11
Castelo de Pedra
No breve frio da aurora, os quatro meninos se reuniram em volta da massa negra que fora a fogueira, enquanto Ralph se ajoelhava e soprava. Cinzas leves como plumas cinzentas redemoinharam sob seu corpo, mas nenhuma centelha brilhou entre elas. Os gêmeos olhavam ansiosamente e Porquinho sentava-se inexpressivo por trás da luminosa muralha da sua miopia. Ralph continuou a soprar até seus ouvidos retinirem com o esforço, mas então o primeiro vento da manhã assumiu o trabalho e o cegou com as cinzas. Ele recuou, agachado, xingando e esfregando as lágrimas que brotavam dos seus olhos.
— Não adianta.
Eric olhou-o através de uma máscara de sangue seco. Porquinho virou-se para a direção aproximada de Ralph.
— Claro que não adianta, Ralph. Agora não temos fogo.
Ralph aproximou o rosto a meio metro do de Porquinho.
— Você pode me ver?
— Um pouco.
Ralph deixou que a inchação da face lhe fechasse o olho novamente.
— Levaram nosso fogo.
A raiva enchia sua voz.
— Roubaram-no!
— Foram eles — disse Porquinho. — Eles me cegaram. Viram? Foi Jack Merridew. Faça uma assembleia, Ralph, precisamos decidir o que fazer.
— Uma reunião só para nós?
— É tudo que temos. Sam, deixe-me segurar em você.
Subiram para a plataforma.
— Sopre a concha — disse Porquinho. — Sopre o mais alto que puder.
A floresta ecoou, pássaros levantaram voo, gritando das copas, como naquela primeira manhã, há séculos. A praia estava deserta de ambos os lados. Alguns pequenos vieram das cabanas. Ralph sentou-se no tronco polido e os outros três sentaram-se à sua frente. Fez que sim, e Sameeric sentaram-se à direita. Ralph pôs a concha nas mãos de Porquinho. Este segurou cuidadosamente a coisa brilhante e piscou para Ralph.
— Vamos, diga o que quer.
— Eu estou com a concha para dizer isto. Não consigo mais ver e preciso dos meus óculos de volta. Foram feitas coisas terríveis nesta ilha. Votei em você para chefe. Você foi o único que fez alguma coisa. Então, fale agora, Ralph. Diga-nos o que... Ou então...
Porquinho interrompeu-se, choramingando. Ralph pegou a concha, enquanto ele se sentava.
— Apenas uma fogueira comum. Vocês acharam que poderiam fazer isso, não é? Apenas um sinal de fumaça para que fôssemos salvos. Somos selvagens ou o quê? Só que agora não há sinal nenhum. Podem estar passando navios. Lembram-se como ele foi caçar e o fogo apagou quando um navio passou aqui perto? E tudo que pensam é que ele é um chefe melhor. Então houve, houve... foi culpa dele, também. Se não fosse ele, nunca teria acontecido. Agora, Porquinho não enxerga e eles vieram roubar... — Ralph falou mais rápido e mais alto. — ...À noite, no escuro, e roubaram nosso fogo. Roubaram. Nós teríamos dado fogo a eles se pedissem. Mas eles roubaram nosso fogo. Roubaram. Nós teríamos dado fogo a eles se pedissem. Mas eles roubaram e o sinal se apagou, poderemos nunca ser salvos. Não veem o que isso quer dizer? Nós teríamos dado fogo, mas eles roubaram. Eu...
Parou, vacilante, com a cortina caindo na sua mente. Porquinho estendeu as mãos para a concha.
— O que vai fazer, Ralph? Isso é só falatório, sem decidir. Quero meus óculos.
— Estou tentando pensar. Poderíamos ir como éramos, lavados e penteados... afinal, não somos selvagens na verdade e sermos salvos não é um brinquedo...
Tocou a face inchada e olhou para os gêmeos.
— Poderíamos nos arrumar um pouco e ir...
— Devemos levar lanças — disse Sam. — Até Porquinho.
— ...porque podemos precisar delas.
— Você está sem a concha!
Porquinho levantou a concha.
— Podem levar lanças se quiserem, mas eu não. Para quê? De qualquer modo, terei de ser levado, como um cachorro. É, riam. Vamos, riam. Aí estão os que riem de tudo nesta ilha. E o que aconteceu? O que os adultos irão pensar? O menino Simon foi assassinado. E havia aquele outro menino com a marca na cara. Quem o viu desde que chegamos aqui?
— Porquinho! Pare um instante!
— Estou com a concha. Eu vou até aquele Jack Merridew dizer isso. Vou, sim.
— Você vai se machucar.
— O que mais ele pode fazer? Eu lhe direi sobre o que aconteceu aqui. Deixe-me levar a concha, Ralph. Eu lhe mostrarei a única coisa que ele não pegou.
Porquinho parou e olhou em torno para as figuras indistintas. A forma da antiga reunião, marcada na grama, escutava-o.
— Vou até ele com esta concha nas mãos. Irei com ela. Saibam, vou dizer: você é mais forte que eu e não tem asma. Pode ver, com os dois olhos, é o que vou dizer. Mas não estou pedindo meus óculos de volta como um favor. Não peço que você seja um bom amigo, direi, não porque você seja forte, mas porque o que é certo é certo. Dê-me meus óculos. Isso é que eu vou dizer, você precisa dá-los para mim.
Porquinho terminou, corado e trêmulo. Passou rapidamente a concha para as mãos de Ralph, como se quisesse ver-se livre dela e enxugou as lágrimas dos olhos. A luz verde caía suave sobre eles e a concha ficou aos pés de Ralph, frágil e branca. Uma gota que escapou dos dedos de Porquinho brilhava na delicada curva como uma estrela.
Enfim, Ralph sentou-se ereto e puxou o cabelo para trás.
— Muito bem. Quero dizer... pode tentar, se quiser. Iremos com você.
— Ele vai estar pintado — disse Sam, timidamente. — Você sabe como ele...
— Não pensará grande coisa de nós...
— ...se ficar bravo, a coisa pode piorar...
Ralph olhou para Sam, franzindo a testa. Vagamente, lembrou-se de algo que Simon lhe dissera certa vez, nas pedras.
— Não seja bobo — disse. E acrescentou logo. — Vamos!
Deu a concha a Porquinho, que corou, desta vez de orgulho.
— Você deve levá-la.
— Quando estivermos prontos, eu a levarei...
Porquinho procurou em seu íntimo as palavras para expressar essa apaixonada disposição de levar a concha desafiando tudo.
— Não faz mal. Ficarei contente, Ralph, só que você tem de me levar.
Ralph pôs a concha de volta no tronco brilhante.
— Vamos comer antes.
Andaram até as devastadas árvores frutíferas. Porquinho foi ajudado para pegar a comida e também usou o tato. Enquanto comiam, Ralph pensou na tarde.
— Iremos como éramos antes. Lavaremos...
Sam engasgou-se e protestou.
— Mas tomamos banho todo dia!
Ralph olhou para os sujos objetos diante dele e suspirou.
— Precisamos pentear o cabelo. Só que está muito comprido.
— As minhas meias estão na cabana — disse Eric. — Poderíamos usá-las na cabeça, como gorros, não é?
— Poderíamos achar alguma coisa — disse Porquinho — para prender o cabelo atrás.
— Que nem uma menina!
— Não. Claro que não.
— Então devemos ir como estamos — disse Ralph. — Eles não estarão melhor.
Eric deteve-os com um gesto.
— Mas eles estarão pintados! Você sabe como é...
Os outros concordaram. Compreendiam muito bem a libertação para a selvageria representada pela pintura.
— Bem, não iremos pintados — disse Ralph —, porque não somos selvagens.
Sameeric se entreolharam.
— Mesmo assim...
Ralph gritou.
— Sem pintura!
Tentou recordar.
— Fumaça — disse —, queremos fumaça.
Virou-se altivamente para os gêmeos.
— Eu disse “fumaça”! Precisamos ter fumaça.
Fez-se silêncio. Ouvia-se apenas o murmúrio incontável das abelhas. E Porquinho acabou falando, amavelmente.
— Claro que teremos. Porque a fumaça é um sinal e não poderemos ser salvos se não tivermos fumaça.
— Eu sei! — gritou Ralph. Tirou o braço de Porquinho. — Você está querendo dizer...
— Só estou dizendo o que você sempre diz — disse Porquinho rapidamente. — Pensei por um instante que...
— Não — disse Ralph, alto. — Eu sabia disso o tempo todo. Não esqueci. — Porquinho concordou, complacente.
— Você é o chefe, Ralph. Você se lembra de tudo.
— Eu não esqueci.
— Claro que não.
Os gêmeos examinaram Ralph curiosamente, como se o vissem pela primeira vez.
Partiram pela praia em fila indiana. Ralph era o primeiro, mancando um pouco, a lança sobre um dos ombros. Via as coisas parcialmente, através da trêmula neblina do calor que subia das areias brilhantes, através do seu cabelo comprido e dos inchaços. Atrás, vinham os gêmeos, um pouco preocupados, mas cheios de inextinguível vitalidade. Falavam pouco, mas arrastavam os cabos das suas lanças de madeira, porque Porquinho descobrira que, olhando para baixo, protegendo seu olhar fatigado do sol, podia vê-los movendo-se pela areia. Andava entre os cabos arrastados, portanto, com a concha bem segura entre suas mãos. Os meninos compunham um pequeno grupo compacto que se movia pela praia, quatro sombras chatas que dançavam e se confundiam abaixo deles. Não havia sinais da tempestade da noite e a praia estava limpa e aplainada como uma lâmina amolada. O céu e a montanha estavam a imensa distância, tremulando sob o calor. O recife levitava com a miragem, flutuando numa espécie de lago prateado a meio caminho do céu.
Passaram pelo lugar onde a tribo dançara. Os ramos carbonizados ainda estavam nas pedras, lá onde houvera fogo antes de cair a chuva, mas a areia junto à água estava lisa outra vez. Passaram por lá em silêncio. Ninguém duvidava de que a tribo estaria no Castelo de Pedra; quando o viram, pararam como que de acordo. A mata mais densa da ilha, uma massa de caules retorcidos, verdes, negros e impenetráveis estava à esquerda deles e a grama alta balançava-se à sua frente. Ralph seguiu em frente.
Ali estava a grama amassada onde haviam ficado quando ele fora explorar. Lá estava o istmo de terra, o caminho ao pé da pedra, lá em cima estavam os espiões avermelhados.
Sam tocou seu braço.
— Fumaça.
Havia um fiozinho de fumaça ondulando no ar do outro lado da pedra.
— Uma fogueira... não sei.
Ralph virou-se.
— Por que estamos nos escondendo?
Atravessou a cortina de plantas e entrou na pequena clareira que levava ao estreito istmo.
— Vocês dois vêm atrás. Eu na frente, depois Porquinho logo atrás de mim. Fiquem com as lanças prontas.
Porquinho fitava ansiosamente sob o véu luminoso que havia entre ele e o mundo.
— É seguro? Não há um barranco aí? Posso ouvir o mar...
— Fique junto a mim.
Ralph adiantou-se, rumo ao istmo. Chutou uma pedra e ela caiu na água. Então o mar retirou-se, revelando uma pedra vermelha e cheia de algas a uns 12 metros abaixo, à esquerda de Ralph.
— Não há perigo? — queixou-se Porquinho. — Estou com medo...
Bem lá em cima, dos cimos, veio um grito repentino e uma imitação de grito de guerra respondido por umas 12 vozes por trás da pedra.
— Dê-me a concha e fique parado.
— Alto! Quem vem lá?
Ralph inclinou a cabeça para trás e viu a face escura de Roger em cima.
— Você pode ver quem eu sou! — gritou. — Deixe de ser bobo!
Pôs a concha nos lábios e começou a soprar. Apareceram uns selvagens, pintados e irreconhecíveis, descendo pelo caminho do contorno até o istmo. Estavam com lanças e se colocaram para defender a entrada. Ralph continuou soprando, ignorando os terrores de Porquinho.
Roger gritou.
— Não se aproximem!
Afinal, Ralph tirou os lábios da concha e fez uma pausa para recobrar o fôlego. Suas primeiras palavras foram um arquejo, embora audível.
— ...fazer uma reunião.
Os selvagens que guardavam a entrada resmungaram entre si, mas não se mexeram. Ralph deu uns dois passos para a frente. Uma voz cochichou ansiosamente atrás dele.
— Não me largue, Ralph.
— Ajoelhe-se — disse Ralph, de lado — e espere até eu voltar.
Parou na metade do istmo e olhou atentamente para os selvagens. Libertados pela pintura, haviam prendido os cabelos e estavam mais confortáveis que ele. Ralph resolveu prender os seus, depois. Na verdade, sentia desejo de lhes dizer que esperassem um pouco e prender os cabelos ali mesmo, mas isso era impossível. Os selvagens zombaram um pouco e um deles ameaçou Ralph de longe, com a lança. Lá em cima, Roger tirou as mãos da alavanca e se inclinou para ver o que estava acontecendo. Os meninos no istmo ficaram no lago da sua própria sombra, reduzidos aparentemente a cabeças hirsutas. Porquinho, agachado, mostrava as costas informes como um saco.
— Estou chamando para uma reunião.
Silêncio.
Roger pegou uma pedrinha e a jogou entre os gêmeos, errando de propósito. Eles se sobressaltaram e Sam quase perdeu o equilíbrio. Uma obscura fonte de poder começou a pulsar no corpo de Roger.
Ralph falou de novo, alto.
— Estou chamando para uma reunião.
Passou os olhos por eles.
— Onde está Jack?
O grupo agitou-se e se consultou. Uma cara pintada falou, com a voz de Robert.
— Está caçando. E disse para não deixarmos vocês entrarem.
— Eu vim por causa da fogueira — disse Ralph — e dos óculos de Porquinho.
O grupo diante dele mudou de posição e uma gargalhada irrompeu dele, um riso leve, excitado, que foi ecoando por entre as pedras altas.
Uma voz falou por trás de Ralph.
— O que você quer?
Os gêmeos passaram correndo por Ralph e ficaram entre ele e a entrada. Ele se virou vivamente. Jack, identificável pela personalidade e pelo cabelo ruivo, aproximava-se, vindo da floresta. Um caçador de cada lado, agachado. Os três estavam mascarados de verde e preto. Atrás deles, na grama, o corpo decapitado e inchado de uma porca jazia onde o haviam deixado.
Porquinho choramingou.
— Ralph! Não me deixe!
Com cuidado ridículo, ele abraçou a rocha, colando-se a ela, tendo aos pés, lá embaixo, o mar semovente. Os risinhos dos selvagens se transformaram em altas gargalhadas de deboche.
Jack gritou por sobre o barulho.
— Vá embora, Ralph. Fique na sua parte da ilha. Esta é a minha ponta e a minha tribo. Deixe-me em paz.
As gargalhadas morreram.
— Você pegou os óculos de Porquinho — disse Ralph, sem fôlego. — Você precisa devolvê-los.
— Preciso? Quem disse?
O temperamento de Ralph explodiu.
— Eu digo! Vocês votaram em mim para chefe. Não ouviu a concha? Foi uma sujeira o que você fez... daríamos fogo a você, se pedisse...
O sangue fluiu para suas faces e o olho semicerrado latejou.
— Você poderia vir quando quisesse. Mas não. Você veio escondido como um ladrão e roubou os óculos de Porquinho!
— Repita isso!
— Ladrão! Ladrão!
Porquinho gritou.
— Ralph! Pense em mim!
Jack dobrou-se para a frente e deu uma lançada no peito de Ralph. Este vislumbrou o movimento do braço de Jack e pressentiu a posição da arma; desviou o golpe com o cabo da sua lança. Deu uma volta e acertou um golpe na orelha de Jack. Estavam corpo a corpo, a respiração entrecortada, empurrando e se entreolhando com olhos faiscantes.
— Quem é ladrão?
— Você!
Jack torceu o corpo, libertando-se, e atacou Ralph com a lança. De comum acordo, estavam usando as armas como sabres, sem se expor às pontas mortais. O golpe sacudiu a lança de Ralph e, escorregando, atingiu-lhe os dedos, dolorosamente. Então se afastaram mais uma vez, com as posições invertidas: Jack do lado do Castelo de Pedra e Ralph de costas para a ilha.
Os dois arfavam pesadamente.
— Venha, seu...
— Venha...
Defrontaram-se ferozmente, mas guardando distância segura.
— Venha cá para ver o que é bom!
— Venha você...
Porquinho, colado ao solo, tentava atrair a atenção de Ralph. Ralph movia-se, inclinado, com o olhar cansado em Jack.
— Ralph... lembre-se por que viemos. A fogueira, meus óculos.
Ralph assentiu. Relaxou seus músculos, ficou ereto e fincou o cabo da lança no chão. Jack olhava-o inescrutavelmente através da pintura. Ralph deu uma olhada para o alto, depois para o grupo de selvagens.
— Ouçam. Viemos dizer isto. Primeiro, vocês têm de devolver os óculos de Porquinho. Sem óculos ele não enxerga. Não é uma brincadeira...
A tribo de selvagens pintados deu uma risadinha e a mente de Ralph vacilou. Puxou o cabelo louro para trás e olhou para a máscara verde e preta à sua frente, tentando lembrar-se de como era Jack.
Porquinho cochichou.
— E a fogueira.
— Oh, sim. E agora, a fogueira. Já disse isso. Desde que chegamos, estou dizendo isso.
Levantou a lança e apontou para os selvagens.
— A única esperança é termos uma fogueira de sinalização sempre que houver luz para se ver. Então, talvez, um navio poderá perceber a fumaça e virá nos salvar e nos levar para casa. Mas sem essa fumaça, teremos de esperar que um navio apareça aqui por sorte. Talvez sejam anos de espera, até ficarmos velhos...
A gargalhada trêmula, cristalina e irreal dos selvagens espalhou-se e ecoou ao morrer. Um golpe de fúria atingiu Ralph. Sua voz estalou.
— Não entendem, seus idiotas pintados? Sam, Eric, Porquinho e eu não somos suficientes. Tentamos deixar a fogueira acesa, mas não conseguimos. E daí, vocês, brincando de caçar...
Apontou por cima deles para onde se dispersava o fiozinho de fumaça no céu esbranquiçado.
— Vejam aquilo! Chamam isso de sinal? É uma fogueira para cozinhar. Vocês comem e pronto, não há mais fumaça. Não compreendem? Pode haver um navio lá...
Parou, derrotado pelo silêncio no anonimato do grupo pintado que guardava a entrada. O chefe abriu uma boca rosada e disse a Sameeric que estavam entre ele e sua tribo.
— Vocês dois. Voltem.
Ninguém respondeu. Os gêmeos, confusos, entreolharam-se; Porquinho, tranquilizado agora que cessara a violência, tinha-se levantado com cuidado. Jack olhou para Ralph e depois para os gêmeos.
— Agarrem-nos!
Ninguém se mexeu. Jack gritou furiosamente.
— Eu disse agarrem-nos!
O grupo pintado cercou Sameeric nervosa e desajeitadamente. Outra vez irrompeu aquela risada cristalina.
Sameeric protestaram, em nome da civilização.
— Ora, que é isso?
— ...realmente!
Tiraram-lhes as lanças.
— Amarrem-nos!
Ralph gritou desesperado contra a máscara verde e negra.
— Jack!
— Vamos. Amarrem os dois!
O grupo pintado sentiu então que Sameeric eram estranhos: sentiu o poder nas suas mãos. Derrubaram os gêmeos com jeito rude e excitado. Jack estava inspirado. Sabia que Ralph tentaria uma reação. Descrevendo um círculo zunidor, lançou um golpe para trás e Ralph mal pôde se esquivar. Além deles, a tribo e os gêmeos eram um amontoado barulhento e agitado. Porquinho agachou-se de novo. Os gêmeos ficaram estendidos, espantados, e a tribo cercou-os. Jack virou-se para Ralph e falou por entre os dentes.
— Viu? Eles fazem o que eu quero.
Silêncio novamente. Os gêmeos ficaram deitados, mal-amarrados e a tribo observava Ralph para ver o que ele iria fazer. Ele os contou através da sua franja e deu uma olhada para a fumaça ineficaz.
Explodiu de novo. Gritou para Jack.
— Você é uma besta, um porco, um desgraçado e sujo ladrão!
E atacou.
Jack, sentindo que chegara a hora, atacou também. Chocaram-se e recuaram. Jack deu um soco em Ralph e o acertou na orelha. Ralph pegou Jack na barriga e o fez grunhir. Então se encararam de novo, ofegantes e furiosos, mas temendo a ferocidade um do outro. Perceberam o barulho que era o fundo da luta, os gritos constantes da tribo, agudos e animados, atrás deles.
A voz de Porquinho chegou até Ralph.
— Deixe-me falar.
Ficou de pé entre a poeira da luta e, quando a tribo percebeu sua intenção, a torcida transformou-se numa grande vaia.
Porquinho levantou a concha e a vaia diminuiu um pouco, mas depois voltou a soar alto.
— Estou com a concha!
Gritou.
— Eu estou falando: estou com a concha!
Surpreendentemente, fez-se silêncio; a tribo estava curiosa por ouvir a coisa engraçada que ele tinha para dizer.
Silêncio e pausa. Mas no silêncio, um estranho barulho no ar soou perto da cabeça de Ralph. Ele não prestou muita atenção e o barulho se repetiu. Um fraco “Zup!”. Alguém jogava pedras; Roger atirava-as, com uma mão ainda na alavanca. Embaixo dele, Ralph era um monte de cabelo e Porquinho um saco de banha.
— Vou falar agora. Vocês estão agindo como um bando de crianças.
A vaia voltou, mas morreu quando Porquinho levantou a concha branca e mágica.
— O que é melhor? Ser um bando de índios pintados como vocês ou ser razoável como Ralph?
Levantou-se um grande clamor entre os selvagens. Porquinho gritou de novo.
— Que é melhor? Ter regras e segui-las ou caçar e matar?
Outra vez o clamor, de novo um “Zup!”.
Ralph gritou contra o barulho.
— O que é melhor? A lei e o salvamento, ou caçar e destruir?
Agora, Jack estava gritando também e Ralph não pôde mais se fazer ouvir. Jack recuara até onde estava a tribo e formavam uma sólida massa ameaçadora que eriçava as lanças. A intenção de uma carga crescia neles; estavam decididos a varrer o istmo. Ralph enfrentava-os de pé, um pouco para o lado, com a lança pronta. A seu lado, Porquinho segurava o talismã, a frágil e brilhante beleza da concha. A tempestade de sons fustigava-os, como uma maldição do ódio. Bem lá em cima, Roger, com uma sensação de delirante abandono, pousou todo seu peso na alavanca.
Ralph ouviu a grande rocha bem antes de vê-la. Percebeu um estremecimento do solo na planta dos pés e o som de pedras que se quebravam no alto do espigão. Então, a monstruosa coisa vermelha ricocheteou no istmo e ele se atirou ao chão enquanto a tribo guinchava.
A rocha abateu-se sobre Porquinho num golpe fulgurante, em cheio, do queixo aos joelhos; a concha explodiu em mil fragmentos brancos e deixou de existir. Porquinho, sem dizer nada, sem tempo nem para um protesto, foi projetado no ar para um lado, virando sobre si mesmo. A rocha ricocheteou duas vezes e se perdeu na floresta. Porquinho caiu 12 metros e bateu com as costas na pedra quadrada e vermelha do mar. Sua cabeça partiu-se e dela saiu algo que se avermelhou. Os braços e pernas de Porquinho mexeram-se um pouco, como os de um porco após ser morto. Daí, o mar subiu de novo, num longo e lento suspiro; a água ferveu branca e rosada sobre a rocha. Quando voltou, num ruído de sucção, o corpo de Porquinho sumira.
Desta vez, o silêncio era completo. Os lábios de Ralph formaram uma palavra, mas não produziram som algum.
De repente, Jack pulou para a frente da tribo e começou a gritar selvagemente.
— Viu? Viu? Isso é o que você conseguiu! Isso é o que quis dizer! Não há mais tribo para você! A concha acabou...
Correu para a frente, curvado.
— Eu sou o chefe!
Malignamente, sem titubear, lançou a lança contra Ralph. A ponta arranhou pele e carne nas costelas de Ralph, depois perdeu a força e caiu no mar. Ralph tropeçou, sem sentir dor, apenas pânico; a tribo, agora gritando como o chefe, começou a avançar. Outra lança, esta curva, que não vinha em linha reta, passou junto ao seu rosto e outra caiu do alto, onde Roger estava. Os gêmeos estavam deitados, ocultos pela tribo e as anônimas faces demoníacas enxameavam pelo istmo. Ralph virou-se e correu. Um grande barulho, como de gaivotas, cresceu atrás dele. Obedeceu a um instinto que não sabia possuir e se precipitou no espaço aberto, de modo que as lanças caíram longe. Viu o corpo decapitado da porca e pulou na hora exata. Depois, amassando folhas e raminhos, sumiu na floresta.
O chefe, detido pelo porco, virou-se e levantou as mãos.
— Voltem! Voltem para o forte!
A tribo voltou ruidosamente para o istmo onde Roger juntou-se a eles.
O chefe falou-lhe com fúria.
— Por que não está vigiando?
Roger olhou-o gravemente.
— Eu só desci...
O horror do carrasco em torno dele. O chefe não disse mais nada a ele, apenas olhou para Sameeric.
— Vocês têm de entrar na tribo.
— Deixe-me ir embora...
— ...eu também.
O chefe pegou uma das poucas lanças que restavam e espetou as costelas de Sam.
— O que você quer dizer? — disse ferozmente o chefe. — O que vocês queriam, vindo com lanças? O que quer dizer não querendo entrar para a tribo?
A lança agora se movia ritmadamente. Sam gritou.
— Não é desse jeito.
Roger chegou junto do chefe, quase roçando seu ombro. Os gritos pararam, Sameeric ficaram olhando para cima, em silencioso terror. Roger avançou para eles, como alguém que detém uma obscura autoridade.