6
Bicho do ar
Não havia mais luz além da que vinha das estrelas. Quando perceberam o que era aquele ruído fantasmagórico e Percival se aquietou novamente, Ralph e Simon pegaram-no desajeitadamente e o carregaram para uma cabana. Porquinho não se afastou deles, apesar de todas as suas palavras de valentia, e os três meninos maiores foram juntos para o abrigo mais próximo. Deitaram-se, inquietos e fazendo barulho entre as folhas secas, observando a mancha de estrelas que era a abertura para a lagoa. Às vezes, um pequeno gritava nos outros abrigos e, uma vez, um grande falou no escuro. Então eles também adormeceram.
Uma fatia de lua subiu acima do horizonte, de tamanho quase insuficiente para conseguir traçar uma esteira de luz, mesmo quando a se apoiar na água; mas havia outras luzes no céu movendo-se rapidamente, cintilando ou desaparecendo, embora lá embaixo não chegasse o menor ruído da batalha travada a 16 quilômetros de altura. Mas desceu um sinal do mundo dos adultos, embora naquela hora não houvesse uma só criança acordada para vê-lo. Houve uma súbita e brilhante explosão, uma queda em parafuso através do céu; depois, novamente, a escuridão e as estrelas. Apareceu uma pequena mancha acima da ilha, um vulto descendo rapidamente sob um paraquedas, um vulto que se sacudia com membros bamboleantes. Os ventos cambiantes das várias altitudes levavam a figura lá para onde bem quiseram. Aí, a cinco quilômetros, o vento serenou, varrendo-a numa grande curva além do recife e da lagoa, rumo à montanha. A figura caiu e se encolheu entre as flores azuis da encosta da montanha, mas, nessa altura, soprou uma suave brisa e o paraquedas mexeu-se violentamente, oscilou e se soltou. A figura, arrastando os pés, deslizou montanha acima. Metro a metro, sopro a sopro, o vento arrastou a figura por entre as flores azuis, por cima dos pedregulhos e das pedras vermelhas, até que ficou encolhida entre as rochas quebradas do cimo da montanha. Ali, o vento soprava, soprava firmemente e as cordas do paraquedas se enredaram e enroscaram. A figura, agora sentada, com a cabeça metida num capacete entre os joelhos, estava segura por uma confusão de cordas. O vento, ao soprar, estirava as cordas e esse movimento levantava a cabeça e o peito da figura que parecia então perscrutar o cimo da montanha. Depois, cada vez que o vento amainava, as cordas se dobravam e a figura inclinava-se outra vez para a frente, mergulhando a cabeça entre os joelhos. Assim, à medida que as estrelas moviam-se pelo céu, a figura sentada no cimo da montanha levantava, inclinava-se, levantava outra vez...
No escuro das primeiras horas da manhã, houve uns ruídos junto a uma pedra, perto da encosta da montanha. Dois meninos puxavam uma pilha de arbustos e folhas secas, duas sombras indistintas que conversavam sonolentamente. Eram os gêmeos, cuidando da fogueira. Teoricamente, um estava dormindo e um de sentinela. Mas não conseguiam fazer as coisas corretamente, se isso significasse agir independentemente. Já que ficar acordado a noite inteira era impossível, os dois dormiram. Agora se aproximavam da mancha mais escura que fora a primeira fogueira, bocejando, esfregando os olhos, avançando com pés habituados ao caminho. Quando chegaram lá, pararam de bocejar e um deles correu rapidamente em busca dos arbustos e folhas.
O outro se ajoelhou.
— Acho que apagou.
Tirou as cinzas com os galhinhos que lhe foram colocados nas mãos.
— Não.
Deitou-se e pôs os lábios junto das brasas, soprando delicadamente. Seu rosto apareceu, iluminado de vermelho. Parou de soprar por um instante.
— Sam... dê-me...
— ...uma madeira boa de queimar.
Eric inclinou-se e soprou lentamente de novo até as brasas brilharem. Sam enfiou um pedaço de madeira no meio delas, depois um ramo inteiro. O brilho aumentou e o ramo pegou fogo. Sam empilhou outros galhos.
— Não queime tudo — disse Eric —, você está pondo madeira demais.
— Vamos nos esquentar.
— Precisamos pegar mais madeira.
— Estou com frio.
— Eu também.
— Além disso, está...
— ...escuro. Está certo.
Eric recuou de cócoras e ficou olhando Sam ativar a fogueira. Fez um anteparo de madeira e o fogo ficou aceso sem problemas.
— Foi por pouco...
— Ele estava...
— ...uma fera.
— É.
Por um momento, os gêmeos fixaram a fogueira em silêncio. Então, Eric deu uma risadinha abafada.
— Ele estava uma fera, não é?
— Por causa do...
— Fogo e do porco.
— Sorte que ele deu a bronca em Jack, e não na gente.
— É. Lembra do velho Fera na escola?
— Menino, aos-poucos-você-está-me-deixando-louco!
Os gêmeos compartilharam seu riso idêntico, depois se lembraram da escuridão e das outras coisas, ficaram olhando em volta, intranquilos. As chamas, presas no anteparo, atraíram novamente seus olhares. Eric observou os insetos da madeira que deslizavam por ela e eram tão freneticamente incapazes de evitar o fogo; pensou na primeira fogueira, ali mesmo, na encosta mais íngreme da montanha, onde agora estava totalmente escuro. Não gostou de pensar nisso e afastou o olhar do cimo da montanha.
O calor irradiava-se agora e os atingia agradavelmente. Sam brincava de enfiar galhos na fogueira, o mais perto possível. Eric estendeu as mãos abertas, tentando saber a que distância o calor era insuportável. Olhando preguiçosamente além da fogueira, refez mentalmente os contornos diurnos das rochas partidas, com base nas sombras planas. Ali estava a pedra grande, as outras três, a pedra fendida e, bem ali, havia um buraco, bem ali.
— Sam.
— Hem?
— Nada.
As chamas devoravam a madeira, as cascas retorciam-se e caíam, a resina explodia. O anteparo caiu para dentro e enviou um amplo círculo de luz por todo o cume da montanha.
— Sam...
— Hem?
— Sam! Sam!
Sam olhou irritado para Eric. A intensidade do olhar de Eric tornava terrível a direção para a qual olhava, pois Sam estava de costas para ela. Arrastou-se ao redor da fogueira, agachou-se junto a Eric e procurou ver. Estavam imóveis e abraçados, quatro olhos fixos e sem piscar, duas bocas abertas.
Bem embaixo deles, as árvores da floresta suspiraram, depois rugiram. O cabelo mexeu-se nas suas testas e as chamas passaram a soprar de um lado. Lá, de uns 15 metros de onde estavam, veio um barulho, o estalo do tecido se abrindo.
Nenhum deles gritou, mas o abraço ficou mais apertado e as bocas se abriram ao máximo. Por uns dez segundos, ficaram ali agachados, enquanto a fogueira oscilante lançava fumaça, centelhas e ondas de luz inconstante por sobre o cimo da montanha.
Então, como se tivessem uma só mente apavorada, desceram atropeladamente pelas rochas e fugiram.
Ralph sonhava. Adormecera após horas de agitação e voltas barulhentas entre as folhas secas. Nem mesmo os sons de pesadelo dos outros abrigos chegavam mais até ele, pois estava de volta ao lugar de que viera, alimentando os pôneis com açúcar por cima da cerca do jardim. Então, alguém sacudiu seu braço, dizendo que estava na hora do chá.
— Ralph! Ralph!
As folhas rugiam como o mar.
— Ralph, acorde!
— Que foi?
— Nós vimos...
— ...o bicho...
— ...de verdade!
— Quem são vocês? Os gêmeos?
— Nós vimos o bicho...
— Quietos. Porquinho!
As folhas rugiram de novo. Porquinho tropeçou nele e um gêmeo puxou-o pelo braço, quando ele tentou sair para o quadrilátero de estrelas pálidas.
— Você não pode sair, é horrível!
— Porquinho... onde estão as lanças?
— Posso ouvir o...
— Silêncio. Fique quieto!
Ficaram ali à escuta, primeiro em dúvida, depois com terror, ante a descrição que os gêmeos cochicharam, entre pausas de extremo silêncio. Logo a escuridão ficou cheia de garras, cheia do terrível desconhecido e de ameaças. Uma madrugada interminável apagou as estrelas e afinal a luz, triste e cinzenta, infiltrou-se na cabana. Começaram a se mexer, embora o mundo lá fora ainda fosse terrivelmente perigoso. O labirinto da escuridão dividia-se em próximo e distante e lá num ponto do céu as nuvenzinhas aqueceram-se de cor. Um solitário pássaro marinho levantou voo, com um grito áspero que ecoou, e alguma coisa guinchou na floresta. Agora, as faixas de nuvens perto do horizonte começavam a brilhar em tons rosados e as frondes emplumadas das palmeiras já se tornavam verdes.
Ralph ajoelhou-se na entrada da cabana e olhou cuidadosamente em volta.
— Sameeric. Chamem todos para uma reunião. Sem barulho. Vamos.
Os gêmeos, abraçados e trêmulos, ousaram cruzar os poucos metros até a cabana vizinha e espalharam a terrível notícia. Ralph ficou de pé e andou até a plataforma, por uma questão de dignidade, embora suas costas estivessem arrepiadas. Porquinho e Simon seguiram-no e os outros meninos vieram cautelosamente.
Ralph pegou a concha do assento e a levou aos lábios; hesitou e acabou não soprando. Ficou com ela na mão, mostrou-a para os outros e eles compreenderam.
Os raios do sol que há pouco subiam em leque desde o horizonte agora desciam à altura dos olhos. Ralph deu uma olhada para a crescente fatia de ouro que os iluminava pela direita e que parecia assim encorajá-los a falar. O círculo de meninos à sua frente ergueu as lanças de caça.
Estendeu a concha a Eric, o gêmeo mais próximo.
— Nós vimos o bicho com nossos olhos. Não... não estávamos dormindo...
Sam continuou a história. Como de costume, a concha servia ao mesmo tempo para os dois gêmeos, pois sua unidade fundamental era reconhecida.
— Era peludo. Havia algo se mexendo atrás da cabeça... asas. O bicho se mexia também...
— Foi horrível. Parecia se sentar...
— O fogo brilhava...
— Tínhamos acabado de acender...
— ...mais lenha nele...
— Tinha olhos...
— Dentes...
— Garras...
— Corremos o mais que pudemos...
— Tropeçando nas coisas...
— O bicho nos seguiu...
— Vi como corria atrás das árvores...
— Quase me pegou...
Ralph apontou temerosamente para o rosto de Eric que estava lanhado pelos espinhos dos arbustos.
— Como aconteceu isso?
Eric levou a mão ao rosto.
— Estou todo arranhado. Estou sangrando?
O círculo de meninos encolheu-se de terror. Johnny, ainda bocejando, caiu num choro barulhento e foi esbofeteado por Bill até parar. A manhã brilhante estava cheia de ameaças e o círculo começou a mudar. Começaram a olhar mais para fora que para dentro e as lanças de madeira afiada eram como uma cerca. Jack chamou-os de volta para o centro.
— Vai ser uma caçada de verdade! Quem vem?
Ralph mexeu-se, com impaciência.
— Essas lanças são de madeira. Não seja bobo!
Jack olhou-o com desprezo.
— Está com medo?
— Claro que estou. Quem não está?
Virou-se para os gêmeos, como último recurso, mas sem esperança.
— Isso não é uma brincadeira, não é?
A resposta foi tão enfática que não houve mais dúvidas.
Porquinho pegou a concha.
— Nós não poderíamos ficar... bem... ficar aqui? Talvez o bicho não chegue perto daqui.
Se não houvesse a possibilidade de alguma coisa estar vigiando, Ralph teria gritado com ele.
— Ficar aqui? E vivermos cercados neste pedacinho de ilha, sempre à espera? Como iríamos arranjar comida? E a fogueira?
— Vamos já — disse Jack, intranquilo. — Estamos perdendo tempo.
— Não. E os pequenos?
— Que vão pro inferno!
— Alguém tem de cuidar deles.
— Ninguém cuidou até agora.
— Não era preciso! Agora é. Porquinho vai cuidar deles.
— Está certo. Deixe Porquinho longe do perigo.
— Mas pense um pouco. O que Porquinho pode fazer com um olho só?
O resto dos meninos olhava curiosamente de Jack para Ralph.
— E outra coisa. Você não pode fazer uma caçada como sempre, porque o bicho não deixa rastro. Se deixasse, você teria visto. Pelo que sabemos, o bicho pode andar de árvore em árvore.
Concordaram com ele.
— Então precisamos pensar.
Porquinho pegou seus óculos quebrados e limpou a lente restante.
— E nós, Ralph?
— Você está sem a concha. Tome.
— Quero dizer... e nós? Suponha que o bicho venha quando vocês estiverem fora. Não enxergo bem e se eu ficar com medo...
Jack interrompeu, com desprezo.
— Você está sempre com medo.
— Estou com a concha.
— Concha! Concha! — gritou Jack. — Não precisamos mais da concha. Sabemos quem deve falar. Que adianta Simon falar, ou Bill, ou Walter? Já é tempo de algumas pessoas saberem que têm de ficar quietas e deixar para os outros, nós, as decisões sobre as coisas...
Ralph não podia mais ignorar esse discurso. O sangue aqueceu as suas faces.
— Você está sem a concha — disse. — Sente-se.
O rosto de Jack ficou tão branco que as sardas pareciam pontinhos castanho-claros. Passou a língua nos lábios e ficou de pé.
— Isso é assunto de caçadores.
Os outros meninos olharam para Ralph, atentamente. Porquinho, sentindo-se incomodamente envolvido, pôs a concha aos pés de Ralph e se sentou. O silêncio ficou opressivo e Porquinho prendeu a respiração.
— Isso é mais que um assunto de caçadores — disse Ralph, enfim —, porque você não pode seguir o bicho. E você não quer ser salvo?
Virou-se para a assembleia.
— Vocês todos não querem ser salvos?
Olhou para Jack.
— Eu disse antes, a fogueira é a coisa principal. Agora, ela deve estar apagada.
A velha exasperação salvou-o e lhe deu a energia de atacar.
— Ninguém tem mais cabeça? Temos de reacender a fogueira. Você nunca pensa nisso, Jack, não é? Ou nenhum de vocês quer ser salvo?
Sim, eles queriam ser salvos, não havia dúvida sobre isso; com uma violenta reviravolta para o lado de Ralph, a crise passou. Porquinho respirou, afinal, deu um suspiro, tentou inspirar de novo e não conseguiu. Ficou deitado contra um tronco, de boca aberta e sombras azuis ao redor dos lábios. Ninguém se importou com ele.
— Agora pense, Jack. Há algum lugar em que você não esteve?
De má vontade, Jack respondeu.
— Só... claro! Lembra-se? Aquela ponta, onde as pedras estão empilhadas. Estive lá perto. A rocha faz uma espécie de ponte. Só há um jeito de subir.
— E o bicho deve morar ali.
Todo mundo falou ao mesmo tempo.
— Calem-se. Muito bem. É ali que vamos procurar. Se o bicho não estiver ali, subiremos a montanha para ver. E acenderemos a fogueira.
— Vamos.
— Vamos comer antes. Depois partiremos. — Ralph fez uma pausa. — É melhor levarmos lanças.
Após terem comido, Ralph e os grandes avançaram pela praia. Deixaram Porquinho amparado pela plataforma. O dia prometia, como os outros, ser um banho de sol sob uma abóbada azul. A praia estendia-se diante deles numa curva suave até que a perspectiva a unia à floresta; o dia ainda não avançara muito — estava longe de ser obscurecido pelos véus móveis das miragens. Por escolha de Ralph, seguiram um prudente caminho ao longo do terraço de palmeiras, em vez de se atreverem pela areia quente junto à água. Deixou Jack mostrar o caminho e Jack avançou com precaução teatral, embora pudessem ter visto um inimigo a uns vinte metros de distância. Ralph ia à retaguarda, grato por entregar a responsabilidade a outro por algum tempo.
Simon, andando na frente de Ralph, sentiu um sobressalto de incredulidade — um bicho com garras que arranhavam, que se sentava num cimo de montanha, que não deixava rastro e que, apesar de tudo, não era bastante rápido para pegar Sameeric. Cada vez que Simon pensava no bicho, surgia no seu íntimo a imagem de um ser humano, heroico e doente ao mesmo tempo.
Suspirou. Outras pessoas podiam levantar-se e falar numa reunião, aparentemente sem aquela terrível sensação de opressão da personalidade: podiam falar do que pensavam como se estivessem conversando com uma só pessoa. Deu um passo lateral e olhou para trás. Ralph vinha ali, com a lança sobre o ombro. Timidamente, Simon reduziu o passo até andar lado a lado com Ralph, olhando para ele através do montão de cabelo negro que lhe caía agora nos olhos. Ralph deu uma olhada de lado, sorriu constrangido como se houvesse esquecido que Simon pusera-se em ridículo, depois fixou o nada outra vez. Por um instante, Simon ficou feliz por ter sido aceito, depois parou de pensar em si mesmo. Quando tropeçou numa árvore, Ralph olhou com impaciência e Robert deu uma risada. Simon cambaleou e uma mancha branca na sua testa ficou vermelha, sumindo depois. Ralph deixou Simon de lado e voltou ao seu inferno pessoal. Terminariam por chegar ao castelo: e o chefe teria de ir na frente.
Jack veio correndo.
— Já vemos o lugar.
— Está bem. Vamos chegar o mais perto possível.
Seguiu Jack em direção ao castelo onde o chão subia levemente. À esquerda, ficava um emaranhado impenetrável de trepadeiras e árvores.
— Por que não pode haver algo ali?
— Você pode ver por quê. Nada entra ou sai.
— E o castelo?
— Olhe.
Ralph abriu a cortina de plantas e olhou. Havia apenas uns poucos metros de chão pedregoso antes dos dois lados da ilha quase se reunirem, a ponto de se esperar que ali houvesse um promontório. Em vez disso, havia um estreito recife de pedra, com poucos metros de largura e uns 15 de comprimento, continuando a ilha mar adentro. Ali se estendia outra daquelas massas quadradas e rosadas que sustinham a estrutura da ilha. Deste lado do castelo, talvez a uns três metros de altura, estava o bastião rosado que haviam visto do cimo da montanha. A rocha da escarpa estava fendida e o cimo cheio de grandes pedras que davam a impressão de oscilar.
Atrás de Ralph, a grama alta estava cheia de caçadores silenciosos. Ralph olhou para Jack.
— Você é um caçador.
Jack ficou vermelho.
— Eu sei. Está certo.
Algo no fundo de Ralph falou por ele.
— Eu sou o chefe. Eu vou. Não discuta.
Virou-se para os outros.
— Vocês esperam aqui. Esperem por mim.
Viu que sua voz tendia a sumir ou a soar muito alta. Olhou para Jack.
— Você acha que...?
Jack murmurou.
— Estive em toda parte. Deve estar aqui.
— Certo.
Simon resmungou confusamente: — Não acredito no bicho.
Ralph respondeu-lhe polidamente, como se falasse sobre o tempo.
— Não. Acho que não.
Sua boca estava tensa e sem cor. Puxou o cabelo para trás, bem devagar.
— Bem. Até logo.
Obrigou os pés a se mexerem até que eles o levaram ao istmo de terra.
Abismos de ar deserto cercaram-no de todos os lados. Não havia lugar para se esconder, mesmo que não tivesse de avançar. Fez uma parada no istmo estreito e olhou para baixo. Logo, numa questão de séculos, o mar transformaria o castelo numa ilha. À direita, estava a lagoa, agitada pelo mar aberto e à esquerda...
Ralph estremeceu. A lagoa protegera-os do Pacífico e, por alguma razão, só Jack fora até o outro lado da ilha. Agora, ele tinha o ponto de vista de um inexperiente homem de terra e a arrebentação parecia a respiração de alguma criatura estupenda. Lentamente, as águas se enfiavam entre as pedras, revelando pedras planas de granito rosa, estranhas formações de coral, pólipo e algas. Lá embaixo, as águas iam murmurando como o vento entre as copas da floresta. Havia ali uma pedra chata, parecida com o tampo de uma mesa, e as águas desciam por ela com um ruído de sucção nos quatro lados cobertos de algas, fazendo-os parecer escarpas. Então, o leviatã sonolento respirava — as águas subiam, as algas ondulavam e o mar fervia sobre a superfície da pedra-mesa com um rugido. Não se notava a passagem das ondas, só essa queda de um minuto, o fluxo e o refluxo.
Ralph virou-se para o espigão avermelhado. Os outros esperavam lá atrás na grama alta, esperando para ver o que ele faria. Percebeu que o suor das palmas já esfriara, percebeu com surpresa que realmente não esperara encontrar bicho nenhum e não sabia o que fazer se o achasse.
Viu que podia escalar o espigão, mas que não era necessário. As paredes verticais alçavam-se sobre uma espécie de base, de modo que à direita, sobre a lagoa, podia-se avançar ao longo de uma borda e contorná-lo. Era fácil e logo estava examinando os contornos das pedras.
Nada, senão o que se podia esperar: pedras rosadas e desmoronadas, com camadas de guano sobre elas como glacê, uma encosta íngreme que levava às rochas espalhadas que coroavam o bastião.
Um som vindo de trás fez com que se virasse. Jack estava avançando pela borda.
— Não podia deixar você vir sozinho!
Ralph não disse nada. Subiu pelas pedras, examinou uma espécie de caverna que não tinha nada mais horrível que um monte de ovos podres. Terminou por sentar-se, olhando em volta, batendo na pedra com a ponta da lança.
Jack estava excitado.
— Que lugar para um forte!
Uma coluna de espuma os atingiu.
— Não há água doce.
— Que é isso então?
Realmente havia uma comprida mancha verde na altura da metade da rocha. Subiram e provaram o fio de água.
— Você poderia colocar um coco aí, enchendo o tempo todo.
— Eu, não. É um lugar podre.
Lado a lado, escalaram a última elevação até onde a pilha decrescente era coroada pela última pedra quebrada. Jack empurrou a mais próxima com seu punho e ela se mexeu levemente.
— Lembra-se...?
A consciência dos maus tempos irrompeu entre os dois. Jack falou rapidamente.
— É só colocar um tronco de palmeira aqui embaixo e, se vier um inimigo, veja!
Lá embaixo, a uns trinta metros, estava o istmo estreito, depois o chão pedregoso, a grama pontilhada de cabeças e além disso, a floresta.
— Um empurrão — gritou Jack exultante — e... uuuiii!
Fez um movimento de queda com a mão. Ralph olhou para a montanha.
— Que foi?
Ralph virou-se.
— Por quê?
— Você estava olhando de um jeito...
— Não há sinal agora. Nada para mostrar.
— Você está com ideia fixa nesse sinal.
O tenso horizonte azul rodeava-os, só interrompido pelo cimo da montanha.
— É tudo que temos.
Encostou a lança na pedra móvel e puxou para trás duas mechas de cabelo.
— Temos de voltar e subir a montanha. Foi lá que viram o bicho.
— O bicho não vai estar lá.
— Que mais podemos fazer?
Os outros, esperando na grama, viram Jack e Ralph sãos e salvos e saíram dos seus esconderijos para a luz do sol. Esqueceram o bicho na excitação da exploração. Cruzaram a ponte e logo estavam subindo e gritando. Ralph ficou de pé, a mão encostada num enorme bloco avermelhado, um bloco grande como uma roda de moinho partida e vacilante. Olhou sombriamente para a montanha. Fechou o punho e martelou com ele a parede vermelha à sua direita. Seus lábios estavam cerrados com força e seus olhos fixavam anelantes sob a franja de cabelo.
— Fumaça.
Chupou o punho machucado.
— Jack, vamos.
Mas Jack não estava lá. Um grupo de meninos, fazendo um barulho que ele não percebera, empurrava e forçava uma pedra. Quando virou, a base cedeu e a massa se precipitou no mar, fazendo um trovejante penacho de espuma subir até a metade do espigão.
— Parem! Parem!
Sua voz criou um silêncio entre eles.
— Fumaça.
Uma coisa estranha passou-lhe pela cabeça. Algo adejou na sua mente como a asa de um morcego, obscurecendo suas ideias.
— Fumaça.
Logo voltaram suas ideias... e o ódio.
— Precisamos de fumaça. E vocês ficam aí, perdendo tempo. Vocês ficam empurrando pedras.
Roger gritou.
— Temos tempo de sobra!
Ralph sacudiu a cabeça.
— Vamos até a montanha.
Irrompeu um alarido. Alguns dos meninos queriam voltar para a praia. Outros queriam empurrar mais pedras. O sol estava brilhando e o perigo sumira com a escuridão.
— Jack, o bicho pode estar do outro lado. Pode ir na frente de novo. Você esteve lá.
— Podemos ir pela praia. Temos frutas ali.
Bill subiu até onde Ralph estava.
— Por que não podemos ficar aqui um pouco?
— Está certo.
— Vamos fazer um forte...
— Aqui não há comida — disse Ralph —, nem abrigo. Nem muita água fresca.
— Seria um forte espetacular.
— Podemos empurrar pedras...
— Bem na ponte...
— Eu disse: Vamos! — gritou Ralph furiosamente. — Precisamos ter certeza. Vamos já.
— Vamos ficar aqui...
— De volta para as cabanas...
— Estou cansado...
— Não!
Ralph estalou os nós dos dedos. Não doeu.
— Eu sou o chefe. Vamos ter certeza. Vocês não podem ver a montanha? Não há sinal de fumaça. Pode haver um navio, até dois, ao largo. Vocês perderam a cabeça?
Chateados, os meninos ficaram quietos ou resmungaram.
Jack encabeçou a descida, para além do istmo.