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Caras pintadas e cabelos compridos
O primeiro ritmo a que se acostumaram foi a lenta passagem da alvorada ao rápido crepúsculo. Aceitaram os prazeres da manhã, o sol brilhante, o mar que subia pela praia e o ar leve, como um período em que brincar era ótimo e a vida tão cheia que a esperança era desnecessária e até esquecida. Por volta do meio-dia, à medida que torrentes de luz caíam perpendicularmente, as cores puras da manhã eram suavizadas com tons de pérola e opalinos. O calor — como que impelido pelo peso ameaçador do sol — tornava-se um golpe a que eles se esquivavam, correndo para a sombra e ficando ali deitados, até dormindo, talvez.
Coisas estranhas aconteciam ao meio-dia. O mar cintilante subia, separava-se em planos ruidosos de mistério. O recife de coral e as poucas e raquíticas palmeiras que ficavam nas partes mais altas flutuavam no céu, tremulavam, desarraigavam-se, corriam como gotas de chuva sobre um fio ou se repetiam numa insólita sucessão de espelhos. Às vezes, surgia terra onde não havia terra, irrompendo ante os olhos dos meninos como uma bolha de ar. Porquinho descartava tudo isso, falando doutoralmente sobre “miragens”; como nenhum menino podia chegar nem mesmo até o recife, à faixa de água onde esperavam tubarões vorazes, eles se acostumaram com esses mistérios e os ignoravam, da mesma forma que ignoravam as milagrosas e palpitantes estrelas. Ao meio-dia, as ilusões se fundiam no céu e então o sol espiava para baixo como um olho irado. Contudo, no fim da tarde, as miragens desapareciam e o horizonte tornava-se mais nivelado, azul e nítido, à medida que o sol declinava. Era outro período de frescor relativo, embora ameaçado pela chegada da escuridão. Quando o sol se punha, as trevas caíam sobre a ilha como uma mortalha e logo os abrigos ficavam cheios de inquietação, sob as remotas estrelas.
Entretanto, a tradição norte-europeia de trabalho, diversão e refeições a determinadas horas do dia não permitia que se ajustassem completamente a esse novo ritmo. O pequeno Percival, no começo, enfiara-se num abrigo, ficando ali durante dois dias, falando, cantando e chorando. Pensaram que ele estava maluco, o que era meio engraçado. Desde então, era doentio, vivia de olhos vermelhos e sentia-se miserável: um menininho que brincava pouco e chorava muito.
Os meninos menores eram conhecidos pelo nome genérico de “pequenos”. A escadinha do tamanho, de Ralph para baixo, era gradativa; embora houvesse uma região duvidosa habitada por Simon, Robert e Maurice, ninguém tinha qualquer dificuldade em reconhecer os grandes numa ponta e os pequenos na outra. Os indiscutivelmente pequenos, aqueles com cerca de seis anos, levavam uma vida própria bem diferente e, ao mesmo tempo, bem intensa. Comiam a maior parte do dia, pegando frutas onde as conseguiam alcançar e não ligavam muito para sua maturação ou qualidade. Agora estavam acostumados com dores de estômago e uma espécie de diarreia crônica. Sofriam horrores indizíveis no escuro e ficavam juntos para se consolar mutuamente. Além da comida e do sono, achavam tempo para brincar à vontade na areia branca à beira da água brilhante. Choravam com muito menos frequência por suas mães do que se poderia esperar; estavam bem queimados e terrivelmente sujos. Obedeciam às convocações da concha, em parte porque Ralph as fazia e era suficientemente grande para ser um elo com o mundo adulto da autoridade, e em parte porque gostavam da diversão que representava uma reunião. A não ser isso, raramente se incomodavam com os grandes e sua vida apaixonadamente emocional e associativa era bem própria deles.
Construíram castelos na areia, na margem do riacho. Esses castelos tinham uns trinta centímetros de altura e eram decorados com conchas, flores murchas e pedras escolhidas. Em volta dos castelos havia um complexo de marcos, caminhos, muralhas e estradas de ferro que só tinham significado se examinados ao nível da praia. Os pequenos brincavam aí. Se não estavam felizes, pelo menos sua atenção se absorvia. Frequentemente, pelo menos três deles brincavam da mesma coisa, ao mesmo tempo.
Estavam brincando agora — Henry era o maior deles. Também era parente distante de outro menino, aquele — o de sinal rubro no rosto — que nunca mais fora visto desde a noite da grande fogueira; mas Henry não tinha idade bastante para entender isso e, se lhe dissessem que o outro menino tinha ido para casa num avião, aceitaria o fato sem alvoroço e sem dúvidas.
Henry era uma espécie de líder nessa tarde, pois os outros dois eram Percival e Johnny, os menores meninos da ilha. Percival era terroso e nem sua mãe poderia achar que fosse muito atraente; Johnny era forte, de cabelo louro e beligerância inata. Só estava sendo obediente agora porque estava interessado. Os três meninos, ajoelhados na areia, estavam em paz.
Roger e Maurice saíram da floresta. Haviam sido substituídos no trabalho da fogueira e desceram para tomar banho de mar. Roger avançou diretamente sobre os castelos, chutando-os, enterrando as flores, espalhando as pedras escolhidas. Maurice seguiu-o, rindo, e ajudou na destruição. Os três pequenos pararam de brincar e ficaram olhando. Até então, os marcos particulares em que estavam interessados não haviam sido tocados, portanto não protestaram. Só Percival começou a choramingar, com um olho cheio de areia, e Maurice saiu correndo. Na sua vida anterior, Maurice fora castigado por encher de areia o olho de um menino menor. Embora ali não houvesse um pai para acertar-lhe uma mão pesada, Maurice ainda sentia uma sensação de malfeito. Na sua mente esboçaram-se as linhas de uma desculpa. Resmungou algo sobre nadar e partiu na corrida.
Roger ficou, olhando os menores. Não estava muito mais escuro do que quando chegara, mas o monte de cabelo preto que caía sobre a nuca e a testa parecia combinar com sua face sombria e tornava repulsivo algo naquele rosto que, à primeira vista, parecia deixar transparecer apenas um isolamento insociável. Percival parou de choramingar e voltou a brincar, pois as lágrimas haviam limpado a areia. Johnny olhou-o com olhos azul-porcelana. Depois, começou a jogar areia para cima, fazendo uma chuva, e Percival começou a chorar outra vez.
Quando Henry se cansou do brinquedo e se pôs a andar pela praia, Roger seguiu-o, permanecendo atrás das palmeiras, vagando casualmente na mesma direção. Henry andava a certa distância das palmeiras e da sombra, porque era pequeno demais para se preocupar com o sol. Avançou praia abaixo e se entreteve à beira da água. A grande maré do Pacífico estava subindo e a cada poucos segundos a água relativamente parada da lagoa subia um centímetro. Havia criaturas que viviam nessa última arremetida do mar, minúsculas transparências que saíam da água para vasculhar a areia quente e seca. Com impalpáveis órgãos sensoriais, examinavam esse novo campo. Talvez houvesse surgido comida onde não houvera nada na última incursão; excrementos de pássaros, insetos talvez, qualquer dos demais espalhados da vida terrestre. Como uma miríade de brancos dentes numa serra, as transparências recolhiam o lixo da praia.
Isso era fascinante para Henry. Cavoucou por ali com uma varinha que era levada de um lado para outro pelas ondas, desbotada e gasta, tentando controlar os movimentos dos limpadores da praia. Traçava pequenos arroios que a maré enchia e tentava povoá-los com as criaturas. Tornou-se absorvido além da mera felicidade, à medida que se sentia dominando coisas vivas. Falava com elas, estimulava-as, ordenava-as. A maré o fazia retroceder e suas pegadas tornavam-se baías onde as criaturas ficavam aprisionadas, o que lhe dava a ilusão da soberania. Agachou-se à beira do mar, inclinou a cabeça e um punhado de cabelo caiu-lhe sobre a testa, passando dos olhos. O sol da tarde disparava flechas invisíveis.
Roger também esperava. Primeiro escondera-se atrás de um grande tronco de palmeira, mas o interesse de Henry pelas transparências era tão óbvio que ele acabou saindo do esconderijo. Deu uma olhada pela praia. Percival fora embora, chorando, e Johnny ficara na posse triunfante dos castelos. Sentou-se ali, cantarolando para si mesmo e jogando areia num imaginário Percival. Além dele, Roger via a plataforma e as cintilações da água espadanada por Ralph, Simon, Porquinho e Maurice, que mergulhavam na piscina. Prestou atenção cuidadosamente, mas não distinguiu o que falavam.
Um vento súbito balançou as franjas das palmeiras, e as frondes mexeram-se e se agitaram. A 15 metros acima de Roger, um cacho de cocos, massas fibrosas grandes como bolas de rúgbi, soltaram-se de seus talos. Caíram na direção do menino com uma série de duros golpes, embora nenhum chegasse a atingi-lo. Roger não pensou em sair correndo, só olhou dos cocos para Henry e novamente para os cocos.
O solo sob as palmeiras era uma praia alta; gerações de palmeiras haviam trabalhado para suavizar as pedras que caíram nas areias de outra praia. Roger agachou-se, pegou uma pedra, mirou e a jogou em Henry — mas não para acertar. A pedra, uma relíquia de outros tempos, passou a uns cinco metros à direita de Henry e caiu na água. Roger pegou um punhado de pedras e começou a atirá-las. Mas havia um espaço ao redor de Henry, talvez com uns seis metros de diâmetro, em que ele não ousava acertar. Aí, invisível mas poderoso, surgia o tabu da vida antiga. Em volta do menino ajoelhado, havia a proteção dos pais, da escola, da polícia e da lei. O braço de Roger era condicionado por uma civilização que nada sabia dele e estava em ruínas. Henry espantou-se com os chapes na água, largou as transparências silenciosas e esticou a cabeça para o núcleo dos anéis concêntricos, como um cão de caça. As pedras caíam de um lado e do outro; Henry virava-se obedientemente, mas sempre tarde demais para ver as pedras no ar. Por fim, viu uma e riu, procurando o amigo que o estava provocando. Mas Roger escondera-se atrás do tronco da palmeira e se encostara a ele, respirando em ritmo acelerado, com os olhos piscando. Então, Henry perdeu o interesse nas pedras e foi embora.
— Roger.
Jack estava de pé, sob uma árvore, a uns dez metros dali. Quando Roger abriu os olhos e o viu, uma sombra mais escura pareceu estender-se sob sua pele bronzeada. Mas Jack não percebera nada. Estava ansioso, impaciente, fazendo gestos. Roger foi até ele.
Havia um tanque no fim do rio, um pouco de água represada por um banco de areia, com brancos lírios de água e juncos semelhantes a agulhas. Ali esperavam Bill, Sam e Eric. Jack, protegendo-se do sol, ajoelhou-se à beira do tanque e abriu as duas grandes folhas que carregava. Uma delas continha argila branca, a outra, vermelha. Ao lado, havia uma varinha carbonizada trazida da fogueira.
Jack explicou a Roger, enquanto trabalhava.
— Eles não me cheiram. Acho que me veem. Algo rosado sob as árvores.
Lambuzou-se com a argila.
— Se eu tivesse um pouco de verde!
Virou uma cara meio oculta para Roger e respondeu ao olhar interrogativo.
— Para caçar. Como na guerra. Você sabe... pintura de camuflagem. Como as coisas que querem parecer outras...
Agitou-se, na vontade de se comunicar.
— ...como mariposas num tronco de árvore...
Roger compreendeu e assentiu, gravemente. Os gêmeos andaram até Jack e começaram a protestar timidamente sobre alguma coisa. Jack fez um gesto dominador.
— Calem-se.
Esfregou a vara carbonizada entre as manchas de vermelho e branco que fizera no rosto.
— Não, vocês dois virão comigo.
Deu uma olhada na sua imagem refletida e não gostou do que viu. Inclinou-se, pegou um duplo punhado de água morna e limpou a sujeira do rosto. Surgiram sardas e sobrancelhas claras.
Roger sorriu, de má vontade.
— Você não parece muito pintado.
Jack planejou sua nova cara. Pintou de branco uma face e um círculo em volta de um olho. Depois, esfregou vermelho na outra metade da cara e traçou uma lista preta de carvão obliquamente, da orelha direita até a parte esquerda da mandíbula. Olhou para o reflexo no tanque, mas sua respiração turvou o espelho.
— Sameeric. Me arranjem um coco. Vazio.
Ajoelhou-se, segurando a concha de água. Uma mancha circular de sol atingiu seu rosto e uma imagem brilhante surgiu nas profundezas da água. Olhou espantado, não mais para si, porém para um estranho terrível. Derramou a água e se levantou de um salto, excitado, rindo. Junto ao tanque, seu corpo musculoso ostentava uma máscara que atraía os olhos dos outros e os atemorizava. Começou a dançar e sua risada se tornou um grunhido sedento de sangue. Brincou que investia contra Bill e a máscara tornou-se algo independente, atrás da qual Jack se escondia, livre da vergonha e da consciência de si próprio. A cara vermelha, branca e preta agitava-se no ar e dançava na direção de Bill. Este se levantou, rindo; de repente, ficou quieto e, aos tropeções, se internou pelos arbustos.
Jack investiu na direção dos gêmeos.
— O resto em fila. Vamos!
— Mas...
— ...nós...
— Vamos! Vou rastejar e acertar...
Foram impelidos pela máscara.
Ralph saiu da “piscina” e correu praia acima. Sentou-se sob as palmeiras, à sombra. Seu cabelo louro estava colado sobre as sobrancelhas e puxou-o para trás. Simon boiava na água, batendo os pés. Maurice treinava mergulho. Porquinho ia, de um lado para outro, sem rumo, pegando coisas a esmo e jogando fora. Os tanques entre as rochas, que o fascinavam tanto, estavam cobertos pela maré, e ele não se interessava por nada até a maré baixar. Agora, vendo Ralph sob as palmeiras, andou até ele e se sentou.
Porquinho usava os restos de uma calça curta, o corpo gordo ganhara um bronzeado dourado, os óculos ainda brilhavam quando fixava alguma coisa. Era o único menino na ilha cujo cabelo nunca parecia crescer. Os outros estavam desgrenhados, mas o cabelo de Porquinho ainda ficava em mechas sobre a cabeça, como se a calvície fosse seu estado natural e essa cobertura imperfeita logo devesse sumir, como o veludo nos chifres de um cervo jovem.
— Estive pensando num relógio — disse. — Poderíamos fazer um de sol. Poríamos uma vara na areia, então...
O esforço para expressar os processos matemáticos envolvidos era grande demais. Em vez disso, fez alguns gestos.
— E um avião, uma televisão — disse Ralph, irônico. — E uma máquina a vapor.
Porquinho sacudiu a cabeça.
— É preciso um monte de coisas de metal para isso — disse —, e não temos metal. Mas varas nós temos.
Ralph virou-se e sorriu involuntariamente. Porquinho era um chato, sua gordura, sua asma e suas ideias vulgares eram uma chatura. Mas sempre havia um pequeno prazer em zombar dele, mesmo que de modo acidental.
Porquinho viu o sorriso e o interpretou erradamente como mostra de amizade. Os grandes haviam chegado à opinião tácita de que Porquinho era um estranho, não só pelo sotaque, o que realmente não tinha importância, mas também pela gordura, pela asma, os óculos e uma certa aversão pelo trabalho manual. Agora, pensando que algo do que dissera fora a razão do sorriso de Ralph, entusiasmou-se e aproveitou a vantagem.
— Temos um monte de varas. Cada um de nós pode ter um relógio de sol. Então saberemos as horas.
— O que iria ser ótimo para nada.
— Você disse que queria que fizéssemos coisas. Para que pudessem vir nos buscar.
— Oh, cale-se.
Ficou de pé num salto e correu de volta para a “piscina”, bem quando Maurice deu um mergulho sofrível. Ralph ficou contente com a chance de mudar de assunto. Gritou, quando Maurice voltou à superfície.
— Barrigada! Barrigada!
Maurice sorriu para Ralph, que entrou facilmente na água. De todos os meninos, era o mais à vontade ali; mas hoje, chateado pela menção da salvação, a inútil e rasteira menção do resgate, até as verdes profundezas da água e o estilhaçado sol dourado não traziam consolo. Ao invés de ficar e brincar, nadou com firmes braçadas por sob Simon e nadou de peito até a outra ponta da “piscina”, para ficar ali, macio e lustroso como uma foca. Porquinho, sempre de cara amarrada, levantou-se e veio para o seu lado, ao que Ralph virou-se de bruços e fingiu não ver ninguém. As miragens haviam sumido e ele passou sombriamente o olhar pela tensa linha do horizonte.
No instante seguinte, estava de pé, gritando.
— Fumaça! Fumaça!
Simon tentou sentar-se na “piscina” e ficou com a boca cheia de água. Maurice, que estava de pé, pronto para mergulhar, girou nos calcanhares, deu um pulo para a plataforma, depois voltou para a grama sob as palmeiras. Ali, começou a vestir sua calça curta esfarrapada, para estar pronto para o que desse e viesse.
Ralph ficou de pé, uma mão puxando o cabelo, a outra cerrada. Simon estava saindo da água. Porquinho esfregava os óculos na calça e piscava para o mar, Maurice enfiou as duas pernas numa das pernas da calça: entre todos, só Ralph estava tranquilo.
— Não consigo ver a fumaça — disse Porquinho, mal acreditando. — Não consigo ver, Ralph, onde está?
Ralph não disse nada. Agora, os dois punhos estavam cerrados junto à testa, de modo que o cabelo louro não lhe chegava aos olhos. Estava inclinado para a frente e o sal já estava embranquecendo seu corpo.
— Ralph, onde está o navio?
Simon ficou ali, olhando de Ralph para o horizonte. A calça de Maurice cedeu com um suspiro e ele a abandonou como um farrapo, correu para a floresta, mas voltou logo.
A fumaça era um pequeno nó apertado no horizonte, desenrolando-se lentamente. Sob a fumaça havia um ponto que poderia ser uma chaminé. O rosto de Ralph estava pálido, quando ele falou consigo mesmo.
— Eles verão nossa fumaça.
Agora Porquinho estava olhando na direção certa.
— Não parece grande coisa.
Virou-se e olhou para a montanha. Ralph continuou a seguir o navio, avidamente. A cor voltara ao seu rosto. Simon estava ao seu lado, silencioso.
— Sei que não enxergo muito bem — disse Porquinho —, mas nós estamos fazendo alguma fumaça?
Ralph mexeu-se, impaciente, ainda fixando o navio.
— A fumaça lá na montanha.
Maurice veio correndo e ficou olhando o mar. Simon e Porquinho estavam olhando para cima, para a montanha. Porquinho enrugou o rosto, mas Simon gritou como se estivesse ferido.
— Ralph! Ralph!
A urgência do grito fez Ralph mexer-se na areia.
— Digam-me — disse Porquinho ansiosamente. — Há algum sinal?
Ralph olhou para a fumaça que se dissipava no horizonte, depois para a montanha.
— Ralph, por favor. Há um sinal?
Simon esticou a mão, timidamente, para tocar Ralph, mas este começou a correr, jogando água pela parte rasa da “piscina”, seguiu pela branca e quente areia, enfiou-se sob as palmeiras. Um momento depois, estava lutando com o mato emaranhado que já dominava a escarpa. Simon correu atrás dele, depois Maurice. Porquinho gritava.
— Ralph! Por favor, Ralph!
Então, começou a correr também, tropeçando na calça abandonada por Maurice, antes de chegar ao terraço. Por trás dos quatro meninos, a fumaça movia-se suavemente pelo horizonte. Na praia, Henry e Johnny jogavam areia em Percival que chorava baixinho outra vez. Os três ignoravam completamente toda aquela agitação.
Quando chegou ao extremo interior da escarpa, Ralph usou uma preciosa parcela de fôlego para xingar. Enfiou o corpo nu com tal violência desesperada por entre as ásperas trepadeiras, que logo o sangue escorreu por sua pele. Parou exatamente onde começava a íngreme subida da montanha. Maurice estava a uns poucos metros dele.
— Os óculos de Porquinho! — gritou Ralph. — Se a fogueira estiver apagada realmente, precisaremos deles...
Parou de gritar e esticou-se todo no chão. Porquinho mal estava visível, avançando pesadamente praia acima. Ralph olhou para o horizonte, depois para a montanha. O que seria melhor: pegar os óculos de Porquinho ou deixar o navio ir embora? E se subissem, e se a fogueira estivesse apagada, e tivessem de ver Porquinho ir chegando aos poucos e o navio sumindo no horizonte? No auge de toda aquela necessidade, agoniado pela indecisão, Ralph gritou:
— Meu Deus! Meu Deus!
Simon, lutando com os arbustos, prendeu a respiração. Seu rosto estava retorcido. E enquanto a coluna de fumaça continuava a mover-se no horizonte, Ralph corria doidamente, furioso consigo mesmo.
A fogueira estava morta. Perceberam isso imediatamente; viram o que realmente já sabiam lá na praia, quando surgira a fumaça do mundo familiar. A fogueira estava apagada, sem fumaça, morta. Os vigias haviam sumido. Ao lado, pronta para ser usada, uma pilha de lenha inútil.
Ralph virou-se para o mar. O horizonte se estendia, novamente impessoal, sem o menor indício de fumaça. Ralph correu, tropeçando pelas pedras, parou na ponta do cume rosado, gritando para o navio.
— Volte! Volte!
Correu para a frente e para trás no cume, o rosto sempre voltado para o mar, erguendo a voz como louco.
— Volte! Volte!
Simon e Maurice chegaram. Ralph procurou no seu íntimo a pior palavra que soubesse.
— Deixaram a maldita fogueira apagar!
Olhou para o lado inimigo da montanha. Porquinho chegou, sem fôlego, lamuriento como um dos pequenos. Ralph cerrou o punho e ficou muito vermelho. A intensidade do seu olhar, a amargura da sua voz falavam por ele.
— Estão lá.
Uma procissão surgiu, lá longe, entre as pedras rosadas que ficavam perto da beira da água. Alguns dos meninos usavam bonés pretos, mas outros estavam quase nus. Jogavam paus para o ar, sempre que podiam andar com mais facilidade. Cantavam algo que tinha a ver com o fardo que os gêmeos carregavam tão cuidadosamente. Ralph distinguiu Jack com facilidade, mesmo àquela distância, alto, ruivo e inevitavelmente liderando a procissão.
Simon olhou então, de Ralph para Jack, como olhara de Ralph para o horizonte, e o que viu parecia meter-lhe medo. Ralph não disse mais nada, só esperou a procissão chegar mais perto. O canto era audível, mas, àquela distância, ainda indistinto. Atrás de Jack vinham os gêmeos, carregando uma grande vara nos ombros. A carcaça destripada de um porco balançava na vara, sacudindo-se pesadamente à medida que os gêmeos subiam pelo chão irregular. A cabeça do porco pendia do pescoço aberto e parecia procurar algo no solo. Enfim, as palavras do canto flutuaram até eles, através daquilo que parecia uma bacia de madeira enegrecida e cinzas.
— Matem o porco! Cortem a garganta! Tirem o sangue!
Agora já se distinguiam as palavras: a procissão chegara à parte mais íngreme da montanha e, num minuto ou dois, o canto acabou. Porquinho lastimou-se e Simon fez com que se calasse rapidamente, como se o outro tivesse falado alto demais na igreja.
Jack, com o rosto manchado de argila, atingiu o cume primeiro e saudou Ralph excitadamente, com a lança levantada.
— Veja! Matamos um porco... subimos, sem fazer barulho, atrás deles... fizemos um círculo...
Vozes irromperam, dentre os caçadores.
— Fizemos um círculo...
— Rastejamos...
— O porco guinchou...
Os gêmeos ficaram de pé, com o porco entre eles, sacudindo e derramando gotas negras na pedra. Os dois pareciam compartilhar o mesmo amplo e estático sorriso. Jack tinha coisas demais para contar a Ralph, ao mesmo tempo. Em vez disso, deu um ou dois passos de dança, depois se lembrou da sua dignidade e ficou ali, sorrindo. Percebeu a sujeira nas mãos e fez uma careta de nojo, procurando alguma coisa com que se limpar, depois esfregou-as na calça e riu.
Ralph falou.
— Você deixou a fogueira apagar.
Jack deu uma olhada, vagamente irritado pela observação irrelevante, mas feliz demais para se deixar atingir por uma coisa assim.
— Podemos acender a fogueira outra vez. Você deveria ter ido com a gente, Ralph. Foi sensacional. Os gêmeos derrubaram...
— Acertamos o porco...
— ...eu caí em cima...
— E cortei a garganta do porco — disse Jack, orgulhoso, embora agitando-se nervosamente ao dizer isso. — Você me empresta sua faca para fazer um talho no cabo da minha?
Os meninos tagarelavam e dançavam. Os gêmeos continuavam sorrindo.
— Houve ondas de sangue — disse Jack, rindo e estremecendo. — Você deveria ter vindo!
— Iremos caçar todo dia...
Ralph falou de novo, roucamente. Não se mexera.
— Você deixou a fogueira apagar.
A repetição deixou Jack contrafeito. Olhou para os gêmeos e depois para Ralph.
— Precisávamos deles na caçada — disse —, ou não haveria gente suficiente para o cerco.
Corou, consciente de um erro.
— A fogueira só ficou apagada por uma hora ou duas. Podemos acendê-la de novo...
Percebeu então a nudez cheia de lanhos de Ralph e o severo silêncio dos quatro. Procurou, generoso na sua felicidade, incluí-los no que havia acontecido. Sua mente estava povoada de lembranças: lembranças da tomada de consciência, quando fecharam o cerco sobre o porco que se debatia, o conhecimento de que haviam vencido uma coisa viva, imposto sua vontade a ela, tirado sua vida como que sorvendo longamente uma bebida deliciosa.
Abriu os braços.
— Você devia ter visto o sangue!
Agora, os caçadores estavam mais quietos, mas ao ouvirem isso, começaram a fazer barulho de novo. Ralph puxou o cabelo para trás. Sua voz saiu alta e selvagem, reduzindo-os ao silêncio.
— Apareceu um navio.
Jack, diante de implicações demais ao mesmo tempo, todas terríveis demais, afastou-se deles. Pôs uma das mãos no porco e tirou a faca. Ralph abaixou o braço, de punho cerrado, e falou.
— Apareceu um navio. Lá longe. Você disse que a fogueira seria vigiada e a deixou apagar! — Deu um passo na direção de Jack, que se virou e ficou olhando.
— Poderiam ter visto a gente. Poderíamos ter ido para casa...
Isso foi amargo demais para Porquinho, que perdeu a timidez na agonia da perda. Começou a gritar, agudamente.
— Você e seu sangue, Jack Merridew! Você e sua caça! Poderíamos ter ido para casa...
Ralph empurrou Porquinho para o lado.
— Eu era o chefe e você iria fazer o que eu dissesse. Você falou. Mas você nem pôde construir cabanas, então, foi caçar e deixou a fogueira apagar...
Virou-se, na pausa do silêncio. Então, sua voz irrompeu de novo, num clímax de exasperação.
— Apareceu um navio...
Um dos caçadores menores começou a chorar. A triste verdade estava penetrando em todos. Jack ficou muito vermelho, enquanto golpeava e dilacerava o porco.
— O trabalho era muito. Precisávamos de todo mundo.
Ralph virou-se.
— Você poderia ficar com todo mundo quando os abrigos estivessem prontos. Mas tinha de caçar...
— Precisávamos de carne.
Jack ficou de pé, a faca ensanguentada na mão. Os dois se defrontaram. Ali estava o mundo brilhante da caça, táticas, regozijo feroz, habilidade. E ali estava o mundo da saudade e do senso comum frustrado. Jack passou a faca para a mão esquerda e encheu a testa de sangue, ao passar a mão pelo cabelo emplastrado.
Porquinho começou de novo.
— Você não deveria ter deixado a fogueira apagar. Você disse que a fumaça continuaria...
Isso, vindo de Porquinho, mais os lamentos de apoio dados por alguns dos caçadores, levou Jack à violência. O olhar desvairado chegou aos olhos azuis. Deu um passo e, finalmente, podendo atingir alguém, largou o punho na barriga de Porquinho. Porquinho caiu sentado, com um grunhido. Jack ficou de pé, olhando-o. Sua voz saiu distorcida pela humilhação.
— É isso? Era isso que você estava querendo, não é? Gorducho!
Ralph avançou um passo e Jack deu um safanão na cabeça de Porquinho. Os óculos de Porquinho voaram e tiniram nas pedras. Porquinho gritou, aterrorizado.
— Meus óculos!
Precipitou-se, rastejando e tateando pelas pedras, mas Simon chegou primeiro, descobriu os óculos para ele. As paixões adejavam sobre Simon com asas medonhas, naquele cume de montanha.
— Uma lente está quebrada.
Porquinho pegou os óculos e os colocou. Olhou malevolamente para Jack.
— Eu preciso de óculos. Agora só tenho uma vista. Você vai ver...
Jack fez um gesto na direção de Porquinho, que fugiu tropeçando até que uma pedra grande ficasse entre eles. Esticou a cabeça por cima da pedra e olhou Jack pela sua única lente faiscante.
— Agora só tenho um olho. Você vai ver...
Jack imitou os gemidos e a fuga atropelada.
— Você vai ver... ah!
Porquinho e a paródia eram tão engraçados que os caçadores começaram a rir. Jack sentiu-se estimulado. Continuou a tropeçar e as risadas chegaram a um furacão de histeria. A contragosto, Ralph sentiu seus lábios se contraindo; estava furioso consigo mesmo por ceder assim.
Resmungou.
— Foi uma sujeira da grossa.
Jack interrompeu seus giros e ficou ereto, olhando Ralph. Falou, num grito.
— Está certo! Está certo!
Olhou para Porquinho, para os caçadores, para Ralph.
— Desculpe! Pelo fogo, quero dizer. É. Eu...
Endireitou-se.
— Peço desculpas!
O vozerio dos caçadores foi de admiração por comportamento tão generoso. Claramente, achavam que Jack fizera a coisa certa e se pusera ao lado da verdade com sua generosa desculpa, enquanto Ralph, de modo indefinido, ficara do lado errado. Esperavam por uma resposta adequada de bom senso.
Mas a garganta de Ralph recusava-se. Ressentia-se também desse truque verbal, além do mau comportamento de Jack. A fogueira estava morta, o navio fora embora. Não entendiam? Pela sua garganta passou a raiva, ao invés do bom senso.
— Foi uma sujeira da grossa!
Fez-se silêncio no cimo da montanha, enquanto o olhar opaco apareceu nos olhos de Jack e sumiu.
A palavra final de Jack foi um resmungo contrafeito.
— Está certo. Acendam a fogueira.
Com a perspectiva de uma ação positiva, a tensão diminuía um pouco. Ralph não falou mais nada, não fez nada, ficou olhando para baixo, para as cinzas aos seus pés. Jack gritava e se agitava. Deu ordens, cantou, assobiou, fez observações para o silencioso Ralph... observações que não precisavam de resposta, logo não poderiam provocar mal-entendidos. Mesmo assim, Ralph continuava quieto. Ninguém, nem mesmo Jack, iria lhe dizer que se mexesse e, no fim de tudo, haviam feito a fogueira a três metros de distância, num lugar nada conveniente. Ralph confirmou assim sua chefia e não poderia escolher um modo melhor para isso, nem que tivesse dias para pensar. Contra essa arma, tão indefinível e eficiente, Jack não tinha forças e morria de raiva sem saber por quê. No instante em que acabaram de fazer a pilha de lenha, estavam em lados opostos de uma alta barreira.
Quando acabou a construção da fogueira, explodiu outra crise. Jack não tinha meios de acendê-la. Então, para sua surpresa, Ralph foi até onde Porquinho estava e pegou os óculos. Nem mesmo Ralph sabia como se rompera e reatara, em alguma parte, o elo que o ligava a Jack.
— Eu trarei de volta.
— Eu também vou.
Porquinho ficou atrás dele, ilhado num mar de cores sem significado, enquanto Ralph ajoelhava-se e enfocava o círculo brilhante. Assim que a fogueira foi acesa, Porquinho estendeu as mãos e pegou os óculos.
Ante as flores fantasticamente atraentes — violetas, vermelhas e amarelas — a discórdia desapareceu. Tornaram-se um círculo de meninos em volta de uma fogueira de acampamento e até Porquinho e Ralph se sentiram meio atraídos. Logo, alguns dos meninos estavam correndo encosta abaixo em busca de mais lenha, enquanto Jack cortava o porco. Tentaram manter a carcaça inteira numa estaca sobre o fogo, mas a madeira se queimava antes que o porco começasse a assar. Afinal, enfiaram pedaços de carne em ramos e os colocaram nas chamas: mesmo assim, os meninos quase se assaram tanto quanto a carne.
Ralph avançou, hesitante. Pretendia recusar a carne, mas depois de uma dieta de frutas e nozes, com um raro caranguejo ou peixe, sua resistência era mínima. Aceitou um pedaço de carne meio crua e enfiou os dentes nela, como um lobo.
Porquinho falou, também hesitante.
— Não vai ter nada para mim?
Jack pretendia deixá-lo na dúvida, como demonstração de força, mas como Porquinho previra a omissão, era necessário um pouco mais de crueldade.
— Você não caçou.
— Ralph também não — disse Porquinho, em tom de choro —, nem Simon. — Falou mais alto: — Os caranguejos que a gente come só têm um pouquinho de carne.
Ralph mexeu-se, contrafeito. Simon, sentado entre os gêmeos e Porquinho, esfregou a boca e passou seu pedaço de carne para Porquinho, sobre as pedras. Ele o pegou. Os gêmeos deram uma risadinha e Simon abaixou a cabeça, envergonhado.
Então Jack ficou de pé num salto, cortou um grande pedaço de carne e jogou-o aos pés de Simon.
— Coma! Seu desgraçado!
Olhou furioso para Simon.
— Pegue!
Girou nos calcanhares, centro de um confuso círculo de meninos.
— Eu trouxe carne para vocês!
Inúmeras e inexprimíveis frustrações combinaram-se para fazer sua fúria primitiva inspirar um respeito atemorizado.
— Eu pintei o rosto... rastejei. Agora comam... vocês todos... e eu...
Lentamente o silêncio no cume da montanha foi crescendo até se poder ouvir o crepitar da fogueira e o débil silvar da carne assando. Jack olhou em volta, buscando compreensão, mas só encontrou respeito. Ralph estava de pé entre as cinzas da fogueira de sinalização, as mãos cheias de carne, sem dizer nada.
Então, finalmente, Maurice quebrou o silêncio. Mudou de assunto para o único tema que poderia reunir uma maioria.
— Onde vocês acharam o porco?
Roger apontou para o lado inimigo.
— Estava ali, perto do mar.
Jack, recuperando-se, não pôde suportar ouvir outro contando a sua história. Falou depressa.
— Espalhamo-nos ao redor. Rastejei, com as mãos e os joelhos. As lanças caíam porque não tinham pontas. O porco correu e fez um barulho terrível...
— Virou-se e correu em círculos, sangrando...
Todos os meninos falavam ao mesmo tempo, aliviados e excitados.
— Fechamos o cerco...
O primeiro golpe paralisara a parte traseira, então fecharam o círculo e golpearam, golpearam...
— Cortei a garganta do porco...
Os gêmeos, ainda compartilhando seu sorriso idêntico, pularam e correram um em volta do outro. Então, o resto se juntou a eles, gritando e fazendo ruídos como os do porco morrendo.
— Uma na cabeça!
— Acerte uma pra valer!
Então, Maurice fingiu ser o porco e correu guinchando para o meio; os caçadores, cercando-o, brincaram de golpeá-lo. Dançavam e cantavam.
Matem o porco! Cortem a garganta! Tirem o sangue!
Ralph ficou olhando, com inveja e ressentimento. Não falou até que se cansassem e o canto morresse.
— Vamos fazer uma reunião.
Um a um, pararam e ficaram olhando para ele.
— Com a concha. Vamos fazer uma reunião, mesmo que tenha de ser no escuro. Lá embaixo, na plataforma. Quando eu tocar. Já.
Virou-se e se afastou, montanha abaixo.