Apresentação
A força, a inteligência e o carisma
O paraíso perdido, a volta às origens, o fim da civilização. Histórias de náufragos sempre trazem temas como esses e mexem com imagens do inconsciente coletivo. Parece que a ideia de se encontrar perdido numa ilha deserta já está dentro de nós, muito antes de tomarmos conhecimento de Robinson Crusoé ou pegarmos A lagoa azul numa Sessão da Tarde (bem, agora as novas gerações têm ainda a série Lost, não é?). Quando William Golding pisou nesse terreno, em 1953, já não era algo novo na ficção, ainda assim, ele conseguiu lidar com todo o simbolismo da trama de naufrágio e levá-la a uma dimensão psicológica a que poucos chegaram.
Não estamos sozinhos. Essa seria a grande mensagem por trás de O senhor das moscas, com todas as suas implicações. Através do isolamento numa ilha, um grupo de meninos tem a dura tarefa de aceitar que, de fato, eles são um grupo. De que existe sim o outro e que esse também pode ser visto como o invasor, o “bicho”, aquele que vem de fora para limitar suas liberdades e testar suas selvagerias. Por tudo isso, O senhor das moscas é afinal um romance interno, um thriller psicológico, em que o cenário é apenas um palco, convidando a natureza humana a se manifestar plenamente. No atual momento em que vivemos — do isolamento do indivíduo na metrópole, de rompimento das relações tradicionais entre as pessoas — é especialmente interessante ver a questão do individualismo levada de volta às origens. Parece que tudo mudou e, ainda assim, nada é diferente. Nos faz pensar como a natureza humana pode se manifestar de forma semelhante, em situações tão diversas.
Em O senhor das moscas, essa natureza é dividida em três conceitos — a força, o carisma e a inteligência —, representados respectivamente por três personagens — Jack, Ralph e Porquinho. Existe ainda um quarto personagem, que seria a junção desses três aspectos anteriores, e que poderíamos chamar de “o Gênio”, e é exatamente esse que pôde trazer o título do romance. Na dramatização da natureza humana, esses personagens-conceito se alternam e medem suas forças. Caminham para a destruição mútua ou a harmonia? Conseguem viver isolados, precisam de cooperação ou um acaba se sobrepondo aos demais? São essas as perguntas propostas ao decorrer de O senhor das moscas. E a pergunta pessoal que eu, durante a leitura, muitas vezes me fiz é: “Com quem está a minha concha?” Qual desses três personagens tem a voz ativa em minhas próprias ações, qual deles eu estou disposto a ouvir?
Cá entre nós, confesso que ao ler o livro a maior vontade que tive foi de quebrar os óculos de Porquinho e tirá-lo de vez do páreo (hahá). Será essa uma demonstração da minha grande falha de caráter? Será que o autor, como artista, realmente não favoreceu o personagem da beleza/carisma? Ou será que parte da beleza da obra está aí, em dar ao leitor a possibilidade de escolher seu próprio herói?
Isso é você quem vai descobrir, ao fazer sua escolha. Cada um poderá decidir se o melhor é se isolar por proteção, curtir a natureza ou colocar fogo na floresta. Uma coisa eu tenho certeza: você vai adorar se perder com esses personagens. Vai querer passar mais tempo com eles, assim como eu quis. E é isso o que uma boa leitura pode proporcionar de mais gostoso — ainda que, provavelmente, O senhor das moscas será o último livro que você vai querer levar para uma ilha deserta.
Santiago Nazarian