Voltei a partir com Souilik. Voamos na direção este. Perguntei-lhe se não seria possível, em vez de regressarmos diretamente, sobrevoarmos um pouco aquela parte do planeta, a baixa altitude.
— Evidentemente que é possível — respondeu. — Enquanto os Sábios não tomarem alguma disposição a seu respeito, estou dispensado de qualquer serviço, salvo o de velar pela conservação do meu ksill. Onde quer ir?
— Não sei. Podemos falar com Aass?
— Não. Aass já partiu para Marte, onde reside, e eu não posso lhe conduzir para fora de Ella. Aliás, seria uma longa viagem e você tem de se apresentar depois de amanhã perante os Sábios. Mas podemos ir ver Essine, se isso lhe agrada.
— Pode ser.
Já tinha notado que Souilik sentia uma viva simpatia por Essine. No entanto não falei nisso, não sabendo se para os Hiss uma simples alusão poderia ser considerada como uma grande injúria ou, simplesmente, como uma grave falta de delicadeza.
Essine habitava a 1.600 brunns da casa de Souilik, ou seja a cerca de 800 quilômetros. A meu pedido, não voamos muito depressa e demos numerosas voltas.
Desse modo o percurso demorou duas horas. Sobrevoamos uma imensa planície, depois uma região desolada, selvagem, cortada por profundo vales, uma cadeia de vulcões extintos e, finalmente, uma estreita faixa de terra entre as montanhas e o mar. Sobre esta última região percorremos cerca, de 100 quilômetros e chegamos, então, a uma grande e elevada ilha. Essine habitava uma casa análoga a de Souilik, mas mais vasta e pintada de vermelho.
— Essine é uma Siouk, enquanto eu sou um Essok — explicou Souilik. — É por isso que a casa dela é vermelha e a minha branca. É tudo o que resta das antigas diferenciações nacionais, bem como alguns usos particulares. Lhe previno, por exemplo, de que em casa deles é considerado como muito indelicado recusar-se a comer mesmo que não se tenha fome, ao passo que entre nós isso é perfeitamente permitido.
Comecei a rir, pensando em alguns vinicultores da Terra, que se sentem ofendidos se não aceitamos provar o seu vinho. Souilik pediu-me explicação para a minha hilaridade.
— Decididamente — exclamou ele —, todos os planetas se assemelham. É a mesma coisa com os Krens, do planeta Mara, da estrela Stor, do Quarto Universo! Têm uma bebida, a que chamam «Aben-Torne», que para nós é horrorosa. E, no entanto, já a tive de beber por três vezes! O «vinho» que vocês oferecem é bom?
— Umas vezes bom, outras mau. Rimo-nos.
Chegamos na porta da casa, e então penetrei, pela primeira vez, num lar hiss.
Convém agora que eu antecipe a narrativa e lhe dê algumas informações sobre a organização social de Ella. Como acontece conosco, a célula-base é constituída pela família; contudo, os laços familiares são, legalmente, mais frouxos, mas, na realidade, mais apertados do que os nossos. O casamento pode ser dissolvido por comum acordo, mas é um caso muito raro. Os Hiss são de temperamento nitidamente monogâmico. Casam-se geralmente jovens, numa idade que corresponde aos nossos 25 anos. Nunca têm mais de três filhos, mas raramente menos que dois. Antes do casamento, segundo o que observei, os costumes são livres, mas depois tornam-se muitos estritos.
Todos os jovens Hiss têm de frequentar a escola até aos 18 anos, em números terrestres. Uns escolhem então uma profissão e passam a frequentar as escolas técnicas; os outros, os mais dotados, ingressam naquilo que, na Terra, são as nossas Universidades. Entre estes são escolhidos os melhores, que participarão da exploração do Espaço. Apesar de muito jovem, e embora continuasse os seus estudos, Essine já participara de três explorações no ksill comandado por Souilik.
As casas siocho diferençavam-se da de Souilik na porta ele entrada, que dava diretamente para uma larga sala de recepção, mobiliada com cadeiras baixas.
Essine aguardava-nos, ladeada pela sua irmã mais nova, pelo irmão e pela mãe. O seu pai, importante personagem, denominada «ordenador das emoções místicas» — pelo menos foi o que percebi do que me foi transmitido —, estava ausente.
Senti-me imediatamente confuso. Souilik e os outros Hiss entabularam uma viva conversação em linguagem falada e eu limitei-me a ficar sentado, olhando em volta.
A sala estava quase nua: os Hiss não apreciam os bibelôs. As paredes, pintadas de azul-claro, estavam decoradas com formas geométricas.
Pouco depois a mãe saiu e ficaram apenas os jovens. A irmã de Essine veio sentar— se na minha frente e pôs-se, bruscamente, a bombardear-me com perguntas: donde vinha, qual era o meu nome, a minha idade, a minha profissão? Como eram as mulheres terrestres? Que pensava eu de Ella?…
Souilik e Essine vieram participar também na conversa e ao fim de alguns minutos esqueci-me completamente de que estava num mundo estranho. Tudo me parecia familiar. Quase que o lamentava, dizendo para comigo que, na realidade, esta fantástica viagem era vã, dado que todas as humanidades do Céu se assemelhavam.
Quase que não valia a pena deixar a Terra para encontrar muito pouco que fosse de novo. Novo! Bolas! Depois veria se havia ou não algo de novo! Quando penso nos horrores daquele planeta Siphan! Mas naquela altura ignorava ainda tudo isso e parecia-me que física e mentalmente, apesar da pele verde e dos cabelos brancos, os Hiss se assemelhavam muito a nós.
Transmiti essa reflexão a Souilik. Antes que ele pudesse responder, Essen-Iza, a irmã de Essine, adiantou-se:
— Oh! sim, você dá a impressão de ser um Hiss barbado, cor-de-rosa!
Souilik sorria enigmaticamente Acabou por afirmar:
— Na verdade, vocês nada sabem. Eu já tomei contacto com cinco humanidades, das quais uma, os Krens, são tão parecidos fisicamente conosco que é quase impossível distinguir-nos; Ao princípio são as semelhanças de costumes que chamam a atenção. Depois… Quando já tiver vivido muito tempo em Ella talvez você pense como os Froons, de Sik, da estrela Wencor, do Sexto Universo, que, por questões várias, têm relações conosco, mas, na verdade, não nos suportam.
Depois disto partimos. Essen-Iza e seu irmão Ars desejaram cerimoniosamente um «bom vôo» a Souilik e a «Srenn Sévold Slair», isto é, ao Sr. Vsévolod Clair. Essine acompanhou-nos no seu réob.
Uma hora depois estávamos de volta na casa de Souilik.
Essine demorou-se pouco tempo e nós ficamos sós. Não me recordo muito bem do que fizemos no meu primeiro dia em Ella. Me parece que só mais tarde é que eu comecei a aprender a falar e a escrever o hiss. Talvez fosse Souilik quem me ensinou esse curioso» Jogo das Estrelas», que se joga numa espécie de tabuleiro redondo e que consiste em conseguir, com pedras que representam estrelas, planetas e ksills, uma certa combinação que permite empregar «o Mislik»; a partir desse momento tem-se a partida ganha, porque a parada é difícil e pode-se então começar a «extinguir» as estrelas, do adversário.
Passamos o fim da tarde juntos. Eu começava a me afeiçoar por aquele jovem Hiss, que se tornaria o meu melhor amigo em Ella. Após uma ligeira refeição, em que, pela primeira vez, provei os alimentos destinados aos Sinzus (que têm um sabor acentuado de carne), saímos e sentamo-nos na porta da casa.
Interroguei Souilik sobre as suas viagens. Ele conhecia cinco planetas humanos e muitos outros inabitados ou habitados somente por formas inferiores de vida. Alguns desses mundos — o planeta Biran, o sol Fsien, do Primeiro Universo, por exemplo — eram de uma beleza extraordinária; outros, pelo contrário, desolados. Souilik estivera também nos planetas Aour e Gen, do sol Ep-Han, do Primeiro Universo — o dos Hiss — , cujos habitantes se tinham suicidado em guerras infernais. Me mostrou fotografias a cores desses mundos, excelentes imagens que não sonhamos conseguir com a nossa técnica. Tenho algumas comigo. Mostrou-me também uma estatueta encontrada nas ruínas de uma cidade de Aour, frágil objeto de vidro que escapou ao desastre e que, apesar do estranho ser que representava — uma espécie de homem alado, com cabeça cônica —, era de uma invulgar perfeição.
Não tenho uma recordação nítida do que se passou no dia seguinte. Melhor: tenho-a, certamente, mas deve estar misturada com a dos dias que se sucederam.
No entanto, recordo-me muito bem do dia imediato a esse, pois foi o da minha segunda visita na Casa dos Sábios.
Parti com Souilik no réob. A viagem foi rápida e logo que chegamos fui introduzido no gabinete de Azzlem, enquanto Souilik tornava a partir. As paredes da sala eram nuas, com exceção de cinco painéis retangulares que pareciam feitos de vidro despolido, No centro, sobre uma mesa de uma matéria estranha, estavam alguns pequenos aparelhos e um quadro de comandos complexo. Azzlem mandou-me sentar em frente a ele Uma vez mais senti uma impressão familiar, aquela que sentia quando era interno no hospital e o chefe de equipe me mandava chamar.
Azzlem devia ser idoso. A descoloração da pele estava desenvolvida e dava-lhe um ar esverdeado, que entre nós parecia doentio. Mas o seu corpo, que se desenhava sob a cota cinzenta, faria inveja a muitos atletas da Terra.
Ficou um momento me olhando de frente, sem nada transmitir. Sentia que me comparava aos numerosos espécimes de outros seres que tinham-me precedido neste gabinete. Depois a nossa conversação silenciosa começou:
— É extremamente lamentável que os seus compatriotas dizia ele — tivessem atacado o nosso ksill e tenham assim matado dois dos nossos. Aass é um pouco culpado, arriscado daquela maneira. Não calculou que vocês já soubessem voar.
— Aprendemos a fazê-lo tem pouco tempo — respondi. Mas nenhum dos nossos aparelhos atingiu ainda, salvo um ou outro foguete experimental, o vazio interplanetário.
— Como? Sabem voar e não puderam sair da atmosfera? E quais foram esses engenhos que o conseguiram? Não percebi um dos seus pensamentos.
— Um foguete! — disse eu. E fiz uma descrição mental desses aparelhos O seu rosto exprimiu surpresa.
— Já percebo. Bem entendido, nós conhecemos teoricamente os «foguetes». Mas não os empregamos. O rendimento é deplorável! E os engenhos volantes de vocês são movidos por esses «foguetes»?
— Alguns. Outros, por motores de explosão.
Tive de explicar novamente este termo Também eu começava a ficar admirado.
Fiz-lhe, por minha vez, uma objeção. — Não vejo — disse eu — a relação que há entre o vôo na atmosfera e a possibilidade de sair dela.
— É evidente! Desde que se puderam utilizar os campos gravíticos negativos, o sair da atmosfera não foi senão uma questão de conseguir aparelhos estanques. Vocês utilizam gravíticos?
— Não posso afirmá-lo, embora não saiba exatamente do que se trata.
Azzlem tentou durante muito tempo me fazer compreender.
Mas, muitas vezes, eu não só não compreendia, como não «ouvia» nada. Azzlem usava noções que me eram completamente estranhas e toda a comunicação se interrompia imediatamente entre os nossos pensamentos. Lamentei imenso não ser um físico ou, então, que você estivesse lá! Se bem que seria muito melhor que fosse o próprio Einstein. Azzlem desistiu.
— Sejam quais forem os meios de propulsão, o que é certo é que um dos aparelhos de vocês atacou o nosso ksill eficazmente. Souilik já me disse que isso foi devido a um equívoco. Acredito em você.
— Posso lhe fazer uma pergunta? — interrompi. — O ksill em que viajei foi o primeiro a visitar a Terra?
— Sim, posso lhe garantir. Todas as ordens para explorações são dadas por mim. Eu tinha mandado Aass e Souilik ver se existiam outros universos para além do Décimo Sexto. O seu fica vinte vezes mais afastado do que aquele, o que significa que é necessário estar vinte vezes mais tempo no ahun para o atingirmos. Não posso garantir, contrariamente ao que lhe disse Aass, que seja possível o seu regresso. Não é seguro que possamos ultrapassar a tal ponto as regras de navegação no ahun.
Saberemos em breve. O meu filho Asserok vai regressar do Décimo Sétimo Universo, descoberto durante a viagem de Aass, e que está quase tão distanciado como o de vocês e na mesma direção. Quando digo que o descobrimos é inexato. Foram eles que nos descobriram. Têm também o sangue vermelho, conhecem o ahun e assemelham-se aos terrenos.
— Mas se o ksill — disse eu — foi, então, o primeiro a nos visitar, o relatório oficial de um dos governos da Terra, concluindo por erros de observação ou alucinações, os testemunhos do aparecimento de «discos voadores», era exato!
Contei-lhe toda a história e Azzlem riu-se com vontade.
— Pois bem: algumas vezes também entre nós houve espíritos aventurosos que adivinharam a verdade a partir de dados falsos. E, agora, ao trabalho! Vou lhe confiar a alguns Sábios que vão lhe interrogar sobre a Terra. Em seguida lhe daremos uma idéia resumida da nossa história.
Passei a maior parte do dia respondendo, o melhor que sabia, a toda uma série de perguntas variadas, algumas completamente incongruentes. E foram essas estranhas perguntas que, pela primeira vez, me deixaram antever a que ponto os Hiss diferiam de nós, em certos aspectos. As minhas respostas, por vezes, quase os escandalizavam. Quando, a propósito do estado sanitário e das doenças da Terra, lhes falei das devastações do alcoolismo — conheciam o álcool, que sobre eles tem efeitos análogos aos nossos — me perguntaram porque não suprimíamos os ébrios ou não os mandávamos colonizar um planeta desabitado. Quando, a propósito disso, lhes falei do respeito pela vida humana que tentávamos desenvolver na Terra, sem grande êxito, é preciso dizê-lo, todos me responderam: «Mas os ébrios não são homens! Atentam contra a «lei divina»!
O que era essa «lei divina» só mais tarde o soube.
De noite Souilik veio me buscar e soube então que era ele quem me instruiria sobre o passado de Ella. Na verdade, como quase todos os Hiss, o meu amigo desempenhava dois gêneros de tarefa: uma, social, como comandante de um ksill; outra, pessoal, que para ele consistia naquilo a que chamava «arqueologia universal».
Como oficial estava submetido, durante determinados períodos, a uma rigorosa disciplina. Mas, uma vez terminado o serviço, tornava-se num dos mais novos (mas, me contou Essine, um dos melhores) «arqueólogos universais».
Foi nesse noite, na casa dele, que eu tive a minha primeira lição de história hiss, no gabinete de Souilik, onde notei dois quadros de vidro despolido, como no de Azzlem.
— Segundo o que hoje você disse (eu estava ausente, mas fui posto ao corrente), a humanidade apareceu no seu planeta ao cabo de muito tempo e alguns crêem ter tido origem na animalidade. Conosco, em Ella de Oriabor, aconteceu o mesmo. Ali os nossos ancestrais começaram por utilizar instrumentos e armas de pedra e, graças a quase indestrutibilidade dessas matérias, estamos mais bem informados sobre os alvores da nossa espécie do que sobre as eras mais recentes.
Dirigiu-se a um mostrador e fez uma pequena manobra semelhante a que se faz para marcar um número de telefone. Um dos quadros de vidro despolido iluminou-se e apareceram imagens: eram instrumentos de pedra lascada, exatamente semelhantes aos descobertos nas nossas grutas.
— Acabei de marcar uma referência e a biblioteca arqueológica transmite-me estes documentos — explicou ele — Mais tarde a civilização nasceu no planeta e, tal como na Terra, os impérios ergueram-se e caíram, as guerras destruíram a obra de séculos, as raças foram exterminadas e as populações sucumbiram. Nasceram crenças que se tornaram quase universais, para, progressivamente, desaparecerem umas após outras.
Os Hiss parece não terem experimentado a relativa estagnação técnica que se verificou nos tempos de Roma e na Idade Média. Desse modo, as guerras tornaram— se rapidamente devastadoras. A última que se verificou remontava a cerca de 2.300 dos nossos anos e tinha terminado num planeta arrasado por armas de cujo poder não fazemos, felizmente, a mínima idéia. Houve, então, um longo período durante o qual, por falta de população suficiente, a civilização esteve prestes a soçobrar. Só se manteve graças a obstinação de alguns sábios e ao refúgio que a Ciência encontrou nesse período de pilhagem e de pequenas guerras civis, nos mosteiros subterrâneos dos adeptos de uma poderosa religião.
Desse modo, quando, após quinhentos anos de desordem, a civilização partiu para a conquista do planeta (conquista facilitada pelo fato de a população ter regressado, praticamente, para a idade dos metais), essa nova civilização, dizia, era uma espécie de teocracia científica. Bem mais difícil foi a reconquista do solo. Regiões inteiras haviam sido devastadas, envenenadas por uma radioatividade permanente, queimadas, empedernidas.
Durante um largo período o nível da população foi limitado: Ella-Ven só poderia alimentar cerca de cem milhões de habitantes, em vez dos sete bilhões que existiam antes da Guerra dos Seis Meses.
A solução para o problema fora encontrada mil anos antes da minha chegada: a emigração. Há muito tempo que os Hiss sabiam que Ialthar comportava vários planetas habitáveis, contrariamente a Oriabor, que contava somente com Ella-Ven.
Precisamente antes da Guerra dos Seis Meses tinham descoberto a forma de controlar os campos gravíticos. No entanto, essa descoberta foi imediatamente aplicada, por vários governos, na construção de engenhos bélicos. O segredo perdeu-se depois durante largo tempo, até ser redescoberto por acaso. Durante o «Período Sombrio» as pesquisas científicas encaminharam-se mais para o campo da biologia do que para o da física; dada a falta de fontes de energia suficientes.
Uma vez descobertos de novo os campos gravíticos, a solução surgiu: emigrar para os planetas de Ialthar. Ialthar está, como lhe disse, a cerca de um quarto de ano-luz de Oriabor. Os campos gravíticos permitiram atingir uma velocidade que ultrapassa um pouco a metade da velocidade da luz. Era, portanto, uma viagem relativamente curta.
Foi realizada, novecentos e sessenta anos antes da minha chegada, por mais de duas mil astronaves, cada uma das quais transportava trezentos Hiss, material e animais domésticos ou selvagens. Uma expedição anterior tinha concluído pela perfeita habitabilidade de Ella-Tan, Nova-Ella, Marte e até de Réssan, mais frio do que os outros. Foram, portanto, cerca de seiscentos mil os Hiss que, um belo dia, desembarcaram num planeta onde só existiam formas animais.
Esta primeira colonização foi uma catástrofe. Mal os colonos tinham começado a edificar algumas cidades provisórias, terríveis e novas epidemias dizimaram-nos.
Morreram, dizem as crônicas, mais de cento e vinte mil pessoas em oito dias! O hassrn, com os seus raios abióticos diferenciais, ainda não tinha sido inventado.
Aterrorizados, muitos dos Hiss regressaram a Ella-Ven, levando a epidemia. A civilização esteve de novo prestes a perecer.
Os colonos sobreviventes, pouco a pouco imunizados contra os micróbios do seu novo planeta, cresceram em número durante os séculos seguintes. Setecentos anos antes da minha chegada o hassrn foi inventado e o problema deixou de existir. Os Hiss colonizaram então Marte e Réssan. Há seiscentos anos, um dos seus físicos, ancestral de Aass, diga-se de passagem, descobriu a existência do ahun e a possibilidade teórica de o utilizar para atingir as estrelas distantes. Como já lhe expliquei, essa descoberta teve para os Hiss uma importância religiosa extraordinária. As distâncias entre as estrelas, se bem que mais reduzidas, em média, do que na parte da nossa galáxia onde se encontra o Sol, tornaram-se impossíveis de vencer: a estrela mais próxima de Ialthar, depois de Oriabor, é Sudéma, a um ano-luz, o que significa, para ida e volta, uma viagem de quatro anos.
Seguidamente é Erianthé, a dois anos e meio-luz, ou seja depois de quase dez anos de viagem. Os Hiss não foram nunca mais longe por este processo; e ainda tinha sido preciso empregar a hibernação artificial.
Com a utilização do ahun, em compensação, o problema apresentava-se sob um aspecto inteiramente novo e as possibilidades de exploração tornavam-se praticamente ilimitadas. E aos olhos dos Hiss isto parecia a realização da Antiga Promessa. Seria absolutamente impossível compreender fosse o que fosse tanto do que se segue como da mentalidade dos Hiss sem conhecer, pelo menos, as bases fundamentais da sua religião. Já lhe falei deste culto perseguido e sempre renascente que, finalmente, tinha triunfado. Veio a ser a religião, não direi oficial, porque seria pouco de mais e inexato, mas a religião «impregnante» de todos os Hiss. Os raros céticos que encontrei em Ella — Souilik é um deles — não são nada mal vistos. Mas a sua ação é fraca e o seu ceticismo não atinge, de resto, senão os dogmas. Priticamente, procedem como os crentes.
Os Hiss são maniqueus: para eles o universo foi criado por um Deus do Bem, em constante luta com um Deus do Mal. Não se trata, na realidade, do Bem e do Mal, no sentido que nós os entendemos, mas da Luz e das Trevas. O Deus da Luz criou o Espaço, o Templo, os Sóis. O outro procura destruí-los e levar o mundo ao nada, indiferenciado, original. Os Hiss — isto é capital — e as outras humanidades de carne são filhos do Deus da Luz. O outro criou os Milsliks.
Não tenho formação metafísica e não sou nada místico. Não lhe direi ter compreendido exatamente o pensamento deles É decerto mais sutil do que eu digo.
Mas o velho cético que sou foi muitas vezes perturbado quando pôde ler os livros sagrados dos Hiss, onde se encontram curiosas coincidências com a nossa Bíblia e certos texto religiosos hindus e onde figuram profecias que datam da sua pré— história, numa época em que eles não podiam saber o que existia fora do seu planeta, (Clair meteu a mão no bolso e tirou um pequeno livro, que me entregou. Sobre finas folhas apergaminhadas, minúsculos sinais estavam impressos a azul).
— São profecias de Sian-Thom — disse. — Elas datam de há mais de nove mil anos.
Vou lhe traduzir algumas passagens.
Folheou algumas páginas e leu para mim:
«E os Filhos da Luz, cada um na sua estrela, terão de lutar contra o desejo de destruir; e, na luta, derrotas e vitórias seguir-se-ão durante séculos. Mas no dia em que os Filhos da Luz, cada um na sua estrela, encontrarem o Caminho da Reunião, virá a mais dura prova, pois que os Filhos do Frio e da Noite tentarão tirar-lhes a Luz».
E isto:
«Hiss! Hiss! Vós sais a raça eleita para guiar os Filhos da Luz contra os Milsliks, filhos do Frio eterno. Mas nenhum chefe pode vencer sem os seus guerreiros, nem todos os guerreiros são hábeis nas mesmas armas, e nenhum chefe pode dizer com que arma vencerá. Não desdenheis, Hiss, a ajuda dos outros Filhos da Luz!».
E ainda:
«Não desdenheis, Hiss, aqueles que vos pareçam estrangeiros. Pode ser que sejam também Filhos da Luz, pode ser que tenham em si (Clair acentuou estas palavras) o sangue vermelho que os Filhos do Frio eterno não podem gelar».
E quando você souber o que me aconteceu mais tarde reconhecerá que é, pelo menos, assustador.
Enfim, a Antiga Promessa:
«Pelos caminhos do Tempo, eu, Sian-Thom, o Vidente, projetei o meu espírito no Futuro. Não procureis, Hiss, saber se esse futuro está próximo, ou tão longe como o horizonte do deserto de Siancor, que recua quando o viajante avança. E vi a raça eleita dos Hiss receber os embaixadores de todos os Filhos da Luz, e a sua linha triunfa enfim dos Filhos da Noite e do Frio eterno. Digo-vos, Hiss, o mundo pertencer-vos-á, tão longe como possais imaginar, para lá das estrelas, mas ele não pertencerá só a vós. Pertencerá a todos unidos, Hiss, todos unidos, vencerão os Seres das Trevas e do Frio e repelirão para o Nada, fora do mundo, os seus inimigos, os Filhos do Frio e da Noite, aqueles que não têm membros nem carne, aqueles que não conhecem nem o Bem nem o Mal».
E aqui está. Quer se acredite ou não, uma formidável civilização, a mais poderosa do Universo talvez, é fundada sobre esta Antiga Promessa.
Então, quando o caminho do ahun se encontrou aberto, os Hiss partiram em exploração. Não conheciam os Milsliks. Uma das suas primeiras viagens trouxe-os a um planeta — Assenta, do sol Swin, se você deseja saber o nome —, situado sobre a extremidade da sua galáxia. Aí eles instalaram um observatório e começaram a enumerar as galáxias e descobriram o estranho fato de, numa delas, situada a aproximadamente quinze milhões de anos-luz, as estrelas se apagarem num ritmo rápido, absolutamente contrário a todas as previsões baseadas sobre as leis físicas.
Num século e meio a galáxia inteira, de pequeno tamanho, tinha desaparecido.
Misturo agora ao que me ensinou Souilik aquilo que aprendi mais tarde com Azzlem e outros. Três expedições partiram sucessivamente pelo caminho do ahun, em direção desta galáxia. Nenhuma regressou. Depois outras estrelas começaram a apagar-se, desta vez numa galáxia bem mais próxima, a cerca de sete milhões de anos-luz. O processo, sempre o mesmo, era o seguinte: começava por uma alteração do espectro, as riscas metálicas multiplicavam-se, depois a estrela começava a mudar para o vermelho, cada vez mais escuro. Ao fim de alguns meses só os receptores a infravermelhos chegavam a descobri-Ia. Depois nenhum brilho dela vinha. E os Hiss, que acreditavam na Profecia e na Promessa, começaram a ver nestes estranhos fenômenos o rasto duma ação do Outro, do Pai da Noite e do Frio.
Tanto mais que tinham já descoberto algumas humanidades diferentes da deles!
Bem entendido que este processo de extinção das estrelas começado muito antes de ter existido algum Hiss em Ella-Ven, pois que os Hiss não remontam a além de dois milhões de anos, o máximo. Não sei como eles conciliam a anterioridade de existência evidente dos Milsliks sobre eles mesmos com a sua própria metafisica.
Os Hiss descobriram finalmente os Milsliks. Uma expedição, passando pelo ahun, partiu para uma galáxia muito próxima, a menos de um milhão de anos-luz.
Compreendia três ksills, sob o comando de um astrônomo chamado Ossenthur.
Emergiram no Espaço — me esqueci de lhe dizer que eles sabem emergir sempre a uma boa distância dum corpo material —, bastante próximo dum sol que está se apagando. O fim pareceu-lhes pouco interessante, apesar dum cortejo de planetas, e iam partir de novo quando Ossenthur reparou, no espectro da estrela, em particularidades que o aproximavam da galáxia que se tinha apagado tão bizarramente. Decidiu aterrar sobre um planeta Desembarcaram então num mundo agonizante, donde toda a vida tinha já desaparecido. Nunca tinha havido humanidade: apenas alguns animais superiores, dos quais encontraram os cadáveres gelados. A sua estada durava há três meses, as observações acumulavam-se, o sol tornava-se cada dia mais sombrio no céu vermelho. Quando, enfim, a temperatura caiu tão baixo que o azoto começava a liquefazer-se, apareceram os Milsliks. Isto passou-se de trezentos anos antes da minha chegada. Donde vinham os Milsliks? Os Hiss não o sabem, a aparição deles sobre um planeta ainda permanece misteriosa; mas eles nunca aparecem antes que o frio seja suficiente para liquefazer o azoto.
Dois ksills foram surpreendidos pelos Milsliks. O terceiro, o de Ossenthur, encontrava-se voando a mais de cem quilômetros de altura. O primeiro ksill teve apenas tempo de transmitir que se encontrava rodeado de coisas brilhantes e móveis. Depois foi o silêncio. O segundo foi atingido quando tentava elevar-se. Pôde transmitir as imagens: sobre o solo gelado fervilhavam formas poliédricas, móveis, de clarão metálico, quase da estatura de um homem. Brutalmente toda a transmissão cessou, enquanto o ksill se esmagava na superfície do planeta Ossenthur ficou oito dias vigiando o solo. No oitavo dia, não vendo nada se mover em volta do primeiro ksill, lançou-se como um raio e aterrou ao lado, regando a terra em redor do ksill com raios abióticos. No interior do ksill nada tinha sido atingido, mas nem um Hiss vivia. Ossenthur mandou retirar os cadáveres, abandonando o aparelho aos Milsliks — deu a estas estranhas criaturas o nome da Profecia —, e depois de ter destruído os motores, partiu para Ella.
Os biologistas estudaram os cadáveres. Os Hiss tinham sucumbido de asfixia, o pigmento respiratório deles fora destruído!
E foi assim que os Hiss se lançaram a toda a fôrça na procura de outras humanidades, a fim de encontrar aquela «cujo sangue vermelho não pode ser gelado». Mas sobre todos os planetas que encontraram os «homens» tinham o sangue azul, verde ou amarelo. Compreendi então porque, apesar da lei de exclusão, me tinham trazido e o que esperavam de mim, de nós, Terrestres.
Entretanto, como já disse, tinham entrado em contacto com várias humanidades planetárias, cujos embaixadores habitam permanentemente em Réssan, onde se encontra o Grande Conselho da Liga dos Mundos Humanos.