Pouco depois de ter sido adotado pelos Sinzus fiz com eles a viagem a Réssan, onde estava o Grande Conselho da Liga das Terras Humanas.
O Conselho não tinha mais do que um representante de cada planeta, mas em Réssan existiam diversas colônias de raças diferentes, variando a sua população entre cinco mil e vinte mil almas. A maioria dos habitantes de Réssan — cento e setenta milhões — era de sangue hiss. Cinco mil ksills asseguravam a ligação entre as colônias e as suas metrópoles. Em contra partida, os Hiss só tinham relações irregulares com os planetas onde campeava a guerra, e que, em virtude da lei de exclusão, não estavam representados na Liga.
Em Réssan estavam os mais poderosos laboratórios. Ao longo dos séculos, do contato destes espíritos diferentes tinham surgido múltiplos progressos, para as ciências e para as artes. Quase todos os Sábios de Ella tinham estagiado nas Universidades de Réssan.
De cinco em cinco meses ellianos havia a reunião do Conselho da Liga. O delegado de Ella, que era constitucionalmente o presidente, era atualmente Azzlem.
Desta vez a reunião coincidia com a chegada de duas novas raças, as primeiras de sangue vermelho, e por este fato seria bastante solene, tanto mais que estas duas raças eram insensíveis ante a radiação mislik.
Como representante oficioso dum mundo em guerra, eu não podia aspirar a fazer parte da Liga.
Partimos de madrugada. Há três dias que a estação de chuvas começara em Ella, na zona onde eu habitava. Foi debaixo de forte temporal que o nosso réob decolou.
Fui com os Sinzus, e não no grande ksill pilotado por Souilik. Já tinha viajado nos ksills, e, por outro lado, agradava-me imenso fazer a travessia com Ulna.
Você deve ter notado que eu sentia por ela uma grande simpatia. Certos indícios — particularmente os remoques de seu irmão — pareciam indicar que eu era correspondido. Por outro lado, apesar da minha amizade por Souilik, Essine e outros Hiss, da sua inteligência e amabilidade, sentia-me exilado entre estes seres de pele verde. Contrariamente, com os Sinzus sentia-me quase entre compatriotas.
A partida da astronave fez-se também debaixo de temporal.
Segundos depois tínhamos ultrapassado as nuvens e avançávamos direto ao céu.
Eu estava no posto de pilotagem, com Ulna, Akéion, o tenente Ren e Arn, primo de Ulna, que pilotava. Em certos aspectos a técnica dos Sinzus é inferior à dos Hiss: o efeito da aceleração no nosso corpo é consideravelmente reduzido, mas não está anulado como nos ksills. Sente-se uma impressão de arranque, que a decolagem suave do ksill nunca nos dá.
A viagem não teve história. Passamos longe de Marte e dirigimo-nos para Réssan.
Este planeta é menor e mais frio do que Ella, estando também mais afastado de Ialthar. Vimo-lo vir para nós, espécie de bola esverdeada, crescendo rapidamente Aterramos no hemisfério norte, perto da Casa dos Mundos.
Esta fica num planalto elevado, rodeado de montanhas nevadas, abruptas e selvagens. Mais abaixo as vertentes tinham um tom verde-sombra. A vegetação de Réssan é inteiramente verde, dum verde azulado, muito diferente do verde das plantas terrestres. Em volta da Casa dos Mundos os Hiss tinham semeado a sua erva amarela, e do alto era um espetáculo digno de ver-se, a mancha amarelo-viva, como um campo de botões de ouro, no meio dum prado.
Os Sinzus — duzentos e sete ao todo — não eram suficientes para constituir uma colônia, e por isso fomos hospedados na Casa dos Estrangeiros, junto da Casa dos Mundos, que fora das sessões está desocupada. Como a sessão se realizaria somente dentro de uma semana — semana elliana, de oito dias —, ficamos como em nossa casa.
Estes oito dias, quase iguais aos de Ella, isto é, com vinte e sete horas de duração, foram dos mais agradáveis. Com Souilik e Essine demos deliciosos passeios, a lugares de uma beleza selvagem. Regressávamos sempre antes de anoitecer, porque em Réssan os dias são temperados, mas as noites são glaciais e a temperatura desce facilmente a 10° negativos. Depois do calor de Ella, este frio era-me agradável. Os Sinzus suportavam bem o clima, mas os Hiss, mais friorentos do que gatos, vestiam os escafandros para atravessarem a planície até ao ksill quando se demoravam até tarde junto de nós.
Reparei que perto havia uma encosta coberta de neve, e, ajudado pelos mecânicos da astronave, fiz um par de esquis. Oh, o espanto dos Hiss e dos Sinzus quando me viram deslizar pela encosta, num turbilhão de neve! Os Sinzus não tardaram em imitar-me e nomearam-me professor.
Souilik e Essine foram mais difíceis de convencer, e tinham aprendido a fazer uns escassos metros sem cair quando o Conselho se reuniu.
Azzlem veio de noite, com o pessoal hiss subalterno que assegurava o funcionamento da iluminação e do aquecimento.
Na madrugada do dia seguinte começaram a chegar ksills e antes das 10 horas a planície estava coberta de pássaros metálicos. Então a porta da Casa dos Mundos abriu-se e os delegados começaram a entrar em fila.
Empoleirados no ksill de Souilik, nós os observávamos Na frente ia Azzlem, seguido de Hélon. Depois desfilaram diante de nós todas as raças que eu já vira na Grande Escadaria de Ella, mas desta vez em carne e osso. Meu Deus, que espetáculo!
De pele azul, verde, amarela, grandes, pequenos, fortes ou ferozes, como o gigante kaïen, com olhos de lagosta, que vinha de uma galáxia tão longínqua como a nossa, mas na direção oposta.
Souilik mostrou-me alguns, que pareciam e podiam ser confundidos com os Hiss, como Kren, do planeta Mara, onde se fabrica uma bebida infecta, chamada «Aben-
Torne», que os convidados têm de beber, por delicadeza.
Na retaguarda vinham uns seres que de humano só tinham a inteligência. Alguns assemelhavam-se a monstruosos insetos blindados. Uma sensação esmagadora evolava-se deste cortejo, infinitamente variado. — Nunca ninguém conhecerá todos os planetas — disse Souilik melancolicamente.
Por fim entramos também na Casa dos Mundos. Se no exterior ela parecia um monolito, titânico e maciço, no interior era ricamente decorada de esculturas e pinturas. Numa galeria circular estavam imagens das mais importantes capitais.
Atravessamos um jardim de inverno, onde cresciam plantas exóticas. Souilik mostrou-me, num globo hermético e transparente, a planta stémet, do planeta Ssin, do Primeiro Universo. Ela torna toda a vida animal impossível, porque as suas flores, que parecem cinzeladas em ouro, destilam um veneno gasoso, mortal, em doses infinitesimais.
Por uma escada de degraus talhados em matéria verde e vítrea, que lembrava a obsidiana, chegamos a um camarote, do qual se via toda a sala de reuniões. Na minha direita ficou Ulna e a esquerda uma criatura feminina, frágil, cor de pervinca, cabelos negro-azulados, olhos de um violeta imenso, da raça R'ben, do planeta Pharen, da estrela Véssar, do Décimo Primeiro Universo.
Em baixo, no anfiteatro, os delegados ocupavam os seus lugares. Cada um tinha uma mesinha, onde brilhavam complicados aparelhos. Reinava um silêncio espantoso.
Os Hiss têm um sentido de encenação muito desenvolvido.
As luzes apagaram-se. Um projetor lançou um delgado facho de luz sobre o estrado. Dum alçapão subiu uma plataforma, na qual, em cadeiras de metal brilhante, estavam Azzlem e mais quatro delegados, entre os quais Hélon. Azzlem levantou-se e começou a discursar. Falava em hiss, mas, graças aos poderosos transmissores de pensamento, nós o ouvíamos na nossa língua. Lembrou as decisões tomadas no último Conselho e citou a minha chegada e a dos Sinzus e a milagrosa resistência que tínhamos contra a irradiação mislik. Graças a nós, a luta ia mudar: de defensiva, passaria a ofensiva. A primeira ação seria de reconhecimento ao interior do império inimigo, em pleno coração das Galáxias Malditas. Era possível que se passassem muitos séculos antes de o inimigo recuar. Mas haviam se acabado as hesitações. Armas não faltariam para matar os Milsliks. Tudo o que produzisse calor seria uma arma. Mas até então tudo o que haviam tentado custara-lhes caro.
Ele falou muito tempo. Descreveu para a assembleia, que representava o escol das raças celestes, a nossa estrutura. Devíamos a imunidade ao fato de o nosso corpo conter tanto ferro como o dos Milsliks. Apesar desta longínqua semelhança com os seres das Trevas, éramos dignos do nome de «homens».
Os Sinzus tinham lugar na Liga porque há muito tempo que haviam repudiado qualquer espécie de guerra. Em contrapartida, os «Tsériens» não seriam por enquanto senão aliados, mas a sua civilização era jovem, e ele esperava em breve podê-los receber em pé de igualdade.
— Discurso inaugural, sem importância sussurrou-me Souilik. — O verdadeiro trabalho seria feito pelos grupos. — Pela lei de exclusão você não poderá ser admitido na Liga, mas fará parte do grupo hiss.
— Por que hiss?
— Não esqueça que fomos nós que lhe descobrimos, apesar de depois ser você adotado pelos Sinzus.
Azzlem sentou-se. Houve um silêncio e, de súbito, cântico hiss que nunca tinha ouvido, ecoou. Não representou nada para mim, porque,como já disse, a música deles é demasiado complicada para nosso ouvido e tem notas que não são audíveis.
Olhando Souilik e Essine, fiquei atônito com a sua expressão, que refletia um êxtase, uma comunhão mística com todos os seres de sangue verde e azul. Em baixo, na sala iluminada por uma luz malva, todas as faces apresentavam a mesma expressão nostálgica e repousante. A minha vizinha de pele cor de pervinca também estava em êxtase. Só Hélon, no estrado, eu, Ulna e o irmão não parecíamos comovidos. De repente uma imagem surgiu no meu cérebro: uma vez, na Terra, eu vira umas «atualidades» que mostravam a multidão, em Lourdes, aguardando o milagre. Era com isto que se pareciam todas as muitas faces das raças do Céu. O cântico continuava: era uma evocação ao Deus criador, à Luz primordial.
Fez-se silêncio. Todos estes seres doutros mundos ficaram, por muito tempo, imóveis e recolhidos. Por fim, Azzlem fez um gesto e a multidão começou a sair.
— Não sabia que vocês tinham convertido estas raças para a religião dos Hiss, disse a Souilik.
— Não os convertemos. E você sabe que eu próprio sou cético. As palavras são inúteis. A música foi composta, há muitos séculos, por Rienss, o maior gênio musical de Ella-Ven. Ela é suficiente para nos pôr em transe. Acontece que age de maneira idêntica sobre todas as raças. E como todas as religiões, em tudo o que têm de mais elevado, coincidem… Mas você não sentiu nada?
— Não. E não creio que os Sinzus sentissem algo.
— Não diga isso! Não diga! Por agora, pelo menos. Os meus compatriotas são muito suscetíveis neste assunto. Os Homens-Insetos são como vocês, e isso, em princípio, trouxe-lhes complicações. Chegou-se a falar em exclui-los da Liga. Com vocês não há esse perigo. Vocês são a nossa grande esperança na luta com os Milsliks.
O Conselho durou onze dias. Antes do último dia não houve outra reunião plenária.
O trabalho foi feito pelas comissões técnicas, as quais assisti, integrado na delegação hiss. Após a cerimônia de encerramento, partimos para Ella. Soube, com desgosto, que os Sinzus ficavam em Réssan.
Retomei os hábitos anteriores. Continuei em casa de Souilik. Todos os dias ia na Casa dos Sábios, onde, com Assza e Szzan, nos entregávamos a experiências de biologia comparada.
Assza conseguiu reproduzir, artificialmente, a radiação mislik. Eu nunca cheguei a compreender claramente a sua natureza, mas posso afirmar que nada tem que ver com as radiações eletromagnéticas. Os Hiss e os Sinzus — e outras raças ainda chegaram a capítulos da física dos quais os nossos sábios terrestres não suspeitam sequer a existência.
Me sentia perfeitamente a vontade em Ella. Já falava o hiss, não corretamente, mas correntemente, e não tinha necessidade, para compreender uma conversa, de usar o capacete. Adotado pelos Ellianos, tinha amigos, relações, um trabalho. Fazia oficialmente parte, a título de membro estrangeiro, da Seção de Biologia Aplicada na Luta Antimislik, e, por isto, eu, biologista terrestre, colaborava com Szzan e Ressenok, tendo debaixo das minhas ordens uma dezena de jovens biólogos hiss.
Estava de tal modo integrado na vida elliana que um dia, no laboratório, conversando com Assza, proferi um «nós, os Hiss», que provocou uma tempestade de gargalhadas. Os Hiss são um povo realmente amável, cheio de delicadezas, apesar da sua frieza natural, mas de mais fácil convivência que os Sinzus, duma maior suscetibilidade.
Ao fim de um mês a astronave regressou de Réssan — e tive o prazer de ter Ulna e Akéion na nossa equipe.
Os meus dias passavam-se assim: ao nascer de Ialthar, depois de tomar o pequeno almoço com Souilik, ia para o laboratório. Passava pela astronave para levar Ulna e o irmão. Trabalhávamos até de tarde. Ao meio-dia ia almoçar, umas vezes na Casa dos Estrangeiros, outras na astronave. Voltávamos novamente para o laboratório, onde trabalhávamos até ao anoitecer. Quando o tempo estava bom íamos nos banhar na baía. Não podíamos nos afastar para o largo, porque era bastante perigoso, por haver muitos vsiivz, espécie particularmente voraz de peixes.
Havia uma barragem protetora de hassrn, que, pelos seus raios antibióticos diferenciais, evitava que eles entrassem. Souilik e Essine apareciam por vezes a nos fazer companhia. Os Hiss são admiráveis nadadores. Souilik fez várias vezes, diante de mim, em 47 segundos, 100 metros, pulverizando a brincar o nosso recorde do mundo.
Os Hiss e os Sinzus praticavam muitos exercícios físicos.
Mais fracos do que os Terrestres, ultrapassavam-nos em agilidade. Farto de ser batido por eles em natação, corridas e saltos, ensinei-lhes o lançamento do peso, do disco e do dardo, ou, mais exatamente, relembrei-lhes a sua prática, porque os Hiss se tinham dedicado a desportos análogos na antiguidade.
Já de noite, regressávamos de réob. Souilik ensinou-me a conhecer as estrelas do seu céu. Ficávamos por vezes até tarde a contemplá-Ias a olho nu ou auxiliados por um binóculo. Os Hiss são um povo cósmico: até as crianças conhecem as constelações, o que é matéria de exame. Ulna e o irmão vinham por vezes ter conosco, num pequeno engenho em forma de torpedo, mais rápido do que o réob, mas menos estável.
Enquanto eu trabalhava, procurando proteger os Hiss contra as radiações Milsliks — tínhamos conseguido só uns pequenos avanços —, Souilik e centenas doutros jovens comandantes de ksill treinavam no manejo de armas, para a grande luta. Uma ilha no mar Verde foi evacuada e bombardeada com um verdadeiro dilúvio dos mais variados projéteis, desde a nossa bomba atômica até estranhos engenhos de destruição, dos quais, felizmente, não temos a menor idéia na Terra, e de que oportunamente farei a descrição. —
Um dia recebi ordens para aprender a manejar um ksill.
Levei mais de três meses para o conseguir. Dirigir este engenho no Espaço não é mais difícil do que pilotar um réob. A dificuldade está na passagem no ahun. Não consegui mais do que o brevet de 2 classe… Aprendi a partir para o ahun e a voltar por tentativas, surgindo aqui e ali no Espaço. Nunca ultrapassei o Quarto Universo. Ir mais longe, e sobretudo regressar, exigia capacidades matemáticas, que não tinha.
Não compreendi nada da teoria do ahun, mas pilotava o ksill como as mulheres terrestres conduzem aceitavelmente automóveis sem compreenderem nada de motores de explosão.
Ainda que pareça estranho, foi-me assaz fácil, mais tarde, comandar a astronave sinzu. No dizer dos Hiss e dos Sinzus, há diferenças no processo de atravessar o ahun — rr'oor, como lhe chamam os Sinzus.
Eles nem mesmo têm a certeza de que se trate do mesmo ahun! De fato, um ksill e uma astronave, navegando de conserva, e entrando simultaneamente no ahun, demorando-se lá o mesmo tempo, não saem juntos. A diferença pode ir até um quarto de ano luz, quando se trata de longas distâncias.
Me lembro perfeitamente de uma noite, por esta altura, em que, excepcionalmente, Souilik, Essine e eu ficamos na Casa dos Estrangeiros. Estávamos na praia, esperando Ulna e Akéion. Souilik informou-me oficialmente do seu próximo casamento com Essine, casamento do qual eu devia ser stéen-sétan, Ulna chegou sozinha e sentou-se junto de mim. O céu estava particularmente límpido e as estrelas brilhavam intensamente. Souilik interrogou-me sobre elas e eu designei Oriabor, de um amarelo-avermelhado, Schéssin-Siafan, vermelha, Béroé, azulada, as três da constelação de Sissantor, etc. — Não volte a cabeça: Qual é a estrela, grande, muito azul, que está exatamente, por detrás de você, mais ou menos a 30° acima do horizonte?
— Kalvénault — disse eu triunfante. E voltei-me para verificar. — Mas não a acho particularmente azul — acrescentei.
— Ah! Isso depende um pouco da sua posição — respondeu-me, sem sequer olhar. —
Fui uma vez a um planeta de Kalvénault, inabitado mas muito bonito.
Akéion chegou neste momento, acompanhado de alguns Sinzus, e nós mudamos de conversa.
Posteriormente pensei muitas vezes que tinha sido o primeiro a verificar a anormalidade de Kalvénault. De fato, tratando-se de uma estrela próxima — a menos de seis anos-luz —, e muito conhecida, era raramente observada pelos Hiss, tanto pelos astrônomos como pelos simples cidadãos.
O casamento de Souilik teve lugar cerca de dois meses ellianos depois desta noite.
Há duas espécies de casamentos em Ella. O mais simples se resume na presença dos noivos diante de um membro do registo civil. O segundo, mais complexo, faz-se segundo os antigos ritos. Era este o caso do de Souilik, pois ia casar com a filha do grão-mestre das emoções místicas.
Como eu era o stéen-sétan, dois jovens padres hiss vieram oito dias antes da cerimônia iniciar-me.
Na era das guerras proto-históricas acontecia frequentemente os casamentos entre tribos diferentes serem perturbados por guerreiros, que não aceitavam a partida da jovem da tribo. Por isso o noivo escolhia na própria tribo da noiva, ou em qualquer outra, mas nunca na sua, o stéen-sétan, encarregado de proteger os jovens recém— casados durante os três dias que duravam as cerimônias.
O stéen-sétan era quase sempre um guerreiro conhecido pelos seus feitos, um chefe influente ou um padre. Claro que agora já não se tratava de combates armados, mas a excitação das bebidas provocava por vezes verdadeiras batalhas.
Ainda por cima, a noiva não podia retirar-se nem um minuto, o que anularia o casamento. Souilik escolheu-me não só como amigo, mas também por causa da minha grande fôrça de terrestre. Recrutei onze fortes auxiliares entre os familiares de Essine.
Os primeiros ritos desenrolaram-se em casa de Essine e foram estritamente de caráter particular. Só assistiram os membros da família, os padres e eu, na minha qualidade de stéen-sétan. Foram muito simples e Souilik aborreceu-se durante as longas orações, mas Essine e os outros estavam realmente concentrados. Houve também cânticos arcaicos, mas sem aqueles graves e agudos que caracterizam a música contemporânea hiss. Acendeu-se uma chama verde — cor de sangue! — , que deveria estar acesa durante três dias. No segundo dia houve a cerimônia do juramento mútuo, em que os noivos se prometeram ajuda e proteção, mas não fidelidade, porque isso era a regra. Depois houve um pequeno banquete só para os íntimos. Foi somente no terceiro dia que o meu papel se tornou ativo.
Começou pela promessa às estrelas: os esposos comprometeram-se a educar os filhos no culto da Luz e no ódio aos Filhos da Noite e do Frio. Houve um intervalo de cinco horas, consagrado a oração, e finalmente o grande banquete.
Este teve lugar no Palácio do Casamento do distrito. Éramos mais de quatrocentos na mesa. Todo o pessoal científico dos laboratórios da Casa dos Sábios e mesmo alguns dos Sábios — grande honra, devida ao fato de Souilik ter descoberto uma raça de sangue vermelho. Assza também estava e informou-me de que o Mislik morrera.
Assistiram uma delegação de comandantes de ksill, com o ajudante de campo do «almirante», vinte e sete Sinzus, entre os quais Ulna e o irmão, e uma multidão de Hiss, conhecidos e desconhecidos. Vi com surpresa, na esquerda de Essine, a jovem de pele cor de pervinca.
Tratava-se de uma amiga dos tempos universitários, nascida em Réssan, que dava pelo encantador nome de Beichitinsiantorépanséroset. Safa!
Fiquei numa mesa junto da única porta, com os meus onze auxiliares. Usando do meu privilégio, convidei Ulna e o irmão para junto de mim.
Serviram-se variadíssimos pratos, todos com forma de geleias coloridas, dos quais alguns me pareceram deliciosos, outros medíocres ou até, francamente, maus. As bebidas eram igualmente variadas, fracamente alcoolizadas, de gosto muito variado para o meu paladar.
Quase ao fim do banquete, Zéran, o comandante-chefe da esquadrilha de ksills, ofereceu a Souilik o famoso «Aben— Torne» dos Krens, do planeta Mara.
Que cara ele fez quando foi obrigado a ingerir a bebida que tanto detestava! Pedi para a provar e fiquei agradavelmente surpreendido: parecia-se com um excelente e velho uísque! Ulna e Akéion foram da mesma opinião, e os três acabamos a garrafa, perante os olhares horrorizados dos Hiss.
Reinava franca alegria, como é hábito em qualquer reunião elliana. Supunha o meu papel terminado, sem ter de intervir, quando ouvi barulho lá fora.
Assza partira para a Casa dos Sábios, chamado por um trabalho urgente. Pela porta entreaberta chegou-nos um clamor. Me levantei imediatamente e reuni os meus auxiliares. Cerca de trinta jovens Hiss aproximavam-se, entoando uma antiga canção guerreira. Segundo a praxe, eles iam tentar entrar à fôrça e raptar a noiva.
Cumpria-me evitá-lo, por qualquer preço, durante meio basike.
A luta foi rija. Eles atacaram e foram recebidos com uma saraivada de golpes, em que a minha fôrça de terrestre fez maravilhas. Desde os antigos tempos de colégio, onde jogava rugby ao seu lado, como talonador, que eu não me divertia tanto! A luta continuou durante um quarto de basike, com diversas alternativas, mas o «inimigo» não conseguiu forçar a passagem. De repente, por cima das cabeças dos assaltantes, vi um réob aterrar a toda velocidade.
Um Hiss de grande estatura precipitou-se. Era Assza.
Correu para nós, gritando, mas o barulho impedia-me de o ouvir, e não transmitia porque estava longe. Mergulhei no meio da multidão, empurrando e gritando:
«Calem-se, calem-se!». Durante uns segundos de relativo silêncio consegui ouvir:
— Kalvénault vai se extinguir. Kalvénault vai se extinguir!