José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

pessoa, se fossem soldados viriam juntos, pelo menos dois, como é táctica e costume, e sendo caso de buscas com mais razão ainda, um cobrindo o outro por causa de surpresas inesperadas, É José, pensou, e temeu que ele lhe ralhasse por ter acendido a candeia. Os passos, lentos, aproximaram-se mais, José já vinha entrando mas de súbito um arrepio percorreu o corpo de Maria, estes não eram, pesados, duros, os passos de José, acaso será um maltês à procura de abrigo por uma noite, tinha acontecido antes duas vezes, e se nessas ocasiões Maria não sentira medo, por não ser imaginável que um homem, por mais amargo e infame de coração que fosse, pudesse atrever-se a fazer mal a uma mulher com o filho nos braços, não se lembrou Maria de que mesmo agora mataram os meninos de Belém, alguns, quem sabe, no próprio colo das mães, como no da sua se encontra Jesus, ainda os inocentes sugavam o leite da vida e já a lâmina do punhal lhes feria a delicada pele e penetrava na carne tenra, porém haviam sido os soldados esses assassinos, não uns vagabundos quaisquer, faz a sua diferença, e nada pequena. Não era José, não era soldado à procura de um feito de guerra que não tivesse de partilhar, não era maltês sem pouso nem trabalho, era, sim, novamente em figura de pastor, aquele que em figura de mendigo aparecera uma vez e outra, aquele que falando de si mesmo anunciara ser um anjo, contudo sem dizer de que céu ou inferno. Maria não pensara, primeiro, que pudesse ser ele, agora compreendia que não poderia ser outro. Disse o anjo, A paz seja contigo, mulher de José, seja também a paz com o teu filho, ele e tu afortunados por nesta cova terdes casa, que, não sendo assim, agora estaria um de vós despedaçado e morto, enquanto o outro se acharia a si mesmo vivo mas despedaçado. Disse Maria, Ouvi os gritos. Disse o anjo, Sim, apenas os ouviste, mas um dia os gritos que não deste hão-de gritar por ti, e ainda antes desse dia ouvirás gritar mil vezes a teu lado. Disse Maria, Meu marido foi à estrada ver se os soldados já se foram, não seria bom que ele aqui te encontrasse. Disse o anjo, Que isso não te dê cuidado, ir-me-ei antes que ele chegue, vim só para dizer-te que não voltarás a ver-me tão cedo, tudo o que era necessário que acontecesse aconteceu, faltavam estas mortes, faltava, antes delas, o crime de José. Disse Maria, O crime de José, meu marido não cometeu nenhum crime, é um homem bom. Disse o anjo, Um homem bom que cometeu um crime, não imaginas quantos antes dele os cometeram também, é que os crimes dos homens bons não têm conta, e, ao contrário do que se pensa, são os únicos que não podem ser perdoados. Disse Maria, Que crime cometeu meu marido. Disse o anjo, Tu o sabes, não queiras ser tão criminosa como ele. Disse Maria, Juro. Disse o anjo, Não jures, ou então jura, se quiseres, que um juramento feito diante de mim é como um sopro de vento que não sabe aonde vai. Disse Maria, Que fizemos nós.

Disse o anjo, Foi a crueldade de Herodes que fez desembainhar os punhais, mas o vosso egoísmo e cobardia foram as cordas que ataram os pés e as mãos das vítimas. Disse Maria, Que podia eu ter feito. Disse o anjo, Tu, nada, que o soubeste tarde de mais, mas o carpinteiro podia ter feito tudo, avisar a aldeia de que vinham aí os soldados a matar as crianças, ainda havia tempo para que os pais delas as levassem e fugissem, podiam, por exemplo, ir esconder-se no deserto, fugir para o Egipto, à espera de que morresse Herodes, que está por pouco. Disse Maria, Não pensou. Disse o anjo, Não, não pensou, e isso não o desculpa. Disse Maria, chorando, Tu, que és um anjo, perdoa-lhe. Disse o anjo, Não sou anjo de perdões. Disse Maria, Perdoa-lhe. Disse o anjo, Já te disse que não há perdão para este crime, mais depressa seria perdoado Herodes que o teu marido, mais depressa se perdoará a um traidor que a um renegado. Disse Maria, Que vamos fazer. Disse o anjo, Vivereis e sofrereis como toda a gente. Disse Maria, E o meu filho. Disse o anjo, Sobre a cabeça dos filhos há-de sempre cair a culpa dos pais, a sombra da culpa de José já escurece a fronte do teu filho. Disse Maria, Infelizes de nós. Disse o anjo, Assim é, e não tereis remédio. Maria curvou a cabeça, apertou mais o filho contra si como para defendê-lo das prometidas desventuras, e quando tornou a olhar já o anjo ali não estava.

Mas desta vez, e ao contrário do que antes tinha sucedido, quando ele se aproximara, não se ouviram passos, Foi-se embora voando, pensou Maria. Depois, levantou-se, foi até à entrada da caverna, se ainda haveria rasto aéreo do anjo, ou já vinha perto José. O nevoeiro dissipara-se, luziam metálicas as primeiras estrelas, da aldeia continuavam a ouvir-se os lamentos. E foi então que um pensamento de presunção desmedida, de talvez pecaminoso orgulho, sobrepondo-se às negras advertências do anjo, fez girar a cabeça de Maria, se a salvação de seu filho não teria sido um gesto de Deus, por força tem um significado escapar alguém à dura morte quando ali ao lado outros que tiveram de morrer já nada mais podem fazer que esperar uma ocasião para ao mesmo Deus perguntarem, Por que foi que nos mataste, e contentarem-se com a resposta, qualquer que seja. Não durou muito o delírio de Maria, no 38


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instante seguinte já imaginava que poderia estar embalando um filho morto, como agora certamente as mães de Belém, e, para benefício do seu espírito e salvação da sua alma, as lágrimas voltaram-lhe aos olhos, correndo como fontes. Ali estava quando José chegou, ouviu-o vir, mas deixou-se ficar, de nada se lhe dava que ele ralhasse, Maria estava agora chorando com as outras mulheres, todas sentadas em círculo, com os filhos no regaço, à espera da ressurreição. José viu-a chorar, compreendeu e calou-se. Dentro da caverna, José não fez reparo na candeia acesa. As brasas, no chão, tinham-se coberto de uma fina camada de cinza, mas, no interior do lume, entre elas, palpitava ainda, buscando forças, a raiz duma chama. Enquanto ia descarregando o burro, José disse, Já não corremos perigo, foram-se embora os soldados, e nós o melhor que temos a fazer é passar a noite aqui, amanhã partimos antes de o sol nascer, iremos por um atalho, e, onde atalho não haja, por onde calhe. Maria murmurou, Tantos meninos mortos, e José, bruscamente, Como o sabes, foste contá-los, perguntou, e ela, Lembro-me deles, de alguns, Dá antes graças a Deus por teres o teu filho vivo, Darei, E não olhes para mim como se eu tivesse feito algum mal, Não estava a olhar-te, Nem me fales nesse tom que parece de juiz, Ficarei calada, se quiseres, Sim, é melhor que te cales. José atou o burro à manjedoura, ainda havia no fundo alguma palha, a fome do bicho não deve ser grande, de facto este burro tem vivido à tripa-forra, malga cheia e banhos de sol, mas vá-se preparando, que já pouco lhe falta para regressar às duras penas de carga e trabalho. Maria deitou o filho e disse, Vou espevitar o lume, Para quê, A ceia, Não quero aqui lumes que chamem gente, pode passar alguém da aldeia, comemos do que houver e como estiver. Assim fizeram. A candeia de azeite alumiava como um espectro os quatro habitantes da cova, o burro, imóvel como uma estátua, com os beiços sobre a palha mas sem lhe tocar, o menino apenas dormindo, enquanto o homem e a mulher enganavam a fome com uns poucos figos secos. Maria dispôs as esteiras no chão arenoso, lançou sobre elas o lençol e, como todos os dias, esperou que o marido se deitasse. Antes, José foi espreitar novamente a noite, tudo estava em paz na terra e no céu, e da aldeia não vinham outros gritos nem lamentos, agora as sucumbidas forças de Raquel não chegavam para mais que gemer e suspirar, dentro das casas, com a porta e a alma fechadas. José estendeu-se na sua esteira, de repente exausto como nunca estivera em sua vida, de tanto correr, de temer tanto, e nem podia dizer que graças ao seu esforço salvara a vida do filho, os soldados tinham cumprido rigorosamente as ordens recebidas, Matar os meninos de Belém, sem porem, contudo, de sua lavra, acréscimos de diligência na acção militar, como teria sido procurar nas covas ao redor se alguns fugidos aí se teriam escondido, ou então, falha que constituiu gravíssimo erro táctico, se nelas viveriam habitualmente famílias completas. Em geral, a José não o incomodava o hábito de Maria de se deitar só quando ele já tinha adormecido, mas hoje não podia suportar a ideia de estar mergulhado no sono, de rosto nu, sabendo que a mulher velava e o olharia sem piedade. Disse, Não quero que fiques aí, deita-te. Maria obedeceu, foi primeiro verificar, como sempre fazia, se o burro estava bem preso, e depois, suspirando, deitou-se na esteira, fechou os olhos com força, viesse o sono quando pudesse, ela já renunciara a ver. A meio da noite, José teve um sonho. Cavalgava por uma estrada que descia em direcção a uma aldeia de que já se avistavam as primeiras casas, ia de uniforme e com todos os petrechos militares em cima, armado de espada, lança e punhal, soldado entre soldados, e o comandante perguntava-lhe, Tu aonde vais, ó carpinteiro, ao que ele respondia, orgulhoso de conhecer tão bem a missão de que fora incumbido, Vou a Belém matar o meu filho, e quando o disse despertou com um ronco abominável, o corpo crispado, torcido de terror, Maria perguntando-lhe, Que tens, que aconteceu, e ele, tremendo todo, só sabia repetir, Não, não, não, de repente a aflição desatou-se em choro convulsivo, em arrancos que lhe despedaçavam o peito. Maria levantou-se, foi buscar a candeia, iluminou-lhe o rosto, Estás doente, perguntou, mas ele tapava a cara com as mãos, Leva-me isso daqui, mulher, no mesmo instante, ainda soluçando, levantou-se da esteira e correu à manjedoura a ver como estava o filho, Está bem, senhor José, não se preocupe, de facto é uma criança que não dá nenhum trabalho, um bom-serás, um paz-de-alma, um come-e-dorme, aqui repousa, tão tranquilamente como se não tivesse acabado de escapar por milagre à horrível morte, imagine-se, acabar às mãos do próprio pai que lhe deu o ser, já sabemos que esse é o tal destino de que ninguém se livra, mas há maneiras e maneiras. Com o pavor de que o sonho se repetisse, José não tornou à esteira, enrolou-se numa manta e foi sentar-se à entrada da cova, ao abrigo de um pendente rochoso que fazia uma espécie de alpendre natural e, indo agora alta a lua, lançava sobre a abertura uma sombra negríssima que a pálida luz da candeia, dentro, não tocava sequer. O próprio rei Herodes, 39


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se por ali passasse, às costas dos escravos, rodeado das suas legiões de bárbaros sedentos de sangue, diria tranquilamente, Não vos incomodeis a procurar, segui para diante, aquilo é pedra e sombra de pedra, nós buscamos carne fresca e vida apenas principiada. José estremeceu ao pensar no sonho, perguntou-se que sentido poderia ele ter, se a verdade, patente à face dos céus que tudo vêem, é que viera correndo como um louco por essa estrada abaixo, via dolorosa só ele sabia quanto, saltando depois pedras e muros, como bom pai acudira a defender seu filho, e eis que o sonho o mostrara com figura e apetites de verdugo, é bem certo o provérbio que avisa não haver nos sonhos firmeza, Isto foi coisa do demónio, pensou, e fez um gesto de esconjuro. Como vindo da garganta duma ave invisível, um assobio passou no ar, também poderia ter sido um sinal de pastor, não fosse a hora ser esta, quando todos os gados estão dormindo e só os cães velam. Porém, a noite, calma e distante, alheada dos seres e das coisas, com essa suprema indiferença que imaginamos ser do universo, ou a outra, absoluta, do vazio que restar, se algo o vazio pode ser, quando estiver cumprido o último fim de tudo, a noite ignorava o sentido e a ordem razoável que parecem reger este mundo nas horas em que ainda acreditamos ter sido ele feito para receber-nos, e à nossa loucura. Na lembrança de José, aos poucos, o sonho terrível tornava-se irreal, absurdo, desmentiam-no esta noite e este luar, desmentia-o a criança a dormir na manjedoura, sobretudo desmentia-o o homem acordado que ele era, senhor de si e, tanto quanto é possível, dos seus pensamentos, agora caridosos e pacíficos, porém também capazes de engendrar um monstro, como a gratidão a Deus porque os soldados deixaram com vida o seu filho querido, por ignorância e desleixo, é certo, eles que a tantos mataram. A mesma noite cobre o carpinteiro José e as mães das crianças de Belém, dos pais não falamos, nem de Maria, que não são para aqui chamados, se bem que não discernamos os motivos duma tal exclusão. As horas passaram calmas e quando a madrugada deu o seu primeiro sinal José levantou-se, foi carregar o burro, e em pouco tempo, aproveitando o derradeiro ar de luar antes de aclarar-se o céu, a família completa, Jesus, Maria e José, pôs-se a caminho, de regresso a Galileia. Deixando por uma hora a casa dos senhores, onde dois meninos haviam sido mortos, a escrava Zelomi foi de manhã à cova, certa de que o mesmo tinha sucedido ao menino que ajudara a nascer. Encontrou-a abandonada, só rastos de passos e de cascos do asno, sob a cinza brasas quase extintas, nenhum vestígio de sangue. Já não está aqui, disse, salvou-se desta primeira morte.


Oito meses tinham já passado sobre o feliz dia em que José chegou a Nazaré com a sua família, sanos e salvos os humanos, apesar dos muitos perigos, menos bem o burro que coxeava um pouco da mão direita, quando houve notícia de que o rei Herodes morrera em Jericó, num dos seus palácios, onde agonizante se tinha recolhido, caídas as primeiras chuvas, para fugir às crueldades do inverno, que em Jerusalém não poupa gente enferma e delicada. Diziam também os avisos que o reino, órfão de tão grande senhor, fora dividido por três dos filhos que lhe restaram depois das razias familiares, a saber, Herodes Filipe, que ficará a governar os territórios que estão a leste da Galileia, Herodes Ântipas, que terá a vara do mando em Galileia e Pereia, e Arquelau, a quem coube Judeia, Samaria e Idumeia. Um dia destes, um almocreve de passagem, desses com jeito para contar histórias, tanto das reais como das inventadas, fará, à gente de Nazaré, o relato do funeral de Herodes, de que tinha sido, jurava, presencial testemunha, Ia posto num sarcófago de ouro todo a brilhar de pedrarias, a carroça, que dois bois brancos puxavam, era também dourada, coberta por panos de púrpura, e de Herodes, também envolto em púrpura, não se distinguia mais que o vulto e uma coroa no lugar da cabeça, os músicos que iam atrás, tocando pífaros, e as carpideiras a seguir aos músicos, é que tinham de respirar o cheiro pestilento que lhes dava em cheio nos narizes, na beira da estrada estava eu e quase me saía o estômago pela boca, e depois vinham os guardas do rei, a cavalo, à frente da tropa, armada de lanças, espadas e punhais, como se fossem para a guerra, passavam e não acabavam de passar, tal uma serpente de que não vemos nem a cabeça nem o rabo e que ao mover-se é como se não tivesse fim, entra-nos no coração o medo, assim eram aquelas tropas marchando atrás de um morto, mas também em direcção à sua própria morte, aquela de cada um, que mesmo quando parece demorar-se sempre acaba por bater-nos à porta, São horas, diz ela, pontual, sem diferença, tanto faz com reis ou com escravos, um que ia lá adiante, carne morta e corrupta, na cabeça do cortejo, outros no couce da procissão, comendo o pó de um exército inteiro, por enquanto vivos, mas já à procura, todos eles, do lugar onde ficarão para sempre. Este almocreve, pela amostra, mais bem estaria, 40


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peripatético, passeando sob os capitéis coríntios duma academia do que tocando burros pelos caminhos de Israel, dormindo em caravançarais fedorentos ou contando histórias a campónios, como estes de Nazaré. Entre os assistentes, no largo em frente da sinagoga, estava José, calhou vir a passar por ali e deixou-se ficar a ouvir, em verdade não fora muita a atenção que começara por dar aos pormenores descritivos do cortejo fúnebre, ou sim, alguma lhes tinha dado, mas logo se lhe varreram quando o aedo passou abertamente ao estilo elegíaco, realmente o carpinteiro tinha fundadas e quotidianas razões para ser mais sensível a essa corda da harpa do que a qualquer outra. Aliás, bastava olhar para ele, esta cara não engana, uma coisa era a sua antiga compostura, a gravidade e ponderação com que buscava compensar os seus poucos anos, outra coisa, muito diferente, pior, é esta expressão de amargura que prematuramente lhe está cavando rugas a um lado e a outro da boca, fundas como talhos não cicatrizados. Mas o que há de realmente inquietante no rosto de José é a expressão do seu olhar, se não seria mais exacto dizer a falta de expressão, pois os seus olhos dão ideia de estarem mortos, cobertos de uma poalha de cinza, debaixo da qual, como uma brasa inextinguível, brilhasse um fulgor inflamado de insónia. É verdade, José quase não dorme. O sono é o seu inimigo de todas as noites, com ele tem de lutar como pela própria vida, e é uma guerra que sempre perde, mesmo que alguns combates vença, pois infalivelmente chega um momento em que o corpo exausto se entrega e adormece, para, acto contínuo, ver surgir na estrada um destacamento de soldados, no meio dos quais vai cavalgando José, algumas vezes fazendo molinetes com a espada por cima da cabeça, e é então, quando já o pavor começa a enrolar-se nas defesas conscientes do desgraçado, que o comandante da expedição lhe pergunta, Tu, aonde vais, ó carpinteiro, o pobre não quer responder, resiste com as poucas forças que lhe restam, ainda as do espírito, que o corpo sucumbiu, mas o sonho é mais forte, abre-lhe com mãos de ferro a boca cerrada, e ele, já soluçando e à beira de despertar, tem de dar a horrível resposta, a mesma, Vou a Belém matar o meu filho. Não perguntemos a José se ele se lembra de quantos bois puxaram a carroça de Herodes morto, e se eram brancos ou malhados, agora, voltando a casa, só tem pensamentos para as últimas palavras do conto do almocreve, quando ele disse que aquele mar de gente que ia no funeral, escravos, soldados, guardas reais, carpideiras, tocadores de pífaro, governadores, príncipes, futuros reis, e todos nós, onde quer que estejamos e quem quer que sejamos, não fazemos mais na vida do que procurar o lugar onde iremos ficar para sempre. Nem sempre é assim, cismava José, com uma amargura tão funda que nela não entrara a resignação que dulcifica as maiores dores e apenas podia revestir-se do espírito de renúncia de quem deixou de contar com remédio, nem sempre é assim, repetia, muitos houve que nunca saíram do lugar onde nasceram e a morte foi lá buscá-los, com o que se prova que a única coisa realmente firme, certa e garantida é o destino, é tão fácil, santo Deus, basta ficar à espera de que todo o da vida se cumpra e já poderemos dizer, Era o destino, foi o destino de Herodes morrer em Jericó e ser levado de carroça para o seu palácio e fortaleza de Herodium, mas às crianças de Belém poupou-lhes a morte todas as viagens. E

aquela de José, que ao princípio, vendo os factos pelo lado optimista, parecia fazer parte de um desígnio transcendente para salvar as inocentes criaturas, afinal não serviu de nada, pois o nosso carpinteiro ouviu e calou, foi a correr salvar o filho e deixou os dos outros entregues ao fatal destino, nunca palavra veio tão a propósito. Por isso José não dorme, ou sim dorme e em ânsias desperta, atirado para uma realidade que não o faz esquecer-se do sonho, a ponto de poder-se dizer que, acordado, sonha o sonho de quando dorme, e, dormindo, ao mesmo tempo que busca desesperadamente fugir-lhe, já sabe que é para tornar a encontrá-lo, outra vez e sempre, este sonho é uma presença sentada no limiar da porta que está entre o dormir e o velar, saindo e entrando José tem de enfrentar-se com ela. Entendido já foi que a palavra que define exactamente este novelo é remorso, mas a experiência e a prática da comunicação, ao longo das idades, têm vindo a demonstrar que a síntese não passa duma ilusão, é assim, salvo seja, como uma invalidez da linguagem, não é querer dizer amor e não chegar a língua, é ter língua e não chegar ao amor. Maria está outra vez grávida.

Nenhum anjo em figura de mendigo andrajoso lhe veio bater à porta a anunciar a vinda deste filho, nenhum súbito vento varreu as alturas de Nazaré, nenhuma terra luminosa foi a enterrar ao lado da outra, Maria apenas informou José com as palavras mais simples, Estou grávida, não lhe disse, por exemplo, Olha aqui os meus olhos e vê como brilha neles o nosso segundo filho, e ele não lhe respondeu, Não julgues que não tinha reparado, estava era à espera que tu mo anunciasses, ouviu e calou, apenas disse, Ah, e continuou a empurrar a plaina sobre a tábua, com uma força eficaz mas 41


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indiferente, que o pensamento sabemos nós onde está. Também Maria o sabe, desde que numa noite mais atormentada o marido deixou que o seu segredo, até aí bem guardado, saltasse cá para fora, e ela, afinal, não ficou nem sequer surpreendida, uma coisa assim era inevitável, lembremo-nos do que disse o anjo lá na cova, Ouvirás gritar mil vezes a teu lado. Uma boa mulher diria ao seu marido, Deixa lá, o que fizeste, feito está, e além disso o teu primeiro dever era salvar o teu filho, não tinhas outra obrigação, mas a verdade é que, neste sentido comum, Maria deixou de ser a boa mulher que antes havia demonstrado ser, talvez porque ouvira do anjo aquelas outras e severas palavras que, pelo tom, a ninguém pareceram querer excluir, Não sou anjo de perdões. Se Maria estivesse autorizada a falar com José acerca destas secretíssimas coisas, talvez que ele, sendo tão versado nas escrituras, pudesse meditar sobre a natureza de um anjo que, chegado não se sabe donde, vem dizer-nos que o não é de perdões, declaração ao parecer irrelevante, pois é sabido não serem as criaturas angélicas dotadas do poder de perdoar, que só a Deus pertence. Dizer um anjo que não é anjo de perdões, ou nada significa, ou significa demasiado, vamos por hipótese, que é anjo das condenações, é como se exclamasse, Perdoar, eu, que ideia estúpida, eu não perdoo, castigo. Mas os anjos, por definição, tirando aqueles querubins de espada flamejante que foram postos pelo Senhor a guardar o caminho da árvore da vida para que não voltassem pelos frutos dela os nossos primeiros pais, ou os seus descendentes, que somos nós, os anjos, íamos dizendo, não são polícias, não se encarregam das sujas mas socialmente necessárias tarefas de repressão, os anjos existem para tornar-nos a vida fácil, amparam-nos quando vamos a cair ao poço, guiam-nos no perigoso passo da ponte sobre o precipício, puxam-nos pelo braço quando estamos quase a ser atropelados por uma quadriga sem freio ou por um automóvel sem travões. Um anjo realmente merecedor desse nome até podia ter poupado o pobre José a estas agonias, bastava que aparecesse em sonho aos pais dos meninos de Belém, dizendo a cada um, Levanta-te, toma o menino e sua mãe, foge para o Egipto e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o menino para o matar, e desta maneira salvavam-se os meninos todos, Jesus escondido na cova com os seus paizinhos, e os outros a caminho do Egipto, donde só regressariam quando o mesmo anjo, tornando a aparecer aos pais deles, dissesse, Levanta-te, toma o menino e sua mãe e vai para a terra de Israel, porque morreram os que atentavam contra a vida do menino. Claro que, por meio deste aviso, na aparência benevolente e protector, o anjo estaria a devolver as crianças a lugares, quaisquer que fossem, onde, no tempo próprio, se encontrariam com a morte final, mas os anjos, mesmo podendo muito, como se tem visto, levam consigo as suas limitações de nascença, nisso são como Deus, não podem evitar a morte. Pensando, pensando, José viria talvez a concluir que o anjo da cova era, afinal, um enviado dos poderes infernais, demónio desta vez em figura de pastor, com o que novamente ficaria demonstrada a fraqueza natural das mulheres e as suas viciosas e adquiridas facilitações quando sujeitas ao assalto de qualquer anjo caído. Se Maria falasse, se Maria não fosse esta arca fechada, se Maria não reservasse para si as peripécias mais extraordinárias da sua anunciação, outro galo cantaria a José, outros argumentos viriam reforçar a sua tese, sendo sem dúvida o mais importante de todos o facto de o presumível anjo não ter proclamado, Sou um anjo do Senhor, ou, Venho em nome do Senhor, apenas informou, Sou um anjo, acautelando-se logo, Mas não o digas a ninguém, como se tivesse medo de que se soubesse. Não faltará já por aí quem esteja protestando que semelhantes miudezas exegéticas em nada contribuem para a inteligência de uma história afinal arquiconhecida, mas ao narrador deste evangelho não parece que seja a mesma coisa, tanto no que toca ao passado como no que ao futuro há-de tocar, ser-se anunciado por um anjo do céu ou por um anjo do inferno, as diferenças não são apenas de forma, são de essência, substância e conteúdo, é verdade que quem fez uns anjos fez os outros, mas depois emendou a mão. Maria, tal como seu marido, mas já se sabe que não por idênticas razões, mostra, às vezes, um certo ar absorto, uma expressão de ausência, param-se-lhe as mãos em meio de um trabalho, o gesto interrompido, o olhar distante, de facto nada de estranhável numa mulher neste estado, se não fossem os pensamentos que a ocupam, resumíveis, todos eles, mas com infinitas variações, nesta pergunta, Por que me apareceu o anjo a anunciar o nascimento de Jesus, e agora deste filho não. Maria olha o seu primogénito, que por ali anda gatinhando como fazem todos os crios humanos na sua idade, olha-o e procura nele uma marca distintiva, um sinal, uma estrela na testa, um sexto dedo na mão, e não vê mais do que uma criança igual às outras, baba-se, suja-se e chora como elas, a única diferença é ser seu filho, os cabelos são pretos como os do pai e da mãe, as íris já vão perdendo aquele tom branquiço a que chamamos 42


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cor de leite não o sendo, tomam o seu próprio natural, o da herança genética directa, um castanho muito escuro que adquire, aos poucos, à medida que se vai afastando da pupila, uma tonalidade como de sombra verde, se assim podemos definir uma qualidade cromática, porém estas características não são únicas, só têm verdadeira importância quando o filho é nosso ou, porque dela estamos tratando, de Maria. Daqui por algumas semanas este menino fará as suas primeiras tentativas para pôr-se de pé e caminhar, irá de mãos ao chão vezes sem conta e ficará a olhar em frente, a cabeça dificilmente levantada, enquanto ouve a voz da mãe que lhe diz, Vem cá, vem cá, meu menino, e não muito tempo depois sentirá a primeira necessidade de falar, quando alguns sons novos começarem a formar-se na sua garganta, e ao princípio não saberá que fazer com eles, confundi-los-á com os outros que já conhecia e vinha praticando, os do grito e os do choro, porém não tardará a perceber que deve articulá-los de um modo muito diferente, mais compenetrado, imitando e ajudando-se com os movimentos dos lábios do pai e da mãe, até que consiga pronunciar a primeira palavra, qual ela tenha sido não sabemos, talvez papa, talvez papá, talvez mamã, o que sim sabemos é que a partir de agora nunca mais o menino Jesus terá de fazer aquele gesto do indicador da mão direita na palma da mão esquerda se a mãe e as vizinhas tornarem a perguntar-lhe, Onde é que a galinha põe o ovo, é uma indignidade a que se sujeita o ser humano, tratá-lo como um cãozito ensinado a reagir a um estímulo sonoro, voz, assobio ou estalo de chicote. Agora Jesus está capacitado para responder que a galinha pode ir pôr o ovo aonde quiser, desde que não o faça na palma da sua mão. Maria olha o filho, suspira, tem pena de que o anjo não vá voltar, Não voltarás a ver-me tão cedo, disse, se ele aqui estivesse agora não se deixaria intimidar como das outras vezes, apertá-lo-ia com perguntas até rendê-

lo, uma mulher com um filho fora e outro à bica não tem nada de cordeiro inocente, aprendeu, à sua própria custa, o que são dores, perigos e aflições, e, com tais pesos colocados no prato do seu lado, pode fazer inclinar a seu favor qualquer fiel de balança. Ao anjo não bastaria ter-lhe dito, O Senhor permita que não vejas o teu filho como a mim me vês agora, que não tenho onde descansar a cabeça, em primeiro lugar teria de explicar quem era o Senhor em nome de quem parecia falar, em segundo lugar se era realmente verdade não ter onde descansar a cabeça, coisa difícil de perceber tratando-se de um anjo, ou se apenas o dizia por estar no seu papel de mendigo, em quarto lugar que futuro anunciavam para o seu filho as sombrias e ameaçadoras palavras que pronunciara, e finalmente que mistério era aquele da terra luminosa, enterrada ao lado da porta, e onde nascera, depois do regresso de Belém, uma estranha planta, só caule e folhas, que já tinham desistido de cortar, depois de inutilmente terem tentado arrancá-la pela raiz, porque de cada vez tornava a nascer, e com mais força.

Dois dos anciãos da sinagoga, Zaquias e Dotaim, vieram observar o caso, e, embora pouco entendidos em ciências botânicas, puseram-se de acordo para opinar que aquilo devia ser de semente que viera com a terra e que, chegando o seu tempo, rebentara, Como é lei do Senhor da vida, sentenciara Zaquias. Maria habituara-se a ver a teimosa planta, achava até que lhe dava alegria à entrada da porta, enquanto José, inconformado e com novas e palpáveis razões para alimento das suspeitas antigas, transferira a sua bancada de carpinteiro para outro local do pátio e fingia não dar pela detestada presença. Depois de usar o machado e o serrote, experimentara a água a ferver e chegara mesmo a pôr ao redor do caule um colar de carvões ardentes, só não se atrevera, por uma espécie de respeito supersticioso, a meter a enxada à terra e cavar até onde devia encontrar-se a origem do mal, a tigela com a terra luminosa. E nisto estavam quando nasceu o segundo filho, a quem deram o nome de Tiago.


Durante uns poucos de anos não houve mais mudanças na família que nascerem novos filhos, além de duas filhas, e terem perdido os pais deles o último viço que lhes ficara da juventude.

Em Maria não havia que estranhar, pois sabe-se como as prenhezes, e de mais sendo tantas, acabam por dar cabo duma mulher, vai-se-lhes aos poucos a beleza e a frescura, se as tinham, emurchecem tristemente a cara e o corpo, basta ver que depois de Tiago nasceu Lísia, depois de Lísia nasceu José, depois de José nasceu Judas, depois de Judas nasceu Simão, depois Lídia, depois Justo, depois Samuel, e se mais algum veio, logo se finou, sem tempo de deixar registo. Os filhos são a alegria dos pais, diz-se, e Maria fazia tudo para parecer contente, mas, tendo de carregar meses e meses no seu cansado corpo tantos frutos gulosos das suas forças, às vezes entrava-lhe na alma uma impaciência, uma indignação à procura da sua causa, mas, sendo o tempo o que era, não pensou em pôr culpas a 43


José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo

José, e menos ainda àquele Deus supremo que decide da vida e da morte das suas criaturas, a prova é que mesmo um cabelo da nossa cabeça não cai se não for de sua vontade. José entendia pouco dos comos e porquês de se fazerem filhos, isto é, tinha os rudimentos do prático, empíricos, por assim dizer, mas era a própria lição social, o espectáculo do mundo, que reduzia todos os enigmas a uma evidência só, a de que juntando-se macho e fêmea, conhecendo-a portanto ele a ela, resultavam bastante altas as probabilidades de gerar o homem dentro da mulher um filho, que ao cabo de nove meses, raramente sete, nascia completo. A semente do varão, lançada para dentro do ventre da mulher, levava consigo, miniatural e invisível, o novo ser que Deus tinha escolhido para prosseguir o povoamento do mundo que criara, porém isto não acontecia sempre, a impenetrabilidade dos desígnios de Deus, se precisasse de demonstração, encontrava-a no facto de não ser condição suficiente para gerar um filho, embora necessária absolutamente, derramar-se a semente do varão no interior natural da mulher. Deixando-a correr para o chão, como fizera o infeliz Onan, castigado de morte pelo Senhor por não querer fazer filhos na viúva de seu irmão, era certo e garantido que a mulher não engravidaria, mas quantas e quantas ocasiões, como dizia o outro, vai a fonte ao cântaro, e o resultado três vezes nove vinte e sete. Está provado, pois, que foi Deus quem pôs Isaac na escassa linfa que Abraão ainda estava capaz de produzir, e o empurrou para dentro do ventre de Sara, que já nem regras tinha. Vista a questão deste ângulo, digamos, teogenético, pode-se concluir, sem abusar da lógica que a tudo deve presidir neste mundo e nos outros, que o mesmo Deus era quem com tanta assiduidade incitava e estimulava José a frequentar Maria, por essa maneira o tornando em seu instrumento para apagar, por compensação numérica, os remorsos que andava sentindo desde que permitira, ou quisera, sem se dar ao trabalho de pensar nas consequências, a morte dos inocentes meninos de Belém. Mas o mais curioso, e que mostra quanto os desígnios do Senhor, além de obviamente inescrutáveis, são também desconcertantes, é que José, ainda que de um modo difuso, que mal lhe passava ao nível da consciência, supunha agir por conta própria e, acredite quem puder, com a mesma tenção de Deus, isto é, restituir ao mundo, por um afincado esforço de procriação, se não, em sentido literal, as crianças mortas, tal qual tinham sido, ao menos a contagem certa, de maneira a não se encontrar diferença no próximo recenseamento. O remorso de Deus e o remorso de José eram um só remorso, e se naqueles antigos tempos já se dizia, Deus não dorme, hoje estamos em boas condições de saber porquê, Não dorme porque cometeu uma falta que nem a homem é perdoável. A cada filho que José ia fazendo, Deus levantava um pouco mais a cabeça, mas nunca virá a levantá-la por completo, porque as crianças que morreram em Belém foram vinte e cinco e José não viverá anos suficientes para gerar tão grande quantidade de filhos numa só mulher, nem Maria, já tão cansada, já de alma e corpo tão dorida, poderia suportar tanto. O pátio e a casa do carpinteiro estavam cheios de crianças e era como se estivessem vazios. Quando chegou aos cinco anos, o filho de José começou a ir à escola. Todas as manhãs, logo ao nascer do dia, a mãe levava-o ao encarregado da sinagoga, que, sendo os estudos do nível elementar, bastava para o efeito, e era ali, na própria sinagoga, feita sala de aula, que ele e os outros rapazinhos de Nazaré, até aos dez anos, realizavam a sentença do sábio, A criança deve criar-se na Tora como o boi se cria no curral. A lição acabava pela hora sexta, que era o nosso meio-dia de agora, Maria já estava à espera do filho, e, coitada, não podia perguntar-lhe como ia nos aproveitamentos, nem esse simples direito ela tem, pois lá diz a máxima terminante do sábio, Melhor fora que a Lei perecesse nas chamas do que entregarem-na às mulheres, também não devendo ser esquecida a probabilidade de que o filho, já razoavelmente informado sobre o verdadeiro lugar das mulheres no mundo, incluindo as mães, lhe desse uma resposta torta, daquelas capazes de reduzir uma pessoa à insignificância, que tem cada qual a sua, veja-se o caso de Herodes, tanto poder, tanto poder, e se agora formos lá vê-lo nem sequer podemos recitar, Jaz morto e apodrece, agora tudo é bafio, pó, ossos sem conserto e trapos sujos. Quando Jesus entrava em casa, o pai perguntava-lhe, Que foi que aprendeste hoje, e o menino, que tivera a sorte de nascer com uma excelente memória, repetia tintim por tintim, sem falhas, a lição do mestre, foram primeiro os nomes das letras do alfabeto, depois as palavras principais e, mais para diante, frases completas da Tora, passagens inteiras, que José acompanhava com movimentos rítmicos da mão direita, ao mesmo tempo que acenava lentamente a cabeça. Posta de lado, era por esta maneira que Maria ia tomando conhecimento do que não podia perguntar, trata-se de um método antigo das mulheres, aperfeiçoado em séculos e milénios de prática, quando não as autorizam a averiguar por sua conta põem-se a ouvir, e em pouco tempo sabem tudo, 44


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chegando até, o que é o cúmulo da sabedoria, a separar o falso do verdadeiro. No entanto, o que Maria não conhecia, ou não conhecia bastante, era o estranho laço que unia o marido àquele filho, ainda que mesmo a um estranho não passasse despercebida a expressão, misto de doçura e mágoa, que tocava o rosto de José quando falava ao seu primogénito, como se estivesse a pensar, Este filho que eu amo é a minha dor. Maria apenas sabia que os pesadelos de José, como uma sarna da alma, não o largavam, mas essas aflições nocturnas, de tão repetidas, tinham-se já tornado num hábito, como dormir voltado para o lado direito ou acordar com sede a meio da noite. E se Maria, como boa e digna esposa, não deixara de preocupar-se com o seu marido, o mais importante de tudo para ela era ver o filho vivo e são, sinal de que a culpa não fora assim tão grande, ou o Senhor já teria mandado castigo, sem pau nem pedra, como é seu costume, haja vista o caso de Job, arruinado, leproso, e mais sempre havia sido varão íntegro e recto, temente a Deus, a sua pouca sorte foi ter-se tornado em involuntário objecto de uma disputa entre Satanás e o mesmo Deus, cada qual agarrado às suas ideias e prerrogativas. E depois admiram-se que um homem desespere e grite, Pereçam o dia em que nasci e a noite em que fui concebido, converta-se ele em trevas, não seja mencionado entre os dias do ano nem se conte entre os meses, e que a noite seja estéril e não se ouça nela nenhum grito de alegria, é verdade que a Job o compensou Deus restituindo-lhe em dobro o que em singelo lhe tirara, mas aos outros homens, aqueles em nome de quem nunca se escreveu nenhum livro, tudo é tirar e não dar, prometer e não cumprir. Nesta casa do carpinteiro, a vida, apesar de tudo, era tranquila, e na mesa, ainda que sem farturas de prosperidade, não faltara nunca o pão de cada dia e o mais de conduto que ajuda a alma a manter-se agarrada ao corpo. Entre os bens de José e os bens de Job, a única semelhança que ainda assim podia encontrar-se era no número de filhos, sete filhos e três filhas tivera Job, sete filhos e duas filhas tinha José, levando o carpinteiro a vantagem de ter posto menos uma mulher no mundo. Mas Job, antes de Deus lhe ter duplicado os bens, já era proprietário de sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas, sem contar os escravos, em quantidade, e José tem aquele burro que conhecemos e nada mais. Na verdade, uma coisa é trabalhar para sustentar duas pessoas apenas, depois uma terceira, mas essa, no primeiro ano, por via indirecta, outra é ver-se à perna com uma ranchada de filhos, que, crescendo o corpo e a necessidade, reclamam alimentos sólidos e a tempo. E como os ganhos de José não davam para admitir pessoal ao seu serviço, o recurso natural estava nos filhos, por assim dizer, à mão de semear, aliás, também por uma simples obrigação de pai, pois já lá diz o Talmude, Do mesmo modo que é obrigatório alimentar os filhos, também é obrigatório ensinar-lhes uma profissão manual, porque não o fazer será o mesmo que tornar o filho num bandido. E se recordarmos o que ensinavam os rabis, O artesão no seu trabalho não deve levantar-se ante o maior doutor, podemos imaginar com que orgulho profissional começava José a instruir os seus filhos mais velhos, um após outro, à medida que chegavam à idade, primeiro Jesus, depois Tiago, depois José, depois Judas, nos segredos e tradições da arte carpinteira, atento ele, também, à antiga sentença popular que assim reza, O trabalho do menino é pouco, mas quem o desdenha é louco, foi o que depois veio a chamar-se trabalho infantil. A José pai, quando ao trabalho voltava depois da comida da tarde, ajudavam-no os seus próprios filhos, exemplo verdadeiro duma economia familiar que poderia vir a dar excelentes frutos até aos dias de hoje, porventura mesmo uma dinastia de carpinteiros, se Deus, que sabe o que quer, não tivesse querido outra coisa.


Como se à ímpia soberba do Império não lhe chegasse o vexame a que vinha sujeitando o povo hebreu desde há mais de setenta anos, decidiu Roma, dando como pretexto a divisão do antigo reino de Herodes, pôr em dia o último recenseamento, ficando porém os varões, desta vez, dispensados de irem à apresentação nas suas terras de origem, com os conhecidos transtornos de agricultura e comércio, e algumas consequências laterais, como foi o caso do carpinteiro José e sua família. Pelo método novo, vão os recenseadores de povoado em povoado, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, convocam para a praça maior ou para o aberto os homens do lugar, chefes de família ou não, e, sob a protecção da guarda, vão registando, de cálamo em punho, nos rolos das finanças, nomes, cargos e bens colectáveis. Ora, convém dizer que procedimentos destes não são vistos com bons olhos nesta parte do mundo, e não é só de agora, basta lembrar o que na Escritura se conta sobre a desafortunada ideia que teve o rei David quando ordenou a Joab, chefe do seu exército, que fosse fazer o recenseamento de Israel e Judá, palavras suas foram que as disse como segue, 45


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Percorre todas as tribus de Israel, desde Dan até Bersabea, e faz o recenseamento do povo, de maneira que eu saiba o seu número, e como palavra de rei é real, calou Joab as suas dúvidas, chamou o exército, e puseram pés ao caminho e mãos ao trabalho. Quando voltaram a Jerusalém tinham passado nove meses e vinte dias, mas Joab trazia as contas do recenseamento feitas e conferidas, havia em Israel oitocentos mil homens de guerra, que manejavam a espada, e em Judá quinhentos mil. Ora, é sabido que Deus não gosta que ninguém conte em seu lugar, e em especial a este povo, que, sendo seu por eleição sua, não poderá nunca ter outro senhor e dono, e muito menos Roma, regida, como sabemos, por falsos deuses e por falsos homens, em primeiro lugar, porque tais deuses de facto não existem, e em segundo lugar porque, tendo, apesar de tudo, alguma existência enquanto alvos de um culto sem efectivo objecto, é a própria vanidade do culto que demonstrará a falsidade dos homens.

Deixemos, porém, Roma, por agora, e voltemos ao rei David, a quem, no preciso instante em que o chefe do exército fez leitura da parte, lhe deu o coração um baque, tarde foi, que não lhe serviu de nada o remorso e ter dito, Cometi um grande pecado ao fazer isto, mas perdoa, Senhor, a culpa do teu servo, porque procedi nesciamente, foi o caso que um profeta chamado Gad, que era vidente do rei e, por assim dizer, seu intermediário para chegar ao Altíssimo, apareceu-lhe na manhã seguinte, ao levantar da cama, e disse, O Senhor manda perguntar que é que preferes, três anos de fome sobre a terra, três meses de derrotas diante dos inimigos que te perseguem, ou três dias de peste em toda a terra. David não perguntou quanta gente iria ter de morrer caso por caso, calculou que em três dias, mesmo de peste, sempre hão-de morrer menos pessoas do que em três meses de guerra ou três anos de fome, Seja feita a tua vontade, Senhor, venha a peste, disse. E Deus deu ordem à peste e morreram setenta mil homens do povo, não contando mulheres e crianças que, como de costume, não foram ao registo. Lá para o fim, o Senhor concordou em retirar a peste em troca de um altar, mas os mortos estavam mortos, ou foi Deus que não pensou neles, ou era inconveniente a ressurreição, se, como é de supor, muitas heranças já se estavam discutindo e muitas partilhas debatendo, que não é por certificar-se um povo pertença directa de Deus que assim vai renunciar aos bens do mundo, ainda por cima legítimos bens, ganhos com o suor do trabalho ou das batalhas, tanto faz, o que conta, no fim, é o resultado. Mas o que deve também entrar na conta, para acerto dos juízos que sempre haveremos de produzir sobre as acções humanas e divinas, é que Deus, que com prontidão expedita e mão pesada se pagara do erro de David, parece agora que assiste alheado à vexação exercida por Roma sobre os seus filhos mais dilectos e, suprema perplexidade,


mostra-se indiferente ao desacato cometido contra o seu nome e poder. Ora, quando tal sucede, isto é, quando se tornou patente que Deus não vem nem dá sinal de chegar tão cedo, o homem não tem mais remédio que fazer-lhe as vezes e sair de sua casa para ir pôr ordem no mundo ofendido, a casa que é dele e o mundo que a Deus pertence. Andavam, pois, por aí os recenseadores, como já foi dito, passeando a insolência própria de quem todo lo manda, ainda por cima com as costas quentes pela companhia dos soldados, expressiva se bem que equívoca metáfora, que apenas quer dizer que os soldados iam a protegê-los de insultos e sevícias, quando começou a crescer o protesto na Galileia e na Judeia, primeiro abafado, como quem por enquanto só quer excitar a sua própria força, avaliá-la, tomar-lhe o peso, e depois, aos poucos, em manifestações individuais desesperadas, um artesão que se chega à mesa do recenseador e diz, em alta voz, que de si nem o nome lhe arrancarão, um comerciante que se fecha na sua tenda, com a família, e ameaça quebrar todos os vasos e rasgar todos os panos, um agricultor que deita fogo à seara e traz um cesto de cinzas, dizendo, Esta é a moeda com que Israel paga a quem o ofende. Todos eles eram presos acto contínuo, metidos nos cárceres, espancados e humilhados, e porque a resistência humana tem limites breves, assim débeis foi que nos fizeram, todos nervos e fragilidade, às tantas desmoronava-se a valentia, o artesão revelava sem vergonha os seus segredos mais íntimos, o comerciante propunha uma filha ou duas como adicional do imposto, o agricultor cobria-se a si mesmo de cinzas e oferecia-se como escravo. Havia os que não cediam, poucos, e por isso morriam, e outros que, tendo aprendido a melhor lição, de que o ocupante bom é, justamente, e também, o ocupante morto, tomaram armas e foram para as montanhas. Diz-se armas, e elas eram pedras, fundas, paus, cacetes e cachaporrasx alguns arcos e flechas, apenas o suficiente para começar uma intifada, e, lá mais para a frente, umas tantas espadas e lanças apanhadas em rápidas escaramuças, mas que, chegada a hora, de pouco lhes podiam servir, tão habituados andavam, desde 46


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David, à impedimenta rústica, de benévolos pastores e não de guerreiros convictos. Porém, um homem, seja ou não judeu, habitua-se à guerra como dificilmente é capaz de habituar-se à paz, mormente se encontrou um chefe e, mais importante do que acreditar nele, acredita no que ele acredita. Este chefe, o chefe da revolta contra os romanos, principiada quando o primogénito de José ia nos seus seus onze anos, tinha por nome Judas e nascera na Galileia, daí que lhe chamassem, segundo o costume do tempo, Judas Galileu ou Judas de Galileia. Realmente, não devemos estranhar identificações tão primitivas, aliás muito comuns, é fácil encontrar, por exemplo, um José de Arimateia, um Simão de Cirene ou Cireneu, uma Maria Madalena ou de Magdala, e, se o filho de José viver e prosperar, não tenhamos dúvidas de que lhe chamarão, simplesmente, Jesus de Nazaré, ou Jesus Nazareno, ou até, mais simplesmente ainda, pois nunca se sabe aonde pode chegar a identificação duma pessoa com o lugar onde nasceu ou, neste caso, onde se fez homem ou mulher, Nazareno. Porém, isto são futurações, o destino, quantas vezes será preciso dizê-lo, é um cofre como não existe outro, que ao mesmo tempo está aberto e fechado, olhamos dentro dele, podemos ver o que já aconteceu, a vida passada, tornada destino cumprido, mas do que está para suceder não alcançamos mais do que uns pressentimentos, umas intuições, como no caso deste evangelho, que não estaria a ser escrito se não fossem aqueles avisos extraordinários, indiciadores, talvez, de um destino maior que simples vida. Retomando o fio à meada, a rebelião, como íamos dizendo, estava na massa do sangue da família de Judas Galileu, já o pai dele, o velho Ezequias, andara na peleja, com tropa sua, quando das revoltas populares que, depois da morte de Herodes, eclodiram contra os presumíveis herdeiros, antes que Roma tivesse confirmado a legitimidade da partilha do reino e a autoridade dos novos tetrarcas. São coisas que não se sabem explicar, como, sendo as pessoas feitas das mesmas humaníssimas matérias, esta carne, estes ossos, este sangue, esta pele e este riso, este suor e esta lágrima, vemos que saem uns cobardes e outros sem medo, uns de guerra e outros de paz, por exemplo, o mesmo que serviu para fazer um José serviu para fazer um Judas, e enquanto este, filho do seu pai e pai de seus filhos, seguindo o exemplo de um e dando o exemplo aos outros, se tirou da sua tranquilidade para ir defender em batalha os direitos de Deus, o carpinteiro José ficou em casa, com os seus nove filhos pequenos e a mãe deles, agarrado à bancada e à necessidade de ganhar o pão para hoje, que o dia de amanhã não se sabe a quem pertence, há quem diga que a Deus, é uma hipótese tão boa como a outra, a de não pertencer a ninguém, e tudo isso, ontem, hoje e amanhã, não serem mais do que diferentes nomes da ilusão. Mas desta aldeia de Nazaré, alguns homens, sobretudo dos mais novos, foram juntar-se à guerrilha de Judas o Galileu, em geral desapareciam sem prevenir, sumiam-se, por assim dizer, de uma hora para outra, tudo ficava no íntimo segredo das famílias, e a regra do sigilo, tácita, era a tal ponto imperiosa que ninguém se lembraria de fazer perguntas, Onde está Natanael, há dias que não o vejo, se Natanael deixara de comparecer na sinagoga ou a fila dos ceifeiros, no campo, ficara mais curta de um homem, os demais procediam como se Natanael nunca tivesse existido, não era bem assim, algumas vezes sabia-se que Natanael entrara na aldeia, sozinho pela noite escura, e que voltara a sair ao primeiro sinal de madrugada, não havia outro indício desta entrada e saída do que o sorriso da mulher de Natanael, mas em verdade há sorrisos que dizem tudo, uma mulher está parada, com os olhos perdidos no vago, o horizonte, ou apenas a parede na sua frente, e de súbito começa a sorrir, um sorriso lento, reflexivo, como uma imagem emergindo da água e oscilando na superfície inquieta, só um cego, por não poder vê-lo, pensaria que a mulher de Natanael dormiu outra noite sem o seu marido. E o coração humano é de tal maneira estranho, que algumas mulheres que beneficiavam da contínua presença dos seus homens, punham-se a suspirar ao imaginar aqueles encontros e, alvoroçadas, rodeavam a mulher de Natanael como fazem as abelhas a uma flor transbordante de pólen. Não era este o caso de Maria, com aqueles nove filhos, e um marido que quase todas as noites gemia e gritava de angústia e pavor, ao ponto de fazer acordar as crianças, que por sua vez desatavam a chorar. Com o passar do tempo, melhor ou não tanto, chegaram a habituar-se, mas o mais velho, porque alguma coisa, mas não ainda um sonho, o assustava no meio do seu próprio sono, acordava sempre, ao princípio ainda perguntava à mãe, Que tem o pai, e ela respondia como quem não dá importância, São sonhos maus, não podia dizer ao filho, Teu pai estava a sonhar que ia com os soldados de Herodes na estrada de Belém, Qual Herodes, O pai deste que nos governa, E era por isso que gemia e gritava, Por isso era, Não compreendo que ser soldado de um rei que já morreu traga sonhos ruins, Teu pai nunca foi soldado de Herodes, o seu ofício sempre foi de 47


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carpinteiro, Então por que sonha, As pessoas não escolhem os sonhos que têm, São, pois, os sonhos que escolhem as pessoas, Nunca o ouvi dizer a ninguém, mas assim deve ser, Porquê os gritos, minha mãe, porquê os gemidos, É que teu pai todas as noites sonha que te vai matar, está visto que Maria não podia chegar a tais extremos, revelar a causa do pesadelo do marido justamente a quem tinha, nesse pesadelo, como Isaac, filho de Abraão, o papel de vítima nunca consumada, mas condenada inexoravelmente. Um dia, Jesus, numa ocasião em que ajudava o pai a juntar as partes duma porta, cobrou-se de ânimo e fez-lhe a pergunta, e ele, depois de um silêncio demorado, sem levantar os olhos, disse isto apenas, Meu filho, já conheces os teus deveres e obrigações, cumpre-os a todos e encontrarás justificação diante de Deus, mas cuida também de procurar na tua alma que deveres e obrigações haverá mais, que não te tenham sido ensinados, Esse é o teu sonho, pai, Não, é só o motivo dele, ter um dia esquecido um dever, ou ainda pior, Pior, como, Não pensei, E o sonho, O sonho é o pensamento que não foi pensado quando devia, agora tenho-o comigo todas as noites, não posso esquecê-lo, E que era o que devias ter pensado, Nem tu podes fazer-me todas as perguntas, nem eu posso dar-te todas as respostas. Trabalhavam no pátio, a uma sombra, porque o tempo era de verão e o sol queimava. Por ali perto brincavam os irmãos de Jesus, excepto o mais novinho, que estava dentro de casa, ao colo da mãe a mamar. Tiago também estivera ajudando, mas cansara-se, ou aborrecera-se, não admira, nestas idades um ano faz muita diferença, a Jesus já pouco falta para entrar na maturidade do conhecimento religioso, terminou a sua instrução elementar, agora, além de prosseguir o estudo da Tora, ou lei escrita, inicia-se na lei oral, bem mais árdua e complexa. Assim se entenderá melhor que, tão jovem, possa ter mantido com o pai esta séria conversação, usando as palavras com propriedade e argumentando com ponderação e lógica. Jesus está quase a fazer doze anos, dentro de pouco tempo será um homem, e então talvez possa voltar ao assunto agora deixado em suspenso, se José estiver disposto a reconhecer-se culpado diante do próprio filho, como Abraão também não fez com seu filho Isaac, nesse dia tudo foi reconhecer e louvar o poder de Deus. Mas é bem verdade que a recta escrita de Deus só em pouco coincide com as tortas linhas dos homens, veja-se o dito caso de Abraão, a quem apareceu o anjo a dizer, no último momento, Não levantes a mão sobre o menino, e veja-se o caso de José, que tendo Deus, em lugar do anjo, posto no seu caminho um cabo e três soldados faladores, não aproveitou o tempo que tinha para salvar da morte os meninos de Belém. Porém, se os bons começos de Jesus não se perderem na mudança da idade, talvez que ele venha a querer saber por que salvou Deus a Isaac e nada fez para salvar os tristes infantes que, inocentes de pecado como o filho de Abraão, não encontraram piedade perante o trono do Senhor. E, assim sendo, Jesus poderá dizer ao seu progenitor, Pai, não tens de levar contigo toda a culpa, e, no segredo do seu coração, quiçá ouse perguntar, Quando chegará, Senhor, o dia em que virás a nós para reconheceres os teus erros perante os homens. Enquanto, de portas adentro, as da casa e as da alma, o carpinteiro José e seu filho Jesus debatiam, entre o que diziam e o que calavam, estas altas questões, a guerra contra os romanos continuava. Durava há mais de dois anos, e às vezes chegavam a Nazaré fúnebres notícias, morreu Efraim, morreu Abiezer, morreu Neftali, morreu Eleazar, porém não se sabia com segurança onde estavam os seus corpos, entre duas pedras da montanha, no fundo dum desfiladeiro, levado na corrente do rio, à sombra inútil duma árvore. Bem podem os que ficaram em Nazaré lavar-se as mãos e dizer, mesmo não podendo celebrar o funeral dos que morreram, As nossas mãos não derramaram este sangue e os nossos olhos não o viram. Mas também chegavam notícias de grandes vitórias, os romanos expulsos da cidade de Séforis, ali perto, apenas a duas horas de Nazaré, andando, extensas partes da Judeia e da Galileia onde o exército inimigo não ousava entrar, e na própria aldeia de José, há mais de um ano que não se vê um soldado de Roma. Quem sabe, mesmo, se não terá sido esta a causa de o vizinho do carpinteiro, o curioso e prestável Ananias de quem não tínhamos precisado de voltar a falar, ter, por estes dias, entrado aqui no pátio com ar misterioso, dizendo, Vem comigo fora, e com bons motivos o pede, que nas casas deste povo, por tão pequenas serem, não é possível a privacidade, onde está um estão todos, à noite quando dormem, de dia seja qual for a circunstância e a ocasião, é uma vantagem para o Senhor Deus, que assim com mais facilidade poderá reconhecer os que são seus no dia do Juízo Final. Não estranhou José o pedido, mesmo quando Ananias acrescentou sigiloso, Vamos ao deserto, ora nós já sabemos que o deserto não é só aquilo que a nossa mente se acostumou a mostrar-nos quando lemos ou ouvimos a palavra, uma extensão enorme de areia, um mar de dunas ardentes, desertos, como aqui também são entendidos, há-os até na verde Galileia, são os 48


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campos sem cultivo, os lugares onde não habitam homens nem se vêem sinais assíduos do seu trabalho, dizer deserto é dizer, Deixará de o ser quando lá estivermos. Porém, neste caso, sendo apenas dois os homens que vão caminhando através do mato, ainda à vista de Nazaré, em direcção a três grandes pedras que se levantam no alto da colina, está claro que não se pode falar de povoamento, o deserto voltará a ser deserto quando estes se forem. Sentou-se Ananias no chão, José ao lado dele, têm a diferença de anos que sempre tiveram, claro está, que o tempo passa igual para todos, mas não assim os seus efeitos, por isso é que Ananias, que nem estava muito mal para a idade quando o conhecemos, hoje mais parece um velho, e isto apesar de o tempo também não ter poupado José.

Ananias está como hesitante, o ar decidido com que entrara em casa do carpinteiro veio-se apagando pelo caminho, e agora vai ser preciso que José o anime com uma pequena frase que não deverá parecer uma pergunta, por exemplo, Viemos longe, é uma boa deixa para Ananias, que lhe irá permitir dizer, Não era assunto para ser tratado na tua casa ou na minha. A partir daqui a conversa já poderá seguir os caminhos normais, por muito melindroso que seja o motivo que os trouxe a este lugar retirado, como agora se verá. Disse Ananias, Um dia pediste-me que olhasse pela tua casa durante a tua ausência, e eu assim fiz, Sempre te fiquei grato por esse favor, disse José, e Ananias continuou, Agora chegou a ocasião de te pedir que me olhes tu pela casa durante o tempo da minha ausência, Partes com tua mulher, Não, vou sozinho, Mas, se ela fica, Chua vai para casa dos parentes pescadores, Queres dizer-me que entregaste à tua mulher a carta de divórcio, Não me divorciei dela, se não o fiz quando soube que não podia dar-me filhos, também não o iria fazer agora, o que sucede é que tenho de estar longe de casa uma temporada, o melhor para Chua é que fique com os seus, Vais estar fora muito tempo, Não sei, depende do que durar a guerra, Que tem a guerra que ver com a tua ausência, disse José, surpreendido, Vou à procura de Judas Galileu, E que é o que lhe queres, Quero-lhe perguntar se aceita receber-me no seu exército, Mas tu, Ananias, que sempre foste homem de paz, vais-te agora meter em guerras contra os romanos, lembra-te do que aconteceu a Efraim e a Abiezer, E também a Neftali e a Eleazar, Escuta então a voz do bom senso, Escuta-me tu, José, seja qual for a voz que fale pela minha boca, tenho hoje a idade do meu pai quando morreu, e ele fez muito mais na vida do que este seu filho que nem filhos pôde ter, não sou sábio como tu para vir a ser um ancião na sinagoga, daqui para diante não terei nada mais para fazer que esperar todos os dias a morte, ao lado duma mulher que já não quero, Divorcia-te, então, A questão não está em divorciar-me dela, a questão estaria em divorciar-me de mim, e isso não é coisa que se possa, E tu, que vais poder tu na guerra, com essas poucas forças, Vou para a guerra como se pensasse ir fazer um filho, Nunca tal ouvi dizer, Eu também não, mas esta foi a ideia que me veio agora, Cuidarei da tua casa até voltares, Se eu não voltar, se te disserem que morri, promete-me que mandarás avisar Chua para que ela tome posse do que lhe pertence, Prometo, Vamos embora, agora estou em paz, Em paz quando decides ir para a guerra, em verdade, não compreendo, Ai, José, José, por quantos séculos ainda teremos de ir acrescentando a ciência do Talmude até podermos chegar à compreensão das coisas mais simples, Por que foi que viemos aqui, não era preciso afastarmo-nos tanto, Queria falar-te diante de testemunhas, Bastaria a testemunha absoluta que Deus é, este céu que nos cobre para onde quer que vamos, Estas pedras, As pedras são surdas e mudas, não podem testemunhar, É verdade que o são, mas, amanhã, se tu e eu decidíssemos mentir sobre o que aqui foi dito, acusar-nos-iam e continuariam a acusar-nos até se transformarem elas em pó e nós em coisa nenhuma, Vamo-nos, Vamos. Durante o caminho, Ananias voltou-se algumas vezes para trás para olhar as pedras, por fim desapareceram da vista delas por trás de um cerro, foi nessa altura que José perguntou, Chua já sabe, Sim, disse-lho, E ela, Ficou calada, depois disse-me que mais valia que eu a repudiasse, agora anda lá a chorar pelos cantos, Coitada, Quando estiver com a família esquece-, -se de mim, se eu morrer tornará a esquecer-me, é a lei da vida, o esquecimento. Entraram na aldeia, e quando chegaram a casa do carpinteiro, que era a primeira das duas para quem ia deste lado, Jesus, que brincava na rua com Tiago e Judas, disse que a mãe estava em casa do vizinho. Quando os dois homens se afastavam, ouviu-se a voz de Judas, que dizia em tom de autoridade, Eu sou Judas o Galileu, então Ananias virou-se para o olhar e disse a José, sorrindo, Vês ali o meu capitão, não teve o carpinteiro tempo para responder porque outra voz soou, a de Jesus, dizendo, Então o teu lugar não é aqui. José sentiu como uma picada no coração, era como se tais palavras lhe estivessem a ser dirigidas, como se o jogo infantil fosse instrumento doutra verdade, lembrou-se então das três pedras e tentou, mas sem saber por que o fazia, imaginar a sua 49


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vida como se diante delas é que devesse, doravante, pronunciar todas as palavras e cometer todos os actos, porém, no instante seguinte entrou-lhe no coração um sentimento de puro terror porque compreendera que se havia esquecido de Deus. Em casa de Ananias foram encontrar Maria que tentava consolar a lacrimosa Chua, mas o choro parou assim que os homens entraram, não que Chua tivesse deixado de chorar, a questão é que as mulheres aprenderam com a dura experiência a engolir as lágrimas, por isso é que dizemos, Tanto choram como riem, e não é verdade, em geral estão a chorar para dentro. Não para dentro, mas com todas as ânsias da alma e todas as lágrimas dos olhos, chorou a mulher de Ananias no dia em que ele partiu. Uma semana depois vieram buscá-la aqueles seus parentes que viviam na borda do mar. Maria acompanhou-a até à saída da aldeia, e aí se despediram. Chua, então, já não chorava, mas os seus olhos nunca mais voltarão a estar secos, que esse é o choro que não tem remédio, aquele lume contínuo que queima as lágrimas antes que elas possam surgir e rolar pelas faces.


Assim foram passando os meses, as notícias da guerra continuavam a chegar, ora boas, ora más, mas enquanto as notícias boas nunca iam além dumas vagas alusões a vitórias que sempre resultavam pequenas, as más notícias, essas, já começavam a falar de pesadas e sangrentas derrotas do exército guerrilheiro de Judas o Galileu. Um dia trouxeram notícia de que morrera Baldad numa emboscada de guerrilha que os romanos tinham surpreendido, assim se virando o feitiço contra o feiticeiro, tinha havido muitos mortos, mas de Nazaré só aquele. E outro dia alguém veio dizer que ouvira dizer a quem tinha ouvido dizer que Varo, o governador romano da Síria, vinha aí com duas legiões de tropas para acabar de uma vez com a intolerável insurreição, que levava já três anos. Esta mesma maneira vaga de anunciar, Vem aí, pela sua imprecisão, difundia entre a gente um sentimento insidioso de temor, como se a qualquer momento fossem aparecer na volta do caminho, alçadas à cabeça da coluna punitiva, as temíveis insígnias da guerra e a sigla com que aqui se homologam e selam todas as acções, SPQR, o senado e o povo de Roma, em nome de coisas tais, letras, livros e bandeiras, é que as pessoas se andam a matar umas às outras, como será também o caso doutra conhecida sigla, INRI, Jesus de Nazaré Rei dos Judeus, e suas sequelas, porém não nos ponhamos já a antecipar, deixemos que o preciso tempo passe, por agora, e causa uma impressão de estranheza sabê-

lo e poder dizê-lo, como se doutro mundo estivéssemos a falar, ainda não morreu ninguém por causa dela. Por toda a parte se anunciam grandes batalhas, prometendo os de mais robusta fé que não passará este ano sem que os romanos sejam expulsos da santa terra de Israel, mas também não faltam outros que, ouvindo estas abondanças, abanam tristemente a cabeça e começam a deitar contas ao desastre que se aproxima. E assim foi. Durante algumas semanas depois de ter corrido a notícia do avanço das legiões de Varo, nada aconteceu, com o que lucraram os guerrilheiros para redobrar as acções de flagelação da dispersa tropa com que vinham lutando, mas a razão estratégica dessa aparente inactividade não tardou a ser conhecida, quando os esculcas do Galileu passaram palavra de que uma das legiões havia seguido para o sul, em manobra de envolvimento, ao longo do rio Jordão, rodando depois sobre a direita à altura de Jericó, para, tal uma rede lançada à água e puxada por mão sábia, recomeçar o movimento em direcção ao norte, como uma espécie de laçadeira colhendo aqui e além, enquanto a outra legião, seguindo um método semelhante, se movia para o sul. Poderíamos chamar-lhe a táctica da tenaz se não fosse mais o movimento concertado de duas paredes que se vão aproximando e atropelando aqueles que não podem escapar, mas que guardam para o instante final o efeito maior, o esmagamento. Nos caminhos, vales e cabeços da Judeia e da Galileia, o avanço das legiões ia ficando marcado pelas cruzes onde morriam, cravados de pés e mãos, os combatentes de Judas, aos quais, para mais depressa os rematarem, se partiam, a golpes de malho, as tibias. Os soldados entravam nas aldeias, revistavam casa por casa procurando suspeitos, que para levar estes homens ao crucifixo não eram precisas mais certezas do que as que pode oferecer, querendo, a simples suspeita. Esses infelizes, com perdão da triste ironia, ainda tinham sorte, porque, sendo crucificados por assim dizer à porta de casa, logo acudiam os parentes a retirá-los depois de haverem expirado, e então era um espectáculo lastimoso de ver e ouvir, os choros das mães, das esposas e das noivas, os gritos das pobres crianças que ficavam sem pai, enquanto o martirizado homem era descido da cruz com mil cautelas, pois não há nada mais pungente que a queda desamparada dum corpo morto, tanto que até aos próprios vivos parece doer o choque. Depois o crucificado era levado ao 50


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túmulo, onde ficava esperando o seu dia de ressurreição. Mas outros havia que, tendo sido apanhados em combate travado nas montanhas ou outros sítios desabitados, eram deixados ainda vivos pelos soldados e, agora sim, no mais absoluto de todos os desertos, o da morte solitária, ali ficavam, cozidos lentamente pelo sol, expostos às aves carniceiras, e, passando o tempo, desgarravam-se-lhes as carnes e os ossos, reduzidos a um mísero despojo sem forma que à própria alma repugna. Pessoas curiosas, senão cépticas, já noutras ocasiões convocadas a contrariar o sentimento de resignação com que em geral são recebidas as informações constantes de evangelhos como este, gostariam de saber como foi possível aos romanos crucificarem tão grande quantidade de judeus, mormente nas enormes áreas desarborizadas e desérticas que por aqui abundam, onde, e é quando é, não se consegue encontrar mais do que umas raquíticas e ralas vegetações, que decididamente não aguentariam nem a crucificação de um espírito. Esquecem essas pessoas que o exército romano é um exército moderno, para o qual logística e intendência não são palavras vãs, o abastecimento de cruzes, ao longo desta campanha, tem sido amplamente assegurado, veja-se a extensa récua de burros e mulas que segue no couce da legião, transportando as peças soltas, a crux e o patibulum, o pau vertical e a travessa, que, chegando ao sítio, é só pregar os braços abertos do condenado à travessa, içá-lo até ao alto do pau espetado no chão, e depois, tendo-o feito primeiro encolher as pernas para um lado, fixar com um único cravo de palmo, à crux, os dois calcanhares sobrepostos. Qualquer carrasco da legião dirá que esta operação, só aparentemente complexa, é afinal mais difícil de explicar que de executar. A hora é de desastre, tinham razão os pessimistas. Do norte para o sul e do sul para o norte, há gente em pânico que vem fugindo à frente das legiões, alguns sobre quem poderiam recair suspeitas de terem ajudado os guerrilheiros, outros movidos pelo puro medo, já que, como sabemos, não é preciso ter culpa para ser-se culpado. Ora, um desses fugitivos, detendo por instantes a retirada, veio bater à porta do carpinteiro José para lhe dizer que o seu vizinho Ananias se encontrava em Séforis, maltratado de golpes de espada, e que, este era o recado, Está a guerra perdida e eu não escapo, já podes mandar avisar minha mulher para que venha tomar conta do que lhe pertence, Nada mais, perguntou José, Outra palavra não disse, respondeu o mensageiro, E tu, por que não o trouxeste contigo, se por aqui tinhas de passar, No estado em que ele está atrasar-me-ia o passo, e eu tenho a minha própria família, que devo proteger em primeiro lugar, Em primeiro lugar, sim, mas não apenas, Que queres dizer, vejo-te aí rodeado de filhos, se não foges com eles é porque não estás em perigo, Não te demores, vai, e que o Senhor te acompanhe, o perigo é onde o Senhor não estiver, Homem sem fé, o Senhor está em toda a parte, Sim, mas às vezes não olha para nós, e tu não fales de fé, porque a ela faltaste ao abandonares o meu vizinho, Por que não vais tu buscá-lo, então, Irei. Foi isto pelo meio da tarde, o dia estava bonito, de sol, com umas nuvens muito brancas, esparsas, que vogavam pelo céu fora como barcas que não precisassem de governo. José foi desprender o burro, chamou a mulher e disse-lhe, sem outras explicações, Vou a Séforis buscar o vizinho Ananias, que não pode andar por seu pé.

Maria apenas fez um gesto de assentimento com a cabeça, mas Jesus foi-se para o pai, Posso ir contigo, perguntou. José olhou o filho, pôs-lhe a mão direita sobre a cabeça e disse, Fica em casa, eu vou e não tardo, andando lesto para lá talvez ainda regresse a casa com luz de dia, e bem poderia ser, pois, como sabemos, a distância de Nazaré a Séforis não vai além de uns oito quilómetros, o mesmo que de Jerusalém a Belém, em verdade, digamo-lo uma vez mais, o mundo está cheio de coincidências. José não montou no burro, queria que o animal estivesse fresco para a volta, rijo de canelas e firme de mãos, suave de lombo, como convém a quem terá de transportar um enfermo, ou, melhor dizendo, um ferido da guerra, que é diferente patologia. Ao passar pelo sopé da colina onde, há quase um ano, Ananias lhe comunicara a sua decisão de juntar-se aos rebeldes de Judas da Galileia, o carpinteiro levantou os olhos para as três grandes pedras que, lá no alto, juntas como gomos de um fruto, pareciam estar esperando que do céu e da terra lhes chegasse a resposta às perguntas que fazem todos os seres e coisas, apenas por existirem, ainda que as não pronunciem, Por que estou aqui, Que razão conhecida ou ignorada me explica, Como será o mundo em que eu não estiver, sendo este o que é. A Ananias, se fosse ele a perguntar, poderíamos responder que as pedras, ao menos, continuam como dantes, se o vento, a chuva e o calor as morderam e desgastaram foi quase nada, e que passados vinte séculos provavelmente ainda lá estarão, e outros vinte séculos depois desses vinte, o mundo transformando-se ao redor, mas para as duas perguntas primeiras é que continua a não haver resposta. Pela estrada vinham bandos de pessoas fugidas, com aquele mesmo ar 51


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de susto que tinha o mensageiro de Ananias, olhavam José com surpresa, e um dos homens reteve-o por um braço e disse, Aonde vais, e o carpinteiro respondeu, A Séforis, por um amigo, Se és amigo de ti mesmo, não vás, Porquê, Os romanos estão-se a aproximar, a cidade não tem salvação, Devo ir, o meu vizinho é o meu irmão, não há mais ninguém para ir buscá-lo, Pensa bem, e o prudente conselheiro seguiu o seu caminho, deixando José parado no meio da estrada, às voltas com o pensamento, se de facto seria amigo de si mesmo ou se, de mais havendo razões para tal, se detestava ou desprezava, e, tendo pensado um pouco, concluiu que nem uma coisa nem outra, olhava para si mesmo com um sentimento de indiferença, como se olha o vazio, no vazio não há perto nem longe onde parar os olhos, em verdade, não é possível fixar uma ausência. Depois pensou que a sua obrigação de pai era voltar para trás, afinal ele tinha os seus próprios filhos para proteger, para quê ir-se à procura de alguém que não era mais que um vizinho, e agora nem tanto, pois tinha deixado a casa e mandado a mulher para outra terra. Porém, os filhos estavam seguros, os romanos não lhes iriam fazer mal, andavam, sim, à procura de rebeldes. Quando o fio do pensamento o levou a esta conclusão, José achou-se a dizer em voz alta, como se respondesse a uma preocupação escondida, E

eu também não sou rebelde. Acto contínuo, deu uma palmada na anca do animal, exclamou, Xó, burro, e continuou o seu caminho. Quando entrou em Séforis, a tarde declinava. As longas sombras das casas e das árvores, primeiro estendidas no chão e ainda reconhecíveis, iam-se perdendo aos poucos, como se tivessem chegado ao horizonte e aí se sumissem, iguais a uma água escura caindo em cascata. Havia pouca gente nas ruas da cidade, nenhuma mulher, nenhuma criança, apenas homens cansados que pousavam as frágeis armas e se deitavam, arquejantes, não se sabia se do combate de que vinham ou de terem fugido dele. A um desses homens José perguntou, Os romanos vêm perto. O

homem fechou os olhos, depois lentamente abriu-os e disse, Estarão aqui amanhã, e desviando o olhar, Vai-te embora, leva o teu burro e vai-te embora, Ando à procura de um amigo que foi ferido, Se os teus amigos são todos os que se encontram feridos, és o homem mais rico do mundo, Onde é que estão, Por aí, em toda a parte, aqui mesmo, Mas há algum lugar na cidade, Há, sim, por trás dessas casas, um armazém, aí está uma quantidade de feridos, talvez lá encontres o teu amigo, mas depressa, que já são mais os que são tirados mortos do que os que ainda entram vivos. José conhecia a cidade, estivera aqui não poucas vezes, tanto por razões de ofício, quando viera trabalhar em obras vultosas, muito comuns na rica e próspera Séforis, como também por ocasião de certas festas religiosas menos importantes, que em verdade não teria sentido andar sempre a caminho de Jerusalém, com o longe que está e o custoso que é lá chegar. Descobrir o armazém foi portanto fácil, aliás bastava seguir um cheiro de sangue e corpos sofredores que pairava, podia-se até imaginar um jogo como o do Quente, quente, Frio, frio, consoante se aproximasse ou afastasse o buscador, Dói, Não dói, agora as dores já eram insuportáveis. José atou o burro a uma comprida trízia que ali havia e entrou na escura camarata em que o armazém fora transformado. No chão, entre as esteiras, havia umas lamparinas acesas que pouco iluminavam, eram como pequenas estrelas no céu negro, sem mais luz que a suficiente para assinalarem o seu lugar, se de tão longe as vemos. José percorreu devagar as filas de homens deitados, à procura de Ananias, no ar havia outros cheiros fortes, o do azeite e do vinho com que se curavam as feridas, o do suor, o das fezes e da urina, que alguns destes desgraçados nem mover-se podiam e ali mesmo onde estavam deixavam sair o que o corpo, mais forte que a vontade, deixara de querer guardar. Não está aqui, disse consigo mesmo José quando chegou ao final da correnteza. Recomeçou a andar em sentido contrário, mais lentamente, perscrutando, procurando sinais de semelhança, e em verdade eram todos parecidos uns com os outros, as barbas, os rostos cavados, as órbitas fundas, o brilho baço e pegajoso do suor. Alguns dos feridos seguiam-no com um olhar ansioso, tinham querido acreditar que este homem são viera por eles, mas depois extinguia-se o breve clarão que animara os seus olhos, e a espera, de quem, para quê, continuava. Diante de um homem idoso, de barba e cabelo todos brancos, José parou, É ele, disse, e contudo não estava assim quando o vira pela última vez, brancas, sim, tinha-as, e muitas, mas não esta espécie de neve suja, no meio da qual as sobrancelhas, como tições, conservavam o negrume de antes. O homem tinha os olhos fechados e respirava pesadamente. Em voz baixa, José chamou, Ananias, depois mais alto e mais perto, Ananias, e, aos poucos, como se se erguesse já das profundas da terra, o homem foi levantando as pálpebras e quando as abriu de todo viu-se que era mesmo Ananias, o vizinho que deixara a casa e a mulher para ir combater contra os romanos e agora aqui está, com feridas abertas no ventre e um cheiro de carne que 52


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começa a apodrecer. Ananias, primeiro, não reconheceu José, a luz da enfermaria não ajuda, a dos seus olhos ainda menos, mas sabe definitivamente que é ele quando o carpinteiro repete, agora num tom diferente, talvez de amor, Ananias, os olhos do velho inundam-se de lágrimas, diz uma vez, diz duas vezes, És tu, és tu, que vieste cá fazer, que vieste cá fazer, e quer levantar-se sobre um cotovelo, estender o braço, mas as forças faltam-lhe, o corpo descai, toda a cara se lhe contorce de dor. Venho buscar-te, disse o carpinteiro, tenho o burro lá fora, estaremos em Nazaré num abrir e fechar de olhos, Não devias ter vindo, os romanos não tardam, e eu não posso sair daqui, esta é a minha última cama de vivo, e com as mãos trémulas abriu a túnica rasgada. Por baixo de uns panos ensopados em vinho e azeite percebiam-se os ferozes lábios de duas feridas longas e fundas, no mesmo instante um odor adocicado e nauseabundo de podridão fez estremecer as narinas de José, que desviou os olhos. O

velho tapou-se, deixou cair os braços ao lado como se o esforço o tivesse esgotado, Já vês que não me podes levar, caíam-se-me as tripas da barriga se me levantasses daqui, Com uma faixa apertada à volta do corpo e indo devagar, insistiu José, porém já sem nenhuma convicção, era evidente que o velho, supondo que seria capaz de subir para o burro, iria ficar-se pelo caminho. Ananias fechara outra vez os olhos e foi sem os abrir que disse, Vai-te embora, José, vai para casa, olha que os romanos não tardam aí, Os romanos não virão atacar de noite, descansa, Vai para casa, vai para casa, suspirou Ananias, e José disse, Dorme. Toda a noite José velou. Alguma vez, com o espírito flutuando nas primeiras névoas de um sono que temia e a que por esta razão de agora igualmente resistia, José perguntou a si mesmo por que viera a este sítio, se era verdade que nunca tinha havido entre ele e o vizinho verdadeira amizade, pela diferença das idades, em primeiro lugar, mas também por uma certa maneira mesquinha de ser de Ananias e da mulher, curiosos, metediços, por um lado prestáveis, mas logo dando a ideia de ficarem à espera duma compensação cujo valor só a eles competiria fixar. É o meu vizinho, pensou José, e não encontrava melhor resposta para as suas dúvidas, é o meu próximo, um homem que está a morrer, fechou os olhos, não é que não queira ver-me, o que não quer é perder nenhum movimento da morte que se aproxima, e eu não posso deixá-lo sozinho. Tinha-se sentado no estreito espaço entre a esteira onde jazia Ananias e outra onde estava um rapaz novo, pouco mais velho que seu filho Jesus, o pobre moço gemia baixinho, murmurava palavras incompreensíveis, a febre rebentara-lhe os lábios. José segurou-lhe na mão para acalmá-lo, no mesmo momento em que também a mão de Ananias, tacteando cega, parecia procurar algo, uma arma para se defender, outra mão para apertar, e foi assim que ficaram os três, um vivo entre dois moribundos, uma vida entre duas mortes, enquanto o tranquilo céu nocturno ia fazendo rodar as estrelas e os planetas, lá para diante trazendo do outro lado do mundo uma lua branca, refulgente, que boiava no espaço e cobria de inocência toda a terra de Galileia. Muito tarde, José saiu do torpor em que, sem querer, caíra, despertou com um sentimento de alívio porque desta vez não tinha sonhado com a estrada de Belém, abriu os olhos e viu, Ananias estava morto, de olhos abertos também, no último instante não suportara a visão da morte, a mão dele apertava a sua com tanta força que lhe comprimia os ossos, então, para poder libertar-se da angustiadora sensação, soltou a mão que segurava a do rapaz, e, ainda num estado de meia consciência, percebeu que a febre deste baixara. José olhou para fora, pela porta aberta, a lua já se pusera, agora a luz era a da madrugada, imprecisa e pardacenta. No armazém moviam-se vagos vultos, eram os feridos que podiam levantar-se, iam olhar o primeiro anúncio do dia, podiam ter perguntado uns aos outros ou directamente ao céu, Que verá este sol que vai nascer, alguma vez aprenderemos a não fazer perguntas inúteis, mas enquanto esse tempo não chega aproveitemos para perguntar-nos, Que verá este sol que vai nascer. José pensou, Vou-me embora, aqui já não posso nada, havia também nas suas palavras um tom interrogativo, tanto assim que prosseguiu, Posso levá-

lo para Nazaré, e a lembrança pareceu-lhe de tal maneira óbvia que acreditou que para isso mesmo é que viera, encontrar Ananias vivo e transportá-lo morto. O rapaz pediu água. José chegou-lhe um púcaro de barro à boca, Como te sentes, perguntou, Menos mal, Pelo menos, parece que se te baixou a febre, Vou ver se consigo levantar-me, disse o rapaz, Tem cuidado, e José reteve-o, ocorrera-lhe de súbito outra ideia, a Ananias não podia fazer-lhe nada mais que o enterro em Nazaré, mas, ao rapaz, donde quer que ele fosse, ainda podia salvar-lhe a vida, tirá-lo do fúnebre depósito, um vizinho, por assim dizer, tomava o lugar doutro vizinho. Já não sentia pena de Ananias, apenas um corpo vazio, a alma mais e mais distante de cada vez que o olhava. O rapaz parecia perceber que algo bom para si estaria talvez a acontecer, os olhos brilharam-lhe, mas não chegou a fazer nenhuma pergunta porque 53


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José já saíra, ia buscar o burro, trazê-lo para dentro, abençoado seja o Senhor que sabe pôr na cabeça dos homens tão excelentes ideias. O burro não estava lá. Da sua presença não ficara mais que uma ponta de corda atada ao barrote, o ladrão não perdera tempo a desatar o simples nó, uma faca afiada fez o trabalho mais depressa.


As forças de José cederam de golpe diante do desastre. Como um vitelo fulminado, daqueles que vira sacrificar no Templo, caiu de joelhos e, com as mãos contra o rosto, soltaram-se-lhe de uma vez as lágrimas, todas aquelas lágrimas que há treze anos vinha acumulando, à espera do dia em que pudesse perdoar-se a si mesmo ou tivesse de enfrentar a sua definitiva condenação. Deus não perdoa os pecados que manda cometer. José não voltou ao armazém, compreendera que o sentido das suas acções se perdera para sempre, nem o mundo, o próprio mundo, tinha já sentido, o sol estava a nascer, e para quê, Senhor, no céu havia mil pequenas nuvens, espalhadas em todas as direcções como as pedras do deserto. Vendo-o ali, a enxugar as lágrimas na manga da túnica, qualquer pessoa pensaria que lhe tinha morrido um parente entre os feridos recolhidos no armazém, quando o certo era que José acabara de chorar as suas últimas lágrimas naturais, as da dor da vida. Quando, depois de ter vagueado pela cidade durante mais de uma hora, ainda com uma última esperança de encontrar o animal roubado, se dispunha a regressar a Nazaré, prenderam-no os soldados romanos que tinham cercado Séforis. Perguntaram-lhe quem era, Sou José filho de Heli, donde vinha, De Nazaré, ia para onde, Para Nazaré, que fazia em Séforis neste dia, Alguém me disse que um vizinho meu estava aqui, quem era esse vizinho, Ananias, se o tinha encontrado, Sim, onde o encontrara, Num armazém com outros, outros quê, Feridos, em que parte da cidade, Além. Levaram-no para uma praça onde já estavam uns quantos homens, doze, quinze, sentados no chão, alguns deles com ferimentos visíveis, e disseram-lhe, Senta-te com esses. José, percebendo que os homens que ali estavam eram rebeldes, protestou, Sou carpinteiro e gente de paz, e um dos que estavam sentados disse, Não conhecemos este homem, mas o sargento que comandava a guarda dos prisioneiros não quis saber, com um empurrão fez cair José no meio dos outros, Daí só sais para ires morrer. No primeiro instante, o duplo choque, da queda e da sentença, deixou José sem pensamentos. Depois, quando se recompôs, viu que dentro de si havia uma grande tranquilidade, como se tudo isto fosse um sonho mau do qual tivesse a certeza de que viria a acordar e portanto não valia a pena atormentar-se com as ameaças, pois elas se dissipariam assim que abrisse os olhos. Então lembrou-se de que quando sonhava com a estrada de Belém também tinha a certeza de acordar, e no entanto, de repente começou a tremer, a brutal evidência do seu destino tornara-se-lhe enfim clara, Vou morrer, e vou morrer inocente. Sentiu que uma mão se pousava no seu ombro, era o vizinho, Quando vier o comandante da coorte dizemos-lhe que não tens nada que ver connosco, e ele manda-te em paz, E vocês, Os romanos têm-nos crucificado a todos, quando nos apanham, com certeza não será diferente desta vez, Deus vos salvará, Deus salva as almas, não salva os corpos. Trouxeram mais homens, dois, três, a seguir um grupo numeroso, de uns vinte. À volta da praça tinham-se juntado habitantes de Séforis, mulheres e crianças de mistura com os varões, ouvia-se-lhes o murmúrio inquieto, mas dali não podiam sair enquanto os romanos não autorizassem, já muita sorte tinham por não serem suspeitos de andar com os rebeldes. Ao cabo de algum tempo foi trazido outro homem, os soldados que o traziam disseram, Não há mais por agora, e o sargento gritou, De pé, todos. Julgaram os presos que era o comandante da coorte que se aproximava, o vizinho de José disse, Prepara-te, queria ele dizer, Prepara-te para ficares livre, como se para a liberdade fosse preciso preparação, mas se alguém vinha não era o comandante da coorte, nem chegou a saber-se quem fosse, pois que o sargento, sem pausa, dera em latim uma ordem aos soldados, faltou dizer que tudo quanto até agora tem sido dito por romanos em latim o foi sempre, que não se rebaixam os filhos da Loba a aprender línguas bárbaras, para isso lá estão os intérpretes, porém, neste caso, sendo a conversa dos militares uns com os outros, não se necessitava tradução, rapidamente os soldados rodearam os prisioneiros, Marche, e o cortejo, levando os condenados à frente, seguidos pela população, encaminhou-se para fora da cidade. Ao ver-se levado assim, sem ter a quem pedir mercê, José ergueu os braços e deu um grito, Salvai-me que eu não sou destes, salvai-me que estou inocente, mas veio um soldado e com o coto da lança deu-lhe uma estocada nas costas que quase o atirou ao chão. Estava perdido. Desesperado, odiou Ananias, por culpa de quem ia morrer, mas este mesmo sentimento, depois de o ter queimado todo por dentro, desapareceu como 54


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viera, deixando o seu ser como um deserto, agora era como se pensasse, Não há mais para onde ir, engano seu, que já falta pouco para lá chegar. Ainda que custe a crer, a certeza da morte próxima acalmou-o. Olhou à sua volta os companheiros de martírio, caminhavam serenos, alguns, sim, sucumbidos, mas os outros de cabeça levantada. Eram, na sua maioria, fariseus. Então, pela primeira vez, José lembrou-se dos filhos, também teve um pensamento, fugaz, para a mulher, mas eram tantos aqueles rostos e nomes que a sua esvaída cabeça, sem dormir, sem comer, foi deixando pelo caminho uns atrás de outros, até não lhe restar mais que Jesus, seu filho primeiro nascido, seu castigo derradeiro. Lembrou-se de como tinham conversado sobre o seu sonho, de como lhe tinha dito, Nem tu podes fazer-me todas as perguntas, nem eu posso dar-te todas as respostas, agora chegava ao fim o tempo de responder e perguntar. Fora da cidade, numa pequena elevação de terreno que a dominava, estavam cravados verticalmente, em filas de oito, quarenta grossos paus, robustos quanto bastava para aguentar um homem. Ao pé de cada um deles, no chão, havia um barrote comprido, o suficiente para receber um homem de braços abertos. À vista dos instrumentos do suplício, alguns dos condenados tentaram escapar-se, mas os soldados sabiam do seu ofício, de gládio em punho cortaram-lhes a fuga, um dos rebeldes tentou espetar-se na arma, porém sem resultado, que logo foi arrastado para a primeira crux. Começou então o vagaroso trabalho de cravar os condenados cada um ao seu barrote e içá-los sobre a grande estaca vertical. Ouviam-se por todo o campo gritos e gemidos, a gente de Séforis chorava perante o triste espectáculo a que, para escarmento, era obrigada a assistir. Aos poucos foram-se formando as cruzes, cada uma com seu homem pendurado, de pernas encolhidas, como antes já foi dito, perguntamo-nos porquê, talvez por uma ordem de Roma visando a racionalização do trabalho e a economia do material, qualquer pessoa pode observar, mesmo sem experiência de crucificações, que a crux, sendo para homem completo, não reduzido, teria de ser alta, logo maior dispêndio de madeira, maior peso a transportar, maiores dificuldades de manejo, ainda se acrescentando a circunstância, proveitosa aos condenados, de que, ficando-lhes os pés mesmo ao rasinho do chão, facilmente podiam ser despregados, sem necessidade de escadas de mão, passando por assim dizer directamente dos braços da cruz para os braços da família, se a tinham, ou dos coveiros de ofício, que os não deixariam ali ao abandono. José foi o último a ser crucificado, calhou assim, por isso teve de assistir, um por um, ao tormento dos seus trinta e nove companheiros desconhecidos, e, quando a sua vez chegou, perdida já de todo a esperança, não teve força nem para repetir os protestos da sua inocência, falhou talvez a oportunidade de salvar-se quando o soldado que tinha o martelo disse ao sargento, Este é o que se dizia sem culpa, o sargento hesitou um instante, exactamente o instante em que José deveria ter gritado, Estou inocente, mas não, calou-se, desistiu, então o sargento olhou, terá pensado que a precisão simétrica sofreria se a última crux não fosse usada, que quarenta é uma conta redonda e perfeita, fez um gesto, os cravos foram espetados, José gritou e continuou a gritar, depois levantaram-no em peso, suspenso dos pulsos atravessados pelos ferros, e depois mais gritos, o prego comprido que lhe furava os calcanhares, oh meu Deus, este é o homem que criaste, louvado sejas, já que não é lícito maldizer-te. De repente, como se alguém tivesse dado sinal, os habitantes de Séforis romperam num clamor aflito, mas não foi o dó dos condenados, por toda a cidade estavam a rebentar incêndios, as chamas, rugindo, como um rastilho de fogo grego, devoravam as casas dos moradores, os edifícios públicos, as árvores dos pátios interiores. Indiferentes ao fogo que outros soldados andavam ateando, quatro soldados do pelotão de execução percorriam as filas dos supliciados, partindo-lhes metodicamente as tíbias, estes usavam barras de ferro. Séforis ardeu toda, de ponta a ponta, enquanto, um após outro, os crucificados iam morrendo. O carpinteiro, chamado José filho de Heli, era um homem novo, na flor da vida, fizera há poucos dias trinta e três anos.


Quando esta guerra acabar, e não tarda, que já a estamos vendo em seus derradeiros e fatais estertores, far-se-á a contagem final dos que nela perderam a vida, uns tantos aqui, uns tantos além, uns mais perto, outros mais longe, e, se é certo que, com o correr do tempo, o número daqueles que foram mortos em emboscadas ou batalhas campais acabou por perder importância ou esquecer de todo, já os crucificados, à roda de uns dois mil, segundo as estatísticas mais merecedoras de fé, permanecerão na memória das gentes da Judeia e da Galileia, a ponto de ainda deles se falar bastantes anos depois, quando um novo sangue for derramado em nova guerra. Dois mil crucificados é muito 55


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homem morto, mas mais haveriam de parecer-nos se os imaginássemos plantados a intervalos de um quilómetro ao longo duma estrada, ou rodeando, é um exemplo, o país que há-de chamar-se Portugal, cuja dimensão, na sua periferia, anda mais ou menos por aí. Entre o rio Jordão e o mar, choram as viúvas e os órfãos, é um antigo costume seu, para isso mesmo é que são viúvas e órfãos, para chorarem, depois é só esperarmos o tempo de os meninos crescerem e irem à guerra nova, outras viúvas e outros órfãos virão tomar-lhes a vez, e se entretanto mudaram as modas, se o luto, de branco, passou a ser negro, ou vice-versa, se sobre os cabelos, que antes eram arrancados, se põe agora uma mantilha bordada, as lágrimas, quando sentidas, são as mesmas. Maria ainda não chora, mas na sua alma já leva um pressentimento de morte, pois o marido não voltou a casa e em Nazaré diz-se que Séforis foi queimada e há homens crucificados. Acompanhada do filho primogénito, Maria repete o caminho que José fez ontem, com toda a probabilidade, num ponto ou noutro, pousa os pés nas marcas das sandálias do marido, não é estação de chuva, o vento não passa duma brisa suave que mal toca o solo, mas já as pegadas de José são como vestígios de um antigo animal que tivesse habitado estas paragens numa extinta era, dizemos, Foi ontem, e é o mesmo que dizermos, Foi há mil anos, o tempo não é uma corda que se possa medir nó a nó, o tempo é uma superfície oblíqua e ondulante que só a memória é capaz de fazer mover e aproximar. Com Maria e Jesus vão moradores de Nazaré, alguns impelidos pela caridade, outros só curiosos, e há também uns vagos outros parentes de Ananias, mas esses regressarão às suas casas com as dúvidas com que saíram delas, como não o encontraram morto, bem pode ser que esteja vivo, não se lembraram de ir procurar nos escombros do armazém, e, se se lembrassem, quem sabe se reconheceriam o seu morto entre os mortos, todos o mesmo carvão. Quando, a meio do caminho, estes nazarenos se cruzaram com uma companhia de soldados enviada à sua aldeia para buscas, alguns voltarão para trás, preocupados com a sorte dos seus haveres, que nunca se pode prever o que farão soldados a quem, tendo batido eles à porta duma casa, de dentro ninguém lhes respondeu. Quis saber o comandante da força o que ia fazer aquela caterva de rústicos a Séforis, responderam-lhe, A ver o fogo, explicação que satisfez o militar, pois desde a aurora do mundo sempre os incêndios atraíram os homens, há mesmo quem diga que se trata de uma espécie de chamamento interior, inconsciente, uma reminiscência do fogo original, como se as cinzas pudessem ter memória do que queimaram, assim se justificando, segundo a tese, a expressão fascinada com que contemplamos até a simples fogueira a que nos aquecemos ou a luz duma vela na escuridão do quarto. Fôssemos nós tão imprudentes, ou tão ousados, como as borboletas, falenas e outras mariposas, e ao fogo nos lançaríamos, nós todos, a espécie humana em peso, talvez uma combustão assim imensa, um tal clarão, atravessando as pálpebras cerradas de Deus, o despertasse do seu letárgico sono, demasiado tarde para conhecer-nos, é certo, porém a tempo de ver o princípio do nada, agora que tínhamos desaparecido. Maria, embora com uma casa cheia de filhos deixados sem protecção, não voltou atrás, mas vai, ainda assim, relativamente descansada, pois não é todos os dias que numa aldeia entram soldados de peito feito a matar crianças, sem contar que estes nossos romanos, no geral, não só lhes permitem como até as animam a crescer quanto possam, e então logo se vê, depende de terem dócil o coração e em dia os impostos. Já vão sozinhos na estrada a mãe e o filho, os da família de Ananias, por serem uma meia dúzia e virem de conversa, foram-se ficando para trás, e como Maria e Jesus nada mais teriam para dizer-se que palavras de inquietação, o resultado é ir cada um deles calado para não afligir o outro, e o estranho silêncio que parece cobrir tudo, não se ouvem cantar aves, o vento parou de todo, apenas o rumor dos passos, e até este se retrai, intimidado, como um intruso de boa-fé que entra numa casa deserta. Séforis apareceu de repente na última volta da estrada, algumas casas ainda a arder, ténues colunas de fumo aqui e além, paredes enegrecidas, árvores de alto a baixo queimadas mas conservando a folhagem, agora cor de ferrugem. Deste lado, à nossa mão direita, as cruzes. Maria largou a correr, mas a distância é demasiada para que possa vencê-

la de um fôlego, não tarda que abrande a carreira, com tantos e tão seguidos partos o coração desta mulher facilmente desfalece. Jesus, como filho respeitador, quereria acompanhar sua mãe, estar ao lado dela, agora e lá adiante, para gozarem juntos a mesma alegria ou juntos sofrerem o mesmo desgosto, mas ela avança tão devagar, custa-lhe tanto mexer as pernas, assim nunca mais chegamos, minha mãe, ela faz um gesto que significa, Se queres, vai tu, e ele, cortando através do campo, para atalhar caminho, lança-se numa corrida louca, Pai, pai, di-lo com a esperança de que ele ali não esteja, di-lo com a dor de quem já o encontrou. Chegou às primeiras filas, alguns crucificados ainda estão 56


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dependurados, a outros retiraram-nos, estão no chão, à espera, são poucos os que têm família a rodeá-

los, é que estes rebeldes, na sua maior parte, vieram de longe, pertencem a uma tropa diversa que neste lugar travou a sua última e unida batalha, neste momento estão definitivamente dispersos, cada um por si, na inexprimível solidão da morte. Jesus não vê o pai, o coração quer encher-se-lhe de alegria, mas a razão diz, Espera, ainda não chegámos ao fim, e realmente o fim é agora, deitado no chão está o pai que eu procurava, quase não sangrou, só as grandes bocas das chagas nos pulsos e nos pés, parece que dormes, meu pai, mas não, não dormes, não poderias, com as pernas assim torcidas, já foi caridade terem-te descido da cruz, mas os mortos são tantos que as boas almas que de ti cuidaram não tiveram tempo para endireitar-te os ossos partidos. O rapazinho chamado Jesus está ajoelhado ao lado do cadáver, chorando, quer tocar-lhe, mas não se atreve, porém chega o momento em que a dor é mais forte que o temor da morte, então abraça-se ao corpo inerte, Meu pai, meu pai, diz, e outro grito se junta ao dele, Ai José, ai meu marido, é Maria que enfim chegou, exausta, vinha chorando já de longe porque já de longe, vendo parar-se o filho, sabia o que a esperava. O choro de Maria redobra quando ela repara na cruel torção das pernas do marido, na verdade não se sabe, depois de morrer, o que acontece às dores sentidas em vida, principalmente as últimas, é possível que com a morte se acabe realmente tudo, mas também nada nos garante que, ao menos durante umas horas, uma memória de sofrimento não se mantenha num corpo que dizemos morto, não sendo mesmo de excluir ser a putrefacção o último recurso que resta à matéria para, definitivamente, se libertar da dor. Com uma doçura, com uma suavidade que em vida do marido não se atreveria a usar, Maria tentou reduzir os lastimáveis ângulos das pernas de José, que, tendo-lhe ficado a túnica, ao descerem-no da cruz, um pouco arregaçada, lhe davam o aspecto grotesco de um fantoche partido nos engonços. Jesus não tocou no pai, ajudou apenas a mãe a puxar-lhe a túnica para baixo, mesmo assim ficaram à vista as magras canelas do homem, talvez, no corpo humano, a parte que mais pungente impressão de fragilidade nos dá. Os pés, por estarem as tíbias rotas, descaíam lateralmente, mostrando as feridas dos calcanhares, donde era preciso enxotar constantemente as moscas vindas ao cheiro do sangue. As sandálias de José tinham caído ao lado do grosso tronco de que fora o fruto final. Gastas, cobertas de pó, ali poderiam ter ficado ao abandono se Jesus as não tivesse recolhido, fê-lo sem pensar, como se tivesse recebido uma ordem estendeu o braço, Maria nem deu pelo movimento, e prendeu-as no cinto, acaso deveria ser esta a herança simbólica mais perfeita dos primogénitos, há coisas que começam de uma maneira tão simples como esta, por isso se diz ainda hoje, Com as botas do meu pai também eu sou homem, ou, segundo versão mais radical, Com as botas do meu pai é que eu sou homem.


Um pouco afastados, estavam soldados romanos vigiando, prontos a intervir no caso de haver atitudes ou gritos sediciosos por parte daqueles que, chorando e lamentando, cuidavam dos supliciados. Mas esta gente não era de febra guerreira, ou não o demonstravam agora, o que faziam era dizer as suas preces fúnebres, iam de crucificado em crucificado, e nisto tardaram mais de duas horas das nossas, nenhum destes mortos ficou sem o bento viático das orações e das rasgaduras de vestes, do lado esquerdo sendo parentes, do lado direito não o sendo, na tranquilidade da tarde ouviam-se as vozes entoando os versículos, Senhor, que é o homem para que te interesses por ele, que é o filho do homem para que com ele te preocupes, o homem é semelhante a um sopro, os seus dias passam como a sombra, qual é o homem que vive e que não vê a morte, ou poupa a sua alma escapando à sepultura, o homem nascido de mulher é escasso de dias e farto de inquietação, aparece como a flor e como ela é cortada, vai como vai a sombra e não permanece, que é o homem para que te lembres dele, e o filho do homem para que o visites. Contudo, depois deste reconhecimento da irremediável insignificância do homem perante o seu Deus, proferido num tom tão profundo que mais parecia vir da própria consciência do que da voz que serve as palavras, o coro subia e atingia uma espécie de exultação, para proclamar à face do mesmo Deus uma inesperada grandeza, Porém, lembra-te de que pouco menor fizeste o homem do que os anjos, e de glória e honra o coroaste.

Quando chegaram a José, a quem não conheciam, e porque era o último dos quarenta, não foram tão demorados, no entanto o carpinteiro levou para o outro mundo tudo quanto precisava, e a pressa justificava-se porque a lei não permite que os crucificados fiquem até ao dia seguinte sem sepultura, e o sol já lá vai descaindo, daqui ao crepúsculo não tarda. Sendo ainda tão novo, Jesus não tinha de rasgar a túnica, estava dispensado dessa demonstração de luto, mas a sua voz, fina, vibrante, ouviu-se 57


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por cima das outras quando entoou, Bendito sejas tu, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que com justiça te criou, que com justiça te manteve a vida, que com justiça te alimentou, que com justiça te fez conhecer o mundo, que com justiça te há-de fazer ressurgir, bendito sejas tu, Senhor, que os mortos ressuscitas. Deitado no chão, José, se ainda sente as dores dos cravos, talvez possa também ouvir estas palavras, ele saberá que lugar ocupou verdadeiramente a justiça de Deus na sua vida, agora que nem de uma nem de outra pode esperar mais nada. Terminadas as preces, era preciso sepultar os mortos, mas, sendo tantos e vindo tão próxima a noite, não é possível procurar para cada um o seu próprio lugar, túmulos a sério, que se pudessem tapar com uma pedra rodada, e quanto a envolver os corpos com as faixas mortuárias, ou mesmo a simples mortalha, nem pensar. Deliberaram pois cavar uma vala comprida onde todos coubessem, não foi esta a primeira vez nem há-de ser a última, os corpos descerão à terra vestidos como se encontram, a Jesus deram também uma enxada e ele trabalhou valentemente a terra ao lado dos homens adultos, quis até o destino, que em tudo é mais sábio, que no terreno por ele cavado fosse sepultado o pai, assim se cumprindo a profecia, O filho do homem enterrará o homem, mas ele próprio ficará insepulto. Que estas palavras, à primeira vista enigmáticas, não vos levem a pensamentos superiores, o que aí fica pertence à escala do óbvio, quis apenas dizer que o último homem, por último ser, não terá quem lhe dê sepultura. Ora, não será tal o caso deste rapaz que acaba de enterrar o pai, com ele não se vai acabar o mundo, ainda cá ficaremos milénios e milénios em constante nascer e morrer, e se o homem tem sido, com igual constância, lobo e carrasco do homem, com mais razões ainda continuará a ser o seu coveiro. O sol já passou para o outro lado da montanha. Há grandes nuvens escuras levantadas sobre o vale do Jordão, movendo-se devagar na direcção do poente, como atraídas por essa última luz que lhes tinge de vermelho o nítido bordo superior. O ar refrescou de repente, é bem possível que esta noite chova, mesmo não sendo o próprio da estação. Os soldados já se retiraram, aproveitam a última luz do dia para regressar ao acampamento que está por aí algures e onde provavelmente já chegaram os seus camaradas de armas que a Nazaré foram de investigadores, uma guerra moderna assim é que se faz, com muita coordenação, não como tem andado a fazê-la o Galileu, o resultado está à vista, trinta e nove guerrilheiros crucificados, o quadragésimo era um pobre inocente, vinha por bem e mal lhe saiu. A gente de Séforis irá procurar ainda na cidade queimada um lugar onde ficar de noite, e amanhã cedo cada família passará revista ao que restar da sua casa, se alguns bens escaparam ao incêndio, e depois ala a buscar vida, que Séforis não foi apenas queimada, tão cedo não vai Roma permitir que a cidade seja reconstruída. Maria e Jesus são duas sombras no meio duma floresta só feita de troncos, a mãe puxa o filho para si, dois medos à procura duma coragem, o céu negro não ajuda, e os mortos debaixo do chão parece quererem reter os pés dos vivos. Jesus disse à mãe, Dormimos na cidade, e Maria respondeu, Não podemos, teus irmãos estão sozinhos e têm fome. Mal viam o chão que pisavam.

Finalmente, depois de muito tropeçar e uma vez cair, alcançaram a estrada, que era como o leito seco de um rio abrindo um pálido rasto na noite. Quando já tinham deixado Séforis para trás, começou a chover, primeiro umas gotas pesadas que faziam na poeira espessa do caminho um ruído macio, se tais palavras, emparelhadas, fazem sentido. Depois a chuva carregou, contínua, insistente, em pouco tempo a poeira tornou-se lama, Maria e o filho tiveram de descalçar-se para não perderem as sandálias nesta jornada. Vão calados, a mãe cobrindo a cabeça do filho com o seu manto, não têm nada para dizer um ao outro, talvez até pensem, confusamente, que não é certo estar José morto, que em chegando a casa o irão encontrar atendendo aos filhos o melhor que pode, e que perguntará à mulher, Que ideia foi a vossa de irem à cidade sem que eu vos desse licença, porém já voltaram aos olhos de Maria as lágrimas, e não foi apenas por causa do desgosto e do luto, é também esta infinita canseira, este castigo da chuva, impiedoso, esta noite sem remédio, tudo triste e negro de mais para que José possa estar vivo. Um dia, alguém irá dizer à viúva que um prodígio se deu às portas de Séforis, terem ganho raízes novas e folhas os troncos que serviram ao suplício, e dizer prodígio não é abusar da palavra, em primeiro lugar porque, contra o costume, os romanos não os levaram consigo quando se foram, em segundo lugar por ser impossível que troncos assim cortados, no pé e na cabeça, ainda tivessem dentro seiva e rebentos capazes de tornar paus grosseiros e ensanguentados em árvores vivas. Foi o sangue dos mártires, diziam os crédulos, foi a chuva, rebatiam os cépticos, mas nem o sangue derramado nem a água caída do céu haviam podido fazer verdejar, antes, tantas cruzes abandonadas nos cerros das montanhas ou nas chapadas do deserto. O que ninguém ousou foi dizer 58


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que havia sido a vontade de Deus, não só por ser essa vontade, qualquer que ela seja, inescrutável, mas também por não se reconhecerem razões e méritos particulares aos crucificados de Séforis para serem beneficiários de tão singular manifestação da graça divina, muito mais própria de deuses pagãos. Por muito tempo aqui ficarão estas árvores, e o dia chegará em que se terá perdido a memória do que aconteceu, então, dado que os homens para tudo querem explicação, falsa ou verdadeira, inventar-se-ão umas quantas histórias e lendas, ao princípio ainda conservando alguma relação com os factos, depois mais tenuemente, até tudo se transformar em pura fábula. E outro dia chegará em que as árvores morrerão de velhice e serão cortadas, e outro ainda em que, por causa duma auto-estrada, ou duma escola, ou duma casa de morar, ou dum centro comercial, ou dum fortim de guerra, as escavadoras revolverão o terreno e farão sair à luz do dia, assim outra vez nascidos, os esqueletos que por dois mil anos ali jazeram. Virão então os antropólogos e um professor de anatomia examinará os restos, para mais tarde anunciar ao mundo escandalizado que, naquele tempo, os homens, afinal, eram crucificados com as pernas encolhidas. E porque o mundo não podia exautorá-lo em nome da ciência, aborreceu-o em nome da estética. Quando Maria e Jesus chegaram a casa, sem um fio de roupa enxuto em cima do corpo, emporcalhados de lama e tiritando de frio, as crianças estavam mais sossegadas do que se podia ter imaginado, graças ao desembaraço e iniciativa dos mais velhos, Tiago e Lísia, que, percebendo que a noite arrefecera, se lembraram de acender o forno, e assim se aconchegaram todos, tentando compensar os apertos da fome de dentro pelo conforto do calor de fora.

Ouvindo o bater da cancela no pátio, Tiago foi abrir a porta, a chuva tornara-se num dilúvio donde vinham fugindo a mãe e o irmão, e quando eles entraram foi como se a casa tivesse ficado de repente inundada. As crianças olharam, souberam que o pai não viria quando a porta voltou a fechar-se, mas calaram, e foi Tiago quem fez a pergunta, O pai. O barro do chão absorvia lentamente a água que pingava das túnicas encharcadas, ouvia-se no silêncio o estalar da lenha húmida que ardia na entrada do forno, as crianças olhavam a mãe. E Tiago tornou a perguntar, O pai. Maria abriu a boca para responder, mas a palavra fatal, como o baraço da forca, apertou-lhe a garganta, e foi Jesus quem teve de dizer, O pai morreu, e, sem saber bem por que o fazia, ou por ser essa a prova insofismável da definitiva ausência, retirou do cinto as sandálias molhadas e mostrou-as aos irmãos, Aqui estão. Já as primeiras lágrimas tinham saltado dos olhos dos mais crescidos, mas foi a vista das sandálias vazias que fez alastrar o choro, agora estavam chorando todos, a viúva e os seus nove filhos, e ela não sabia a qual acudir, ajoelhou-se enfim no chão, exaurida de forças, e as crianças vieram para ela e rodearam-na, um cacho vivo que não precisava ser pisado para verter esse branco sangue que é a lágrima. Apenas Jesus se mantivera de pé, apertando as sandálias contra o peito, vagamente pensando que um dia as calçará, neste instante mesmo, se fosse capaz de ousar. Aos poucos, as crianças foram deixando a mãe, os mais crescidos, por essa espécie de pudor que quer que soframos sozinhos, os mais pequenos, porque os irmãos se tinham ido e porque eles próprios não podiam atingir um real sentimento de desgosto, choravam apenas, nisto são as crianças como os velhos, que choram por coisa nenhuma, mesmo quando já deixaram de sentir, ou porque deixaram de sentir. Durante algum tempo ali ficou Maria, de joelhos no meio da casa, como se esperasse uma decisão ou uma sentença, deu-lhe o sinal um longo arrepio, a roupa molhada no corpo, então levantou-se, abriu a arca e tirou uma túnica velha e remendada que fora do marido, entregou-a a Jesus, dizendo, Despe o que tens vestido, põe isto e vai sentar-te ao pé do lume. Depois chamou as duas filhas, Lísia e Lídia, fê-las levantar e segurar uma esteira, a fazer de biombo, e por trás dela mudou também de roupa, após o que, com o pouco de comer que havia em casa, começou a preparar a ceia. Jesus, junto ao forno, aquecia-se com a túnica do pai, que lhe ficava comprida de mangas e de fralda, já se sabe que noutra ocasião os irmãos se teriam rido dele, espantalho que devia parecer, mas hoje não se atreveriam, não só em virtude do grande desgosto, mas também por aquele ar de adulta majestade que se desprendia do rapaz, como se de uma hora para outra tivesse crescido até à sua máxima altura, e esta impressão tornou-se ainda mais forte quando ele, em movimentos lentos e medidos, colocou as húmidas sandálias do pai a jeito de receberem o calor da boca do forno, gesto que não serviria a qualquer fim prático, se já não era deste mundo o dono delas. Tiago, o irmão que vinha a seguir, foi sentar-se ao lado dele, e perguntou em voz baixa, Que foi que aconteceu ao nosso pai, Crucificaram-no com os guerrilheiros, respondeu Jesus também sussurrando, Porquê, Não sei, estavam lá quarenta, e o pai era um deles, Talvez fosse um guerrilheiro, Quem, O pai, Não era, sempre estava aqui, entregue ao seu trabalho, E o burro, 59


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encontraram-no, Nem vivo, nem morto. A mãe tinha acabado de preparar a ceia, sentaram-se todos à volta da malga comum e comeram do que havia. No fim, os mais novinhos já cabeceavam de sono, é certo que o espírito ainda estava agitado, mas o corpo cansado reclamava descanso. As esteiras dos rapazes foram estendidas ao longo da parede do fundo, Maria dissera às filhas, Deitem-se aqui comigo, ficou cada uma de seu lado para não haver ciúmes. Pela frincha da porta entrava um ar frio, mas a casa mantinha-se aquecida, havia o calor remanescente do forno, o dos corpos próximos, a família, aos poucos, apesar da tristeza e dos suspiros, ia caindo no sono, Maria dava o exemplo, segurava as lágrimas, queria que os filhos adormecessem depressa, por eles próprios, mas também para poder ficar sozinha com o seu desgosto, de olhos bem abertos para a sua futura vida sem marido e nove filhos para criar. Mas também a ela, em meio de um pensamento, se lhe foi a dor da alma, o corpo indiferente recebeu o sono sem resistir, e agora todos dormem. A meio da noite, um gemido fez despertar Maria. Pensou que havia sido ela própria, a sonhar, mas não estivera sonhando, e o gemido repetira-se agora, mais forte. Endireitou-se, com cuidado para não acordar as filhas, olhou em redor, mas a luz da candeia não alcançava o fundo da casa, Qual deles será, pensou, mas em seu coração sabia que era Jesus que estava gemendo. Ergueu-se sem ruído, foi buscar a candeia ao prego da porta e, levantando-a acima da cabeça para alumiar melhor, passou em revista os filhos adormecidos, Jesus, é ele que se mexe e murmura, como se estivesse lutando num pesadelo, de certeza que sonha com o pai, um menino desta idade ter visto o que viu, morte, sangue e tortura. Pensou Maria que devia acordá-lo, interromper esta outra forma de agonia, mas não o fez, não queria ouvir o filho contar-lhe o que sonhava, mas esta razão mesma lhe esqueceu quando reparou que Jesus tinha calçadas as sandálias do pai. O insólito do caso desconcertou-a, que estúpida ideia, sem justificação, e também que falta de respeito, usar as sandálias do próprio pai no próprio dia da sua morte. Voltou para a esteira, sem saber já o que pensar, talvez o filho estivesse a repetir em sonho, por obra das sandálias e da túnica, a mortal aventura do pai desde que de casa saiu, e, sendo assim, passara ao mundo dos homens, a que já pertencia pela lei de Deus, mas onde agora se instalava por um novo direito, o de suceder ao pai nos bens, fossem eles somente uma túnica velha e umas sandálias cambadas, e nos sonhos, mesmo para apenas reviver os últimos passos dele na terra. Não pensou Maria que o sonho pudesse ser outro. O dia amanheceu límpido, sem nuvens, o sol veio quente e luminoso, não havia que temer um retorno da chuva. Maria saiu de casa cedo, com todos os seus filhos varões em idade de ir à escola, e também Jesus, que, como foi dito na altura, já acabou a sua instrução. Ia à sinagoga dizer da morte de José e das presumíveis circunstâncias que para ela teriam concorrido, acrescentando que, apesar de tudo, a ele como aos outros infelizes, ponto não despiciendo, tinham sido feitas as encomendações fúnebres que a pressa e o lugar permitiam, em todo o caso bastantes, em teor e em número, para poder afirmar-se que, no geral, o ritual fora cumprido. No regresso a casa, enfim a sós com o filho mais velho, pensou Maria que era uma boa ocasião para perguntar-lhe por que havia calçado ele as sandálias do pai, mas no último momento um escrúpulo a reteve, o mais provável seria não saber Jesus que explicação dar-lhe e, assim humilhado, ver, pelos olhos da mãe, confundido o seu acto, sem dúvida excessivo, com a falta trivialíssima que é levantar-se de noite uma criança para ir, às escondidas, comer um bolo, podendo sempre, se apanhada, alegar a fome como desculpa, o que do episódio das sandálias não poderá ser dito, salvo tratando-se duma outra espécie de fome, que não saberíamos, nós, explicar. Na cabeça de Maria surgiu depois outra ideia, que o filho era agora o chefe da casa e da família, e, sendo assim, estava bem que ela, sua mãe e sua dependente, se empenhasse em mostrar-lhe respeito e atenção condizentes, como fosse, por exemplo, interessar-se por aquele mal de espírito que lhe afligira o sono, Sonhaste com teu pai, perguntou, e Jesus fez que não ouvira, virou a cara para o outro lado, mas a mãe, firme no propósito, insistiu, Sonhaste, não esperava que o filho lhe respondesse primeiro, Sim, logo a seguir, Não, e que se lhe carregasse a expressão daquela maneira, que parecia que tinha outra vez diante dos olhos o pai morto. Prosseguiram calados o caminho, e em chegando a casa foi-se Maria a cardar uma lã, pensando já que por necessidade do sustento da família deveria começar a fazê-lo mais para fora, aproveitando a boa mão que continuava a ter para o mester.

Por sua vez, Jesus, que olhara o céu, a confirmar as boas disposições do tempo, chegou-se ao banco de carpinteiro que fora de seu pai e que estava no alpendre, começando por verificar, uma por uma, as obras interrompidas, e depois o estado das ferramentas, com o que Maria se alegrou muito em seu coração, ao ver que o filho tomava tão a sério, desde este primeiro dia, as suas novas 60


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responsabilidades. Quando os mais novos voltaram da sinagoga e todos se juntaram para comer, só um observador atentíssimo notaria que esta família sofrera há poucas horas a perda do seu chefe natural, marido e pai, e, a não ser Jesus, cujas negras sobrancelhas, crispadas, seguem um pensamento escondido, os mais, incluindo Maria, parecem tranquilos, de uma serenidade composta, porque está escrito, Chora amargamente e irrompe em gritos de dor, observa o luto segundo a dignidade do morto, um dia ou dois por causa da opinião pública, depois consola-te da tua tristeza, e escrito está também, Não entregues o teu coração à tristeza, mas afasta-a e lembra-te do teu fim, não te esqueças dele porque não haverá retorno, em nada aproveitarás ao morto e só causarás dano a ti mesmo. Ainda é cedo para o riso, que a seu tempo virá, como os dias vêm após os dias e as estações após as estações, mas a melhor lição é a do Eclesiastes, que disse, Por isso louvei a alegria, visto não haver nada de melhor para o homem, debaixo do sol, do que comer, beber e divertir-se, é isto que o acompanha no seu trabalho, durante os dias que Deus lhe outorgar debaixo do sol. À tarde, Jesus e Tiago subiram à açoteia da casa para tapar com palha amassada em barro as fendas do tecto, pelas quais, durante a noite inteira, a água gotejara, a ninguém há-de surpreender que então não se tenha falado de tão humildes pormenores da nossa vida quotidiana, a morte de um homem, inocente ou não, sempre deverá prevalecer sobre todas as coisas. Outra noite chegou, outro dia começava, ceou a família como pôde e foi-se deitar nas esteiras. Lá pela madrugada, Maria acordou espavorida, não era ela quem sonhava, não, mas o filho, e agora com choros e gemidos de cortar o coração, de tal modo que acordaram também os irmãos mais velhos, aos outros seria preciso muito mais para os arrancar do sono profundo que é o da inocência nestas idades. Maria correu a acudir ao filho que se debatia, com os braços levantados, como se tentasse defender-se de golpes de espada ou de lança, aos poucos esmoreceu, ou por se terem retirado os salteadores ou por se lhe estar acabando a vida. Jesus abriu os olhos, agarrou-se com força à mãe como se não fosse o homenzinho que é, patrão da sua família, até um homem adulto, se chora, se transforma em criancinha, não o querem confessar, pobres tontos, mas o dorido coração embala-se nas lágrimas. Que tens, meu filho, que tens, perguntou Maria, inquieta, e Jesus não podia responder, ou não queria, uma crispação em que já não havia nada da criança selava-lhe os lábios, Diz-me o que sonhaste, insistiu Maria, e, como tentando abrir-lhe um caminho, Viste o pai, o rapaz fez um brusco gesto negativo, depois soltou-se-lhe dos braços e deixou-se recair na esteira, Vai dormir, disse, e, dirigindo-se aos irmãos, Não é nada, durmam, eu estou bem. Maria voltou para junto das filhas, mas ficou, quase até ao amanhecer, de olhos abertos, atenta, esperando a cada momento que o sonho de Jesus se repetisse, que sonho teria sido esse para tão grande aflição, porém nada veio a acontecer. Não pensou Maria que o filho poderia estar acordado só para impedir-se de voltar a sonhar, o que sim pensou foi na coincidência, em verdade singular, de Jesus, que sempre gozara de sonos tranquilos, ter começado com os pesadelos a seguir à morte do pai, Senhor meu Deus, que não seja o mesmo sonho, implorou, o senso comum dizia-lhe, para sua tranquilidade, que os sonhos não se legam nem se herdam, bem enganada está, que não têm precisado os homens de comunicar uns aos outros os sonhos que sonham para que os andem sonhando iguais de pais em filhos e às mesmas horas. Enfim, amanheceu, iluminou-se a frincha da porta. Quando acordou, Maria viu que o lugar do filho mais velho estava vazio, Aonde terá ido, pensou, levantou-se rapidamente, abriu a porta e espreitou para fora, Jesus estava sentado debaixo do alpendre, na palha do chão, com a cabeça sobre os braços e os braços sobre os joelhos, imóvel. Arrepiada pelo ar frio da manhã, mas também, embora disso mal tivesse consciência, pela visão da solidão do filho, a mãe aproximou-se, Sentes-te doente, perguntou, o rapaz levantou a cabeça, Não, doente não estou, Então, que se passa contigo, São estes meus sonhos, Sonhos, dizes, Um sonho só, o mesmo esta noite e a outra, Sonhaste com o pai na cruz, Já te tinha dito que não, sonho com o pai mas não o vejo, Havias-me dito que não sonhaste com ele, Porque não o vejo, mas tenho a certeza de que está no sonho, E que sonho é esse que te anda a atormentar. Jesus não respondeu logo, olhou a mãe com uma expressão desamparada, e Maria sentiu como se um dedo lhe tocasse o coração, ali estava o seu filho, com aquela cara ainda de menino, o olhar mortiço de não haver dormido, e o primeiro buço de homem, ternamente ridículo, era o seu filho primogénito, a ele se confiava e entregava para o resto dos seus dias, Conta-me tudo, pediu, e Jesus disse, enfim, Sonho que estou numa aldeia que não é Nazaré e que tu estás comigo, mas não és tu porque a mulher que no sonho é minha mãe tem uma cara diferente, e há outros rapazes da minha idade, não sei quantos, e mulheres que são as mães, não sei se as verdadeiras, houve alguém que nos 61


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reuniu a todos na praça, e estamos à espera de uns soldados que nos vêm matar, ouvimo-los na estrada, aproximam-se mas não os vemos, nessa altura ainda não estou com medo, sei que é um sonho ruim, nada mais, mas de repente tenho a certeza de que o pai vem lá com os soldados, viro-me para ti, para que me defendas, embora não esteja seguro de que sejas tu, mas tu foste-te embora, e as mães todas foram-se embora, apenas ficámos nós, que então já não somos rapazes, mas meninos muito pequenos, eu estou deitado no chão e começo a chorar, e os outros choram todos, mas eu sou o único cujo pai vem com os soldados, olhamos para a entrada da praça, sabemos que entrarão por ali, e não entram, estamos à espera de que entrem mas não entram, e é ainda pior, os passos aproximam-se, é agora, e não é, não chega a ser, então vejo-me a mim mesmo, como sou agora, dentro da criancinha que também sou, e começo a fazer um grande esforço para sair dela, é como se estivesse atado de pés e mãos, chamo por ti, que te foste, chamo pelo pai, que me vem matar, e assim foi que acordei, esta noite e a outra. Maria arrepiava-se de horror, logo às primeiras palavras, mal percebeu o sentido do sonho, baixara os olhos aflitos, afinal, estava a acontecer o que tanto temera, contra todo o senso comum e a razão Jesus herdara o sonho do pai, não exactamente da mesma maneira, mas como se o pai e o filho, cada um em seu lugar, o estivessem, ao mesmo tempo, sonhando. E tremeu de verdadeiro pavor quando ouviu o filho perguntar-lhe, Que sonho era aquele que o pai tinha todas as noites, Ora, um sonho mau, como qualquer pessoa, Mas esse sonho, que era, Não sei, nunca mo contou, Mãe, não deves esconder a verdade ao teu filho, Não seria bom para ti sabê-lo, Que podes tu saber do que é bom ou mau para mim, Respeita a tua mãe, Sou teu filho, tens o meu respeito, mas agora estás a ocultar de mim o que é da minha vida, Não me obrigues a falar, Um dia perguntei ao pai qual a razão do seu sonho, e ele disse-me que nem eu podia fazer-lhe todas as perguntas, nem ele podia dar-me todas as respostas, Aí tens, aceita as palavras de teu pai, Aceitei-as enquanto viveu, mas agora sou o chefe da família, herdei dele uma túnica, umas sandálias e um sonho, com isto já poderia ir-me ao mundo, porém preciso saber que sonho levaria comigo, Meu filho, talvez não tornes a sonhá-

lo. Jesus olhou a mãe de frente, forçou-a a olhá-lo também, e disse, Renunciarei a sabê-lo se na próxima noite o sonho não voltar, se não voltar nunca mais, mas, se ele se repetir, jura-me tu que me dirás tudo, Juro, respondeu Maria, que não sabia já como defender-se da insistência e da autoridade do filho. No silêncio do seu angustiado coração, um apelo subiu para Deus, sem palavras, ou, se as tivesse, poderiam ser, Passa-me, Senhor, a mim, este sonho, que até ao dia da minha morte tenha eu de sofrê-lo em todos os instantes, mas o meu filho, não, o meu filho, não. Disse Jesus, Lembrar-te-ás do que prometeste, Lembrar-me-ei, respondeu Maria, mas consigo mesma ia repetindo, O meu filho, não, o meu filho, não. O meu filho, sim. Veio a noite, de madrugada um galo preto cantou, e o sonho repetiu-se, o focinho do primeiro cavalo apareceu na esquina. Maria ouviu os gemidos do filho, mas não foi consolá-lo. E Jesus, a tremer, banhado no suor do medo, não precisou perguntar para saber que a mãe também acordara, Que irá ela contar-me, pensou, enquanto Maria, por seu lado, cismava, Como lho contarei, e buscava maneiras de não dizer tudo. De manhã, quando se levantaram, Jesus disse à mãe, Vou contigo levar os meus irmãos à sinagoga, depois virás tu comigo ao deserto, pois temos de falar. A pobre Maria, enquanto preparava a comida dos filhos, caíam-lhe as coisas das mãos, mas o vinho da agonia fora servido, agora havia que bebê-lo. Deixados os mais novos na escola, mãe e filho saíram da aldeia, e ali, no descampado, sentaram-se debaixo duma oliveira, ninguém, a não ser Deus, se por estes lados andar, poderá ouvir o que disserem, as pedras sabemos que não falam, mesmo se as batemos umas contra as outras, e quanto à terra profunda, ela é o lugar onde todas as palavras se tornam em silêncio. Jesus disse, Cumpre o que juraste, e Maria respondeu sem rodear, Teu pai sonhava que ia de soldado, com outros soldados, a matar-te, A matar-me, Sim, Esse é o meu sonho, Sim, confirmou ela, aliviada, Afinal foi simples, pensou, e em voz alta, Agora já sabes, voltemos para casa, os sonhos são como as nuvens, vêm e vão, foi só por muito quereres a teu pai que lhe herdaste o sonho, mas ele não te matou, nem nunca te mataria, e ainda que tivesse sido por uma ordem do Senhor, no último momento o anjo lhe deteria a mão, como fez a Abraão quando ia sacrificar seu filho Isaac, Não fales do que não sabes, cortou secamente Jesus, e Maria viu que o vinho amargo teria de ser bebido até ao fim, Consente, meu filho, que ao menos eu saiba que nada se pode opor à vontade do Senhor, qualquer que seja, e que se o Senhor teve agora uma vontade e logo a seguir vai ter outra, contrária, nem tu nem eu somos parte na contradição, respondeu Maria, e, cruzando as mãos no regaço, ficou à espera. Jesus disse, Responderás a todas as perguntas que eu te 62


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fizer, Responderei, disse Maria, Desde quando começou meu pai a ter o sonho, Há muitos anos, Quantos, Desde que nasceste, Todas as noites o sonhou, Sim, creio que todas as noites, nos últimos tempos já não me fazia acordar, uma pessoa acostuma-se, Nasci em Belém de Judeia, Assim é, Que foi que aconteceu no meu nascimento para que meu pai sonhasse que me ia matar, Não foi no teu nascimento, Mas tu disseste, O sonho apareceu umas semanas depois, Que foi que se passou nessa altura, Herodes mandou matar os meninos de Belém com menos de três anos, Porquê, Não sei, O pai sabia, Não, Mas a mim não me mataram, Vivíamos numa cova fora da aldeia, Queres dizer que os soldados não me mataram porque não chegaram a ver-me, Sim, Meu pai era soldado, Nunca foi soldado, Que fazia então, Trabalhava nas obras do Templo, Não compreendo, Estou a responder às tuas perguntas, Se os soldados não chegaram a ver-me, se vivíamos fora da aldeia, se o pai não era soldado, se não tinha responsabilidade, se nem sequer sabia por que motivo mandou Herodes matar os meninos, Sim, teu pai não soube por que motivo Herodes mandou matar os meninos, Então, Nada, se não tens mais perguntas a fazer-me, eu não tenho mais respostas a dar-te, Ocultas-me qualquer coisa, Ou és tu que não és capaz de ver. Jesus ficou calado, sentia sumir-se, como água num chão seco, a autoridade com que falara à mãe, ao mesmo tempo que, num canto qualquer da sua alma, lhe parecia ver desenroscar-se uma ideia ignóbil, de linhas que se moviam ainda, mas monstruosa logo ao nascer.

Na encosta duma colina em frente passava um rebanho de ovelhas, tanto elas como o pastor tinham a cor da terra, eram terra movendo-se sobre terra. O rosto tenso de Maria descobriu-se numa expressão de surpresa, aquele pastor alto, aquele modo de caminhar, tantos anos depois e neste justo momento, que sinal será, afirmou melhor os olhos e duvidou, que agora era um vulgar vizinho de Nazaré levando as suas poucas ovelhas ao pasto, tão enfezadas elas como ele. No espírito de Jesus a ideia acabou de formar-se, quis sair para fora do corpo mas a língua travou-lhe a passagem, enfim, com uma voz temerosa de si mesma disse, O pai sabia que os meninos iam ser mortos. Não perguntou, por isso Maria não teve de responder. Como soube ele, agora sim que era uma pergunta, Estava a trabalhar nas obras do Templo, em Jerusalém, quando ouviu uns soldados que falavam do que iam fazer, E depois, Veio a correr para te salvar, E depois, Pensou que não seria preciso fugirmos e deixámo-nos ficar na cova, E depois, Mais nada, os soldados fizeram o que lhes tinham mandado e foram-se embora, E depois, Depois voltámos para Nazaré, E o sonho começou, A primeira vez foi na cova. As mãos de Jesus subiram de repente até ao rosto como se o quisessem rasgar, a voz soltou-se num grito irremediável, O meu pai matou os meninos de Belém, Que loucura estás dizendo, mataram-nos os soldados de Herodes, Não, mulher, matou-os o meu pai, matou-os José filho de Heli, que sabendo que os meninos iam ser mortos não avisou os pais deles, e quando estas palavras ficaram todas ditas ficou também perdida a esperança de consolação. Jesus lançou-se para o chão, a chorar, Os inocentes, os inocentes, dizia ele, parece incrível que um simples rapaz de treze anos, idade em que o egoísmo facilmente se explica e desculpa, possa ter sofrido tão forte abalo por causa duma notícia que, se tivermos em conta o que sabemos do nosso mundo contemporâneo, deixaria indiferente a maior parte da gente. Mas as pessoas não são todas iguais, excepções há-as para o bem e para o mal, e esta é sem dúvida das melhores, um rapazito a chorar por um antigo erro cometido por seu pai, e que talvez esteja chorando também por si próprio, se, como tem parecido, amava a esse pai duas vezes culpado. Maria estendeu a mão para o filho, quis tocar-lhe, mas ele furtou o corpo, Não me toques, a minha alma tem uma ferida, Jesus, meu filho, Não me chames teu filho, tu também tens culpa. São assim os juízos da adolescência, radicais, na verdade Maria estava tão inocente como os meninos assassinados, os homens, minha irmã, é que decidem de tudo, chegou aqui o meu marido e disse, Vamo-nos embora, depois emendou, Afinal não vamos, e sem mais explicações, foi preciso eu perguntar-lhe, Que gritos são aqueles. Maria não respondeu ao filho, seria tão fácil demonstrar-lhe que não era culpada, mas pensou no marido crucificado, também ele morto inocente, e sentiu, com lágrimas e vergonha, que o amava agora, mais do que quando fora vivo, por isso calou-se, a culpa que um levou pode levá-la outro. Disse Maria, Vamos para casa, não temos mais nada a dizer aqui, e o filho respondeu-lhe, Vai tu, eu fico. Parecia que se perdera o rasto de ovelha ou pastor, o deserto era de facto um deserto, e até as casas além, soltas ao acaso pela encosta abaixo, pareciam grandes pedras talhadas, de um estaleiro abandonado, que aos poucos se fossem enterrando no chão. Quando Maria desapareceu na fundura cinzenta de um vale, Jesus, de joelhos, gritou, e todo o seu corpo lhe ardia como se estivesse a suar sangue, Pai, meu pai, por que me abandonaste, que isto era o que o pobre 63


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rapaz sentia, abandono, desespero, a solidão infinda de um outro deserto, nem pai, nem mãe, nem irmãos, um caminho de mortos principiado. De longe, sentado no meio das ovelhas e confundido com elas, o pastor olhava-o.


Passados dois dias, Jesus foi-se embora de casa. Durante esse tempo foram contadas as palavras que pronunciou e as noites passou-as em claro, apenas porque não podia dormir. Imaginava a horrível matança, os soldados entrando nas casas e rebuscando os berços, as espadas golpeando ou cravando-se nos tenros corpinhos descobertos, as mães em loucos gritos, os pais bramindo como touros acorrentados, e imaginava-se a si próprio também, numa cova que nunca vira, e nesses momentos, a espaços, como densas e lentas vagas que o submergissem, sentia o desejo inexplicável de estar morto, de não estar vivo, ao menos. Obsidiava-o uma pergunta que não fizera à mãe, quantas haviam sido as crianças mortas, na sua ideia tinham sido muitas, umas sobre as outras amontoadas, como cordeiros degolados e atirados a monte, à espera da grande fogueira que os iria consumir e levar ao céu feitos em fumo. Porém, não tendo perguntado na altura da revelação, parecia-lhe agora feia acção de mau gosto, se então a expressão já se usasse, ir-se à mãe e dizer, Ó mãe, esqueci-me de perguntar-te no outro dia quantos tinham sido os putos que passaram desta a melhor vida lá em Belém, e ela responderia, Ai filho, não penses nisso, que nem a trinta chegaram, e se eles morreram foi porque o Senhor assim quis, que estava no seu poder evitá-lo se conviesse. A si mesmo, incessantemente, Jesus perguntava, Quantos, olhava os irmãos e perguntava, Quantos, queria saber que quantidade de corpos mortos fora preciso pôr no outro prato para que o fiel da balança declarasse equilibrada a sua vida salva. Na manhã do segundo dia, Jesus disse à mãe, Não tenho paz nem descanso nesta casa, fica com os meus irmãos, que eu vou partir. Maria levantou as mãos ao céu, chorosa e escandalizada, Que é isto, que é isto, abandonar um filho primogénito a sua mãe viúva, onde é que já se viu, adeus mundo cada vez a pior, e porquê, porquê, se esta é a tua casa e a tua família, como vamos nós viver se aqui não estás, Tiago tem só menos um ano que eu, ele proverá, como eu teria de prover faltando o teu marido, O meu marido era teu pai, Não quero falar dele, não quero falar de mais nada, dá-me a tua bênção para a viagem, se quiseres, eu vou de qualquer maneira, E para onde queres tu ir, filho meu, Não sei, talvez a Jerusalém, talvez a Belém, para ver a terra onde nasci, Mas lá ninguém te conhece, Ainda bem para mim, diz-me, mãe, o que achas que me fariam se soubessem quem eu sou, Cala-te, que te ouvem os teus irmãos, Um dia também eles saberão a verdade, E agora, por esses caminhos, com os romanos que andam à procura dos guerrilheiros de Judas, vais ao encontro dos perigos, Os romanos não são piores que os soldados do outro Herodes, decerto não virão sobre mim de espada em punho para me matarem nem me espetarão numa cruz, não fiz nada, sou inocente, Teu pai também o era, e vê lá o que sucedeu, Teu marido morreu inocente, mas não viveu inocente, Jesus, o demónio fala pela tua boca, Como podes tu saber que não é Deus o que pela minha boca fala, Não pronunciarás o nome do Senhor em vão, Ninguém pode saber quando o nome de Deus é pronunciado em vão, não o sabes tu, não o sei eu, só o Senhor fará a distinção e nós não compreenderemos as suas razões, Meu filho, Diz, Não sei onde foste, tão novo, buscar essas ideias, essa ciência, E eu não saberia dizer-to, talvez os homens nasçam com a verdade dentro de si e só não a digam porque não acreditam que ela seja a verdade, É verdade que te queres ir embora, É, E

voltas, Não sei, Se quiseres, se isso te atormenta, vai a Belém, vai a Jerusalém, ao Templo, fala com os doutores, pergunta-lhes, eles te iluminarão, e tu voltarás para a tua mãe e para os teus irmãos que precisam de ti, Não prometo voltar, E de que viverás, teu pai não durou o bastante para ensinar-te o ofício todo, Trabalharei no campo, farei de pastor, pedirei aos pescadores que me deixem ir com eles ao mar, Não queiras ser pastor, Porquê, Não sei, é um sentir meu, O que tiver de ser, serei, e agora, minha mãe, Não podes ir assim, tenho de preparar-te comida para o caminho, dinheiro há pouco, mas algum se arranjará, levas o alforge do teu pai, felizmente que ele o deixou ficar, Levarei a comida, mas o alforge não, É o único que temos em casa, teu pai não tinha lepra nem sarna que se te peguem, Não posso, Um dia hás-de chorar por teu pai e não o terás, Já chorei, Chorarás mais, e então não quererás saber que culpas ele teve, a estas palavras da mãe Jesus já não respondeu. Os irmãos mais velhos aproximaram-se dele, perguntaram, Vais-te mesmo embora, nada sabiam das razões secretas da conversa entre a mãe e ele, e Tiago disse, Gostava bem de ir contigo, a este apetecia-lhe a aventura, a viagem, o risco, um horizonte diferente, Tens de ficar, respondeu Jesus, alguém deverá 64


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cuidar da nossa mãe viúva, saiu-lhe a palavra sem querer, ainda mordeu o lábio como para retê-la, mas o que não pôde reter foram as lágrimas, a lembrança viva do pai, inesperada, atingira-o como um jorro de luz insuportável. Foi depois de terem comido, toda a família reunida, que Jesus partiu.

Despediu-se dos irmãos, um por um, despediu-se da mãe que chorava, disse-lhe, sem compreender porquê, Duma maneira ou doutra, sempre voltarei, e, acomodando o alforge ao ombro, atravessou o pátio e abriu a cancela que dava para a rua. Ali parou, como se reflectisse no que estava a ponto de fazer, deixar a casa, a mãe, os irmãos, quantas e quantas vezes, no limiar duma porta ou duma decisão, um súbito e novo argumento, ou que a ansiedade do momento como tal configurou, nos faz emendar a mão, dar o dito por não dito. Assim o pensou também Maria, e já uma jubilosa surpresa se lhe vinha espelhando na cara, mas foi sol de pouca dura, porque o filho, antes de voltar atrás, pousou o alforge no chão, ao cabo duma longa pausa durante a qual parecera debater no seu íntimo um problema de resolução difícil. Jesus passou entre os seus sem os olhar e entrou em casa. Quando tornou a sair, instantes depois, trazia na mão as sandálias do pai. Calado, mantendo os olhos baixos, como se o pudor ou uma escondida vergonha não o deixassem enfrentar-se com outro olhar, meteu as sandálias no alforge e, sem mais palavra ou gesto, saiu. Maria correu para a porta, foram com ela todos os filhos, os mais velhos dando-se o ar de não dar muita importância ao caso, mas não houve acenos de despedida porque Jesus nem uma só vez se voltou para trás. Uma vizinha que, passando, presenciou a cena, perguntou, Aonde vai o teu filho, Maria, e Maria respondeu, Arranjou trabalho em Jerusalém, vai lá ficar uns tempos, descarada mentira é ela, como sabemos, mas isto de mentir e dizer a verdade tem muito que se lhe diga, o melhor é não arriscar juízos morais peremptórios porque, se ao tempo dermos tempo bastante, sempre o dia chega em que a verdade se tornará mentira e a mentira se fará verdade. Nessa noite, quando todos na casa dormiam, menos Maria que cismava em como e onde estaria àquela hora o filho, se a salvo num caravançarai, se a coberto duma árvore, se entre as pedras dum barrocal tenebroso, se em poder dos romanos, que o Senhor o não permita, ouviu ela ranger a cancela da rua, e o coração deu-lhe um salto à boca, É Jesus que volta, pensou, a alegria deixou-a, no primeiro momento, paralisada e confusa, Que devo fazer, não queria ir abrir-lhe a porta assim com modos como de triunfadora, Afinal, tanta crueza contra a tua mãe e nem ao menos uma noite aguentaste fora, seria uma humilhação para ele, o mais próprio era ficar quieta e calada, fingir que dormia, deixá-lo entrar, e se ele quiser deitar-se de mansinho na esteira sem dizer, Aqui estou, fingirei amanhã assombro perante o regresso do filho pródigo, que não é por serem breves as ausências que a alegria será menor, afinal a ausência é também uma morte, a única e importante diferença é a esperança. Mas ele tarda tanto a chegar à porta, quem sabe se nos derradeiros passos se deteve e hesitou, ora este pensamento não o pôde Maria suportar, ali está a frincha da porta por onde poderá ver sem ser vista, terá tempo de voltar à esteira se o filho se decidir a entrar, irá a tempo de retê-lo se ele se arrepende e volta para trás. Nos bicos dos pés, descalça, Maria aproximou-se e espreitou. A noite estava de lua, o chão do pátio refulgia como água. Um vulto alto e negro movia-se lentamente, avançava em direcção à porta, e Maria, mal o viu, levou as mãos à boca para não gritar. Não era o filho, era, enorme, gigantesco, imenso, o mendigo, coberto de farrapos como da primeira vez e também como da primeira vez, agora quiçá por efeito do luar, subitamente vestido de trajes sumptuosos que um sopro poderoso agitava. Maria, apavorada, segurava a porta, Que quer ele, que quer ele, murmuravam os lábios trémulos, e de repente não soube o que pensar, o homem que dissera ser um anjo desviou-se para um lado, estava rente à porta mas não entrava, apenas o que se ouviu foi a sua respiração e logo um ruído como de rasgamento, como se uma ferida inicial da terra estivesse a ser repuxada cruelmente até se tornar em boca abissal. Maria não precisava abrir nem perguntar para saber o que acontecia por trás da sua porta. O vulto maciço do anjo tornou a aparecer, durante um rápido instante tapou com o seu grande corpo todo o campo de visão de Maria, e depois, sem um olhar para a casa, afastou-se em direcção à cancela, levando consigo, inteira da raiz à folha mais extrema, a planta enigmática que havia nascido, treze anos antes, no sítio onde a tigela fora enterrada.

A cancela abriu-se e fechou-se, entre um movimento e outro o anjo transformou-se e apareceu o mendigo, sumiu-se, quem quer que fosse, do outro lado do muro, as longas folhagens arrastando atrás de si como uma serpente emplumada, agora sem sombra de ruído, como se o que sucedera não tivesse sido mais que sonho e imaginação. Maria abriu a porta devagar e, receosa, assomou. O mundo, desde o alto e inacessível céu, era todo claridade. Ali perto, rente à parede da casa, estava o negro buraco 65


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donde a planta fora arrancada, e, a partir do bordo, em direcção à cancela, um rasto de luz maior cintilava como uma via láctea, se esse nome tinha então, que o de Estrada de Santiago é que não pode ser, pois quem o nome lhe há-de vir a dar é por enquanto apenas um rapazito da Galileia, mais ou menos da idade de Jesus, sabe Deus onde estarão, um e outro, a estas horas. Maria pensou no filho, mas sem que o coração desta vez se lhe apertasse de medo, nada de mal poderia acontecer-lhe sob um céu assim, belo, sereno, insondável, e esta lua, como um pão só feito de luz, alimentando as fontes e as seivas da terra. Com a alma tranquila, Maria atravessou o pátio, pisando sem temor as estrelas do chão, e abriu a cancela. Olhou para fora, viu que o rasto acabava logo adiante, como se a potência iridescente das folhas se houvesse extinguido ou, delírio novo da fantasia desta mulher que já não poderá invocar a desculpa de estar grávida, como se o mendigo tivesse retomado a figura do anjo, usando enfim, por se tratar duma ocasião especial, as suas asas. Maria ponderou em seu íntimo estes raros sucessos e achou-os simples, naturais e justificados, tanto como estar vendo as suas próprias mãos ao luar. Voltou então para casa, tomou do gancho da parede a candeia e foi alumiar a larga cova deixada pela planta arrancada. No fundo estava a tigela vazia. Meteu a mão no buraco e tirou-a para fora, era apenas a tigela comum de que se lembrava, só com um pouquinho de terra dentro, mas apagados os seus lumes, um prosaico utensílio doméstico regressado às suas funções originais, de agora em diante tornará a servir ao leite, à água ou ao vinho, consoante o apetite e as posses, bem certo é o que se tem dito, que cada pessoa tem a sua hora e cada coisa o seu tempo. Jesus gozou do abrigo de um tecto nesta sua primeira noite de viajante. O crepúsculo saiu-lhe ao caminho à vista dum pequeno povoado que está logo antes da cidade de Jenin, e a sua sorte, que tão maus anúncios lhe tem andado a prometer e cumprir desde que nasceu, quis, por esta vez, que os moradores da casa onde, sem muita esperança, se apresentou a pedir pousada, fossem de gente compassiva, daquela que levaria o resto da vida com remorsos se deixasse um rapazito como este ao sereno da noite, demais em época tão perturbada de guerras e assaltos, quando por um nada se crucificam almas e se acutilam crianças inocentes. Jesus declarou aos seus bondosos hospedeiros que vinha de Nazaré e ia a Jerusalém, porém não repetiu a mentira envergonhada que ainda ouvira da boca da mãe, de ir trabalhar num ofício, apenas disse que levava recado de interrogar os doutores do Templo sobre um ponto da Lei que à sua família muito interessava. Admirou-se o dono da casa de missão de tal responsabilidade ter sido entregue a mancebo tão jovem, se bem que, como claramente se percebia, já entrado na maturidade religiosa, e Jesus explicou que assim tivera de ser, uma vez que era ele o mais velho varão da família, porém sobre o pai não disse uma só palavra. Ceou com os da casa e depois foi dormir debaixo do alpendre do pátio, porque não havia ali melhores cómodos para hóspedes de passagem. A meio da noite o sonho voltou a acometê-lo, mas com diferença em relação ao que vinha sonhando, e foi que o pai e os soldados não se aproximaram tanto, nem sequer o focinho do cavalo apareceu por trás da esquina, mas que não se iluda quem julgar que por isto foram menores a agonia e o pavor, ponhamo-nos no lugar de Jesus, sonhar que o nosso próprio pai, aquele que nos deu o ser, vem aí de espada nua para nos matar. Ninguém na casa deu pela paixão que a poucos passos se representava, Jesus, mesmo dormindo, já aprendia a governar o medo, a consciência acossada punha-lhe, em último recurso, a mão na boca, e os gritos vibravam terrivelmente, mas em silêncio, dentro da cabeça apenas. Na manhã seguinte, Jesus partilhou da primeira refeição do dia, agradecendo e louvando depois os seus benfeitores com uma compostura tão séria e palavras tão apropriadas que toda a família, sem excepção, se sentiu, por momentos, como participando da inefável paz do Senhor, não obstante não passarem todos eles de uns desconsiderados samaritanos. Despediu-se Jesus e partiu, levando nos ouvidos a última palavra proferida pelo dono da casa, foi ela, Bendito sejas tu, Senhor nosso Deus, rei do universo, que diriges os passos do homem, ao que ele respondera abençoando aquele mesmo Senhor, Deus e Rei que provê a todas as necessidades, demonstração que a experiência da vida vem fazendo todos os dias persuasivamente, conforme a justíssima regra da proporção directa que manda dar mais a quem mais tiver. O que faltava do caminho para chegar a Jerusalém não foi tão fácil. Em primeiro lugar, há samaritanos e samaritanos, o que quer dizer que já neste tempo uma andorinha não chegava para fazer uma primavera, precisando-se, quando menos, duas, das andorinhas falamos, não das primaveras, com a condição de serem macho e fêmea férteis e terem descendência. As portas a que Jesus foi bater não voltaram a abrir-se e o remédio do viajante foi dormir por aí, sozinho, uma vez, debaixo duma figueira, dessas largas e rasteirinhas como uma saia rodada, outra vez protegido 66


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por uma caravana a que se juntara e que, estando cheio o caravançarai próximo, tivera, felizmente para Jesus, de assentar o arraial em campo aberto. Dissemos felizmente porque, neste meio-tempo, quando escoteiro atravessava uns desertos montes, foi o pobre pequeno assaltado por dois maleantes, cobardes e sem perdão, que lhe roubaram o pouco dinheiro que tinha, sendo portanto causa de não poder acolher-se Jesus à segurança das estalagens, as quais, segundo as leis de um são comércio, não dão ponto sem nó nem tecto sem pago. Lástima foi, se lá estivesse alguém para apiedar-se, olhar o desamparo do pobrezinho quando os ladrões se foram, ainda a rir-se dele, com todo aquele céu por cima e as montanhas cercando, o infinito universo desprovido de significação moral, povoado de estrelas, ladrões e crucificadores. E que não nos contraponham, por favor, o argumento de que um mocinho de treze anos nunca teria a sabença científica ou a costela filosófica, sequer a mera experiência de vida, que tais reflexões pressuporiam, e que este, em especial, apesar de informado nos estudos da sinagoga e de alguma declarada agilidade mental, sobretudo nos diálogos em que foi parte, não terá justificado, em ditos e em feitos, a particular atenção de que o fizemos objecto. Filhos de carpinteiros é o que não falta nestas terras, tão-pouco faltam filhos de crucificados, mas, supondo que outro deles tivesse sido o escolhido, não duvidemos que, qualquer que fosse ele, tanta abundância de matérias aproveitáveis nos teria dado esse como nos está este dando. Em primeiro lugar porque, como já não é segredo para ninguém, todo o homem é um mundo, quer pelas vias do transcendente, quer pelos caminhos do imanente, e em segundo lugar porque esta terra sempre foi distinta das outras, basta ver a quantidade de gente de alta, média ou baixa condição que aqui andou pregando e profetizando, a principiar em Isaías e a acabar em Malaquias, nobres, sacerdotes, pastores, de tudo tem havido um pouco, por isso convém que sejamos prudentes em nossas opiniões, os humildes começos do filho de um carpinteiro não nos dão o direito de proferir juízos prematuros, que, ao parecerem definitivos, podem comprometer, desde logo, uma carreira. Este rapaz que vai a caminho de Jerusalém, quando a maioria dos da sua idade ainda não arriscam um pé fora da porta, talvez não seja exactamente uma águia de perspicácia, um portento de inteligência, mas é merecedor do nosso respeito, tem, como ele próprio declarou, uma ferida na alma, e, não lhe consentindo a sua natureza esperar que lha sarasse o simples hábito de viver com ela, até chegar a fechá-la essa cicatriz benévola que é não pensar, foi à procura do mundo, quem sabe se para multiplicar as feridas e fazer, com todas elas juntas, uma única e definitória dor. Porventura parecem tais suposições inadequadas, não só à pessoa, mas também ao tempo e ao lugar, ousando imaginar sentimentos modernos e complexos na cabeça de um aldeão palestino nascido tantos anos antes de Freud, Jüng, Groddeck e Lacan terem vindo ao mundo, mas o nosso erro, permita-se-nos a presunção, não é nem crasso nem escandaloso, se tivermos em conta o facto de abundarem, nos escritos de que estes judeus fazem alimento espiritual, exemplos tais e tantos que nos autorizam a pensar que um homem, seja qual for a época em que viva ou tenha vivido, é mentalmente contemporâneo doutro homem duma outra época qualquer. As únicas e indubitáveis excepções conhecidas foram Adão e Eva, não por terem sido o primeiro homem e a primeira mulher, mas porque não tiveram infância. E não venham cá a biologia e a psicologia protestar que na mentalidade de um homem de Cromagnon, para nós inimaginável, já estavam principiados os caminhos que tinham de levar à cabeça que hoje carregamos sobre os ombros, é um debate que aqui nunca poderia caber, porquanto daquele mesmo homem de Cromagnon não se fala no livro do Génesis, que é a única lição sobre os começos do mundo por onde Jesus aprendeu. Distraídos por estas reflexões, não de todo despiciendas em relação às essencialidades do evangelho que vimos explicando, esquecemo-nos de acompanhar, como seria nosso dever, o que ainda faltava da viagem do filho de José a Jerusalém, à vista da qual agora mesmo acaba de chegar, sem dinheiro, mas a salvo, com os pés castigados da longa jornada, mas tão firme de coração como quando saiu a porta de sua casa, há três dias. Não é esta a primeira vez que aqui vem, por isso não se lhe exalta o coração mais do que a conta que se espera de um devoto para quem o seu deus já se tornou familiar ou disso vai a caminho. Deste monte, chamado Gethsemane, que é o mesmo que dizer das Oliveiras, avista-se, desdobrado magnificamente, o discurso arquitectónico de Jerusalém, templo, torres, palácios, casas de viver, e tão próxima a cidade parece estar de nós que temos a impressão de lhe chegar com os dedos, sob condição de haver subido a febre mística tão alto que o crente e padecente dela acabe por confundir as fracas forças do seu corpo com a potência inexaurível do espírito universal. A tarde vai no fim, o sol descai para o lado do mar distante. Jesus começou a descer para o vale, a si mesmo 67


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perguntando onde dormirá esta noite, se dentro, se fora da cidade, das outras vezes que veio com o pai e a mãe, no tempo da Páscoa, ficou a família em tendas fora dos muros, mandadas armar benevolamente pelas autoridades civis e militares para acolhimento dos peregrinos, separados todos, nem seria preciso dizê-lo, os homens com os homens, as mulheres com as mulheres, os menores igualmente divididos por sexos. Quando Jesus chegou às muralhas, já com o primeiro ar de noite, estavam as portas a ser fechadas, ainda lhe permitiram os guardiões que entrasse, atrás de si retumbaram as trancas nos grossos madeiros, tivesse Jesus alguma aflita culpa na consciência, daquelas que em tudo vão encontrando indirectas alusões aos erros cometidos, e talvez lhe viesse à ideia uma armadilha no momento de fechar-se, uns dentes de ferro filando a canela da presa, um casulo de baba envolvendo a mosca. Porém, aos treze anos, os pecados não podem ser muitos nem temíveis, ainda não é a altura de matar ou roubar, de levantar falso testemunho, de desejar a mulher do próximo, nem a sua casa, nem o seu campo, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem nada que lhe pertença, e, assim sendo, este moço vai puro e sem mancha de erro próprio, embora leve já perdida a inocência, que não é possível ver a morte e continuar como antes. As ruas vão ficando desertas, é a hora da ceia das famílias, só quedam ainda fora os pedintes e vagabundos, mas mesmo esses já se vão recolhendo, têm lá as suas guildas, os seus fojos corporativos, daqui a pouco começarão a percorrer a cidade as patrulhas de soldados romanos, à procura dos fautores de desordem que até à própria capital do reino de Herodes Ântipas vêm cometer os seus malefícios e iniquidades, apesar dos suplícios que os esperam se são apanhados, como em Séforis se viu. Ao fundo da rua, aparece uma dessas rondas da noite alumiando-se com archotes, desfilando entre um tinir de espadas e de escudos, a compasso dos pés calçados de sandálias de guerra. Oculto num desvão, o rapaz esperou que a tropa desaparecesse, depois foi à procura de um sítio para dormir. Veio a encontrá-lo, como calculava, nas sempiternas obras do Templo, um espaço entre duas grandes pedras já aparelhadas, por cima das quais uma grande laje estava a fazer as vezes de tecto. Ali comeu o último bocado de pão duro e bafiento que lhe restava, acompanhando-o com uns poucos figos secos que desencantou no fundo do alforge. Tinha sede, mas resignou-se a passar sem beber. Enfim, estendeu a esteira, tapou-se com a pequena manta que fazia parte da sua bagagem de viajante, e, todo enroscado para proteger-se do frio que entrava de um lado e do outro do precário abrigo, pôde adormecer. Estar em Jerusalém não o impediu de sonhar, mas não foi benesse de pouca monta que, talvez por causa da tão próxima presença de Deus, o sonho se tivesse limitado à repetição das conhecidas cenas, confundidas com o desfile da rolda que tinha encontrado. Acordou quando o sol mal tinha acabado de nascer. Arrastou-se para fora do buraco, frio como um túmulo, e, enrolado na manta, olhou na sua frente o casario de Jerusalém, as casas baixinhas, de pedra, tocadas pela luz rosada. Então, com uma solenidade maior, por serem proferidas, afinal, pela boca da criança que ainda é, disse as palavras da bênção, Graças te dou, Senhor, nosso Deus, rei do universo, que, pelo poder da tua misericórdia, assim me restituíste, viva e constante, a minha alma. Certos momentos há da vida que deviam ficar fixados, protegidos do tempo, não apenas consignados, por exemplo, neste evangelho, ou em pintura, ou modernamente em foto, cine e vídeo, o que interessava mesmo era que o próprio que os viveu ou tinha feito viver pudesse permanecer para todo o sempre à vista dos seus vindouros, como seria, neste dia de hoje, irmos daqui até Jerusalém para vermos, com os nossos olhos visto, este rapazito, Jesus filho de José, enroladinho na curta manta de pobre, a olhar as casas de Jerusalém e a dar graças ao Senhor por não ter sido ainda desta vez que perdeu a alma. Estando a sua vida no princípio, que são treze anos, é de prever que o futuro lhe haja reservado horas mais alegres ou tristes que esta, mais felizes ou desgraçadas, mais amenas ou trágicas, mas este é o instante que escolheríamos para nós, a cidade adormecida, o sol parado, a luz intangível, um rapazinho a olhar as casas, enrolado numa manta e com um alforge aos pés, e o mundo todo, o de perto e o de longe, suspenso, à espera. Não é possível, ele próprio já se moveu, o instante veio e passou, o tempo leva-nos até onde uma memória se inventa, foi assim, não foi assim, tudo é o que dissermos que foi. Jesus caminha agora pelas estreitas ruas que se vão enchendo de gente, por enquanto é cedo para ir ao Templo, os doutores, como em todas as épocas e lugares, só começam a aparecer mais tarde. Já não sente frio, mas o estômago dá sinais, dois figos que ainda tinha só serviram para abrir-lhe os fluxos da saliva, o filho de José tem fome. Agora, sim, faz-lhe falta o dinheiro que lhe roubaram os malvados, pois a vida de cidade não é como a boa-vai-ela de andar assobiando pelos campos à mira do que neles 68


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teriam deixado os lavradores que cumprem as leis do Senhor, verbi gratia, Quando procederes à ceifa do teu campo, e te esqueceres de algum feixe, não voltes atrás para o levar, quando varejares as tuas oliveiras, não voltes a colher o resto que ficou nos galhos, quando vindimares a tua vinha, não rabisques o que ficou, a tudo isto deverás deixar para que o recolham o estrangeiro, o órfão e a viúva, lembra-te de que foste escravo na terra do Egipto. Ora, por ser cidade maior, e apesar de ter sido nela que Deus mandou edificar a sua morada terrestre, a Jerusalém não chegam estes humanitários regulamentos, razão por que, para quem não traga dinheiros na bolsa, nem trinta, nem três, o remédio sempre será pedir, com o provável risco de se ver repelido, por importuno, ou então roubar, com o certíssimo perigo de vir a sofrer castigo de flagelação e cárcere, senão punição pior. Roubar, este rapaz não pode, pedir, este rapaz não quer, vai pousando apenas os olhos aguados nas pilhas de pães, nas pirâmides de frutos, nas comidas cozinhadas expostas em bancas ao longo das ruas, e quase desmaia, como se todas as insuficiências nutritivas destes três dias, descontando a mesa do samaritano, se tivessem reunido nesta hora dolorosa, é verdade que o seu destino é o Templo, mas o corpo, ainda que defendam o contrário os partidários do jejum místico, receberá melhor a palavra de Deus se o alimento tiver fortalecido nele as faculdades do entendimento. Felizmente, um fariseu que vinha passando deu pelo desfalecido moço e dele se apiedou, o injusto futuro encarregar-se-á de criar uma péssima reputação a esta gente, mas no fundo eram boas pessoas, como neste caso ficou provado, Tu quem és, perguntou ele, e Jesus respondeu, Sou de Nazaré de Galileia, Tens fome, o rapaz baixou os olhos, não precisava falar, lia-se-lhe na cara, Não tens família, Sim, mas vim sozinho, Fugiste de casa, Não, e realmente não tinha fugido, recordemos que a mãe e os irmãos vieram despedir-se dele, com muito amor, à porta da casa, o não se ter voltado ele para trás uma única vez não era sinal de ir fugido, assim são as nossas palavras, dizer um Sim ou uín Não é, de tudo, o mais simples e, em princípio, o mais convincente, mas a pura verdade mandaria que se começasse por dar uma resposta assim meio dubitativa, Bom, fugir, fugir, o que se chama fugir, não fugi, contudo, e neste ponto teríamos de voltar a ouvir toda a história, o que, tranquilizemo-nos, não sucederá, em primeiro lugar porque o fariseu, não tendo de voltar a aparecer, não precisa conhecê-la, em segundo lugar porque a conhecemos melhor nós do que ninguém, basta pensar no pouco que sabem umas das outras as personagens mais importantes deste evangelho, veja-se que Jesus não sabe tudo da mãe e do pai, Maria não sabe tudo do marido e do filho, e José, estando morto, não sabe nada de nada. Nós, pelo contrário, conhecemos tudo quanto até hoje foi feito, dito e pensado, quer por eles quer pelos outros, embora tenhamos de proceder como se o ignorássemos, de certa maneira somos o fariseu que perguntou, Tens fome, quando a pálida e emagrecida cara de Jesus, só por si, significava, Não me perguntes, dá-me de comer. Foi o que fez, por fim, o compadecido homem, comprou dois pães, que ainda vinham quentes do forno, e uma tigela de leite, e sem dizer palavra entregou-os a Jesus, acontecendo que na passagem de um para o outro um pouco do líquido se lhes derramou sobre as mãos, então, num gesto igual e simultâneo, vindo certamente da distância dos tempos naturais, ambos levaram a mão molhada à boca para sorver o leite, gesto como o de beijar o pão quando caiu ao chão, é pena não voltarem a encontrar-se nunca mais estes dois, se tão formoso e simbólico pacto parecia haverem firmado. Foi-se o fariseu à sua vida, mas antes tirou de dentro da bolsa duas moedas, dizendo, Toma este dinheiro e volta para casa, o mundo ainda é grande de mais para ti. O filho do carpinteiro segurava nas mãos a tigela e o pão, de súbito deixara de ter fome, ou tinha-a, mas não a sentia, olhava o fariseu que se afastava e só então é que agradeceu, porém em voz tão baixa que o outro não o poderia ter ouvido, fosse ele homem de esperar agradecimentos e pensaria que tinha feito o bem a um garoto ingrato e sem educação. Ali mesmo, no meio da rua, Jesus, cujo apetite regressara de um salto, comeu o seu pão e bebeu o seu leite, depois foi-se a entregar a tigela vazia ao vendedor, que lhe disse, Está paga, fica com ela, É costume em Jerusalém comprar o leite com as tigelas, Não, mas esse fariseu quis assim, nunca se sabe o que um fariseu tem na cabeça, Então posso levá-la, Já te disse, está paga. Jesus envolveu a tigela na manta e meteu-a no alforge enquanto pensava que tinha de dar atenção, a partir de agora, à maneira de lidar com ela, estes barros são frágeis, quebradiços; não passam de uma pouca de terra a que a fortuna deu, precariamente, consistência, como ao homem, afinal. Alimentado o corpo, despertado o espírito, Jesus orientou para o Templo os seus passos.


Havia já muita gente na esplanada que entestava com a íngreme escadaria de acesso. Dos 69


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dois lados, ao longo dos muros, encontravam-se as tendas dos bufarinheiros, outras onde se vendiam os animais para o sacrifício, aqui e além, dispersos, os cambistas com as suas bancas, grupos que conversavam, gesticulantes mercadores, guardas romanos a pé e a cavalo vigiando, liteiras a ombros de escravos, e também os dromedários, os jumentos ajoujados de carga, por toda a parte um vozear frenético, agora logo débeis balidos de cordeiros e cabritos, alguns que iam transportados ao colo ou às costas, como crianças cansadas, outros, arrastados, de corda ao pescoço, mas todos a caminho da morte no cutelo e da consumição do fogo. Jesus passou pelo balneário para purificar-se, depois subiu a escadaria e, sem parar, atravessou o Átrio dos Gentios. Entrou no Átrio das Mulheres pela porta entre a Sala dos Óleos e a Sala dos Nazarenos, e encontrou o que tinha vindo buscar, os anciãos e os escribas que, segundo o antigo costume, ali dissertavam sobre a Lei, respondiam a questões e davam conselhos. Havia alguns grupos, o rapaz aproximou-se do menos numeroso no preciso momento em que um homem levantava a mão para fazer uma pergunta. O escriba assentiu com um sinal e o homem disse, Explica-me, peço-te, se devemos entender, palavra por palavra, sentido por sentido, como está escrito, as leis que o Senhor deu a Moisés no Monte Sinai, quando prometeu fazer reinar a paz na nossa terra e que ninguém perturbaria o nosso sono, quando anunciou que faria desaparecer de entre nós os animais nocivos e que a espada não passaria pela nossa terra, e também que, perseguindo nós os nossos inimigos eles cairiam sob a nossa espada, cinco dos vossos perseguirão um cento, e cem dos vossos perseguirão dez mil, disse o Senhor, e os vossos inimigos cairão diante da vossa espada. O

escriba olhou com expressão desconfiada o perguntador, se seria um intrometido rebelde aqui mandado por Judas Galileu para alvoroçar os espíritos com malévolas insinuações sobre a passividade do Templo perante o poder de Roma, e respondeu, brusco e breve, Essa palavra disse-a o Senhor quando os nossos pais estavam no deserto e eram perseguidos pelos egípcios. O homem tornou a levantar a mão, sinal doutra pergunta, Devo entender que as palavras do Senhor ditas no Monte Sinai só valeram para aqueles tempos, quando os nossos pais buscavam a terra da promissão, Se assim o entendeste, não és um bom israelita, a palavra do Senhor valeu, vale e valerá por todos os tempos passados e futuros, a palavra do Senhor estava na mente do Senhor antes que ele falasse e nela continua depois que ele se calou, Tu foste quem disse o que a mim me proíbes de pensar, Que pensas tu, Que o Senhor consente que as nossas espadas não se levantem contra a força que nos está oprimindo, que cem dos nossos não ousem atrever-se contra cinco dos deles, que dez mil judeus tenham de encolher-se diante de cem romanos, Estás no Templo do Senhor e não num campo de batalha, O Senhor é o deus dos exércitos, Mas, lembra-te, o Senhor impôs as suas condições, Quais, Se cumprirdes as minhas leis, se guardardes os meus preceitos, disse o Senhor, Que leis não cumprimos e que preceitos não guardámos para que tenhamos de aceitar por justa e necessária, como castigo de pecados, a dominação de Roma, O Senhor o saberá, Sim, o Senhor o saberá, quantas vezes o homem peca sem saber, mas explica-me por que se serve o Senhor do poder de Roma para castigar-nos, em vez de o fazer directamente, cara a cara com aqueles a quem elegeu para seu povo, O Senhor conhece os seus fins, o Senhor escolhe os seus meios, Queres então dizer que é vontade do Senhor que os romanos mandem em Israel, Sim, Se é como dizes, temos de concluir que os rebeldes que andam a lutar contra os romanos estão também a lutar contra o Senhor e a sua vontade, Concluis mal, E tu contradizes-te, escriba, O querer de Deus pode ser um não querer, o seu não querer a sua vontade, Só o querer do homem é verdadeiro querer, e não tem importância perante Deus, Assim é, Então, o homem é livre, Sim, para poder ser castigado. Correu um murmúrio entre os circunstantes, alguns olharam o que fizera as perguntas, sem dúvida pertinentes à pura luz dos textos, mas politicamente inconvenientes, olharam-no como se ele, justamente, é que devesse assumir os pecados todos de Israel e por eles pagar, aliviados os suspeitosos, de qualquer modo, pelo triunfo do escriba, que recebia, com um sorriso complacente, os cumprimentos e os louvores. Seguro de si, o mestre olhou em redor, solicitando outra interpelação, como o gladiador que, tendo-lhe calhado um adversário fraco, reclama outro de maior porte que lhe dê maior glória. Mais um homem levantou a mão, outra pergunta se apresentava, O Senhor falou a Moisés e disse-lhe, O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos vossos compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes estrangeiros nas terras do Egipto, isto disse o Senhor a Moisés. Não acabou, porque o escriba, quente ainda da primeira vitória, interrompeu com ironia, Presumo que não é tua ideia perguntar-me por que não tratamos nós os romanos como nossos compatriotas, uma vez que são estrangeiros, Perguntar-to-70


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ia se os romanos nos tratassem a nós como compatriotas seus, sem cuidarmos, nós e eles, doutras leis e outros deuses, Também tu vens aqui provocar a ira do Senhor com interpretações diabólicas da sua palavra, interrompeu o escriba, Não, quero apenas que me digas se em verdade pensas que cumprimos a palavra santa quando os estrangeiros o forem, não à terra onde vivemos, mas à religião que professamos, A quem te referes, em particular, A alguns hoje, a muitos no passado, talvez a muitos mais amanhã, Sê claro, por favor, que não posso perder tempo com enigmas nem parábolas, Quando viemos do Egipto, viviam na terra a que chamamos de Israel outras nações que tivemos de combater, naqueles dias os estrangeiros éramos nós e o Senhor deu-nos ordem para que matássemos e aniquilássemos os que se opunham à sua vontade, A terra foi-nos prometida, mas tinha de ser conquistada, não a comprámos nem nos foi oferecida, E hoje é sob um domínio estrangeiro que estamos vivendo, a terra que havíamos tornado nossa deixou de o ser, A ideia de Israel mora eternamente no espírito do Senhor, por isso, onde quer que esteja o seu povo, reunido ou disperso, aí estará o Israel terrestre, Daí se deduz, suponho, que em toda a parte onde nós, judeus, estivermos, sempre os outros homens serão estrangeiros, Aos olhos do Senhor, sem dúvida, Mas o estrangeiro que viva connosco será, segundo a palavra do Senhor, nosso compatriota e a ele devemos amar como a nós mesmos porque fomos estrangeiros no Egipto, O Senhor o disse, Concluo, então, que o estrangeiro que devemos amar é aquele que, vivendo connosco, não seja tão poderoso que nos oprima, como é, nos tempos de hoje, o caso dos romanos, Concluis bem, Agora vais dizer-me, segundo o que te aconselhem as tuas luzes, se, chegando nós um dia a ser poderosos, permitirá o Senhor que oprimamos os estrangeiros que o mesmo Senhor mandou amar, Israel não poderá querer senão o que o Senhor quer, e o Senhor, porque escolheu este povo, quererá tudo quanto for bom para Israel, Mesmo que seja não amar a quem se devia, Sim, se essa for, finalmente, a sua vontade, De Israel ou do Senhor, De ambos, porque são um, Não violarás o direito do estrangeiro, palavra do Senhor, Quando o estrangeiro o tiver e lho reconheçamos, disse o escriba. Novamente se ouviram murmúrios de aprovação que fizeram brilhar os olhos do escriba como os de um vencedor de pancrácio, um discóbolo, um retiário, um condutor de carros. A mão de Jesus levantou-se. Nenhum dos presentes estranhou que um rapaz desta idade se apresentasse a interrogar um escriba ou um doutor do Templo, adolescente com dúvidas sempre os houve, desde Caim e Abel, em geral fazem perguntas que os adultos recebem com um sorriso de condescendência e uma palmadinha nas costas, Cresce, cresce, e vais ver como isso não tem importância, os mais compreensivos dirão, Quando eu tinha a tua idade também pensava assim. Uns tantos dos presentes afastaram-se, outros preparavam-se já para o fazer também, perante a mal encoberta contrariedade do escriba que via escapar-se-lhe um público até aí atento, mas a pergunta de Jesus fez voltar atrás alguns que ainda a ouviram, O que quero saber é sobre a culpa, Falas de uma culpa tua, Falo de culpa em geral, mas também da culpa que eu tenha mesmo não tendo pecado directamente, Explica-te melhor, Disse o Senhor que os pais não morrerão pelos filhos nem os filhos pelos pais, e que cada um será condenado à morte pelo seu próprio delito, Assim é, mas deves saber que se tratava de um preceito para aqueles antigos tempos em que a culpa de um membro duma família era paga pela família toda, incluindo os inocentes, Porém, sendo a palavra do Senhor eterna e não estando à vista o fim das culpas, lembra-te do que tu próprio disseste há pouco, que o homem é livre para poder ser castigado, creio ser legítimo pensar que o delito do pai, mesmo tendo sido punido, não fica extinto com a punição e faz parte da herança que lega ao filho, como os viventes de hoje herdaram a culpa de Adão e Eva, nossos primeiros pais, Assombrado estou que um rapaz da tua idade e da tua condição pareça saber tanto das Escrituras e seja capaz de discorrer sobre elas com tanta fluência, Sei apenas o que aprendi, Donde vens, De Nazaré de Galileia, Já me parecia, pela maneira como falas, Responde ao que te perguntei, por favor, Podemos admitir que a principal culpa de Adão e Eva, quando ao Senhor desobedeceram, não tenha sido tanto haverem provado do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, mas a consequência que daí fatalmente teria de resultar, impedirem, com o seu pecado, que o Senhor viesse a cumprir o plano que tinha em mente ao criar o homem e depois a mulher, Queres tu dizer que todo o acto humano, a desobediência no paraíso ou qualquer outro, sempre interfere com a vontade de Deus, e que, finalmente, poderíamos comparar a vontade de Deus a uma ilha no mar, cercada e assaltada pelas revoltas águas das vontades dos homens, esta pergunta lançou-a o segundo dos questionadores, a tal ousadia não se atreveria o filho do carpinteiro, Não será tanto assim, respondeu cautelosamente o escriba, a vontade do Senhor não se 71


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contenta com prevalecer sobre todas as coisas, ela é o que faz que tudo seja o que é, Mas tu próprio disseste que a desobediência de Adão é causa de que não conheçamos o projecto que Deus tinha concebido para ele, Assim é, segundo a razão, mas na vontade de Deus, criador e regedor do universo, estão contidas todas as vontades possíveis, a sua, mas também a de todos os homens nascidos e por nascer, Se isso fosse como dizes, interveio Jesus, numa súbita iluminação, cada um dos homens seria uma parte de Deus, Provavelmente, mas a parte representada por todos os homens juntos seria como um grão de areia no deserto infinito que Deus é. O homem presunçoso que até aí o escriba havia sido desapareceu. Está sentado no chão, como antes, na sua frente, em redor, os assistentes olham-no com um sentimento em que há tanto de respeito quanto de temor, como diante de um mago que, involuntariamente, tivesse convocado e feito aparecer forças de que, a partir deste momento, só poderia ser súbdito. Descaídos os ombros, estiradas as feições, as mãos abandonadas sobre os joelhos, todo o corpo dele parecia pedir que o deixassem entregue à sua angústia. Os circunstantes começaram a levantar-se, alguns encaminharam-se para o Átrio dos Israelitas, outros chegavam-se aos grupos onde prosseguiam debates. Jesus disse, Não respondeste à minha pergunta. O escriba endireitou lentamente a cabeça, olhou-o com a expressão de quem acabasse de sair de um sonho, e, após um longo, quase insuportável silêncio, disse, A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai, Esse lobo de que falas já comeu o meu pai, Então só falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido ou devorado, Não apenas comido e devorado, mas vomitado. Jesus ergueu-se e saiu. A caminho da porta por onde tinha entrado, parou e olhou para trás. A coluna de fumo dos sacrifícios subia a direito para o céu e ia dissipar-se e desaparecer nas alturas, como se a aspirassem os gigantescos foles do pulmão de Deus. A manhã estava em meio, a multidão crescia, e no interior do Templo ficava um homem roto e dilacerado pelo vazio, à espera de sentir que se lhe reconstituía o osso do costume, a pele do hábito, para poder responder, daqui a pouco ou amanhã, tranquilamente, a alguém que venha com a ideia de querer saber, por exemplo, se o sal em que a mulher de Lot se transformou tinha sido o sal-gema ou o sal marinho, ou se a embriaguez de Noé foi de vinho branco ou de vinho tinto. Já fora do Templo, Jesus perguntou qual era o caminho para Belém, seu segundo destino, por duas vezes se perdeu na confusão das ruas e da gente, até que encontrou a porta por onde, transportado na barriga da mãe, tinha saído treze anos antes, já prestes a vir ao mundo. Não se suponha, porém, que Jesus pensa este pensamento, é por de mais conhecido que as evidências da obviedade cortam as asas ao pássaro inquieto da imaginação, um exemplo daremos, e basta, olhe o leitor deste evangelho um retrato da sua mãe, que a represente grávida dele, e diga-nos se é capaz de se imaginar ali dentro. Jesus desce em direcção a Belém, poderia agora reflectir nas respostas dadas pelo escriba, não apenas à sua pergunta, às outras antes da sua também, mas o que o perturba é a embaraçosa impressão de que todas as perguntas eram, afinal, uma só, e que a resposta dada a cada uma a todas servia, principalmente a última, que resumia tudo, a fome eterna do lobo da culpa, que eternamente come, devora e vomita. Muitas vezes, graças às debilidades da memória, não sabemos, ou sabemos como quem desejasse esquecê-lo, a causa, o motivo, a raiz da culpa, ou, para falar figuradamente, à maneira do escriba, o fojo donde o lobo saiu para caçar-nos. Jesus sabe-o e é para lá que caminha. Não tem nenhuma ideia do que cá vem fazer, mas ter vindo é como ir avisando para um lado e outro da estrada, Aqui estou, à espera de que alguém lhe saia ao caminho, que queres, castigo, perdão, esquecimento. Como o pai e a mãe haviam feito em seu tempo, parou diante do túmulo de Raquel para orar. Depois, sentindo que se lhe aceleravam as pancadas do coração, seguiu para diante.

As primeiras casas de Belém estavam ali, esta era a entrada da aldeia por onde todas as noites irrompiam, no sonho, o pai assassino e os soldados da companhia, em verdade não parece sítio para tais horrores, já não é apenas o céu que o nega, este céu onde passam nuvens brancas e tranquilas como benévolos acenos de Deus, a própria terra parece dormir ao sol, talvez o melhor fosse dizer, Deixemos as coisas como estão, não removamos os ossos do passado, e, antes que uma mulher, com uma criança ao colo, aparecesse num destes postigos perguntando, A quem procuras, tornar atrás, apagar o rasto dos passos que aqui nos trouxeram e rogar que o movimento perpétuo da peneira do tempo cubra de uma rápida e insondável poeira até a mais ténue memória destes acontecimentos.

Demasiado tarde. Há um momento, quase a roçar a teia, em que a mosca ainda estaria a tempo de escapar à armadilha, mas, se chegou a tocar-lhe, se o visco filou a asa doravante inútil, qualquer movimento apenas servirá para que o insecto mais se enrede e paralise, irremediavelmente 72

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