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José Saramago – O Evangelho segundo Jesus Cristo
Enfim, Tiago acalmou-se, e, após uma pausa de concentração mental, para recordar-se, recitou, Mandou-nos a nossa mãe procurar-te para te pedir que tornes a casa, pois em ti cremos e, querendo-o o Senhor, viremos a crer no que nos disseste, Só isso, Foram estas as suas palavras, Queres então dizer que, por vós, nada fareis para crer no que vos contei, que apenas ficareis à espera de que o Senhor mude o vosso entendimento, Entender, ou não entender, tudo está nas mãos do Senhor, Enganas-te, o Senhor deu-nos pernas para que andássemos e nós andamos, que eu saiba nunca homem algum esperou que o Senhor lhe ordenasse Caminha, com o entendimento é o mesmo, se o Senhor no-lo deu foi para que o usássemos segundo o nosso desejo e a nossa vontade, Não discuto contigo, Fazes bem, não ganharias a discussão, Que resposta devo levar à nossa mãe, Diz-lhe que as palavras do seu recado chegaram tarde de mais, que essas mesmas palavras as soube dizer a tempo José e ela não as tomou para si, e que ainda que um anjo do Senhor lhe apareça a confirmar tudo quanto eu vos narrei, convencendo-a enfim a ela a vontade do Senhor, a casa não tornarei, Caíste em pecado de orgulho, Uma árvore geme se a cortam, um cão gane se lhe batem, um homem cresce se o ofendem, É tua mãe, somos teus irmãos, Quem é a minha mãe, quem são os meus irmãos, meus irmãos e minha mãe são aqueles que creram na minha palavra na mesma hora em que eu a proferi, meus irmãos e minha mãe são aqueles que em mim confiam quando vamos ao mar para do que lá pescam comerem com mais abundância do que comiam, minha mãe e meus irmãos são aqueles que não precisem esperar a hora da minha morte para se apiedarem da minha vida, Não tens outro recado para levar, Outro recado não tenho, mas ouvireis falar de mim, respondeu Jesus, e, virando-se para Maria de Magdala, disse, Vamo-nos, Maria, os barcos estão a sair para a pesca, os cardumes reúnem-se, é tempo de ceifar esta seara. Já se afastavam quando Tiago gritou, Jesus, tenho de dizer à nossa mãe quem é essa mulher, Diz-lhe que está comigo e se chama Maria, e a palavra ecoou entre as colinas e sobre o mar.
Estendido no chão, José chorava de desgosto.
Quando Jesus vai ao mar com os pescadores, Maria de Magdala fica à espera dele, em geral sentada numa pedra à borda da água, ou num cômoro elevado, se os há, donde melhor possa acompanhar a rota e seguir a navegação. As pescas, agora, não são demoradas, nunca houve neste mar tal cópia de peixe, diriam os desprevenidos, é como pescar à mão num balde cheio, mas logo observam que as facilidades não são iguais para todos, o balde está como sempre, pouco menos que vazio, se Jesus anda por outras paragens e as mãos e os braços cansam-se a lançar a atarrafa e desanimam vendo-a voltar apenas com um peixe aqui outro além presos nas malhas. Por isso é que todo o mundo pescador da margem ocidental do mar da Galileia anda a pedir Jesus, a reclamar Jesus, a exigir Jesus, e já em alguns lugares tem acontecido receberem-no com festas, palmas e flores como se em domingo de Ramos estivéssemos. Mas, sendo o pão dos homens aquilo que é, uma mistura de inveja e de malícia, alguma caridade às vezes, onde fermenta um fermento de medo que faz crescer o que é mau e atabafar-se o que é bom, também sucedeu brigarem companhas e companhas, aldeias e aldeias, porque todos queriam ter Jesus só para eles, os outros que se governassem conforme pudessem. Quando tal acontecia, Jesus retirava-se para o deserto e só de lá voltava quando os desordeiros arrependidos iam rogar-lhe que lhes perdoasse os excessos, que tudo era uma consequência do muito que lhe queriam. O que para todo o sempre vai ficar por explicar é por que razão os pescadores da margem oriental nunca despacharam delegados ao lado de cá com vista à discussão e estabelecimento de um pacto justo que a todos beneficiasse por igual, excepto os gentios de vária tinta e crença que por aqui não faltam. Também poderiam os da outra banda, em flotilha de batalha naval, armados de redes e piques, e a coberto de uma noite sem lua, ter vindo roubar Jesus ao ocidente, deixando o ocidente outra vez condenado a um passadio de necessidades, ele que se habituou a uma pitança farta. Este é ainda o dia em que Tiago e José vieram pedir a Jesus que tornasse à casa que era a sua, virando costas à vida de vagabundagem, por muito que dela se estivesse aproveitando a indústria das pescas e derivados. A estas horas, os dois irmãos, cada qual com seu sentimento, um Tiago furioso, um choroso José, vão em passo acelerado por esses montes e vales, caminho de Nazaré, onde a mãe se pergunta pela centésima vez se, tendo visto sair dali dois filhos, irá ver entrar três, porém, duvida. A estrada de regresso que os irmãos tiveram de tomar, por ser a que mais próxima estava do ponto da costa onde haviam encontrado Jesus, fê-los passar por Magdala, cidade de que Tiago conhecia pouco e José nada, mas que, a julgar pelas aparências, não merecia nem 112
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detença nem desfrute. Refrescaram-se pois à passagem os dois irmãos e seguiram adiante. Saindo do povoado, palavra que usamos aqui apenas porque exprime uma oposição lógica e clara ao deserto que tudo rodeia, viram adiante, à mão esquerda, uma casa com sinais de incêndio, mostrando apenas as quatro paredes no ar. A porta do pátio, sem dúvida meio destroçada por um arrombamento, não ardera, o fogo, que tudo arrasara, fora todo dentro. Em casos como este, o passante, quem quer que ele seja, sempre pensa que debaixo dos escombros poderá ter ficado algum tesouro, e, se crê que não há perigo de cair-lhe uma trave em cima, entra para tentar a sua sorte, avança cautelosamente, remexe com a ponta do pé umas cinzas, umas pontas de tições, uns carvões mal ardidos, na ideia de ver surgir de repente, a luzir, a moeda de ouro, o incorruptível diamante, o diadema de esmeraldas. A Tiago e José só a curiosidade os fez entrar, não são ingénuos a ponto de imaginarem que os vizinhos cobiçosos não vieram aqui à procura do que os habitantes da casa não tivessem podido salvar, o provável, porém, sendo a casa tão pequena, é que os bens mais preciosos tenham sido levados, ficando apenas as paredes, que em qualquer lugar se podem levantar outras novas. A abóbada do forno, dentro do que fora a casa, desabou, os ladrilhos do chão, estalados, soltaram-se do cimento e estalam debaixo dos pés, Não há nada, vamo-nos embora, disse Tiago, mas José perguntou, E aquilo ali, que é. Aquilo era uma espécie de estrado de madeira de que tinham ardido as pernas, meio carbonizado todo ele, lembrando um trono largo e comprido, ainda com uns restos pendentes de trapos queimados, É uma cama, disse Tiago, há quem durma em cima dessas coisas, os ricos, os senhores, A nossa mãe também dorme numa, Pois dorme, mas não tem comparação com o que esta deve ter sido, Não parece de ricos uma casa assim, As aparências enganam muito, disse Tiago, argutamente. Ao saírem, José viu que na porta do pátio estava dependurada, para o lado de fora, uma roca de cana, dessas que se usam para colher os figos das figueiras, decerto teria sido mais comprida no tempo da sua utilidade, mas deviam tê-la cortado. Que faz isto aqui, perguntou, e sem esperar resposta, própria sua ou do irmão, despendurou a agora inútil cana e levou-a consigo, recordação de um incêndio, de uma casa queimada, de gente desconhecida. Ninguém os vira entrar, ninguém os viu sair, são só dois irmãos que vão para casa levando as túnicas enfarruscadas e uma negra notícia. A um deles, para se distrair, propôs-lhe o pensamento, e ele aceitou-a, a lembrança de Maria de Magdala, o pensamento do outro é mais activo e menos frustrante, espera encontrar uma maneira de meter a amputada roca nas suas brincadeiras.
Sentada na pedra, à espera de que Jesus volte da pesca, Maria de Magdala pensa em Maria de Nazaré. Até este dia em que estamos, a mãe de Jesus, para ela, fora só isso, mãe de Jesus, agora sabe, porque depois o perguntou, que o seu nome também é Maria, coincidência, em si mesma, de mínima importância, uma vez que são muitas as Marias na terra, e mais hão-de vir a ser se a moda pega, mas nós aventurar-nos-íamos a supor que exista um sentimento de mais próxima fraternidade entre os que levam nomes iguais, é como imaginamos que se sentirá José quando se lembra do outro José que foi seu pai, não filho, mas irmão, o problema de Deus é esse, ninguém tem o nome que ele tem. Levadas a semelhante extremo, não parecem ser tais reflexões produto de um discernimento como o de Maria de Magdala, ainda que não nos falte informação de que o tem muito capaz doutras de não menor alcance, o que elas vão é em direcções diferentes, por exemplo, no caso de agora, uma mulher ama um homem e pensa na mãe desse homem. Maria de Magdala não conhece, de experiência sua, o amor da mãe pelo seu filho, conheceu, enfim, o amor da mulher pelo seu homem, depois de tudo, antes, haver aprendido e praticado do amor falso, dos mil modos de não amor. Quer a Jesus como mulher, mas desejaria querê-lo também como mãe, talvez porque a sua idade não esteja tão longe assim da idade da mãe verdadeira, a que mandou recado para que o filho voltasse, e o filho não voltou, uma pergunta faz Maria de Magdala, que dor irá sentir Maria de Nazaré quando lho disserem, porém não é a mesma coisa que imaginar o que ela própria sofreria se Jesus lhe faltasse, faltar-lhe-ia o homem, não o filho, Senhor, dá-me, juntas, as duas dores, se tiver de ser, murmurou Maria de Magdala esperando Jesus. E quando o barco se aproximou e foi puxado para terra, quando os cestos carregados de peixe escorrendo começaram a ser transportados, quando Jesus, com os pés na água, ajudava ao trabalho e ria como uma criança, Maria de Magdala viu-se a si mesma como se fosse Maria de Nazaré e, levantando-se donde estava, desceu até à borda do mar, entrou na água para estar com ele e disse, depois de beijá-lo no ombro, Meu filho. Ninguém ouviu que Jesus tivesse dito, Minha 113