tudo estava a lei do grupo, a lei dos Capitães da Areia. Os que a traíam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo. E nunca nenhum a havia traído do modo como o Sem-Pernas a ia trair. Para virar menino mimado, para virar uma daquelas crianças que eram eterno motivo de galhofa para eles. Não, não os trairia. Teriam bastado três dias para ele localizar os objetos de valor da casa. Mas a comida, a roupa, o quarto, e mais que a comida, a roupa e o quarto, o carinho de dona Ester tinham feito que ele passasse já oito dias. Tinha sido comprado por este carinho como o estivador fora comprado por dinheiro. Não, não trairia. Mas aí pensou se não ia trair dona Ester. Ela confiara nele. Ela também na sua casa tinha uma lei como os Capitães da Areia: só castigava quando havia erro, pagava o bem com o bem. O Sem-Pernas ia trair essa lei, ia pagar o bem com o mal. Lembrou-se que das outras vezes, quando dava o fora de uma casa para ela ser assaltada, era uma grande alegria que o invadia. Desta vez não tinha alegria nenhuma. Seu ódio para todos não desaparecera, é verdade. Mas abrira uma exceção para a gente daquela casa, porque dona Ester o chamava de filho e o beijava na face. O Sem-Pernas luta consigo mesmo. Gostaria de continuar naquela vida. Mas que adiantaria isso para os Capitães da Areia? E ele era um deles, nunca poderia deixar de ser um deles porque uma vez os soldados o prenderam e o surraram enquanto um homem de colete ria brutalmente. E o Sem-Pernas se decidiu. Mas olhou com carinho as janelas do quarto de dona Ester e ela, que o espiava, notou que ele chorava: - Está chorando, meu filho? - e desapareceu da janela para vir para junto dele.

Só então o Sem-Pernas viu que estava mesmo chorando, limpou as lágrimas, mordeu a mão. Dona Ester chegava para junto dele:

- Está chorando, Augusto? Aconteceu alguma coisa?

- Não, senhora. Não estou chorando, não...

- Não minta, meu filho. Bem que eu vejo... O que passou? Está se lembrando da sua mãe?

E o trouxe para junto de si, sentou-se no banco, encostou a cabeça do Sem-Pernas no seu seio maternal.

- Não chore por sua mãe. Agora você tem outra mãezinha que lhe quer bem e fará tudo para substituir a que você perdeu... e ele faria tudo para substituir o filho que ela perdera, ouviu o Sem-Pernas dentro de si.

Dona Ester o beijou na face onde as lágrimas corriam:

- Não chore, que sua mãezinha fica triste.

Então os lábios do Sem-Pernas se descerraram e ele soluçou, chorou muito encostado ao peito de sua mãe. E enquanto a abraçava e se deixava beijar, soluçava porque a ia abandonar e, mais que isso, a ia roubar. E ela talvez nunca soubesse que o Sem-Pernas sentia que ia roubar a si próprio também. Como não sabia que o choro dele, que os soluços dele eram um pedido de perdão.

Os acontecimentos se precipitaram, porque Raul teve que fazer uma viagem ao Rio de Janeiro, a negócios importantes de advocacia. E o Sem-Pernas achou que não havia melhor ocasião para o assalto.

Na tarde em que se foi, mirou a casa toda, acariciou o gato Berloque, conversou com a criada, olhou os livros de gravura. Depois foi ao quarto de dona Ester, disseque ia até o Campo Grande passear.

Ela então lhe contou que Raul traria uma bicicleta do Rio para ele e então todas as tardes ele andaria nela pelo Campo Grande, em vez de passear a pé. O Sem-Pernas baixou os olhos, mas antes de sair veio até dona Ester e a beijou. Era a primeira vez que a beijava, e ela ficou muito alegre. Ele disse baixinho, arrancando as palavras de dentro de si:

- A senhora é muito boa. Eu nunca vou esquecer...

Saiu e não voltou. Essa noite dormiu no seu canto no trapiche. Pedro Bala tinha ido com um grupo para a casa. Os outros tinham rodeado o Sem-Pernas, admirando suas roupas, seu cabelo assentado, o perfume que evolava do seu corpo. Mas o Sem-Pernas meteu o braço em um, foi resmungando para seu canto. E ali ficou mordendo as unhas, sem dormir, angustiado, até que Pedro Bala voltou com os outros, trazendo os resultados do assalto. Comunicou ao Sem-Pernas que fora a coisa mais canja do mundo, que ninguém dera fé na casa, que todos tinham continuado dormindo. Talvez que nem no dia seguinte descobrissem o roubo. E mostrava os objetos de ouro e de prata:

- Amanhã Gonzales dá uma dinheirama por isso...

O Sem-Pernas fechava os olhos para não ver. Depois que todos foram dormir, ele se aproximou do Gato:

- Tu quer fazer um negócio comigo?

- Que é?

- Eu dou essa roupa, tu me dá a sua...

O Gato olhou cheio de espanto. A sua roupa era a melhor do grupo, sem dúvida. Mas era roupa velha, estava muito longe de valer a boa roupa de casimira que o Sem-Pernas vestia. Tá doido, pensou o Gato enquanto respondia:

- Se topo? Nem se pergunta.

Trocaram a roupa. O Sem-Pernas voltou ao seu canto, procurou dormir.

Na rua vinha doutor Raul com dois guardas. Eram os mesmos soldados que o haviam espancado na cadeia. O Sem-Pernas corria, mas doutor Raul o apontava e os soldados o levavam para a mesma sala. A cena era a mesma de sempre: os soldados que se divertiam a fazê-lo correr com sua perna capengando e o espancavam e o homem de colete que ria. Só que na sala estava também dona Ester, que o olhava com os olhos tristes e dizia que ele não era mais seu filho, era um ladrão. E os olhos de dona Ester o faziam sofrer mais que as pancadas dos soldados, mais que o riso brutal do homem.

Acordou molhado de suor, fugiu da noite do trapiche, a madrugada o encontrou vagando no areaL No outro dia, à noite, Pedro Bala viera trazer o dinheiro da sua parte no furto. Mas o Sem-Pernas o recusou sem dar explicações.

Depois Volta Seca chegou com um jornal que trazia notícias de Lampião. Professor leu a notícia para Volta Seca e ficou vendo as outras coisas que o jornal trazia.Então chamou:

- Sem-Pernas! Sem-Pernas!

O Sem-Pernas veio. Outros vieram com ele e formaram um círculo. Professor disse:

- Isso aqui é com tu, Sem-Pernas...

E leu uma notícia no jornal:

Ontem desapareceu da casa número... da rua... Graça, um filho dos donos da casa, chamado Augusto. Deve ter se perdido na cidade que pouco conhecia. É coxo de uma perna, tem treze anos de idade, é muito tímido, veste roupa de casimira cinza. A polícia o procura para o entregar aos seus pais aflitos, mas até agora não o encontrou.A família gratificará bem quem der noticias do pequeno Augusto e o conduz a sua casa.

O Sem-Pernas ficou calado. Mordia o lábio. Professor disse:

- Ainda não descobriram o furto...

Sem-Pernas fez que sim com a cabeça. Quando descobrissem o furto não o procurariam mais como a um filho desaparecido. Barandão fez uma cara de riso e gritou:

- Tua família tá te procurando, Sem-Pernas. Tua mamãe tá te procurando pra dar de mamar a tu...

Mas não disse mais nada, porque o Sem-Pernas já estava em cima dele e levantava o punhal. E esfaquearia sem dúvida o negrinho se João Grande e Volta Seca não o tirassem de cima dele. Barandão saiu amedrontado. O Sem-Pernas foi indo para o seu canto, um olhar de ódio para todos. Pedro B ala foi atrás dele, botou a mão em seu ombro:

- São capazes de não descobrir nunca o roubo, Sem-Pernas. Nunca saber de você... Não se importe, não.

- Quando doutor Raul chegar vão saber...

E rebentou em soluços, que deixaram os Capitães da Areia estupefatos. Só Pedro Bala e o Professor compreendiam, e este abanava as mãos porque não podia fazer nada. Pedro Bala puxava uma conversa comprida sobre um assunto muito diferente. Lá fora o vento corria sobre a areia e seu ruído era como uma queixa.


Capítulo 9 - Manhã Como um Quadro

Pedro Bala, enquanto sobe a ladeira da montanha, vai pensando que não existe nada melhor no mundo que andar assim, ao azar, nas ruas da Bahia.Algumas destas ruas são asfaltadas, mas a grande, a imensa maioria é calçada de pedras negras. Moças se debruçam nas janelas dos casarões antigos e ninguém pode saber se é uma costureira que romanticamente espera casar com noivo rico ou se é uma prostituta que o mira de um balcão velhíssimo, enfeitado apenas de flores. Entram mulheres de negros véus nas igrejas. O sol bate nas pedras ou no asfalto do calçamento, ilumina os telhados das casas. Na sacada de um sobradão, flores medram em pobres latas. São de diversas cores e o sol lhes dá seu diário alimento de luz. Os sinos da igreja da Conceição da Praia chamam as mulheres de véu que passam apressadas.No meio da ladeira um preto e um mulato estão curvados sobre uns dados que o preto acabou de jogar. Pedro Bala, ao passar, cumprimenta o negro: - Como vai, Coruja Branca?

- E tu, Bala? Como vai essa prosopopeia?

Mas o mulato já atirou os dados e o negro se volta todo para o jogo. Pedro Bala continua seu caminho. O Professor vai com ele. Sua figura magra se atira para frente como se lhe fosse difícil vencer a ladeira.

Mas sorri da festa do dia. Pedro Bala vira-se para ele e surpreende seu sorriso. A cidade está alegre, cheia de sol. Os dias da Bahia parecem dias de festa, pensa Pedro Bala, que se sente invadido também pela alegria.

Assovia com força, bate risonhamente no ombro de Professor. E os dois riem, e logo a risada se transforma em gargalhada. No entanto, não têm mais que uns poucos níqueis no bolso, vão vestidos de farrapos, não sabem o que comerão. Mas estão cheios da beleza do dia e da liberdade de andar pelas ruas da cidade. E vão rindo sem ter do que, Pedro Bala com o braço passado no ombro de Professor. De onde estão podem ver o Mercado e o cais dos saveiros e mesmo o velho trapiche onde dormem. Pedro Bala se recosta no muro da ladeira e diz a Professor:

- Tu devia fazer uma pintura disto... É porreta.

A fisionomia do Professor se fecha:

- Eu sei que nunca há de ser...

- Que?

- Tem vez que me topo pensando... e Professor mira o cais lá embaixo, os saveiros parecendo brinquedos, os homens miúdos carregando sacos nas costas.

Continua com a voz áspera como se alguém o tivesse batido:

- Eu penso fazer um dia um bocado de pintura daqui...

- Tu tem jeito. Se tu tivesse andado pela escola...

- ...mas nunca pode ser um troço alegre, não...

Professor parece não ter ouvido a interrupção de Pedro Bala. Agora está com os olhos longe e parece ainda mais fraco.

- Por quê? - Pedro Bala está espantado.

- Tu não vê que tudo é mesmo uma beleza? Tudo alegre...

Pedro Bala apontou os telhados da cidade baixa:

- Tem mais cores que o arco-íris...

- É mesmo... Mas tu espia os homem, tá tudo triste. Não tou falando dos rico. Tu sabe. Falo dos outros, dos das docas, do mercado.

Tu sabe... Tudo com cara de fome, eu nem sei dizer. É um troço que sinto...

Pedro Bala não estava mais espantado:

- Por isso João de Adão já fez um bocado de greve nas docas. Ele diz que um dia as coisas vira, tudo vai ser de vice-versa...

- Também já li um livro... Um livro de João de Adão. Se eu tivesse estado numa escola como tu diz, tinha sido bom. Eu um dia ia fazer muito quadro bonito. Um dia bonito, gente alegre andando, rindo, namorando assim como aquela gente de Nazaré, sabe? Mas cadê escola? Eu quero fazer um desenho alegre, sai o dia bonito, tudo bonito, mas os homens sai triste, não sei não... Eu queria fazer uma coisa alegre.

- Quem sabe se não é melhor mesmo fazer uma coisa como tu faz? Pode até dá mais bonito, mais vistoso.

- Que é que tu sabe? Que é que eu sei? A gente nunca andou em escola... Eu tenho vontade de fazer a cara dos homens, a figura das ruas, mas nunca tive na escola, tem um bocado de coisa que eu não sei...

Fez uma pausa, olhou Pedro Bala que o escutava, continuou:

- Tu já deu uma espiada na Escola de Belas-Artes? É um beleza rapaz. Um dia andei de penetra, me meti numa sala. Tava tudo vestido de camisão, nem me viram. E tavam pintando uma mulher nua... Se um dia eu pudesse...

Pedro Bala ficou pensativo. Olhava Professor como que pensando. Logo falou com um ar muito sério:

- Tu sabe o preço?

- Que preço?

- De pagar na escola? O professor?

- Que história é essa?

- A gente se reunia, pagava pra tu...

Professor riu:

- Tu nem sabe... Tem tanta complicação... Não pode não, deixa de tolice.

- João de Adão disse que um dia a gente pode ter escola...

Saíram andando. Professor parecia ter perdido a alegria do dia. Como que ela se afastara para longe dele. Então Pedro Bala deu-lhe um soco de leve:

- Um dia tu ainda bota um bocado de pintura numa sala da rua Chile, mano. Sem escola sem nada. Nenhum destes bananas da escola faz uma rara como tu... Tu tem é jeito...

Professor riu. Pedro Bala riu também:

- E tu faz meu retrato, hein. Bota o nome embaixo, não bota?

Capitão Pedro Bala, macho valente.

Tomou uma atitude de lutador, um braço estirado. Professor riu, Bala também riu, logo o riso se transformou em gargalhada. E só pararam de gargalhar para aderira um grupo de desocupados que se reunira em torno a um tocador de violão. O homem tocava e cantava uma moda da cidade da Bahia:

"Quando ela disse adeus... meu peito em cruz transformou..."

Eles aderiram. Pouco depois cantavam junto ao homem. E com eles cantavam todos e eram saveiristas, malandros, doqueiros, até uma prostituta cantava. O homem do violão estava todo entregue a sua música, não via mesmo ninguém.

Se o homem não se levantasse para ir embora, ainda tocando seu violão e cantando, eles teriam se esquecido de continuar a caminhada para a cidade alta.Mas o homem foi embora levando a alegria da sua música. O grupo se dispersou, um vendedor de jornais passou apregoando os diários da manhã. Professor e Pedro Bala continuaram a subir a ladeira. Do largo do Teatro subiram para a rua Chile. Professor tirou o giz do bolso, sentou-se no passeio. Pedro Bala ficou a seu lado. Quando viram vir o casal, Professor começou a desenhar. Fez um desenho o mais rápido que pôde. O casal estava muito perto já, Professor agora fazia as caras. A moça sorria, sem dúvida seriam noivos. Mas iam tão entretidos na sua conversa que nem notaram o desenho. Foi preciso que Pedro Bala se adiantasse até eles:

- Não pise na cara da moça, senhor...

O homem olhou para Pedro Bala e já ia dizer um desaforo quando a moça viu o desenho do Professor e chamou sua atenção:

- Que bom... e batia as mãos como uma menina a quem tivessem dado uma boneca de presente.

O rapaz espiou e sorriu. Voltou-se para Pedro Bala:

- Foi você quem desenhou, garoto?

- Foi aqui o meu companheiro, o pintor Professor...

Professor dava os últimos retoques no bigode elegantíssimo do homem. Depois passou a aperfeiçoar a figura da moça. Ela então ficou no jeito de quem estava posando.Riam os dois, ela se dependurava no braço do amado. O homem puxou a carteira de níqueis, atirou uma prata de dois mil-réis, que Pedro Bala apanhou no ar. Seguiram. O desenho ficou no meio do passeio.Umas senhoritas que vinham das compras o viram de longe e uma disse:

- Vamos depressa, que aquilo parece que é um anúncio do novo filme de Barrymore... Dizem que é um amor... E ele é tão forte...

Pedro Bala e Professor ouviram e abriram na gargalhada. E abraçados seguiram juntos na liberdade das ruas.

Quase junto do palácio do governo pararam novamente. Professor ficou de giz na mão esperando que saísse do ponto do bonde um pato. Pedro Bala assoviava ao seu lado. Breve teriam o dinheiro para um bom almoço e ainda para levar um presente para Clara, a amante do Querido-de-Deus, que fazia anos naquele dia.

Uma velhota deu dez tostões por seu desenho. A velhota era feia e Professor tinha conservado sua feiura no desenho. Pedro Bala notou:

- Se tu tivesse feito ela mais bonita e mocinha, ela te dava mais.

Professor riu. Assim passaram a manhã, Professor fazendo a cara dos que vinham pela rua, Pedro Bala recolhendo as pratas ou os níqueis que jogavam. Quase meio-dia veio um homem que fumava numa piteira que parecia cara. Pedro Bala correu para avisar ao Professor:

- Faz deste que parece que é um pato cheio da nota...

Professor começou a desenhar a figura magra do homem. A piteira longa, os cabelos encaracolados que apareciam sob o chapéu. O homem trazia também um livro na mão e Professor teve um desejo irresistível de fazer o desenho do homem lendo o livro. O homem ia passando, Pedro Bala chamou sua atenção:

- Olhe seu retrato, senhor.

O homem tirou a longa piteira da boca, perguntou a Bala:

- O que, meu filho?

Pedro Bala apontou o desenho em que o Professor trabalhava. O homem aparecia sentado se bem não houvesse cadeira nem nada estava sentado no ar, fumando sua piteira e lendo seu livro. O cabelo encaracolado voava sob o chapéu. O homem examinou o desenho atentamente, foi espiá-lo em diversos ângulos, nada dizia. Quando o Professor deu o trabalho por concluído, ele perguntou:

- Onde você aprendeu desenho, meu caro?

- Em lugar nenhum...

- Em lugar nenhum? Como?

- É, sim senhor...

- E como desenha?

- Me dá vontade, pego, desenho.

O homem estava um pouco incrédulo, mas sem dúvida recordou outros exemplos no fundo da sua memória:

- Quer dizer que você nunca estudou desenho?

- Nunca, não senhor.

- Posso garantir falou Pedro Bala. - Nós mora junto, eu sei.

- Então é uma verdadeira vocação... - murmurou o homem.

Voltou ao examinar o desenho. Tirou uma longa fumaçada da sua piteira. Os dois meninos olhavam para a piteira encantados. O homem perguntou ao Professor:

- Por que você me retratou sentado e lendo o livro?

Professor coçou a cabeça como se fosse uma coisa difícil de responder. Pedro Bala quis falar, mas nada disse, estava atarantado. Por fim Professor explicou:

- Pensei que sentava melhor pro senhor... - coçou de novo a cabeça. - Não sei mesmo...

- É uma verdadeira vocação... - murmurou o homem em voz mais baixa, assim com o jeito de quem havia feito uma descoberta.

Pedro Bala esperava o níquel, mesmo porque o guarda já os olhava desconfiado da esquina. Professor espiava a piteira do homem longa, desenhada a fogo, uma maravilha.Mas o homem continuou:

- Onde você mora?

Pedro Bala não deu tempo a que Professor respondesse. Foi ele quem falou:

- A gente mora na Cidade de Palha...

O homem meteu a mão no bolso e tirou um cartão:

- Você sabe ler?

- A gente sabe, sim senhor respondeu Professor.

- Aí está meu endereço. Eu quero que você me procure. Talvez possa fazer alguma coisa por você.

Professor tomou o cartão. O guarda se encaminhava para ele Pedro Bala se despediu:

- Até logo, doutor.

O homem ia puxando a carteira de níqueis, mas viu o olhar do Professor na sua piteira. Jogou o cigarro fora, entregou a piteira ao menino.

- Isso é pelo meu retrato. Vá a minha casa...

Mas os dois desabaram pela rua Chile, porque o guarda já estava quase junto a eles. O homem olhava meio sem compreender quando ouviu a voz do guarda:

- Lhe roubaram alguma coisa, senhor?

- Não. Por quê?

- Porque como aqueles malandrins estavam aqui junto ao senhor...

- Eram duas crianças... Por sinal que uma com maravilhosa inclinação para a pintura.

- São ladrões - retrucou o guarda. - São dos Capitães da Areia.

- Capitães da Areia? - fez o homem se recordando. - Já li algo... Não são crianças abandonadas?

- Ladronas, isso são... Tenha cuidado, senhor, quando eles se aproximarem do senhor. Veja se não lhe falta nada...

O homem fez que não com a cabeça e olhou a rua. Mas não havia nem rastro dos dois meninos. O homem agradeceu ao guarda, afirmando mais uma vez que não tinha sido furtado, e desceu a rua, murmurando:

- Assim que se perdem os grandes artistas. Que pintor não seria!

O guarda o espiava. Depois comentou para os botões da farda:

- Bem dizem que estes poetas são doidos...

Professor exibia a piteira. Estava agora nos fundos de um arranha-céu, onde existia um restaurante chique. Pedro Bala sabia como conseguir do cozinheiro os restos do menu. Esperavam o almoço na rua deserta. Depois que comeram, Pedro Bala ofereceu cigarros e o Professor se dispôs a fumar na piteira que o homem lhe dera. Procurou limpá-la:

- O bicho era magro como um espeto. É capaz de ser tutu...

Como não achou coisa melhor com que limpar, fez do cartão do homem um palito e o enfiou na piteira. Quando terminou, jogou o cartão na rua. Pedro Bala perguntou:

- Por que tu não guarda?

- Pra que quero? e o Professor riu, Pedro Bala riu também e por um momento as suas gargalhadas encheram a rua. Riam assim sem motivo, pelo prazer de rir.

Mas Pedro Bala se fez sério:

- O homem parece que era bem capaz de ajudar a tu ser um pintor... - apanhou o cartão e leu o nome do homem. - Tu devia guardar. Quem sabe?

Professor baixou a cabeça:

- Deixa de ser besta, Bala. Tu bem sabe que do meio da gente só pode sair ladrão... Quem é que quer saber da gente? Quem? Só ladrão, só ladrão... - e sua voz se elevava, agora gritava com ódio.

Pedro Bala fez que sim com a cabeça, sua mão soltou o cartão, que caiu na sarjeta. Agora não riam mais e estavam tristes na alegria da manhã cheia de sol, da manhã igual a um quadro de um pintor das Belas-Artes.

Operários passavam para o trabalho, após o almoço pobre, e era tudo que eles viam, que eles conseguiam ver na manhã.


Capítulo 10 - Alastrim

Omolu mandou a bexiga negra para a cidade. Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram, e Omolu era um deus das florestas da África, não sabia destas coisas de vacina. E a varíola desceu para a cidade dos pobres e botou gente doente, botou negro cheio de chaga em cima da cama. Então vinham os homens da Saúde Pública, metiam os doentes num saco, leva para o lazareto distante. As mulheres ficavam chorando, porque sabiam que eles nunca mais voltariam.

Omolu tinha mandado a bexiga negra para a cidade alta, para a cidade dos ricos. Omolu não sabia da vacina, Omolu era um deus das florestas da África, que podia saber de vacinas e coisas científicas? Mas como a bexiga já estava solta e era a terrível bexiga negra, Omolu teve que deixar que ela descesse para a cidade dos pobres. Já que a soltara, tinha que deixar que ela realizasse sua obra. Mas como Omolu tinha pena dos seus filhinhos pobres, tirou a força da bexiga negra, virou em alastrim, que é uma bexiga branca e tola, quase um sarampo. Apesar disto, os homens da Saúde Pública vinham e levavam os doentes para o lazareto. Ali as famílias não podiam ir visitá-los, eles não tinham ninguém, só a visita do médico. Morriam sem ninguém saber e quando um conseguia voltar era mirado como um cadáver que houvesse ressuscitado. Os jornais falavam da epidemia de varíola e da necessidade da vacina. Os candomblés batiam noite e dia, em honra a Omolu, para aplacar a fúria de Omolu. O pai de santo Paim, do Alto do Abacaxi, preferido de Omolu, bordou uma toalha branca de seda, com lantejoulas, para oferecer a Omolu e aplacar sua raiva. Mas Omolu não quis, Omolu lutava contra a vacina.

Nas casas pobres as mulheres choravam. De medo do alastrim, de medo do lazareto.

Almiro foi o primeiro dos Capitães da Areia que caiu com alastrim. Uma noite, quando o negrinho Barandão o procurou no seu canto para fazer o amor aquele amor que Pedro Bala proibira no trapiche, Almiro lhe disse:

- Tou com uma coceira danada.

Mostrou os braços já cheios de bolhas a Barandão:

- Parece que também tou queimando de febre.

Barandão era um negrinho corajoso, todo o grupo sabia disto. Mas da bexiga, da moléstia de Omolu, Barandão tinha um medo doido, um medo que muitas raças africanas tinham acumulado dentro dele. E sem se preocupar que descobrissem suas relações sexuais com Almiro saiu gritando entre os grupos:

- Almiro tá com bexiga... Gentes, Almiro tá com bexiga.

Os meninos foram se levantando aos poucos e se afastando receosos do lugar onde estava Almiro. Este começou a soluçar. Pedro Bala não tinha chegado ainda. Professor, o Gato e João Grande também andavam por fora. Daí ter sido o Sem-Pernas quem domino a situação. O Sem-Pernas nestes últimos tempos andava cada vez mais arredio, quase não falava com ninguém. Fazia espantosas burlas de todo mundo, por tudo puxava uma briga, só respeitava mesmo Pedro Bala. Pirulito rezava por ele mais que por nenhum, e por vezes pensava que Satanás tinha se metido no corpo do Sem-Pernas. O padre José Pedro era paciente com ele, mas também do padre o Sem-Pernas se afastara. Não queria saber de ninguém, conversa em que ele se metia era conversa que terminava em briga.

Quando o Sem-Pernas passou entre os grupos, todos se afastaram. Quase o temiam tanto quanto à bexiga. O Sem-Pernas tinha arranjado por aqueles dias um cachorro ao qual se dedicava inteiramente. A princípio, quando o cão aparecera no trapiche, esfomeado, Sem-Pernas o maltratou quanto pôde. Mas terminou por acarinhá-lo e tomar para si. Agora como que vivia inteiramente para o cachorro. E por isso voltou só para levar o cão, que o acompanhara, para longe de Almiro. Depois andou novamente para onde estavam os menino. Estes cercavam Almiro de longe. Apontavam as bolhas que apareciam no peito do menino. Antes de tudo, Sem-Pernas falou com sua voz fanhosa para Barandão:

- Agora tu vai ter bexiga na piroca, negro burro.

Barandão o olhou assustado. Depois, Sem-Pernas falou para todos, apontando Almiro com o dedo:

- Ninguém aqui vai ficar bexiguento só por causa deste freso.

Todos o olhavam, esperando o que ele diria. Almiro soluçava, as mãos no rosto, encolhido na parede. Sem-Pernas falava:

- Ele vai sair daqui agorinha mesmo. Vai se meter em qualquer canto da rua até que os mata-cachorro da saúde pegue ele e leve pro lazareto.

- Não. Não rugiu Almiro.

- Vai, sim fez Sem-Pernas. - A gente não vai chamar os mata-cachorro aqui pra toda policia saber onde a gente se acoita. Tu vai por bem ou por mal e leva teus trapos. Vai pro inferno, que a gente não vai ficar com bexiga por você. Por amor de você, xibungo...

Almiro fazia que não, que não, e seus soluços enchiam o trapiche. 0 negrinho Barandão tremia, Pirulito clamava que era castigo de Deus por causa dos pecados deles, os outros não sabiam que fazer. Sem-Pernas se preparava para forçar sua ideia. Pirulito se abraçou com um quadro de Nossa Senhora e disse:

- Vamos rezar todo mundo, que isto é um castigo de Deus pros pecados da gente. A gente peca muito, Deus tá castigando. Vamos pedir perdão... e sua voz era como um clamor, soava anunciando vinganças.

Alguns juntaram as mãos e Pirulito chegou a iniciar um padre-nosso. Mas Sem-Pernas o afastou com uma das mãos:

- Sai, sacrista...

Pirulito ficou rezando em voz baixa ainda atracado com o santo. Parecia um quadro estranho. Ao fundo, Almiro soluçava e dizia que não. Pirulito rezava, os outros estavam indecisos, não sabiam o que fazer. Barandão tremia de medo, pensando que estava contagiado. Sem-Pernas voltou a falar:

- Gente, se ele não quiser sair, a gente bota ele pra fora debaixo de porrada. Senão, tudo vai morrer de bexiga, tudo... Vocês não vê, desgraçados? A gente bota ele pra fora até uma rua onde levem ele pro lazareto.

- Não. Não fazia Almiro. - Pelo amor de Deus.

- Isso é castigo... - fez Pirulito.

- Cala a boca, filho de padre o Sem-Pernas continuava. - Vamos levar ele, gente, já que ele não quer ir por bem.

Como via que os outros ainda estavam irresolutos, marchou para o lado de Almiro e estendeu o pé para lhe dar uma pancada:

- Assim tu vai embora, bexiguento.

Almiro se encolheu mais:

- Não. Tu não pode fazer isso. Eu sou um do grupo. Espera Bala chegar.

- É castigo... É castigo... - a voz de Pirulito ainda irritou mais o Sem-Pernas, que descarregou um pontapé em Almiro.

- Dá o fora, bexiguento. Dá o fora, fresco.

Mas neste instante uma mão o pegou e o sacudiu longe. Volta Seca se plantou entre Almiro e o Sem-Pernas. O mulato levava um revólver na mão e os seus olhos fuzilavam:

- Juro que tem bala e que como um que toque em Almiro - olhou para todos com sua cara sombria.

- Que é que tu tem que fazer aqui, cangaceiro? - Sem-Pernas queria recuperar o domínio da situação.

- Ele não é um soldado de policia pra gente tratar ele assim. É um do grupo, ele falou direito. Vamos esperar Pedro Bala chegar. Ele resolve. E se alguém tocar nele eu queimo igual que fosse um macaco da polícia - e segurava o revólver.Os outros se afastaram aos poucos. Sem-Pernas cuspiu:

- Tudo é uns covarde... - e seguiu para onde o cachorro o esperava. Se deitou ao seu lado e os que ficaram mais perto dele a ouviam murmurar: covardes, covardes.

Volta Seca ficou diante de Almiro com o revólver na mão. Almiro soluçava, e mais alto gritava quando olhava as bolhas que se estendiam pelo seu corpo. Pirulito rezava, pedia a Deus que voltasse a ser suprema bondade, não fosse suprema justiça.

Depois Pirulito se lembrou de chamar o padre José Pedro. Escapuliu pela porta do trapiche, se dirigiu à casa do padre. Mas pelo caminho ainda ia rezando, os olhos dilatados cheios do temor de Deus.

Pedro Bala chegou acompanhado do Professor e de João Grande. Voltavam de um negócio que tinham resolvido bem e comentavam o sucesso entre gargalhadas. O Gato tinha ido com eles, mas não voltara. Ficara em casa de Dalva. Os três entraram no trapiche e a primeira coisa que enxergaram foi Volta Seca com o revólver na mão.

- Que é isso? - perguntou Pedro Bala.

Sem-Pernas se levantou do seu canto, o cachorro o acompanhou:

- Este besta metido a cangaceiro não quer deixar que a gente faça o que resolveu e apontava Almiro. - Aquele fresco tá com a bexiga...

João Grande se encolheu. Pedro Bala olhou Almiro, o Professor andou para onde esta Volta Seca. O mulato não largava o revólver. Pedro perguntou então:

- Como foi, Volta Seca?

- Este tá com a maldita... - mostrou o menino que soluçava. - E aquele macaco mesmo que um soldado quis botar ele no meio da rua pra assistência levar ele lazareto. Eu não tava me metendo. Mas ele não quis ir. Aí eles todos juntos - cuspiu - quis dar nele pra obrigar ele ir. Foi quando ele falou que era do grupo, que eles esperasse que tu chegasse. Eu achei que ele falou direito, fiquei do lado dele... Ele não é um soldado de polícia pra tratar ele assim...

- Tu fez direito, Volta Seca - Pedro Bala bateu no ombro do mulato. Depois olhou Almiro:

- Tu tá mesmo com ela?

O menino inclinou a cabeça e rebentou em soluços. Sem-Pernas gritou:

- Só tem mesmo que fazer o que eu disse. Não pode chamar a assistência aqui que todo mundo fica sabendo onde a gente se acoita. Só tem mesmo que deixar ele numa rua onde passe gente. Vamos fazer, tu queira ou não...

Pedro Bala gritou:

- Quem é o chefe daqui, é tu ou eu? Tu quer que eu te rebente?

Sem-Pernas saiu murmurando. O cachorro veio lamber seus pés, mas ele deu-lhe um pontapé. Logo depois se arrependeu, porém, e começou a acarinhar o cão, enquanto espiava os outros.

Pedro Bala andou até Almiro. João Grande queria vencer o medo e ir para junto de Almiro também. Mas o medo da bexiga era uma coisa enorme nele, era quase maior que sua bondade. Só Professor estava junto de Pedro Bala. Este disse a Almiro: Almiro mostrou os braços cheios de bolhas. Professor disse:

- Deixa eu ver...

Almiro mostrou os braços cheios de bolhas. Professor disse:

- É alastrim. Bexiga negra fica logo preta...

Pedro Bala ficou pensando. Ia um silêncio pelo trapiche. João Grande conseguiu vencer o medo e se aproximou. Mas ia com passo arrastados. Parecia violentar sua própria vontade para chegar até junto de Almiro. Foi quando entrou Pirulito acompanhado do padre José Pedro. O padre deu boas noites e perguntou quem era o doente Pirulito apontou Almiro, o padre se dirigiu para ele, chegou perto, pegou no braço, examinou. Depois disse a Pedro Bala:

- É preciso levar para a assistência...

- Pro lazareto?

- Sim.

- Não, não vai, não fez Pedro Bala.

O Sem-Pernas se levantou outra vez, veio para junto deles:

- Tou dizendo isso há muito tempo. Tem que ir pro lazareto - Não vai repetiu Pedro Bala.

- Por que, meu filho? perguntou o padre José Pedro.

- Tu sabe, padre, que ninguém volta do lazareto. Ninguém volta. E ele é um da gente. um do grupo. A gente não pode fazer isso...

- Mas é a lei, filho.

- Morrer?

O padre mirou Pedro Bala com os olhos abertos. Aquele meninos viviam a lhe dar surpresas, sempre mais adiantados em inteligência do que ele pensava. E, no fundo, o padre sabia que eles tinham razão.

- Não vai, não, padre... - afirmou Pedro Bala.

- Então que é que você vai fazer, meu filho?

- Tratar dele aqui...

- Mas como?

- Chamo Don'Aninha...

- Mas ela não sabe tratar de ninguém.

Pedro Bala ficou confuso. Passado um momento, disse:

- É melhor que morra aqui que no lazareto.

Sem-Pernas se meteu de novo:

- Vai pegar bexiga em todo mundo... - se dirigia aos outros.

- Vai pegar em todo mundo. A gente não pode deixar.

- Cala a boca, desgraçado, senão eu te arrombo disse Pedro.

Mas o padre interveio:

- Ele tem razão, Bala.

- Não vai pro lazareto, padre. O senhor é bom, bem sabe que ele não pode ir. Lá é uma miséria, tudo morre.

O padre bem sabia que era verdade, calou. Foi quando João Grande falou:

- Mas ele não tem casa?

- Quem?

- Almiro. Tem sim.

- Não quero ir para lá... - soluçou Almiro. - Eu tinha fugido.

Pedro Bala se aproximou dele e falou com voz muito mansa:

- Deixa estar, Almiro. Primeiro eu vou lá, falo com tua mãe. Depois a gente leva você. Tu lá fica bem, não tem que ir pro lazareto. E o padre arranja um médico pra cuidar de tu, não arranja, padre?

- Levo, sim prometeu o padre José Pedro.

Havia uma lei que obrigava os cidadãos a denunciarem à Saúde Pública os casos de varíola que conhecessem, para o imediato recolhimento dos variolosos aos lazaretos. O padre José Pedro conhecia a lei, mas, mais uma vez, ficou com os Capitães da Areia contra a lei. Pedro Bala foi à casa de Almiro, a mãe do menino ficou feito louca, era uma lavadeira amigada com um pequeno lavrador além da Cidade de Palha. Foram buscar Almiro e o padre o visitou e depois levou um médico. Mas acontece que o médico estava cavando um lugar na Saúde Pública e denunciou o caso de varíola. Almiro foi mesmo levado para o lazareto e o padre ficou em maus lençóis, pois o médico que se dizia livre-pensador, mas em verdade era espírita denunciou o padre também como encobridor do caso. As autoridades não agiram contra o padre, mas se queixaram ao arcebispado. E o padre José Pedro foi chamado à presença do Cônego Secretário do Arcebispado.Ficou amedrontado.

Pesadas cortinas, cadeiras de alto espaldar, um retrato de Santo Inácio numa parede. Na outra, um crucifixo. Uma grande mesa, custosos tapetes. O padre José Pedro entrou na sala com o coração batendo muito. Não tinha absoluta certeza do motivo por que recebera aquela comunicação do Cônego Secretário do Arcebispado para comparecer ao Palácio Episcopal. No primeiro momento lembrou-se da paróquia que esperava inutilmente havia dois anos. Seria sua paróquia? Sorriu com alegria. Então, sim, iria ser um verdadeiro sacerdote, iria ter almas entregues a si, à sua guia. Serviria a Deus. Mas certa tristeza o invadiu: e suas crianças, as crianças abandonadas das ruas da Bahia, principalmente os Capitães da Areia, como ficariam? Ele era um dos seus poucos amigos. Nunca um outro padre se voltara para aqueles meninos. Se contentavam em ir celebrar de quando em vez uma missa no reformatório, o que os tornava mais antipáticos ao meninos porque atrasava o magro café. O padre José Pedro, enquanto esperava sua paróquia, se dedicara aos meninos abandonados.Não podia dizer que os resultados tivessem sido grandes. Mas era preciso compreender que ele estava fazendo uma experiência, que muita vezes tinha que voltar atrás.Fazia pouco tempo que o padre captar de todo a confiança dos meninos. Estes já o tratavam como amigo, mesmo quando não o levavam a sério como sacerdote. O padre tiver de passar por cima de muita coisa para conseguir a confiança de Capitães da Areia. Mas José Pedro pensava que só Pirulito e a sua vocação pagavam a pena. O padre tivera que fazer muita coisa contra o que lhe haviam ensinado. Pactuara mesmo com coisa que a Igreja condenaria. Mas era o único jeito... Aí o padre lembrou-seque bem podia ser por causa daquilo que o haviam chamado. Devia ter sido por aquilo. Muitas beatas já murmuravam por causa das suas relações com as crianças que viviam do furto. E havia aquele caso de Almiro. Devia ser por aquilo. O primeiro sentimento do padre José Pedro quando descobriu o motivo da comunicação foi um grande temor. Ia ser castigado com certeza, perderia toda esperança de uma paróquia. E o padre José Pedro necessitava de uma paróquia. Sustentava uma mãe velha, uma irmã na Escola Normal. Logo depois pensou que muito possivelmente tudo o que fizera fora errado, seus superiores não aprovariam. E, no Seminário, lhe tinham ensinado a obedecer. Mas pensou nos meninos. Na sua memória passaram as figuras de Pirulito, Pedro Bala, Professor, Sem-Pernas, Boa-Vida, o Gato. Era preciso salvar aqueles pequeninos... As crianças eram a maior ambição de Cristo. Devia se fazer tudo para salvar aquelas crianças. Não era culpa deles se estavam perdidos...

O Cônego entrou. Nos seus pensamentos o padre nem vira que muitos minutos de espera tinham se passado. Não viu tampouco quando o Cônego entrou com um passo manso.Era alto e muito magro, anguloso, com a batina muito limpa, os raros cabelos que lhe restavam muito bem penteados. Os lábios tinham uma linha dura. Um rosário descia-lhe em torno ao pescoço. Se bem sua figura desse uma impressão de pureza, essa impressão não fazia seus traços mais doces. Não havia nenhuma simpatia humana na sua figura, nos seus traços duros. Como que a pureza era uma couraça que o afastava do mundo. Diziam que era inteligentíssimo, grande orador sacro, célebre pela rigidez dos seus costumes. Ali estava parado diante do padre José Pedro, olhando com olhos observadores a figura baixa do padre, a sua batina suja e remendada em dois lugares, o seu ar de medo, a falta de inteligência que de mistura com a bondade se refletia na cara do padre. Estudou o padre uns poucos minutos. O bastante para penetrar a fundo na alma sem complicações de José Pedro. Tossiu. O padre o viu, levantou-se, beijou humildemente sua mão: - Cônego...

- Sente-se, padre. Temos que conversar.

Olhava com os olhos sem expressão o padre. Sentou-se, cruzou as mãos com grande cuidado, afastou sua reluzente batina da batina suja do padre José Pedro. Sua voz contrastava com sua pessoa.

Podia-se dizer que era uma voz doce, quase feminina, se não fosse um acento de decisão que a cada passo surgia nela. O padre José Pedro baixou a cabeça e esperou que o Cônego falasse. Este começou:

- Este arcebispado tem graves queixas contra o senhor, padre.

Padre José Pedro quis figurar uma cara de quem não entendia. Mas a malícia era superior à sua inteligência e naquele momento ele pensava nos Capitães da Areia.O Cônego sorriu ligeiramente.

- Creio que o senhor já sabe do que se trata...

O padre olhou com uns olhos abertos, mas logo baixou cabeça:

- Só se é as crianças...

- O pecador não pode esconder seu pecado, ele está visível na sua consciência... - e a voz do Cônego tinha perdido aquela nota de doçura.

O padre José Pedro ouviu com pavor. Era o que ele temia. Os seus superiores, aqueles que tinham inteligência para compreender os desejos de Deus, não estavam de acordo com os métodos que ele empregara junto aos Capitães da Areia. Vinha um temor de dentro dele, não propriamente um temor do Cônego, do arcebispo mas um temor de ter ofendido a Deus. E até suas mãos tremiam ligeiramente.

A voz do Cônego retomou sua doçura. Era como uma voz de mulher, doce e suave, mas que negava a um homem suas carícias:

- Têm-nos chegado bastantes queixas, padre José Pedro. O arcebispado tem fechado os olhos na esperança de que o senhor conhecesse seu erro e se emendasse...

Olhou o padre com olhos duros. José Pedro baixou a cabeça.

- Não faz muito tempo a viúva Santos queixou-se. O senhor ajudou uma corja de moleques, numa praça, a vaiá-la. Melhor, incitou os moleques a que a vaiassem...Que tem a dizer, padre?

- Não é verdade, Cônego.

- O senhor quer dizer que a viúva mentiu?

Fuzilou o padre com os olhos. Mas desta vez José Pedro não baixou a cabeça, apenas repetiu:

- O que ela disse não é verdade...

- O senhor sabe que a viúva Santos é uma das melhores protetoras da religião na Bahia? Não sabe dos donativos...

- Eu posso lhe narrar o fato...

- Não me interrompa... No Seminário não lhe ensinaram a ser humilde e respeitoso com seus superiores? Se bem o senhor não tivesse sido um aluno dos mais brilhantes...

O padre José Pedro sabia daquilo. Não era preciso que lhe repetissem que fora um dos piores alunos do Seminário em matéria de estudos. Por isso mesmo tinha tanto medo de ter errado, de ter ofendido a Deus. O Cônego devia ter razão, era muito mais inteligente, estava muito mais próximo de Deus, que é a suprema inteligência.

O Cônego fez um gesto com a mão, como quem relegava para longe aquele incidente da viúva, e a sua voz se fez doce novamente:

- Porém agora há coisa muito mais grave. Por sua causa, padre, este arcebispado foi procurado pelas autoridades. O senhor sabe o que fez? Sabe?

O padre não tentou negar:

- Foi o caso do menino com alastrim?

- Um menino com varíola, sim senhor. E o senhor escondeu o caso das autoridades sanitárias...

O padre José Pedro tinha confiança na bondade de Deus. Muitas vezes pensara que Deus aprovava o que ele estava fazendo. Agora pensava isto também. Aquele pensamento tinha enchido seu coração de repente. Levantou o busto, fixou a vista no Cônego:

- O senhor sabe o que é o leprosário?

O Cônego não respondeu.

- Pois é raro o homem que volta de lá. Quanto mais uma criança... Mandar uma criança para lá é cometer um assassinato...

- Isso não é conosco - respondeu o Cônego com voz inexpressiva mas cheia de decisão. - Isto é com a Saúde Pública. Mas o nosso papel é respeitar as leis.

- Mesmo quando atentam contra a lei da bondade de Deus?

- Que sabe o senhor da bondade de Deus? Que grande inteligência tem para saber dos desígnios de Deus? O demônio da vaidade o dominou?

O padre José Pedro tentou explicar:

- Eu sei que sou um padre ignorante e indigno de servir ao Senhor. Mas estas crianças nunca tinham tido ninguém que olhasse por elas. Eu tive a intenção...

- A boa intenção não desculpa os maus atos... - cortou o Cônego com voz muito doce ao enunciar a sentença.

O padre José Pedro se sentiu novamente em dúvida. Mas elevou o pensamento a Deus, voltou parte da sua confiança:

- Teriam sido maus? Eram uns meninos que nunca tinham ouvido falar seriamente de Deus. Misturam Deus com os santos dos negros, não têm nenhuma ideia de religião.Eu quis ver se salvava aquelas almas...

- Já lhe disse que suas intenções foram boas, mas suas ações não corresponderam às intenções...

- É que o senhor não conhece estes meninos... - o Cônego lhe deitou um olhar duro. - São meninos iguais a homens. Vivem como homens, conhecem a vida toda, - tudo...E preciso tratar com jeito, fazer concessões.

- Por isso o senhor faz o que eles querem...

- Às vezes tenho que fazer para conseguir um bom resultado...

- Compactua com os roubos, com os crimes destes perversos...

- Que culpa eles têm? - o padre se lembrava de João de Adão. - Quem cuida deles? Quem os ensina? Quem os ajuda? Que carinho eles têm? - estava exaltado e o Cônego se afastou mais dele, enquanto o fitava com os olhinhos duros. - Roubam para comer porque todos estes ricos que têm para botar fora, para dar para as igrejas, não se lembram que existem crianças com fome... Que culpa...

- Cale-se - a voz do Cônego era cheia de autoridade. - Que, o visse falar diria que é um comunista que está falando. E não é difícil. No meio dessa gentalha o senhor deve ter aprendido as teorias deles...

O senhor é um comunista, um inimigo da Igreja...

O padre o olhou horrorizado. O Cônego levantou-se, estendeu a mão para o padre:

- Que Deus seja suficientemente bom para perdoar seus atos e suas palavras. O senhor tem ofendido a Deus e à Igreja. Tem desonrado as vestes sacerdotais que leva.Violou as leis da Igreja e do Estado. Tem agido como um comunista. Por isso nos vemos obrigados a não lhe dar tão cedo a paróquia que o senhor pediu. Vá agora sua voz voltava a ser doce, mas de uma doçura cheia de resolução, uma doçura que não admitia réplicas, penitencie-se dos seus pecados, dedique-se aos fiéis da igreja em que trabalha e esqueça essas ideias comunistas, senão, teremos que tomar medidas mais sérias. O senhor pensa que Deus aprova o que está fazendo? Lembre-seque a sua inteligência é muito pequena, o senhor não pode penetrar nos desígnios de Deus...

Virou as costas ao padre e foi saindo. O padre José Pedro deu dois passos até ele, falou com voz estrangulada:

- Se tem um até que quer ser padre...

O Cônego voltou-se:

- A entrevista está terminada, padre José Pedro. Pode se retirar e que Deus o ajude a pensar melhor...

Mas o padre ainda ficou parado uns minutos, querendo dizer alguma coisa. Mas não dizia nada, estava como que apatetado, olhando a porta por onde o Cônego tinha saído. Naquele momento não podia pensar em nada. Estava cômico com a mão ainda estendida, o corpo meio caído para um lado, a batina suja e remendada, os olhos abertos, apavorados, os lábios tremendo como que querendo falar. As pesadas cortinas impediam que a luz entrasse na sala. O padre ainda se demorou na obscuridade.

Um comunista... Uma orquestra vagabunda, porém afinada, tocava uma velha valsa na rua:

"Fiquei sem alegria, senhor meu Deus..."

O padre José Pedro ia encostado à parede. O Cônego dissera que ele não podia compreender os desígnios de Deus. Não tinha inteligência, estava falando igual a um comunista. Era aquela palavra que mais perseguia o padre. De todos os púlpitos todos os padres tinham falado contra aquela palavra. E agora ele... O Cônego era muito inteligente, estava próximo de Deus pela inteligência, era-lhe fácil ouvir a voz de Deus. Ele estava errado, perdera aqueles dois anos de tanto trabalho.Pensara levar tantas crianças a Deus... Crianças extraviadas... Será que elas tinham culpa? Deixai vir a mim as criancinhas... Cristo... Era uma figura radiosa e moça. Os sacerdotes também disseram que ele era um revolucionário. Ele queria as crianças... Ai de quem faça mal a uma criança... A viúva Santos era uma protetora da Igreja... Será que ela também ouvia a voz de Deus? Dois anos perdidos...Fazia concessões, sim, fazia. Senão, como tratar com os Capitães da Areia? Não eram crianças iguais às outras... Sabiam tudo, até os segredos do sexo. Eram como homens, se bem fossem crianças... Não era possível tratá-los como aos meninos que vão ao colégio dos jesuítas fazer a primeira comunhão. Aqueles têm mãe, pai, irmãs, padre s confessores e roupas e comida, têm tudo... Mas não seria ele quem podia dar lições ao Cônego... O Cônego sabia de tudo, era muito inteligente. Podia ouvira voz de Deus... Estava próximo de Deus... Não foi dos alunos mais brilhantes... Tinha sido dos piores... Deus não ia falar a um padre ignorante... Ouvia João de Adão. Um comunista como João de Adão... Mas os comunistas são maus, querem acabar tudo... João de Adão era um homem bom... Um comunista... E Cristo? Não, não podia pensar que Cristo fosse um comunista... O Cônego devia entender melhor que um pobre padre de batina suja... O Cônego era inteligente e Deus é a suprema inteligência... Pirulito queria ser padre. Queria ser padre, sim, a sua vocação era verdadeira. Mas pecava todos os dias, roubava, assaltava. Não era culpa deles... Está falando como um comunista... Por que este vai num automóvel, fuma um charuto? Falando como um comunista... O Cônego disse, será que Deus o perdoa?

O padre José Pedro vai encostado à parede. As últimas notas da orquestra distante chegam aos seus ouvidos. Os olhos do padre estão esbugalhados.

Sim, padre José Pedro, Deus às vezes fala aos mais ignorantes... Aos mais ignorantes... Ele era ignorante... Mas, Deus, ouvi... São uns pobres meninos... Que sabem eles do bem e do mal? Se ninguém nunca lhes ensinou nada? Nunca uma mão de mãe nas suas cabeças. Uma palavra boa de um pai. Senhor, eles não sabem o que fazem...Por isso estive com eles, fiz como eles queriam muitas vezes...

O padre aperta as mãos, as eleva para o céu.

Será que um comunista age assim? Dar um pouco de conforto àquelas pequenas almas. Salvá-las, melhorar seus destinos... Antes dali só saíam ladrões, batedores de carteira, vigaristas, os melhores eram os malandros... A profissão mais digna... Queria que agora saíssem homens para o trabalho, honestos, dignos... Tinha que ir aos poucos... Do reformatório saíam piores... Não é com castigo brutal, Deus, ouvi... Lá o castigo é brutal... Só com paciência, com bondade... Cristo também pensava assim... Por que como um comunista?.. Deus pode falar a um ignorante... Abandonar as crianças? A paróquia está perdida... Mãe velha que soluçará... E a carreira da irmã na Escola Normal? Também ela quer ensinar a crianças... Mas serão outras crianças, crianças com livros, com pai, com mãe... Não serão iguais a estas abandonadas na rua, dormindo sob a lua, nas pontes, nos trapiches... Não pode abandoná-las. Com quem estará Deus? Com o Cônego ou com o pobre padre? A viúva... Não, Deus está com o padre... Está com o padre... Sou muito ignorante para ouvir a voz de Deus... Se esconde na porta de uma igreja. Mas por vezes Deus fala aos ignorantes... Sai da porta da igreja, continua a caminhada encostado na parede. Continuará, sim. Se estiver errado, Deus o perdoará... As boas intenções não desculpam os maus atos. Mas Deus é a suprema bondade... Continuará... Os Capitães da Areia talvez não deem só ladrões... E não seria uma grande alegria para Cristo?.. Sim, Cristo sorri. É uma figura radiosa. Sorri o padre José Pedro. Obrigado, meu Deus, obrigado.

O padre ajoelha na rua, levanta as mãos para o céu. Mas olha a gente que sorri. Se põe de pé espantado, salta num bonde cheio de vergonha.

Um homem comenta:

- Olha um padre bêbado. Que descarado...

Todos riem no ponto de bondes.

Boa-Vida meteu a unha negra, rasgou a bolha. Depois espiou o braço: estava cheio. Por isso sentia tanto calor, um amolecimento no corpo. Era a febre da bexiga.A cidade pobre estava assolada de bexiga.

Os médicos diziam que a epidemia já estava declinando, mas ainda assim eram muitos os casos, todos os dias ia gente para o lazareto. Gente que não voltava, pensou Boa-Vida. Até Almiro, por cuja causa se armara tão grande barulho no trapiche, fora para o lazareto. E não voltara... Era um menino bonito. Havia quem dissesse que ele e Barandão... Mas não era ruim, não aborrecia ninguém. Sem-Perna armara um escândalo. Depois que soubera que ele morrera ficara ainda mais retraído, parecia o culpado da morte de Almiro. Não conversava com ninguém. Só com o cachorro que arranjara.

- Acaba doido... - pensou Boa-Vida.

Acendeu um cigarro. Andou para o trapiche. Só o Professor estava. Àquelas horas da tarde era difícil que estivesse alguém no trapiche. Professor viu quando ele entrou:

- Passa um cigarro, Boa-Vida.

Boa-Vida jogou um. Chegou no seu canto, fez uma trouxa com seus trapos. Professor ficou espiando aquele movimento:

- Tu vai embora?

Boa-Vida andou até ele com a trouxa debaixo do braço:

- Tu não diz a ninguém... Só a Bala...

- Pra onde tu vai?

O mulato riu:

- Pro lazareto...

Professor olhou os braços cheios de bolhas, o peito.

- Tu não vai, Boa-Vida...

- Por que, mano?

- Tu sabe... É buraco na certa...

- Tu pensa que eu vou ficar aqui pra pegar nos outros?

- A gente trata de tu...

- Morria tudo. Almiro tinha casa, tá certo. Eu não tenho ninguém.

Professor calou-se. Queria dizer muita coisa. O mulato estava na sua frente, a trouxa debaixo do braço cheio de bolha de bexiga. Boa Vida falou:

- Tu diz a Pedro Bala. Os outros não precisa.

Professor só soube dizer:

- Tu vai mesmo?

Boa-Vida fez que sim, saíram do trapiche. Boa-Vida olhou a cidade, fez um gesto com a mão. Era como um adeus. Boa-Vida era malandro e ninguém ama sua cidade como os malandros. Olhou o Professor:

- Quando tu fizer meu retrato... Tu ainda vai fazer?

- Vou, Boa-Vida... Vontade de dizer palavras carinhosas como a um irmão. - Não me faz cheio de bexiga, não...

Seu vulto desapareceu no areal. Professor ficou com as palavras presas, um nó na garganta. Mas também achava bonito Boa-Vida andar assim para a morte para não contaminar os outros. Os homens assim são os que têm uma estrela no lugar do coração. E quando morrem o coração fica no céu, diz o Querido-de-Deus. Boa-Vida era um menino, não era um homem. Mas já tinha uma estrela no lugar do coração. Já desapareceu o seu vulto. E então a certeza de que não mais verá seu amigo encheu o coração do Professor. A certeza de que o outro ia para a morte.

Nas macumbas em honra de Omolu, o povo negro, castigado com a bexiga, cantava:

"Cabono, aziela engoma!

Quero vê couro zoa!

Omolu vai pro sertão Bexiga vai espalha".

Omolu espalhara a bexiga na cidade. Era uma vingança contra a cidade dos ricos. Mas os ricos tinham a vacina, que sabia Omolu de vacinas? Era um pobre deus das florestas da África. Um deus dos negros pobres. Que podia saber de vacinas? Então a bexiga desceu e assolou o povo de Omolu. Tudo que Omolu pôde fazer foi transformar a bexiga de negra em alastrim, bexiga branca e tola. Assim mesmo morrera negro, morrera pobre. Mas Omolu dizia que não fora o alastrim que matara. Fora o lazareto. Omolu só queria com o alastrim marcar seus filhinhos negros. O lazareto é que os matava. Mas as macumbas pediam que ele levasse a bexiga da cidade, levasse para os ricos latifundiários do sertão. Eles tinham dinheiro, léguas e léguas de terra, mas não sabiam tampouco da vacina. O Omolu diz que vai pro sertão. E os negros, os ogãs, as filhas e pais de santo cantam:

"Ele é mesmo nosso pai e é quem pode nos ajudar..."

Omolu promete ir. Mas para que seus filhos negros não esqueçam avisa no seu cântico de despedida:

"Ora, adeus, ó meus filhinhos,

Que eu vou e torno a vortá..."

E numa noite que os atabaques batiam nas macumbas, numa noite de mistério da Bahia, Omolu pulou na máquina da Leste Brasileira e foi para o sertão de Juazeiro.A bexiga foi com ele.

Boa-Vida voltou magro, a roupa dançando no seu corpo. A cara agora estava toda picada. Os outros o olharam ainda com receio quando naquela noite ele entrou no trapiche. Mas Professor andou logo para ele:

- Ficou bom, mulato?

Boa-Vida sorriu. Vinham apertar a mão dele, Pedro Bala lhe deu um abraço:

- Mulato bom. Mulato batuta.

Até Sem-Pernas veio, João Grande ficou junto de Boa-Vida. 0 mulato olhou os amigos. Pediu um cigarro. Sua mão estava descarnada, o rosto ossudo. Ficou calado, olhando com amor o velho trapiche, os meninos, o cachorro que estava deitado no colo do Sem-Pernas.

Então João Grande perguntou:

- Como era o lazareto?

Boa-Vida se voltou rápido. Seu rosto tomou uma expressão amarga de desgosto. Demorou um pouco a responder. Depois as palavras saíram com dificuldade:

- Ninguém sabe dizer, não. É uma coisa por demais... Uma nojeira. A gente quando entra é igual um que entra no caixão... Olhou os outros, que estavam suspensos das suas palavras. Sua voz era amarga - Igual que entrasse pro caixão pra ir pro cemitério... Igual...

Não achou mais que dizer. Sem-Pernas perguntou entre dentes:

- Que mais?

- Nada. Nada. Não sei, não... Por Deus, não pergunte... - baixou a cabeça, que balançava para todos os lados. Sua voz saiu muito baixa, como que ainda amedrontada:- É mesmo que ir pro cemitério. Tudo já está morto.

Olhou como se pedisse que não lhe perguntassem mais nada. João Grande disse para os outros:

- A gente não devia perguntar nada...

Boa-Vida apoiou com um gesto da mão. Disse baixinho:

- Nada... É ruim demais...

Professor olhou o peito de Boa-Vida. Estava todo picado da varíola. Mas no lugar do coração Professor viu uma estrela.

Uma estrela no lugar do coração.


Capítulo 11 - Destino

Ocuparam a mesa do canto. O gato puxou o barulho. Mas nem Pedro Bala, nem João Grande, nem Professor, tampouco Boa-Vida se interessaram. Esperavam o Querido-de-Deus na Porta do Mar. As mesas estavam cheias. Muito tempo a Porta do Mar andara sem fregueses. A varíola não deixava. Agora que ela tinha ido embora, os homens comentavam as mortes. Alguém falou no lazareto. É uma desgraça ser pobre, disse um marítimo.

Numa mesa pediram cachaça. Houve um movimento de copo no balcão. Um velho então disse:

- Ninguém pode mudar o destino. É coisa feita lá em cima - apontava o céu.

Mas João de Adão falou de outra mesa:

- Um dia a gente muda o destino dos pobres...

Pedro Bala levantou a cabeça, Professor ouviu sorridente. Mas João Grande e Boa-Vida pareciam apoiar as palavras do velho, que repetiu:

- Ninguém pode mudar, não. Está escrito lá em cima.

- Um dia a gente muda... - disse Pedro Bala, e todos olharam para o menino.

- Que é que tu sabe, frangote? - perguntou o velho.

- É filho do Loiro, fala a voz do pai respondeu João Adão olhando com respeito. - O pai morreu pra mudar o destino da gente.

Olhou para todos. O velho calou e também olhava com respeito.

A confiança foi de novo chegando para todos. Lá fora um violão começou a tocar.


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