O retrato

No momento em que termino de escrever estas páginas, existem vários ditadores no poder. Um país do Oriente Médio foi invadido pela única superpotência mundial. Os terroristas estão ganhando cada vez mais adeptos. Os fundamentalistas cristãos são capazes de eleger presidentes. A busca espiritual é manipulada por várias seitas que alegam deter o “conhecimento absoluto”. Cidades inteiras são riscadas do mapa pela fúria da natureza. O poder do mundo inteiro está concentrado nas mãos de seis mil pessoas, segundo pesquisa de um reputado intelectual americano.

Existem milhares de prisioneiros de consciência em todos os continentes. A tortura volta a ser tolerada como um método de interrogatório. Os países ricos fecham suas fronteiras. Os países pobres assistem a um êxodo sem precedentes de seus habitantes em busca do Eldorado. Os genocídios continuam em pelo menos dois países africanos. O sistema econômico dá mostras de exaustão, e grandes fortunas começam a ruir. O trabalho escravo infantil tornou-se uma constante. Centenas de milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza absoluta. A prolifera-

ção nuclear é aceita como irreversível. Surgem novas doenças.

Antigas doenças ainda não foram controladas.

Mas é este o retrato do mundo em que vivo?

Claro que não. Quando resolvi fotografar minha época, es-crevi este livro.

PAULO COELHO

3:17 AM

A pistola Beretta Px4 compacta é um pouco maior que um telefone celular, pesando em torno de 700 gramas, e capaz de disparar 10

tiros. Pequena, leve, incapaz de deixar uma marca visível no bolso que a carrega, o pequeno calibre tem uma enorme vantagem; em vez de atravessar o corpo da vítima, a bala vai batendo nos ossos e arrebentando tudo que encontra em sua trajetória.

Evidente que as chances de sobreviver a um tiro desse calibre também são altas; existem milhares de casos em que nenhuma ar-téria vital é cortada, e a vítima tem tempo de reagir e desarmar seu agressor. Mas se a pessoa que atira tem alguma experiência no assunto, pode escolher entre uma morte rápida — visando a zona entre os olhos, o coração — ou algo mais lento, colocando o cano da arma em determinado ângulo junto das costelas, e apertando o gatilho. Ao ser atingida, a pessoa demora algum tempo para se dar conta de que está ferida de morte — tenta contra-atacar, fugir, pedir socorro. A grande vantagem é essa: tem tempo sufi ciente para ver quem a está matando, enquanto vai perdendo a força aos poucos, até cair por terra, sem muito sangramento externo, sem entender direito por que aquilo está acontecendo.

Está longe de ser uma arma ideal para os entendidos no assunto:

“É muito mais adequada para mulheres que para espiões”, diz alguém do serviço secreto inglês para James Bond no primeiro fi lme da série, enquanto lhe confi sca a antiga pistola, entregando um novo modelo.

Mas isso servia apenas para os profi ssionais, claro, porque para o que ele pretendia não havia nada melhor.

Comprou sua Beretta no mercado negro, de modo que será impossível identifi car a arma. Tem cinco balas no carregador, embora pretenda utilizar apenas uma, em cuja ponta fez um “X” usando uma lima de unha. Desta maneira, quando for disparada e atingir algo sólido, irá se partir em quatro fragmentos.

1 5

Mas usará a Beretta apenas em último caso. Tem outros métodos para apagar um mundo, destruir um universo, e com toda certeza ela vai entender o recado assim que a primeira vítima for encontrada. Saberá que fez aquilo em nome do amor, que não tem nenhum ressentimento, e que a aceitará de volta sem perguntas sobre o que aconteceu nos últimos dois anos.

Espera que seis meses de cuidadoso planejamento dêem resultado, mas só vai ter certeza disso a partir da manhã seguinte. Esse é seu plano: deixar que as Fúrias, antigas fi guras da mitologia grega, desçam com suas asas negras até aquela paisagem branca e azul, cercada de diamantes, botox, carros de alta velocidade que são absolutamente inúteis porque não comportam mais de dois passageiros.

Sonhos de poder, de sucesso, de fama e dinheiro — tudo isso pode ser interrompido de uma hora para outra com os pequenos artefatos que trouxe consigo.

Poderia já ter subido para o seu quarto, porque a cena que aguardava aconteceu às 11:11 PM, embora ele estivesse preparado para esperar mais tempo. O homem entrou acompanhado da bela mulher, ambos vestidos com traje a rigor, para mais uma dessas festas de gala realizadas todas as noites depois dos jantares importantes, mais concorridas do que a estréia de qualquer fi lme apresentado no Festival.

Igor ignorou a mulher. Usou uma das mãos para trazer até o rosto um jornal francês (a revista russa iria despertar suspeitas), de modo que ela não pudesse vê-lo. Era uma precaução desnecessária: ela jamais olhava à sua volta, como sempre fazem as que se sentem rainhas do mundo. Estão ali para brilhar, evitam prestar atenção ao que os outros estão usando — porque dependendo do número de diamantes e da exclusividade da roupa alheia isso resultará em depressão, mau-humor, sentimento de inferioridade, mesmo que a roupa e os acessórios tenham custado uma fortuna.

1 6

Seu acompanhante, bem vestido e de cabelos prateados, foi até o bar e pediu champagne, aperitivo necessário antes de uma noite que promete muitos contatos, boa música, e excelente visão da praia e dos iates ancorados no porto.

Viu que tratou a garçonete com respeito. Disse “obrigado” quando recebeu as taças. Deixou uma boa gorjeta.

Os três se conheciam. Igor sentiu uma imensa alegria, quando a adrenalina começou a misturar-se com seu sangue; no dia seguinte iria fazer com que ela soubesse de sua presença ali. Em um dado momento, iriam se encontrar.

E só Deus sabia o resultado deste encontro. Igor, um católico ortodoxo, havia feito uma promessa e um juramento em uma igreja em Moscou, diante das relíquias de Santa Madalena (que estavam na capital russa por uma semana, para que os fi éis pudessem adorá-

las). Passou quase cinco horas na fi la e ao chegar perto estava convencido de que tudo não passava de uma invenção dos sacerdotes.

Mas não queria correr o risco de faltar com a sua palavra.

Pediu que o protegesse, que conseguisse atingir seu objetivo sem que fosse necessário muito sacrifício. E prometeu um ícone de ouro, que seria encomendado a um renomado pintor que vivia em um mosteiro de Novosibirsk, quando tudo terminasse e pudesse colocar de novo os pés em sua terra natal.

Às três horas da manhã, o bar do Hotel Martinez cheira a cigarro e suor. Embora Jimmy já tenha acabado de tocar piano (Jimmy usa um sapato de cada cor em seus pés), e a garçonete esteja extremamente cansada, as pessoas que ainda ali se encontram se recusam a ir embora. Para elas, é preciso fi car neste lobby, pelo menos por mais uma hora, pela noite inteira, até que algo aconteça!

Afi nal de contas, já se passaram quatro dias desde o início do Festival de Cinema de Cannes, e ainda não aconteceu nada. Em mesas diferentes, o pensamento é o mesmo: encontrar-se com o Poder. As 1 7

mulheres bonitas aguardam um produtor que se apaixone por elas e lhes dê um papel importante no próximo fi lme. Ali estão alguns atores conversando entre si, rindo e fi ngindo que nada daquilo lhes diz respeito, mas sempre com um olho na porta.

Alguém vai chegar.

Alguém precisa chegar. Os novos diretores, cheios de idéias na cabeça, currículos com vídeos universitários, leituras exaustivas de teses sobre fotografi a e roteiro, esperam um golpe de sorte; alguém que ao voltar de uma festa procure uma mesa vazia, peça um café, acenda um cigarro, sinta-se exausto de ir sempre aos mesmos lugares, e esteja aberto para uma aventura nova.

Quanta ingenuidade.

Se isso acontecesse, a última coisa que tal pessoa gostaria de escutar é um novo “projeto que ainda ninguém fez”; mas o desespero é capaz de enganar o desesperado. Os poderosos que entram de vez em quando dão apenas uma olhada em torno, e sobem para seus quartos. Não estão preocupados. Sabem que não precisam temer nada. A Superclasse não perdoa traições, e todos conhecem os seus limites — não chegaram aonde estão pisando a cabeça dos outros, embora isso seja o que diz a lenda. Por outro lado, se alguma coisa imprevista e importante estiver esperando para ser descoberta — seja no mundo do cinema, da música, da moda — isso virá através das pesquisas, e não dos bares de hotel.

A Superclasse está agora fazendo amor com a moça que conseguiu penetrar na festa e aceita tudo. Tirando a maquiagem, olhando as rugas, pensando que já é hora de uma nova cirurgia plástica. Procurando nas notícias online o que saiu sobre o recente anúncio que fez durante o dia. Tomando a inevitável pílula para dormir, e o chá que promete emagrecimento sem muito esforço. Preenchendo o menu com os itens desejados para o café-da-manhã no quarto, e o colocando na maçaneta da porta, junto com o papel de “Não perturbar”. A Superclasse 1 8

está fechando os olhos e pensando: “Espero que o sono venha logo, amanhã tenho um encontro marcado antes das dez horas.”

Mas no bar do Martinez, todos sabem que os poderosos estão ali.

E se estão ali, têm uma chance.

Não lhes passa pela cabeça que o Poder só conversa com o Poder.

Que precisam se encontrar de vez em quando, beber e comer juntos, prestigiar grandes festas, alimentar a fantasia de que o mundo do luxo e glamour é acessível a todos com coragem bastante para perseverar numa idéia. Evitar guerras quando elas não são lucrativas, e estimular a agressividade entre países ou companhias, quando sentem que isso pode trazer mais poder e mais dinheiro. Fingir que são felizes, embora agora sejam reféns de seu próprio sucesso. Continuar lutando para aumentar sua riqueza e infl uência, mesmo que ela já seja enorme; porque a vaidade da Superclasse é concorrer com ela mesma, e ver quem está no topo do topo.

No mundo ideal, o Poder conversaria com atores, diretores, estilistas e escritores, que neste momento estão com os olhos vermelhos de cansaço, pensando em como vão voltar para seus quartos alugados em cidades afastadas, para amanhã começarem de novo a maratona de pedidos, de possibilidades de encontros, de disponibilidade.

No mundo real, o Poder está a esta hora trancado em seus quartos checando seu correio eletrônico, reclamando que as festas sempre se parecem, que a jóia da amiga era maior que a sua, que o iate que o concorrente comprou tem uma decoração única, e como é possível?

Igor não tem com quem conversar, e tampouco isso lhe interessa.

O vencedor está só.

Igor, o bem-sucedido dono e presidente de uma companhia telefônica na Rússia. Reservou com antecedência de um ano a melhor suíte no Martinez (que obriga todos a pagar por pelo menos doze dias de hospedagem, independente de quanto tempo vão permane-1 9

cer), chegou nesta tarde em jato privado, tomou um banho, e desceu na esperança de ver uma única e simples cena.

Durante algum tempo foi incomodado por atrizes, atores, diretores, mas tinha uma ótima resposta para todos:

— Don’t speak English, sorry. Polish.

Ou:

— Don’t speak French, sorry. Mexican.

Alguém tentou ensaiar algumas palavras em espanhol, mas Igor apelou para um segundo recurso. Anotar números em um caderno, para não parecer nem jornalista (que interessa a todos), nem um homem ligado à indústria de fi lmes. Ao seu lado, uma revista de economia em russo (afi nal de contas, a maioria não sabia distinguir russo de polonês ou espanhol) com a foto de um desinteressante executivo na capa.

Os freqüentadores do bar acham que entendem bem o gênero humano, deixam Igor em paz, pensando que deve ser um desses milionários que vão a Cannes apenas para ver se encontram uma namo-rada. Depois da quinta pessoa a sentar em sua mesa e pedir uma água mineral alegando que “não existe outra cadeira vazia”, o boato corre, todos ali já sabem que o homem solitário não pertence à indústria do cinema ou da moda, e ele é deixado de lado como “perfume”.

“Perfume” é a gíria que as atrizes (ou “starletes”, como são chamadas durante o Festival) usam: é fácil trocar de marca, e muitas vezes podem ser verdadeiros tesouros. Os “perfumes” serão abordados nos dois últimos dias do festival, se não conseguirem encontrar absolutamente nada de interessante na indústria do fi lme. Portanto, aquele homem estranho, com aparência de rico, pode esperar. Todas elas sabem que é melhor sair dali com um namorado (que pode ser convertido em produtor de cinema) do que ir para o próximo evento, repetindo sempre o mesmo ritual — beber, sorrir (sobretudo sorrir), fi ngir que não está olhando ninguém, enquanto o coração bate acelerado, os minutos no relógio vão passando rápido, as noites 2 0

de gala ainda não acabaram, elas não foram convidadas, mas eles foram.

Já sabem o que os “perfumes” vão dizer, porque é sempre a mesma coisa, mas fi ngem acreditar:

a) “Eu posso mudar sua vida.”

b) “Várias mulheres gostariam de estar no seu lugar.”

c) “No momento você ainda é jovem, mas pense daqui a alguns anos. É hora de fazer um investimento mais a longo prazo.”

d) “Sou casado, mas minha esposa...” (aqui a frase pode ter diferentes fi nais: “está doente”, “prometeu suicidar-se se eu a deixar”, etc.)

e) “Você é uma princesa e merece ser tratada como tal. Sem que eu mesmo soubesse, eu a esperava. Não acredito em coincidências, e acho que devemos dar uma oportunidade a esta relação.”

A conversa não varia. O que varia é conseguir o máximo de presentes possíveis (de preferência jóias, que podem ser vendidas), ser convidada para algumas festas em alguns iates, pegar o maior nú-

mero de cartões de visita, escutar de novo a mesma conversa, achar um jeito de ser convidada para as corridas de Fórmula 1, nas quais o mesmo tipo de gente aparece, e nas quais talvez a grande chance estará esperando.

“Perfume” também é como os jovens atores se referem às velhas milionárias, com plástica e botox, mais inteligentes que os homens.

Elas jamais perdem tempo: chegam também nos últimos dias, sabendo que todo o poder de sedução está no dinheiro.

Os “perfumes” masculinos se enganam: acham que as longas pernas e os rostos juvenis se deixaram seduzir, e agora podem ser manipuladas à vontade. Os “perfumes” femininos confi am no poder de seus brilhantes, e apenas nisso.

Igor não conhece nenhum desses detalhes: é sua primeira vez ali.

E acaba de confi rmar, para sua surpresa, que ninguém parece muito 2 1

interessado em fi lmes — exceto as pessoas daquele bar. Folheou algumas revistas, abriu o envelope onde sua companhia havia colocado os convites para as festas mais importantes, e absolutamente nenhum deles mencionava uma estréia. Antes de desembarcar na França, procurou saber quais os fi lmes que concorriam — teve imensa difi culdade em conseguir esta informação. Até que um amigo comentou:

— Esqueça os fi lmes. Cannes é um festival de moda.

Moda. O que as pessoas estão pensando? Acham que moda é aquilo que muda com a estação do ano? Vieram de todos os cantos do mundo para mostrar seus vestidos, suas jóias, sua coleção de sapatos? Não sabem o que isso signifi ca. “Moda” é apenas uma maneira de dizer: eu pertenço ao seu mundo. Uso o mesmo uniforme do seu exército, não atire nesta direção.

Desde que grupos de homens e mulheres começaram a conviver nas cavernas, a moda é a única maneira de dizer algo que todos entendam, mesmo sem se conhecerem: nos vestimos da mesma maneira, sou da sua tribo, nos unimos contra os mais fracos e assim sobrevivemos.

Mas ali está gente que acredita que “moda” é tudo. A cada seis meses gastam uma fortuna para mudar um pequeno detalhe e continuar na exclusiva tribo dos ricos. Se fi zessem agora uma visita ao Silicon Valley, onde bilionários das indústrias de informática usam relógios de plástico e calças surradas, entenderiam que o mundo já não é o mesmo, todos parecem ter o mesmo nível social, ninguém está dando a menor atenção para o tamanho do diamante, a marca da gravata, o modelo da pasta de couro. Por sinal, gravatas e pastas de couro são inexistentes naquela região do mundo, mas ali perto está Hollywood, uma máquina relativamente mais poderosa — embora decadente — que ainda consegue fazer com que os ingênuos acreditem nos vestidos de alta-costura, nos colares de esmeralda, nas limusines gigantescas. E como é isso que ainda aparece nas revistas, quem tem interesse em destruir uma indústria de bilhões de dólares 2 2

de anúncios, vendas de objetos inúteis, troca de tendências desnecessárias, criação de cremes repetitivos mas com rótulos diferentes?

Ridículos. Igor não consegue esconder seu ódio por aqueles cujas decisões afetam a vida de milhões de homens e mulheres trabalhadores, honestos, que levam seu cotidiano com dignidade porque têm saúde, um lugar para morar, e o amor de sua família.

Perversos. Quando tudo parece estar em ordem, quando as famí-

lias se reúnem em torno da mesa para jantar, o fantasma da Superclasse aparece, vendendo sonhos impossíveis: luxo, beleza, poder. E

a família se desagrega.

O pai passa horas em claro em trabalho extra para poder comprar o novo modelo de tênis para o fi lho, ou ele será olhado na escola como um marginal. A esposa chora em silêncio porque suas amigas vestem roupas de marca, e ela não tem dinheiro. Os adolescentes, em vez de conhecerem os verdadeiros valores da fé e da esperança, sonham em virar artistas. As moças do interior perdem a identidade própria, começam a considerar a possibilidade de ir para a cidade grande e aceitar qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, desde que possam ter determinada jóia. Um mundo que devia caminhar em direção à justiça passa a girar em torno da matéria, que em seis meses já não serve para nada, precisa ser renovada, e só assim o circo pode continuar mantendo no topo do mundo aquelas criaturas desprezí-

veis que agora se encontram em Cannes.

Claro, Igor não se deixa infl uenciar por este poder destruidor.

Continua com um dos mais invejáveis trabalhos do mundo. Continua ganhando muito mais dinheiro por dia do que poderia gastar em um ano, mesmo que resolvesse se permitir todos os prazeres possíveis — legais ou ilegais. Não tem difi culdades em seduzir uma mulher, mesmo antes que ela saiba se é ou não um homem rico — já testou muitas vezes, e sempre deu resultado. Acaba de fazer 40 anos, está em plena forma, fez o check-up anual e não descobriu nenhum problema de saúde. Não tem dívidas. Não precisa vestir determinada 2 3

marca de roupa, freqüentar tal restaurante, passar as férias na praia aonde “todo mundo irá”, comprar um modelo de relógio só porque tal esportista bem-sucedido recomendou. Pode assinar importantes contratos com uma caneta de alguns centavos, usar casacos confortáveis e elegantes, feitos à mão em uma pequena loja ao lado do seu escritório, sem nenhuma etiqueta visível. Pode fazer o que deseja, sem precisar provar a ninguém que é rico, tem um trabalho interessante, e é entusiasmado pelo que faz.

Talvez aí esteja o problema: sempre entusiasmado pelo que faz.

Está convencido de que esta é a razão pela qual a mulher que horas atrás entrou no bar não esteja sentada à sua mesa.

Tenta continuar pensando, passando o tempo. Pede a Kristelle mais uma dose de bebida — sabe o nome da garçonete porque há uma hora, quando o movimento era menor (as pessoas estavam nos jantares), pediu um copo de uísque, e ela comentou que ele parecia triste, que devia comer alguma coisa e levantar seu ânimo. Ele agradeceu a preocupação, e fi cou contente que alguém realmente se incomodasse com seu estado de espírito.

Talvez ele seja o único que sabe como se chama a pessoa que o está servindo; o resto quer saber o nome — e se possível, o cargo

— das pessoas que estão sentadas às mesas e nas poltronas.

Tenta continuar pensando, mas já passa das três horas da manhã, a bela mulher e o homem educado — por sinal, muito parecido fi -

sicamente com ele — não apareceram de novo. Talvez tenham ido diretamente para o quarto e agora estão fazendo amor, talvez ainda estejam bebendo champagne em um dos iates que começam suas festas quando todas as outras já estavam chegando ao fi nal. Talvez estejam deitados, lendo revistas, sem olhar um para o outro.

Isso não tem importância. Igor está sozinho, cansado, precisa dormir.

2 4

7:22 AM

Acorda às 7:22 da manhã. Era muito mais cedo do que o seu corpo pedia, mas ainda não teve tempo de se adaptar à diferença ho-rária entre Moscou e Paris; se estivesse em seu escritório, já teria tido pelo menos duas ou três reuniões com seus subordinados, e estaria se preparando para almoçar com algum novo cliente.

Mas ali tem outra tarefa: encontrar alguém e sacrifi car esta pessoa em nome do amor. Precisa de uma vítima, de modo que Ewa possa entender o recado ainda de manhã.

Toma banho, desce para tomar seu café em um restaurante com quase todas as mesas livres, e vai caminhar pela Croisette, a calçada diante dos principais hotéis de luxo. Não há trânsito — parte da pista está impedida, e só carros com autorização ofi cial podem passar.

A outra está vazia, porque mesmo as pessoas que vivem na cidade ainda estão se preparando para ir ao trabalho.

Não tem ressentimentos — já superou a fase mais difícil, quando não podia dormir por causa do sofrimento e do ódio que sentia.

Hoje em dia, é capaz de entender a atitude de Ewa: afi nal de contas, a monogamia é um mito que foi empurrado ao ser humano goela abaixo. Leu muito sobre o assunto: não se trata de excesso de hor-mônios ou vaidade, mas de uma confi guração genética encontrada em praticamente todos os animais.

As pesquisas não erram: cientistas que aplicaram testes de pater-nidade em pássaros, macacos, raposas, descobriram que o fato de estas espécies desenvolverem uma relação social muito parecida com o casamento, isso não quer dizer que sejam fi éis uns aos outros. Em 70% dos casos, o fi lhote é bastardo. Igor guarda na memória um parágrafo de David Barash, professor de psicologia da Universidade de Washington, em Seattle:

“Dizem que apenas os cisnes são fi éis, mas até isso é uma mentira.

A única espécie da natureza que não comete adultério é uma ameba, 2 5

Diplozoon paradoxum. Os dois parceiros se encontram quando ainda são jovens, e seus corpos se fundem em um único organismo.

Todo o resto é capaz de trair.”

Por isso não pode acusar Ewa de nada — ela apenas seguiu um instinto da raça humana. Mas como foi educada por convenções sociais que não respeitam a natureza, neste momento deve sentir-se culpada, achar que ele não a ama mais, que nunca a perdoaria.

Pelo contrário; está disposto a tudo, inclusive a mandar recados que terminarão com universos e mundos de outras pessoas, apenas para que entenda que não apenas será bem-vinda, como o passado será enterrado sem uma pergunta sequer.

Encontra uma jovem arrumando suas mercadorias na calçada. Pe-

ças de artesanato de gosto discutível.

Sim, ela é o sacrifício. Ela é a mensagem que deve enviar — e que com toda certeza será entendida assim que chegar ao seu destino.

Antes de aproximar-se, a contempla com ternura; ela não sabe que daqui a pouco, se tudo conspirar a favor, sua alma estará vagando nas nuvens, livre para sempre daquele trabalho idiota, que jamais a permitirá chegar aonde os seus sonhos gostariam que estivesse.

— Quanto custa? — indaga em francês fl uente.

— Qual o senhor deseja?

— Todas.

A menina — que não devia ter mais de 20 anos — sorri.

— Não é a primeira vez que me propõem isso. O próximo passo será: quer dar um passeio comigo? Você é bonita demais para estar aqui, vendendo estas coisas. Eu sou...

— ...não, eu não sou. Eu não trabalho em cinema. Eu não vou fazer de você uma atriz e mudar sua vida. Tampouco estou interessado nas coisas que vende. Tudo que preciso é conversar, e podemos fazer isso aqui mesmo.

A menina olha para outro lado.

2 6

— São meus pais que fazem este trabalho, e me orgulho do que faço. Um dia alguém passará por aqui e irá reconhecer o valor destas peças. Por favor, siga adiante, não será difícil encontrar alguém para escutar o que tem a dizer.

Igor tira um maço de notas do bolso, e coloca gentilmente ao lado dela.

— Perdoe minha grosseria. Disse isso apenas para que abaixasse o preço. Muito prazer, meu nome é Igor Dalev. Cheguei ontem de Moscou e ainda estou confuso com a diferença horária.

— Meu nome é Olivia — diz a moça, fi ngindo acreditar na mentira.

Sem pedir permissão, senta-se ao seu lado. Ela afasta-se um pouco.

— O que quer conversar?

— Pegue as notas primeiro.

Olivia hesita. Mas, olhando em volta, entende que não tem nenhuma razão para ter medo. Os carros começam a circular pela única pista disponível, jovens dirigem-se para a praia, e um casal de velhos se aproxima pela calçada. Coloca o dinheiro no bolso sem contar quanto tem ali — a vida lhe deu bastante experiência para saber que é mais que sufi ciente.

— Obrigado por ter aceitado minha oferta — responde o russo.

— O que quero conversar? Na verdade, nada muito importante.

— Você deve estar aqui por alguma razão. Ninguém visita Cannes em uma época em que a cidade fi ca insuportável para seus moradores e para os turistas.

Igor olha o mar, e acende um cigarro.

— Fumar é perigoso.

Ele ignora o comentário.

— Para você, qual o sentido da vida? — pergunta.

— Amar.

2 7

Olivia sorri. Era uma ótima maneira de começar o dia — falando de coisas mais profundas que o preço de cada peça de artesanato, ou a maneira como as pessoas estavam vestidas.

— E para o senhor, qual o sentido?

— Sim, amar. Mas pensei que também era importante ter dinheiro sufi ciente para mostrar aos meus pais que eu era capaz de vencer.

Consegui, e hoje eles se orgulham de mim. Encontrei a mulher perfeita, criei uma família, gostaria de ter fi lhos, honrar e temer a Deus.

Os fi lhos, entretanto, não vieram.

Olivia achou que seria muito delicado perguntar por quê. O homem de seus 40 anos, falando um francês perfeito, continua:

— Pensamos em adotar uma criança. Passamos dois ou três anos pensando nisso. Mas a vida começou a fi car muito movimentada

— viagens, festas, encontros, negociações.

— Quando o senhor sentou aqui para conversar, pensei que era mais um milionário excêntrico em busca de aventura. Mas fi co contente em conversar sobre essas coisas.

— Você pensa no seu futuro?

— Penso, e acho que meus sonhos são iguais aos seus. Claro que pretendo ter fi lhos.

Ela deu uma pausa. Não queria ferir o companheiro que aparecera de maneira tão inesperada.

— ...se for possível, é claro. Às vezes, Deus tem outros planos.

Ele parece não ter dado atenção à resposta.

— Para o festival só vêm milionários?

— Milionários, gente que acha que é milionária, ou gente que quer fi car milionária. Durante estes dias, esta parte da cidade parece um hospício, todos se comportam como pessoas importantes, exceto as pessoas que são realmente importantes — estas são mais gentis, não precisam provar nada a ninguém. Nem sempre compram o que eu tenho para vender, mas pelo menos sorriem, dizem algumas 2 8

palavras delicadas, e me olham com respeito. O que o senhor está fazendo aqui?

— Deus construiu o mundo em seis dias. Mas o que é o mundo?

É aquilo que você ou eu vemos. Cada vez que morre uma pessoa, uma parte do universo é destruída. Tudo aquilo que este ser humano sentiu, experimentou, contemplou desaparece com ele, da mesma maneira que as lágrimas desaparecem na chuva.

— “Como lágrimas na chuva”... Sim, eu vi um fi lme que usava esta frase. Não me lembro qual.

— Não vim para chorar. Vim para mandar recados à mulher que amo. E para isso, preciso apagar alguns universos ou mundos.

Em vez de fi car assustada com o comentário, Olivia ri. Realmente aquele homem bonito, bem vestido, falando francês fl uente, não parece ter nada de louco. Estava cansada de escutar sempre os mesmos comentários: você é muito bonita, você podia estar em situação muito melhor, qual o preço disso, quanto custa aquilo, é caríssimo, vou dar uma volta e volto mais tarde (o que nunca acontecia, claro), etc. Pelo menos o russo tinha senso de humor.

— E por que destruir o mundo?

— Para reconstruir o meu.

Olivia pode tentar consolar a pessoa ao seu lado. Mas tem medo de escutar a famosa frase “Gostaria que você desse um sentido à minha vida”, e a conversa iria acabar logo, porque ela tinha outros planos para o seu futuro. Além do mais, seria completamente idiota de sua parte tentar ensinar a um homem mais velho e mais bem-sucedido como ultrapassar suas difi culdades.

A saída era procurar saber mais de sua vida. Afi nal de contas, ele havia pagado — e bem — por seu tempo.

— Como pretende fazer isso?

— Você conhece alguma coisa sobre sapos?

— Sapos?

Ele continua:

2 9

— Vários estudos biológicos demonstram que um sapo colocado num recipiente com a mesma água de sua lagoa fi ca estático durante todo o tempo em que aquecemos o líquido. O sapo não reage ao gradual aumento de temperatura, às mudanças de ambiente, e morre quando a água ferve, inchado e feliz.

“Por outro lado, outro sapo que seja jogado nesse recipiente com a água já fervendo, salta imediatamente para fora. Meio chamuscado, porém vivo.”

Olivia não entende direito o que isso tem a ver com a destruição do mundo. Igor continua:

— Já me comportei como um sapo fervido. Não percebi as mudanças. Achava que tudo estava bem, que o mal ia passar, era só uma questão de tempo. Estive prestes a morrer porque perdi a coisa mais importante na vida e, em vez de reagir, fi quei boiando, apático, na água que se aquecia a cada minuto.

Olivia toma coragem e faz a pergunta:

— O que você perdeu?

— Na verdade eu não perdi; existem momentos em que a vida separa determinadas pessoas apenas para que ambas entendam quanto uma é importante para a outra. Digamos que ontem à noite vi minha mulher com outro homem. Sei que ela deseja voltar, que ainda me ama, mas não tem coragem de dar este passo. Há sapos fervidos que ainda acreditam que o fundamental é a obediência, e não a competência: manda quem pode, e obedece quem tem juízo. E nisso tudo, onde está a verdade? É melhor sair meio chamuscado de uma situa-

ção, mas vivo e pronto para agir.

“E tenho certeza de que você pode me ajudar nesta tarefa.”

Olivia imagina um pouco o que passa pela cabeça do homem ao seu lado. Como é que alguém podia abandonar uma pessoa que parecia tão interessante, capaz de conversar sobre coisas que jamais escutara? Enfi m, o amor não tem lógica mesmo — apesar de sua pouca idade, sabe disso. Seu namorado, por exemplo, pode fazer coisas 3 0

brutais, de vez em quando a espanca sem razão, e mesmo assim ela não consegue passar um dia longe dele.

De que estavam falando mesmo? De sapos. E de que ela podia ajudá-lo. Claro que não pode, portanto é melhor mudar de assunto.

— E como pretende destruir o mundo?

Igor aponta a única pista de trânsito livre na Croisette.

— Digamos que eu não deseje que você vá a uma festa, mas não posso falar isso abertamente. Se eu esperar a hora do congestiona-mento, e parar um carro no meio desta rua, em dez minutos toda a avenida em frente à praia estará congestionada. Os motoristas vão pensar: “Deve ter sido um acidente”, e terão um pouco de paciência.

Em quinze minutos, a polícia chega com um caminhão para rebocar o carro.

— Isso já aconteceu centenas de vezes.

— Mas eu teria saído do carro e espalhado pregos e objetos cor-tantes diante dele. Com todo cuidado, sem que ninguém se dê conta.

Eu teria a paciência de pintar todos estes objetos de preto, de modo que se confundissem com o asfalto. No momento em que o caminhão se aproximasse, seus pneus seriam destruídos. Agora temos dois problemas, e o engarrafamento já está chegando nos subúrbios desta pequena cidade, onde você possivelmente mora.

— Muito criativo como idéia. Mas o máximo que conseguiria era que eu me atrasasse por uma hora.

Foi a vez de Igor sorrir.

— Bem, eu podia discorrer algumas horas sobre como aumentar este problema — quando as pessoas se juntassem para ajudar, por exemplo, eu jogaria algo como uma pequena bomba de fumaça debaixo do caminhão. Todos se assustariam. Eu entraria no meu carro, fi ngindo desespero, e daria a partida no motor, só que ao mesmo tempo espalharia um pouco de fl uido de isqueiro no tapete do carro, e atearia fogo. Daria tempo para saltar e assistir à cena: o carro incen-3 1

diando aos poucos, o tanque de gasolina sendo atingido, a explosão, o carro de trás também sendo atingido — e a reação em cadeia. Tudo isso usando um carro, alguns pregos, uma bomba de fumaça que pode ser comprada em qualquer loja, e uma pequena lata de fl uido de isqueiro...

Igor tira um tubo de ensaio do bolso, com um pouco de líquido dentro.

— ...do tamanho disso aqui. Isso eu devia ter feito quando vi que Ewa iria partir. Atrasar sua decisão, fazer com que pensasse mais um pouco, que medisse as conseqüências. Quando as pessoas começam a refl etir sobre as decisões que precisam tomar, geralmente terminam desistindo — é preciso muita coragem para dar determinados passos.

“Mas fui orgulhoso, achei que era provisório, que iria se dar conta. Tenho certeza de que agora está arrependida, e deseja voltar — eu repito. Mas para isso, será preciso que eu destrua alguns mundos.”

A expressão dele havia mudado, e Olivia já não estava achando graça nenhuma na história. Levanta-se.

— Bem, eu preciso trabalhar.

— Mas eu lhe paguei para que me escutasse. Paguei o sufi ciente por todo o seu dia de trabalho.

Ela coloca a mão no bolso para retirar o dinheiro que lhe havia sido entregue, e neste momento vê a pistola apontada para o seu rosto.

— Sente-se.

Seu primeiro impulso foi correr. O casal de velhos aproximava-se lentamente.

— Não corra — diz ele, como se pudesse ler seus pensamentos.

— Não tenho a menor intenção de atirar, se você sentar-se e ouvir até o fi nal. Se você não fi zer nada, apenas me obedecer, eu juro que não atiro.

Na cabeça de Olivia uma série de opções desfi la rapidamente: correr em ziguezague era a primeira delas, mas percebe que suas pernas estão frouxas.

3 2

— Sente-se — repetiu o homem. — Não vou atirar em você se fi zer o que estou mandando. Eu prometo.

Sim. Seria uma loucura disparar aquela arma em uma manhã de sol, com carros passando na rua, pessoas indo para a praia, o trânsito fi cando cada vez mais denso, outras pessoas começando a caminhar pela calçada. Melhor fazer o que o homem diz — simplesmente porque não tem condições de agir de outra forma; está quase desmaiando.

Obedece. Agora precisa convencê-lo de que não é uma ameaça, escutar suas lamentações de marido abandonado, prometer que não tinha visto nada, e assim que um policial aparecer fazendo a ronda habitual, atirar-se no chão e gritar por socorro.

— Sei exatamente o que está sentindo — a voz do homem procura acalmá-la. — Os sintomas do medo são os mesmos desde a noite dos tempos. Era assim quando os seres humanos enfrentavam as bes-tas selvagens, e continua sendo da mesma maneira até hoje: o sangue desaparece da face e da epiderme, protegendo o corpo e evitando o sangramento — daí a sensação de palidez. Os intestinos se afrouxam e soltam tudo, para evitar que matérias tóxicas contaminem o organismo. O corpo recusa a mover-se em um primeiro momento, para não provocar a fera, e evitar que ela ataque a qualquer gesto suspeito.

“Tudo isso é um sonho”, pensa Olivia. Lembra-se dos pais, que na verdade deviam estar ali naquela manhã, mas que haviam passado a noite trabalhando nas bijuterias porque o dia devia ser movimenta-do. Há algumas horas, fazia amor com seu namorado, que julgava ser o homem de sua vida, embora abusasse dela de vez em quando; os dois tiveram um orgasmo simultâneo, o que não acontecia há muito tempo. Depois do café daquela manhã, decidiu não tomar a ducha de sempre, porque se sentia livre, cheia de energia, contente com a vida.

Não, isso não está acontecendo. Melhor demonstrar também um pouco de calma.

3 3

— Vamos conversar. O senhor comprou toda a mercadoria, e vamos conversar. Eu não me levantei para ir embora.

Ele encosta discretamente o cano da arma nas costelas da moça.

O casal de velhos passa, olhando para os dois sem nada perceber.

Ali está a fi lha do português, como sempre tentando impressionar os homens com suas sobrancelhas cerradas e seu sorriso infantil. Não era a primeira vez que a viam com um estranho, que pela roupa parecia ser rico.

Olivia os olha fi xamente, como se o olhar pudesse dizer qualquer coisa. O homem ao seu lado diz com uma voz alegre:

— Bom dia!

O casal se afasta sem dizer palavra — não costumavam falar com estranhos, ou cumprimentar vendedoras ambulantes.

— Sim, vamos conversar — o russo quebrou o silêncio. — Não vou fazer nada disso com o trânsito, estava dando apenas um exemplo. Minha mulher vai saber que estou aqui quando começar a receber os recados. Não vou fazer o mais óbvio, que é procurar encontrá-la — preciso que venha até mim.

Ali está uma saída.

— Posso dar os recados, se quiser. Basta me dizer em que hotel está hospedada.

O homem ri.

— Você tem o vício de todas as pessoas de sua idade: achar-se mais esperta que o resto dos seres humanos. No momento em que sair daqui, irá imediatamente até a polícia.

O sangue gelou. Então, iriam fi car ali naquele banco o dia inteiro?

Ele iria atirar de qualquer maneira, já que ela conhecia seu rosto?

— O senhor disse que não iria atirar.

— Prometi que não farei isso, se você se comportar como alguém mais adulta, que respeita a minha inteligência.

Sim, ele tem razão. E ser mais adulta é falar um pouco de si mesma. Quem sabe, aproveitar-se da compaixão que sempre existe na 3 4

mente de um louco. Explicar que vive uma situação semelhante, embora não seja verdade.

Um rapaz passa correndo, com seu iPod nos ouvidos. Nem sequer se dá ao trabalho de olhar para o lado.

— Moro com um homem que faz da minha vida um inferno, e mesmo assim não consigo me libertar dele.

Os olhos de Igor mudam.

Olivia acredita que encontrou uma maneira de sair daquela armadilha. “Seja inteligente. Não se ofereça, procure pensar na mulher do homem que está ao seu lado.”

Seja verdadeira.

— Ele me isolou de meus amigos. Vive com ciúmes, embora tenha todas as mulheres que deseja. Critica tudo que faço, diz que não tenho ambição nenhuma. Controla o pouco dinheiro que ganho como comissão na venda das bijuterias.

O homem está em silêncio, olhando o mar. A calçada se enche de gente; o que aconteceria se simplesmente se levantasse e fugisse? Ele seria capaz de atirar? A arma era de verdade?

Mas sabe que havia tocado em um assunto que parecia deixá-lo mais à vontade. Melhor não correr o risco de fazer uma loucura

— ela se lembra do olhar e da voz de minutos antes.

— Mesmo assim, não consigo deixá-lo. Mesmo que aparecesse o melhor, mais rico, mais generoso ser humano da face da terra, eu não trocaria meu namorado por nada. Não sou masoquista, não tenho prazer em ser constantemente humilhada — mas eu o amo.

Sentiu o cano da arma pressionar de novo suas costelas. Havia dito algo errado.

— Eu não sou igual a este canalha do seu namorado — a voz agora era puro ódio. — Trabalhei muito para construir tudo que tenho.

Trabalhei duro, recebi muitos golpes, sobrevivi a todos eles, lutei com honestidade, embora às vezes precisasse ser duro e implacável.

3 5

Sempre fui um bom cristão. Tenho amigos infl uentes, e jamais fui ingrato. Enfi m, fi z tudo certo.

“Nunca destruí ninguém no meu caminho. Sempre que pude, esti-mulei minha mulher a fazer o que queria, e o resultado foi esse: estou agora sozinho. Sim, já matei seres humanos durante uma guerra idiota, mas não perdi o senso da realidade. Não sou um veterano de guerra traumatizado, que entra em um restaurante e dispara sua metralhado-ra a esmo. Não sou um terrorista. Podia achar que a vida foi injusta comigo, que me roubou o que há de mais importante: o amor. Mas existem outras mulheres, e as dores do amor sempre passam. Preciso agir, cansei de ser um sapo que ia sendo cozinhado aos poucos.”

— Se sabe que existem outras mulheres, se sabe que as dores passam, por que então sofrer tanto?

Sim, estava se comportando como adulta — surpresa com a calma com que tentava controlar o louco ao seu lado.

Ele pareceu vacilar.

— Não sei responder direito. Talvez porque já fui abandonado muitas vezes. Talvez porque precise provar a mim mesmo do que sou capaz. Talvez porque tenha mentido, e não existam outras mulheres

— apenas uma. Tenho um plano.

— Qual é seu plano?

— Já lhe disse. Destruir alguns mundos, até que ela se dê conta de que é importante para mim. De que sou capaz de correr qualquer risco para tê-la de volta.

A polícia!

Ambos notaram que um carro de polícia se aproximava.

— Desculpe — disse o homem. — Eu pretendia conversar um pouco mais, a vida também não é justa com você.

Olivia entende a sentença de morte. E como agora não tinha mais nada a perder, faz menção de se levantar de novo. Entretanto, a mão daquele estrangeiro toca o seu ombro direito, como se a abraçasse com carinho.

3 6

Samozashchita Bez Orujiya, ou Sambo, como é mais conhecido entre os russos, é a arte de matar rapidamente com as mãos, sem que a vítima se dê conta do que está acontecendo. Foi desenvolvida ao longo dos séculos, quando povos ou tribos precisavam enfrentar invasores sem a ajuda de qualquer arma. Foi amplamente utilizada pelo aparelho soviético para eliminar alguém sem deixar vestígios.

Tentaram introduzi-la como arte marcial nas Olimpíadas de 1980

em Moscou, mas foi descartada por ser perigosa demais — apesar de todos os esforços dos comunistas de então para incluir nos Jogos um esporte que só eles sabiam praticar.

Ótimo. Desta maneira, só mesmo algumas poucas pessoas conhecem seus golpes.

O polegar direito de Igor pressiona a jugular de Olivia, e o sangue deixa de circular até o cérebro. Enquanto isso, sua outra mão pressiona determinado ponto perto das axilas, provocando a paralisia dos músculos. Não há contrações; agora é apenas uma questão de esperar dois minutos.

Olivia parece ter adormecido em seus braços. O carro policial cruza por detrás deles, usando a via preferencial e fechada para o trânsito. Nem sequer notam o casal abraçado — têm outras coisas com que se preocupar naquela manhã: precisam fazer o máximo para que a circulação de automóveis não seja interrompida, o que é uma tarefa absolutamente impossível de ser cumprida à risca. Acabam de receber uma chamada pelo rádio, parece que um milionário bêbado havia batido com sua limusine a três quilômetros dali.

Sem retirar o braço que apóia a garota, Igor abaixa-se e usa a outra mão para recolher a toalha diante do banco, onde estavam expostas aquelas coisas de mau gosto. Dobra o tecido com agilidade, fazendo um travesseiro improvisado.

Quando vê que não há ninguém por perto, com todo carinho deita o corpo inerte no banco; a moça parece dormir — e, em seus 3 7

sonhos, devia estar se lembrando de um lindo dia, ou tendo pesadelos com o namorado violento.

Somente o casal de velhos havia notado que estavam juntos. E

caso se descobrisse um crime — o que Igor achava difícil, porque não havia marcas visíveis — iriam descrevê-lo para a polícia como alguém louro, ou negro, mais velho ou mais jovem do que realmente parecia; não havia a menor razão para se preocupar, as pessoas jamais prestam atenção ao que está ocorrendo no mundo.

Antes de partir, deu um beijo na testa da bela adormecida, e murmurou:

— Como você viu, cumpri minha promessa. Não atirei.

Depois de dar alguns passos, começou a sentir uma imensa dor de cabeça. Era normal: o sangue estava inundando o cérebro, reação absolutamente aceitável para quem acaba de libertar-se de um estado de extrema tensão.

Apesar da dor de cabeça, estava feliz. Sim, tinha conseguido.

Sim, era capaz. E estava mais feliz ainda porque havia libertado a alma daquele corpo frágil, daquele espírito que não conseguia reagir aos abusos de um covarde. Se aquela relação doentia continuasse, em breve a moça iria fi car deprimida e ansiosa, perder a auto-estima e fi car cada vez mais dependente do poder do seu namorado.

Nada disso tinha acontecido com Ewa. Sempre fora capaz de tomar suas decisões, tivera o seu apoio moral e material quando decidira abrir sua loja de alta-costura, era livre para viajar quando e quanto quisesse. Tinha sido um homem, um marido exemplar. E

mesmo assim, ela havia cometido um erro — não soube entender seu amor como também não entendeu seu perdão. Mas esperava que recebesse os recados — afi nal, no dia em que ela resolvera partir, ele disse que iria destruir mundos para tê-la de volta.

Pega o celular recém-comprado, descartável, onde colocou o menor crédito possível. Digita uma mensagem.

3 8

11:00 AM

Segundo a lenda, tudo começa com uma desconhecida moça francesa de 19 anos, posando de biquíni na praia para os fotógrafos que nada tinham a fazer durante o Festival de Cannes de 1953. Pouco tempo depois, era alçada ao estrelato, e seu nome se transformou em uma lenda: Brigitte Bardot. E agora todo mundo pensa que pode fazer a mesma coisa! Ninguém entende a importância de ser atriz; a beleza é a única coisa que conta.

E por causa disso as longas pernas, os cabelos tingidos, as falsas louras viajam centenas, milhares de quilômetros para estarem ali, nem que seja para passarem o dia inteiro na areia, com a esperan-

ça de serem vistas, fotografadas, descobertas. Querem escapar da armadilha que espera todas as mulheres: transformar-se em donas de casa, preparando o jantar para o marido toda noite, levando os fi lhos para o colégio todos os dias, tentando descobrir um pequeno detalhe na vida monótona dos seus vizinhos para que possam ter assunto com as amigas. Querem a fama, o brilho e o glamour, a inveja dos habitantes de sua cidade, das meninas e meninos que sempre as trataram como patinho feio, sem saber que iriam desabrochar como um cisne, uma fl or cobiçada por todos. Uma carreira no mundo dos sonhos, é isso o que importa — mesmo que precisem pedir dinheiro emprestado para uma aplicação de silicone nos seios, ou a compra de vestidos mais provocantes. Aulas de teatro? Não é preciso, basta a beleza e os contatos certos: o cinema é capaz de tudo.

Desde que você consiga entrar no mundo do cinema.

Tudo para escapar da armadilha da cidade do interior, e dos dias repetitivos. Existem milhões de pessoas que não se importam com isso, portanto que elas vivam suas vidas da maneira que acharem melhor. Quem vem para o Festival deve deixar o medo em casa e estar preparada para tudo: agir sem qualquer hesitação, mentir sempre que for necessário, diminuir a idade, sorrir para quem detesta, fi ngir 3 9

que se interessa por pessoas sem qualquer atração, dizer “eu te amo”

sem pensar nas conseqüências, apunhalar pelas costas a amiga que a ajudou em determinado momento mas que agora se transformou em uma concorrente indesejável. Caminhar para frente, sem remorsos ou vergonha. A recompensa merece qualquer sacrifício.

Fama.

Brilho e glamour.

Estes pensamentos irritam Gabriela: não é a melhor maneira de começar um novo dia. Além do mais, está de ressaca.

Mas pelo menos tem um consolo: não despertou em um hotel cinco estrelas, com um homem ao seu lado dizendo que ela precisava vestir-se e sair, porque ele tem muitas coisas importantes para tratar, como comprar ou vender fi lmes que havia produzido.

Levanta-se e olha à sua volta, para ver se alguma de suas amigas ainda está ali. Claro que não, tinham partido para a Croisette, as piscinas, os bares de hotel, os iates, os possíveis almoços e os encontros na praia. Cinco colchonetes se espalhavam pelo chão do pequeno apartamento conjugado, alugado por temporada a um preço exorbitante. Em torno dos colchonetes, roupas desarrumadas, sapatos virados ao contrário, cabides caídos no chão e que ninguém se dera ao trabalho de recolocar no armário.

“Aqui, as roupas merecem mais espaço que as pessoas.”

Claro, como nenhuma delas podia se dar ao luxo de sonhar com Elie Saab, Karl Lagerfeld, Versace, Galliano, restava o que parecia ser infalível, mas mesmo assim ocupava praticamente o apartamento inteiro: biquínis, minissaias, camisetas, sapatos de salto plataforma, e uma quantidade imensa de maquiagem.

“Um dia vestirei o que eu quero. No momento, preciso apenas de uma oportunidade.”

Por que deseja uma oportunidade?

Simples. Porque sabe que é a melhor de todas, apesar da sua experiência na escola, da decepção que dera aos seus pais, dos desafi os que 4 0

tem procurado enfrentar desde então para provar a si mesma que pode superar as difi culdades, as frustrações e as derrotas que sofreu.

Nasceu para vencer e brilhar, não tem a menor dúvida.

“E quando conseguir o que sempre desejei, sei que vou me perguntar: me amam e me admiram porque sou eu mesmo, ou porque sou famosa?”

Conhece pessoas que atingiram o estrelato nos palcos. Ao contrário do que imaginava, não estão em paz; são inseguros, cheios de dúvidas, infelizes quando estão fora de cena. Desejam ser atores para que não precisem representar a si mesmos, vivem com medo de dar um passo errado que possa acabar com suas carreiras.

“Mas sou diferente. Sempre fui eu mesma.”

Verdade? Ou será que todos os que estão no seu lugar pensam a mesma coisa?

Levanta-se e prepara um café — a cozinha está suja, nenhuma das suas amigas se preocupou em lavar a louça. Não sabe por que acordou com tanto mau humor e tantas dúvidas. Conhece o seu trabalho, dedicou-se a ele com toda sua alma, e ainda assim parece que ninguém deseja reconhecer seu talento. Conhece também os seres humanos, principalmente os homens — futuros aliados em uma batalha que terá que vencer logo, porque já está com 25 anos, e em breve estará velha demais para a indústria dos sonhos. Sabe que: a) eles são menos traiçoeiros do que as mulheres.

b) jamais reparam em nossas roupas, porque a única coisa que fazem é nos despir com seus olhos.

c) seios, coxas, nádegas, barriga: basta ter isso no lugar e o mundo será conquistado.

Por causa destes três itens, e porque sabe que todas as outras mulheres que estão concorrendo com ela procuram exagerar seus atri-butos, ela dá atenção apenas ao item “c” de sua lista. Faz ginástica, procura manter-se em forma, evita regimes e veste-se exatamente 4 1

ao contrário do que manda a lógica: suas roupas são discretas. Tem dado resultado até agora, termina parecendo mais jovem do que é.

Espera que também dê resultado em Cannes.

Seios, nádegas, coxas. Pois que prestem atenção a isso no momento, se for absolutamente indispensável. Chegará o dia em que poderão ver tudo o que é capaz.

Bebe seu café, e começa a entender seu mau humor. Está cercada pelas mulheres mais belas do planeta! Embora não se julgue feia, não existe a menor possibilidade de concorrer com elas. Precisa decidir o que fazer; esta viagem foi uma decisão difícil, o dinheiro está contado, e não tem muito tempo para conseguir um contrato. Já foi a vários lugares nos dois primeiros dias, distribuiu seu currículo, suas fotos, mas tudo que conseguiu foi ser convidada para a festa da véspera — um restaurante de quinta categoria, com a música a todo volume, e onde não apareceu ninguém da Superclasse. Bebeu para perder a inibição, foi além do que seu organismo podia suportar, e terminou sem saber onde estava, e o que fazia ali. Tudo parecia estranho — a Europa, a maneira como as pessoas se vestiam, as línguas diferentes, a falsa alegria de todos os presentes, que gostariam de ter sido convidados para algo mais importante, e no entanto estavam naquele local de menor importância, ouvindo a mesma música, conversando aos gritos sobre a vida dos outros e a injustiça dos poderosos.

Gabriela está cansada de falar da injustiça dos poderosos. Eles são assim, e ponto fi nal. Escolhem quem desejam, não têm que dar satisfações a ninguém — e por isso ela precisa de um plano. Muitas outras moças com o mesmo sonho (mas sem o mesmo talento, claro) devem estar distribuindo seus currículos e suas fotos; os produtores que vieram ao Festival estão inundados de pastas, DVDs, cartões de visita.

O que pode fazer a diferença?

Precisa pensar. Não terá outra chance como essa, sobretudo porque gastou o resto do dinheiro que tinha para chegar até ali.

4 2

E — terror dos terrores — está fi cando velha. Vinte e cinco anos. Sua última oportunidade.

Bebe o café olhando pela pequena janela, que dá para um beco sem saída. Tudo que consegue ver é uma tabacaria, e uma menina comendo chocolate. Sim, sua última oportunidade. Espera que seja bastante diferente da primeira.

Volta ao passado, aos 11 anos de idade, a primeira peça de teatro na escola em Chicago, onde passara a infância estudando em um dos colégios mais caros da região. Seu desejo de vencer não nascera de uma aclamação unânime por parte do público presente, composto de pais, mães, parentes, e professores.

Muito pelo contrário: representava o Chapeleiro Louco que encontra Alice em seu País das Maravilhas. Passara em um teste com muitos outros meninos e meninas, já que o papel era um dos mais importantes da peça.

A primeira frase que deveria dizer era: “Você precisa cortar o cabelo.”

Neste momento, Alice responderia: “Isso mostra que o senhor não tem educação com os convidados.”

Quando chegou o esperado momento, tantas vezes ensaiado e repetido, estava tão nervosa que errou o texto, dizendo “Você precisa crescer os cabelos.” A menina que representava Alice respondeu com a mesma frase sobre a má-educação, e isso não teria feito nenhuma diferença para a platéia. Gabriela, entretanto, percebeu seu erro.

E perdeu a fala. Sendo o Chapeleiro Louco um personagem necessário para que a cena continuasse, e como as crianças não estão acostumadas a improvisar no palco (embora façam isso na vida real), ninguém sabia o que fazer — até que, depois de longos minutos com os atores olhando uns para os outros, a professora começou a aplaudir, disse que tinha chegado a hora do intervalo e mandou todos saírem de cena.

Gabriela não apenas saiu de cena, mas saiu da escola em prantos.

No dia seguinte, soube que a cena do Chapeleiro Louco tinha sido 4 3

cortada, com os atores seguindo direto para o jogo de cricket com a Rainha. Embora a professora dissesse que isso não tinha a menor importância, já que a história de Alice no País das Maravilhas era mesmo sem pé nem cabeça, na hora do recreio todos os meninos e meninas se reuniram e lhe deram uma surra.

Não era a primeira surra que levava. Aprendera a se defender com a mesma energia com que conseguia atacar as crianças mais fracas

— e isso acontecia pelo menos uma vez por semana. Mas dessa vez, apanhou sem dizer uma palavra e sem derramar uma lágrima. Sua rea-

ção foi tão surpreendente que a briga durou pouquíssimo — afi nal de contas, tudo que seus colegas esperavam é que estivesse sofrendo e gritando, mas como ela parecia não se importar, perderam o interesse.

Porque naquele momento, a cada tapa que recebia, Gabriela pensava:

“Serei uma grande atriz. E todos, absolutamente todos, irão se arrepender do que fi zeram.”

Quem diz que as crianças não são capazes de decidir o que querem da vida?

Os adultos.

E quando crescemos, terminamos acreditando que eles são mais sábios, que têm toda razão do mundo. Muitas crianças passaram pela mesma situação quando representavam o Chapeleiro Louco, a Bela Adormecida, Aladim, ou Alice — e naquele momento, decidiram abandonar para sempre as luzes dos refl etores e os aplausos da platéia. Mas Gabriela, que até seus 11 anos jamais tinha perdido uma só batalha, era a mais inteligente, a mais bonita, a que tirava as melhores notas na classe, entendia intuitivamente: “Se eu não reagir agora, estarei perdida.”

Uma coisa era apanhar de colegas — porque também sabia bater.

Outra coisa era carregar pelo resto dos seus dias uma derrota. Porque todos nós sabemos disso: o que começa com um erro em uma peça de teatro, com a incapacidade de dançar bem como os outros, 4 4

suportar comentários sobre pernas fi nas demais ou cabeça grande demais, coisas que qualquer criança enfrenta, pode ter duas conseqüências radicalmente diversas.

Alguns poucos resolvem se vingar, procurando ser os melhores naquilo que todos achavam que eram incapazes de fazer. “Vocês um dia ainda terão inveja de mim”, pensam.

A maior parte, porém, aceita que tem um limite, e a partir daí tudo fi ca pior. Crescem inseguros, obedientes (embora sempre sonhem com o dia em que serão livres e capazes de fazer tudo que lhes dá vontade), casam para que não digam que eram tão feias assim (embora continuem se achando feias), têm fi lhos para que não digam que são estéreis (embora realmente tenham vontade de ter fi lhos), se vestem bem para que não digam que se vestem mal (embora já saibam que vão dizer de qualquer maneira, independente da roupa que estiverem usando).

O episódio da peça já tinha sido esquecido pela escola na semana seguinte. Mas Gabriela havia decidido que um dia voltaria àquela mesma escola — desta vez como uma atriz mundialmente conhecida, com secretários, guarda-costas, fotógrafos e uma legião de fãs. Repre-sentaria Alice no País das Maravilhas para as crianças abandonadas, seria notícia, e seus velhos amigos de infância poderiam dizer:

“Um dia estivemos no mesmo palco com ela!”

Sua mãe queria que se formasse em engenharia química; assim que terminou o colégio, seus pais a enviaram para o Illinois Institute of Technology. Enquanto estudava os caminhos das proteínas e a estrutura do benzeno durante o dia, convivia com Ibsen, Coward, Shakespeare durante a noite, em um curso de teatro que pagava com o dinheiro enviado por seus pais para a compra de roupas e de livros exigidos pela universidade. Conviveu com os melhores profi ssionais, teve professores excelentes. Recebeu elogios, cartas de recomendação, atuou (sem que seus pais soubessem) como corista em um grupo de rock e dançarina do ventre em um espetáculo sobre Lawrence da Arábia.

4 5

Era sempre bom aceitar todos os papéis: um dia, alguém importante estaria na platéia por acaso. Iria convidá-la para um verdadeiro teste. Seus dias de provação, sua luta por um lugar diante dos refl etores estariam terminados.

Os anos começaram a passar. Gabriela aceitava comerciais de TV, anúncios de pasta de dente, trabalhos de modelo, e uma vez viu-se tentada a responder a um convite de um grupo especializado em contratar acompanhantes de executivos, porque precisava desesperadamente de dinheiro para mandar preparar um material impresso com suas fotos, que pretendia enviar às mais importantes agências de modelos e atrizes dos Estados Unidos. Mas foi salva por Deus — em quem nunca perdera a fé. Naquele mesmo dia lhe ofereceram um papel de fi gurante no videoclipe de uma cantora japonesa, que ia ser rodado sob o viaduto onde passa o trem suspenso que corta a cidade de Chicago. O pagamento foi mais alto do que esperava (pelo visto, os produtores tinham pedido uma fortuna para a equipe estrangeira), e com o dinheiro extra conseguiu produzir o tão sonhado livro de fotos (ou book, como chamavam em todas as línguas do mundo)

— que também custou muito mais caro do que imaginava.

Sempre dizia a si mesma que ainda estava em início de carreira, embora dias e meses começassem a voar. Era capaz de representar Ofélia em Hamlet durante o curso de teatro, mas a vida lhe oferecia geralmente anúncios de desodorantes e cremes de beleza. Quando ia até uma agência mostrar o book e as cartas de recomendação de professores, amigos, gente com quem já tinha trabalhado, encontrava-se na sala de espera com várias moças que se pareciam com ela, todas sorrindo, todas se odiando mutuamente, fazendo o possível para conseguirem qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa que lhes desse “visibilidade”, como diziam os profi ssionais.

Esperava horas até que chegasse sua vez, e enquanto isso lia livros de meditação e de pensamento positivo. Terminava sentada diante de uma pessoa — homem ou mulher — que jamais prestava atenção às 4 6

cartas, ia direto às fotos, e não fazia nenhum comentário. Anotavam seu nome. Eventualmente era chamada para um teste — que uma em cada dez vezes dava certo. Lá estava ela de novo, com todo o talento que julgava possuir, diante de uma câmera e de gente mal-educada, que sempre reclamava: “Fique mais à vontade, sorria, vire para a direita, abaixe um pouco o queixo, umedeça seus lábios.”

Pronto: mais uma foto de um novo tipo de café estava terminada.

E quando não era chamada? Tinha um único pensamento: rejei-

ção. Mas aos poucos foi aprendendo a conviver com isso, entendeu que estava passando por provas necessárias, sendo testada em sua perseverança e sua fé. Recusava-se a aceitar o fato de que o curso, as cartas, o currículo cheio de apresentações pequenas em lugares sem importância, tudo isso não servia para absolutamente...

O telefone celular tocou.

...nada.

O telefone celular continuou tocando.

Sem entender direito o que estava acontecendo — estava viajando em direção ao seu passado, enquanto olhava a tabacaria e a menina comendo chocolate —, ela atendeu.

A voz do outro lado dizia que o teste tinha sido confi rmado para daqui a duas horas.

O TESTE TINHA SIDO CONFIRMADO!

Em Cannes!

Afi nal, tinha valido a pena todo o esforço de cruzar o oceano, desembarcar em uma cidade onde todos os hotéis estavam cheios, encontrar-se no aeroporto com outras moças na mesma situação que ela (uma polonesa, duas russas, uma brasileira), saírem batendo em portas até conseguirem um pequeno conjugado a preço exorbitante.

Depois de tantos anos tentando a sorte em Chicago, viajando para Los Angeles de tempos em tempos em busca de mais agentes, mais anúncios, mais rejeições, seu futuro estava na Europa!

Daqui a duas horas?

4 7

Não havia a menor possibilidade de pegar um ônibus porque não conhecia as linhas. Estava hospedada no alto de uma colina, e até agora só tinha descido aquela ladeira íngreme duas vezes — para distribuir seus books e para a festa insignifi cante da noite anterior. Quando chegava lá embaixo, pedia carona a estranhos, geralmente homens solitá-

rios em seus lindos carros conversíveis. Todos sabiam que Cannes era um lugar seguro, e toda mulher sabia que a beleza ajudava muito nesses momentos, mas não podia contar com a sorte, precisava resolver o problema por si mesma. Em um teste de elenco, horário é rigoroso, esta é uma das primeiras coisas que se aprende em qualquer agência de artistas. Além disso, como notara no primeiro dia que o trânsito estava sempre engarrafado, tudo que restava era vestir-se e sair correndo. Em uma hora e meia estaria lá — lembrava-se do hotel onde a produtora estava instalada, porque tinha feito parte da peregrinação que fi zera na tarde anterior, em busca de uma chance.

O problema agora era o mesmo de sempre:

“Que roupa devo usar?”

Atacou com fúria a mala que tinha trazido, escolheu uma calça jeans Armani produzida na China, e comprada em um mercado negro nos subúrbios de Chicago por um quinto do preço. Ninguém ia dizer que era uma falsifi cação, porque não era: todos sabiam que as companhias chinesas enviavam 80% da produção para as lojas originais, enquanto seus empregados se encarregavam de colocar à venda — sem nota fi scal — os 20% restantes. Era, digamos, a sobra do estoque.

Vestiu uma camiseta branca, DKNY, mais cara que a calça; fi el aos seus princípios, sabia que quanto mais discreta, melhor. Nada de saias curtas e decotes ousados — porque se outras pessoas tivessem sido convidadas para o teste, estariam todas vestidas assim.

Hesitou sobre a maquiagem. Escolheu uma base muito discreta, e contornos de lábios mais discretos ainda. Já tinha perdido preciosos quinze minutos.

4 8

11:45 AM

As pessoas nunca estão satisfeitas com nada. Se têm pouco, querem muito. Se têm muito, querem ainda mais. Se têm ainda mais, desejam ser felizes com pouco, mas são incapazes de fazer qualquer esforço nesse sentido.

Será que não entendem que a felicidade é tão simples? O que queria aquela menina que passou correndo, vestida de jeans e blusa branca? O que podia ser tão urgente, que a impedia de contemplar o belo dia de sol, o mar azul, as crianças em seus carrinhos, as palmei-ras na orla da praia?

“Não corra, menina! Você jamais poderá fugir das duas presenças mais importantes na vida de qualquer ser humano: Deus e a morte.

Deus está acompanhando os seus passos, irritado porque vê que não presta atenção no milagre da vida. E a morte? Você acaba de passar por um cadáver, e nem sequer notou.”

Igor caminhou várias vezes pelo local do assassinato. Em um dado momento, concluiu que suas idas e vindas despertariam suspeitas; decidiu então fi car à prudente distância de duzentos metros do local, apoiado na balaustrada que dava para a praia, usando óculos escuros (o que nada tinha de suspeito, não apenas por causa do sol, mas também pelo fato de que óculos escuros, em um lugar de celebridades, são sinônimo de status).

Está surpreso em ver que já é quase meio-dia, e mesmo assim ninguém se deu conta de que há uma pessoa morta na principal avenida de uma cidade que neste período era o centro de atenções do mundo.

Um casal agora se aproxima do banco, visivelmente irritado. Co-meçaram a gritar com a Bela Adormecida; são os pais da moça, que a insultam ao ver que não está trabalhando. O homem a sacode com alguma violência. Em seguida, a mulher debruça-se e cobre o seu campo de visão.

4 9

Igor não tem dúvidas do que acontecerá em seguida.

Gritos femininos. O pai tirando o telefone portátil do bolso, afastando-se um pouco, agitado. A mãe sacudindo a fi lha, o corpo que não dá mostras de reagir. Os transeuntes se aproximam; agora sim, ele pode tirar seus óculos escuros e chegar perto, afi nal de contas é mais um curioso na multidão.

A mãe chora, abraçada à moça. Um jovem a afasta e tenta respira-

ção boca a boca, mas logo desiste — o rosto de Olivia já mostra uma ligeira tonalidade púrpura.

— Ambulância! Ambulância!

Várias pessoas ligam para o mesmo número, todos sentem-se úteis, importantes, dedicados. Já se pode ouvir o som da sirene a distância. A mãe grita cada vez mais alto, uma moça tenta abraçá-la e pedir que se acalme mas ela a empurra. Alguém apóia o cadáver e tenta mantê-lo sentado, outro pede que a deixe deitada no banco, era tarde demais para qualquer providência.

— Com toda certeza, excesso de droga — comenta alguém ao seu lado. — Essa juventude está mesmo perdida.

Os que escutaram o comentário concordam com a cabeça. Igor continua impassível, enquanto assiste à chegada dos paramédicos, os aparelhos sendo retirados do carro, os choques elétricos no coração, um médico mais experiente acompanha tudo aquilo sem dizer nada, pois sabe que não há mais nada a fazer mas não quer que seus subordinados sejam acusados de negligência. Descem a maca, a colocam na ambulância, a mãe se agarra com a fi lha, discutem um pouco com ela mas terminam permitindo que entre, saem em disparada.

Do momento em que o casal havia descoberto o cadáver até a partida do veículo, não se passaram mais de cinco minutos. O pai ainda está ali, atordoado, sem saber exatamente aonde ir, o que fazer. Ignorando de quem se trata, a mesma pessoa que fi zera o comentário sobre a droga vai até ele e repete sua versão dos fatos:

— Não se preocupe, senhor. Isso acontece todos os dias aqui.

5 0

O pai não reage. Mantém o celular aberto nas mãos e olha o vazio. Ou não entende o comentário, ou não sabe o que acontece todos os dias, ou está em um estado de choque que lhe enviara rapidamente para uma dimensão desconhecida, em que a dor não existe.

Assim como surgira do nada, a multidão se dispersa. Fica apenas o homem com o celular aberto, e o homem com os óculos escuros nas mãos.

— O senhor conhecia a vítima? — pergunta Igor.

Não há resposta.

Melhor fazer o mesmo que os outros — continuar caminhando pela Croisette, e ver o que está acontecendo naquela manhã ensola-rada de Cannes. Assim como o pai, não sabe exatamente o que está sentindo: destruiu um mundo que não seria capaz de reconstruir, mesmo que tivesse todo o poder do mundo. Será que Ewa merecia isso? Do ventre daquela menina — Olivia, ele sabia seu nome, e isso o incomodava muito porque já não era mais apenas um rosto na multidão — poderia ter saído um gênio que iria descobrir a cura do câncer ou como costurar um acordo para que o mundo fi nalmente pudesse viver em paz. Acabara não apenas com uma pessoa, mas com todas as gerações futuras que poderiam nascer dali; o que tinha feito? Será que o amor, por maior e mais intenso que fosse, era capaz de justifi car isso?

Errou com a primeira vítima. Ela jamais será notícia, Ewa jamais entenderá o recado.

Não pense, já aconteceu. Você está preparado para ir mais longe, siga adiante. A menina vai entender que sua morte não foi inútil, mas um sacrifício em nome do amor maior. Olhe para os lados, veja o que está acontecendo na cidade, comporte-se como um cidadão normal — porque você já teve sua fatia de sofrimento nesta vida, e merece agora um pouco de conforto e tranqüilidade.

Aproveite o Festival. Você está preparado.

5 1

Mesmo que estivesse com roupa de banho, seria difícil chegar até a beira do mar. Pelo visto, os hotéis tinham direito a grandes fatias de areia onde espalhavam suas cadeiras, seus logotipos, seus garçons, seus guarda-costas, que em cada acesso à área reservada pediam a chave do quarto ou algum tipo de identifi cação do hóspede.

Outras fatias da praia eram ocupadas por grandes toldos brancos, onde alguma produtora de fi lme, marca de cerveja ou produto de beleza estava lançando uma novidade no que chamavam de “almo-

ço”. Nesses lugares, as pessoas estavam vestidas de maneira normal, considerando-se como “maneira normal” um boné na cabeça, uma camisa colorida e calças claras para os homens; e jóias, vestidos leves, bermudas, sapatos de salto baixo para as mulheres.

Óculos escuros para ambos os sexos. E nada de muita exibição do físico, porque a Superclasse já passou da idade de fazer isso, qualquer demonstração pode ser considerada ridícula ou, melhor dizendo, patética.

Igor observa mais um detalhe: telefone celular. A peça mais importante em toda a indumentária.

Era importante receber mensagens ou chamadas a cada minuto, interromper qualquer conversa para atender uma ligação que realmente não tinha nenhuma urgência, fi car digitando textos gigantescos através dos chamados SMS. Todos haviam se esquecido de que estas iniciais queriam dizer serviço de mensagens rápidas ( short mes-sage service), e usavam o pequeno teclado como se fosse uma máquina de escrever. Era lento, desconfortável, capaz de provocar lesões sérias nos polegares, mas que importância tinha isso? Não apenas em Cannes, mas no mundo inteiro, naquele exato momento o espaço estava sendo inundado de coisas como “Bom dia, meu amor, acor-dei pensando em você e estou contente que exista em minha vida”,

“Chego em dez minutos, por favor prepare meu almoço e veja se a roupa foi enviada para a lavanderia”, “A festa aqui está chatíssima, mas não tenho outro lugar para ir, onde você está?”.

5 2

Coisas que levavam cinco minutos para serem escritas, e apenas dez segundos para serem faladas, mas o mundo era assim mesmo.

Igor sabe bem do que se trata, porque ganhou centenas de milhões de dólares graças ao fato de que o telefone já não era apenas um meio de comunicar-se com os outros, mas um fi o de esperança, uma maneira de não achar que se está só, um jeito de mostrar a todos sua própria importância.

E este mecanismo estava levando o mundo a um estado de demência completa. Através de um engenhoso sistema criado em Londres por apenas 5 euros por mês, uma central envia mensagens-padrão a cada três minutos. Quando se está conversando com alguém que se deseja impressionar, basta antes ligar para determinado número e ativar o sistema. Neste caso, o alarme soa, o telefone sai do bolso, a mensagem é aberta, olha-se rapidamente, diz-se que tal mensagem pode esperar (claro que podia: estava escrito apenas “conforme pedido” e a hora). Assim, o interlocutor sente-se mais importante, e os negócios avançam com mais rapidez, porque sabe que está diante de uma pessoa ocupada. Três minutos depois a conversa é interrompida de novo por uma nova mensagem, a pressão aumenta, e o usuário pode decidir se vale a pena desligar o telefone por quinze minutos, ou alegar que estava ocupado e livrar-se de uma companhia desagradável.

Em uma única situação o telefone precisava ser obrigatoriamente desligado. Não nos jantares formais, no meio de uma peça de teatro, no momento mais importante de um fi lme, na ária mais difícil de uma ópera; todos já ouviram um celular tocando em qualquer um destes casos. A única hora em que as pessoas se assustavam realmente com a possibilidade de o telefone ser algo perigoso era quando entravam em um avião e ouviam a mentira de sempre: “Os celulares devem ser desligados durante todo o vôo, porque podem interferir nos instrumentos de bordo.”

Todos acreditavam e faziam o que os comissários pediam.

5 3

Igor sabia quando este mito tinha sido criado: faz muitos anos que as companhias aéreas tentam vender de qualquer jeito as chamadas feitas através dos telefones na poltrona. Dez dólares por minuto, usando o mesmo sistema de transmissão que um celular usa.

Não tinha dado certo, mas mesmo assim a lenda continuou — esqueceram de apagar da lista que a aeromoça lê antes da decolagem.

O que ninguém sabia é que em todos os vôos havia pelo menos dois ou três passageiros que se esqueciam de desligar os seus. Que os computadores portáteis podiam acessar a internet com o mesmo sistema que permite um telefone móvel funcionar. Nunca, em lugar nenhum do mundo, um avião tinha caído por causa disso.

Agora estavam tentando modifi car parte da lenda sem chocar os passageiros, ao mesmo tempo em que mantinham o preço nas alturas: celulares poderiam ser usados desde que utilizassem o sistema de navegação do avião. O preço era quatro vezes maior. Ninguém explicou direito o que é “sistema de navegação do aparelho”. Mas se as pessoas querem se deixar enganar desta maneira, o problema é delas.

Continua andando. Algo no último olhar daquela menina o inco-modou, mas prefere não pensar no assunto.

Mais guarda-costas, mais óculos escuros, mais biquínis na areia, mais roupas claras e jóias nos almoços, mais pessoas caminhando apressadas como se tivessem alguma coisa muito importante para fazer naquela manhã, mais fotógrafos espalhados em cada esquina tentando a impossível tarefa de algo inédito, mais revistas e jornais gratuitos sobre o que está acontecendo durante o festival, mais distribuidores de folhetos dirigidos aos pobres mortais que não tinham sido convidados para as tendas brancas, sugerindo restaurantes que fi cavam no alto da colina, distante de tudo, onde pouco se ouvia falar do que acontecia na Croisette, onde as modelos alugavam apar-5 4

tamentos por temporada, esperando que fossem chamadas para um teste que mudaria para sempre suas vidas.

Tudo sempre tão esperado. Tudo sempre tão previsível. Se resolvesse entrar agora em um daqueles “almoços” ninguém ousaria pedir sua identifi cação, porque era ainda cedo e os promotores tinham medo de que o evento terminasse vazio. Em meia hora, porém, dependendo do resultado, os guarda-costas tinham ordens expressas para deixar passar apenas moças bonitas e desacompanhadas.

Por que não testar?

Obedece ao seu impulso — afi nal, tem uma missão a cumprir.

Desce um dos acessos à praia, que em vez de levar até a areia conduz a um grande toldo branco com janelas de plástico, ar-refrigerado, móveis claros, cadeiras e mesas em sua maior parte vazias. Um dos guarda-costas pergunta se tem convite, ele responde que sim. Finge procurar no bolso. Uma recepcionista vestida de vermelho pergunta se pode ajudar.

Ele estende seu cartão de visita — o logotipo de sua companhia de telefones, Igor Malev, presidente. Afi rma que seguramente está na lista, mas deve ter deixado o convite no hotel — viera de uma série de encontros e se esquecera de trazer consigo. A recepcionista lhe dá as boas-vindas e o convida para entrar; aprendera a julgar os homens e mulheres pela maneira com que estavam vestidos, e sabia também que “presidente” quer dizer a mesma coisa em qualquer lugar do mundo. Além do mais, presidente de uma companhia russa! Todos sabem que os russos, quando são ricos, gostam de mostrar que estão nadando em dinheiro. Não era preciso checar a lista.

Igor entra, vai até o bar — na verdade, a tenda é muito bem equipada, dispõe até de uma pista de dança — pede um suco de abacaxi sem álcool, porque combina com a cor do ambiente.

E sobretudo porque no meio do copo enfeitado com um pequeno guarda-chuva japonês azul está um canudo negro.

5 5

Senta-se em uma das muitas mesas vazias. Entre as poucas pessoas presentes estava um homem com mais de 50 anos, cabelos tingidos de acaju, bronzeado artifi cial, o corpo exaustivamente trabalhado em academias de ginástica que prometem a juventude eterna. Usa uma camiseta surrada, e está sentado com outros dois homens, estes em impecáveis ternos de alta-costura. Os dois homens o encaram, e Igor desvia a cabeça — embora continue prestando atenção na mesma mesa, protegido pelos óculos escuros. Os homens de terno continuam analisando quem é o recém-chegado e logo se desinteressam.

Mas Igor continua interessado.

O homem sequer tem um celular em cima da mesa, embora seus auxiliares não parem de atender chamadas.

Se deixam entrar um tipo como aquele, mal vestido, suado, feio que se acha bonito, e ainda por cima lhe dão uma das melhores mesas. Se o seu celular está desligado. Se nota que volta e meia um garçom aparece por perto, perguntando se deseja algo. Se o homem não se digna sequer a responder, apenas faz um sinal negativo com a mão, Igor sabe que está diante de uma pessoa muito, mas muito importante.

Tira do bolso uma nota de 50 euros e dá para o garçom que co-meça a colocar os talheres e pratos na mesa.

— Quem é o senhor com aquela camiseta azul desbotada? —

moveu os olhos em direção à mesa.

— Javits Wild. Um homem muito importante.

Ótimo. Depois de alguém completamente insignifi cante como a menina na praia, alguém como Javits seria o ideal. Não alguém famoso, mas importante. Alguém que faz parte daqueles que decidem quem deve estar sob a luz dos holofotes, e não se importam nem um pouco em aparecer, porque sabem quem são. Os que movimentam os cordões de suas marionetes, fazendo com que elas se julguem as pessoas mais privilegiadas e cobiçadas do planeta, até que um dia, por uma razão qualquer, resolvem cortar esses fi os e os bonecos caem, sem vida e sem poder.

5 6

Um homem da Superclasse.

Isso signifi ca: alguém com falsos amigos e muitos inimigos.

— Mais uma pergunta. Seria aceitável destruir mundos em nome de um amor maior?

O garçom riu.

— O senhor é Deus, ou o senhor é gay?

— Nenhum dos dois. Mas obrigado por responder assim mesmo.

Percebe que agira errado. Em primeiro lugar, porque não precisa do apoio de ninguém para justifi car o que está fazendo; está convencido de que se todos no planeta vão morrer um dia, que alguns percam sua vida em nome de algo maior. Tem sido assim desde o iní-

cio dos tempos, quando homens se sacrifi cavam para alimentar suas tribos, quando virgens eram entregues aos sacerdotes para aplacar a ira de dragões e de deuses. Em segundo lugar, chamara a atenção de um estranho, mostrando que estava interessado no homem diante de sua mesa.

Ele iria esquecer, mas não há necessidade de riscos desnecessá-

rios. Diz a si mesmo que em um festival como esse é normal que as pessoas queiram saber quem são as outras, e mais normal ainda que tal informação seja remunerada. Já fi zera isso centenas de vezes, em diversos restaurantes do mundo, e com toda certeza já tinham feito a mesma coisa com ele — pagar o garçom para saber quem é, para conseguir uma mesa melhor, para enviar uma mensagem discreta.

Garçons não apenas estão acostumados, mas esperam esse tipo de comportamento.

Não, ele não irá se lembrar de nada. Está diante de sua próxima vítima; se conseguir levar seu plano até o fi nal, e se o garçom for interrogado, dirá que a única coisa estranha naquele dia foi uma pessoa perguntando se era aceitável destruir mundos em nome de um amor maior. Talvez nem mesmo se lembrasse da frase. Os policiais diriam: “Como era ele?” “Não prestei muita atenção. Mas não era gay.” Os policiais estavam acostumados com os intelectuais france-5 7

ses, que escolhiam geralmente os bares para fazerem teses e análises complicadíssimas sobre, por exemplo, a sociologia de um festival de cinema. E deixariam o assunto de lado.

Mas alguma coisa o incomodava.

O nome. Os nomes.

Já matara antes, com as armas e a bênção do seu país. Não sabia quantas pessoas, mas raramente pudera ver suas faces, e nunca, absolutamente nunca, perguntara seus nomes. Porque saber isso signifi ca também ter conhecimento de que está diante de um ser humano, e não de um inimigo. O nome faz com que alguém se transforme em um indivíduo único e especial, com passado e futuro, ascendentes e possíveis descendentes, conquistas e derrotas. As pessoas são os seus nomes, se orgulham deles, o repetem milhares de vezes no curso de uma vida, e se identifi cam com aquelas palavras. É a primeira palavra que aprendem depois do genérico “papai” e “mamãe”.

Olivia. Javits. Igor. Ewa.

Mas o espírito não tem nome, é a verdade pura, está habitando aquele corpo por determinado período, e um dia o deixará — sem que Deus se preocupe em perguntar “quem é você?” quando a alma chega diante do julgamento fi nal. Deus perguntará apenas: “Você amou enquanto estava vivo?” A essência da vida é essa: a capacidade de amar, e não o nome que carregamos em nossos passaportes, cartões de visitas, carteiras de identidade. Os grandes místicos trocavam seus nomes, e às vezes os abandonavam para sempre.

Quando perguntam a João Batista quem ele é, diz apenas: “Sou a voz que clama no deserto.” Ao encontrar o sucessor de sua igreja, Jesus ignora que passou a vida inteira respondendo ao chamado de Simão, e passa a chamá-lo Pedro. Moisés pergunta a Deus o seu nome: “Eu sou”, é a resposta.

Talvez devesse procurar outra pessoa. Já bastava uma vítima com nome: Olivia. Mas neste momento, sente que não pode mais recuar, embora esteja decidido a não perguntar mais como se chama 5 8

o mundo que está prestes a ser destruído. Não pode recuar porque quer ser justo com a pobre menina na praia, completamente desprotegida, uma vítima tão fácil e tão doce. O seu novo desafi o

— pseudo-atlético, cabelo acaju, suado, com um olhar de tédio e um poder que deve ser muito grande — é muito mais difícil. Os dois homens de terno não são apenas assessores; notou que volta e meia suas cabeças percorrem o ambiente, vigiando tudo que acontece ao redor. Se quer ser digno de Ewa e justo com Olivia, precisa mostrar sua coragem.

Deixa o canudo repousando no suco de abacaxi. Aos poucos as pessoas começaram a chegar. Agora é aguardar que o ambiente fi que cheio — mas isso não deve demorar muito. Da mesma maneira que não tinha planejado destruir um mundo em plena avenida de Cannes, à luz do dia, tampouco sabe exatamente como executar o seu projeto ali. Mas algo o diz que escolheu o local perfeito.

Seu pensamento não está mais na pobre menina da praia; a adrenalina é injetada em seu sangue com rapidez, o coração bate mais rápido, está excitado e contente.

Javits Wild não iria perder seu tempo apenas para comer e beber de graça, em uma das milhares de festas para as quais devia ser convidado todos os anos. Se estava ali, devia ser por algo ou alguém.

Esse algo, ou esse alguém, com toda certeza seria seu melhor álibi.

5 9

12:26 PM

Javits vê os convidados chegando, o ambiente que fi ca lotado, e pensa a mesma coisa:

“O que eu estou fazendo aqui? Não preciso disso. Aliás, preciso de muito pouca coisa dos outros — tenho tudo o que quero. Sou famoso para aqueles que conhecem o meio cinematográfi co, tenho as mulheres que desejo, embora saiba que sou feio e estou mal vestido.

Faço questão de estar assim. Já passei da época em que tinha um único terno, e nas raras ocasiões em que conseguia um convite da Superclasse (depois de rastejar, implorar, prometer), me preparava para um almoço destes como se fosse a coisa mais importante do mundo. Hoje sei que a única coisa que varia são as cidades; quanto ao mais, o que acontecerá aqui é previsível e aborrecido.

“Pessoas virão dizer que adoram meu trabalho. Outros me chamarão de herói, e agradecerão pelas chances que estou dando aos excluídos. Mulheres bonitas e inteligentes, que não se deixam con-fundir pela aparência, irão notar o movimento em torno da minha mesa, perguntarão ao garçom quem sou, e logo vão conseguir uma maneira de se aproximar, convencidas de que a única coisa em que estou interessado é sexo. Todos, absolutamente todos, querem me pedir algo. Por isso me elogiam, me adulam, me oferecem o que julgam que eu preciso. Mas tudo que desejo mesmo é estar só.

“Já assisti a milhares de festas como essa. E não estou aqui por nenhuma razão especial — exceto pelo fato de que não consigo dormir, mesmo que tenha vindo em meu avião particular, uma maravilha tecnológica capaz de voar a mais de 11 mil metros de altitude diretamente da Califórnia para a França sem parar para reabastecer. Mudei a confi guração original da cabine: embora o avião possa trazer 18 pessoas com todo o conforto possível, reduzi o número de poltronas para seis convidados, e mantive a cabine separada para os quatro membros da tripulação. Sempre tem alguém 6 1

pedindo: ‘Será que posso ir com você?’ Sempre tenho a desculpa certa: não há lugar.”

Javits havia equipado seu novo brinquedo, com preço na casa dos 40 milhões de dólares, com duas camas, uma mesa de conferências, chuveiro, sistema de som ambiente Miranda (Bang & Olufsen tinha um ótimo desenho e uma excelente campanha de relações pú-

blicas, mas era já coisa do passado), duas máquinas de café, um forno de microondas para a equipe e um forno elétrico para ele (porque detestava comida requentada). Javits só bebia vinho, quem quisesse dividir com ele uma garrafa de Langmeil Shiraz Barossa Valley 2004, ou um 2003 Clos Du Val era sempre bem-vindo. Mas sua adega no avião tinha todo tipo de bebida para os convidados. E duas telas de 21” de cristal líquido, sempre prontas para exibir os mais recentes fi lmes ainda inéditos nos cinemas.

O jato era um dos melhores do mundo (embora os franceses in-sistissem que o Dassault Falcon tinha mais qualidades), mas por mais poder e dinheiro que tivesse, não conseguiria mudar todos os re-lógios da Europa. Naquele momento eram 3:52 da manhã em Los Angeles, e só agora começava a sentir-se realmente cansado. Passara a noite em claro, indo de uma festa para outra, respondendo as duas perguntas idiotas que iniciam qualquer conversa:

“Como foi o seu vôo?”

Javits sempre respondia com outra pergunta:

“Por quê?”

Como as pessoas já não sabiam exatamente o que dizer, davam um sorriso amarelo, e passavam para a próxima pergunta da lista:

“Vai fi car aqui quanto tempo?”

E Javits retrucava mais uma vez: “Por quê?” Nesse momento, fi ngia atender seu celular, pedia licença, e se afastava com seus dois inseparáveis amigos.

Ninguém interessante por ali. Mas quem seria interessante para um homem que tem praticamente tudo que o dinheiro pode com-6 2

prar? Tentara mudar de amigos, procurando gente completamente afastada do meio do cinema: fi lósofos, escritores, malabaristas de circo, executivos de fi rmas ligadas à alimentação. No início, tudo era uma grande lua-de-mel, até que vinha a inevitável pergunta: “Será que gostaria de ler meu roteiro?” Ou a segunda inevitável pergunta:

“Tenho um(a) amigo(a) que sempre desejou ser ator/atriz. Você se incomodaria de encontrá-lo(a)?”

Sim, se incomodaria. Tinha outras coisas a fazer na vida além de seu trabalho. Costumava voar uma vez por mês para o Alasca, entrar no primeiro bar, embriagar-se, comer pizza, andar na natureza, conversar com os velhos moradores das pequenas cidades. Treinava duas horas por dia em sua academia de ginástica particular, e mesmo assim estava acima do seu peso, os médicos diziam que a qualquer hora ia ter um problema cardíaco. Pouco se importava com a sua forma física, o que desejava mesmo era descarregar um pouco da tensão constante que parecia esmagá-lo a cada segundo do dia, fazer uma meditação ativa, curar as feridas de sua alma. Quando estava no campo, perguntava sempre às pessoas que encontrava por acaso como era uma vida “normal”, porque já havia esquecido isso há muito tempo.

As respostas variavam, e aos poucos foi descobrindo que estava absolutamente sozinho no mundo, embora sempre cercado de gente.

Terminou compilando uma lista sobre normalidade, baseada mais no que as pessoas faziam do que nas suas respostas.

Javits olha em volta. Há um homem de óculos escuros tomando um suco de frutas, que parece alheio a tudo que o cerca, e contempla o mar como se estivesse longe dali. Bonito, cabelos grisalhos, bem-vestido. Foi um dos primeiros a chegar, devia saber quem ele era, e mesmo assim não fez o menor esforço para apresentar-se. Além do mais, tinha coragem de fi car ali, sozinho! A solidão em Cannes é um anátema, é sinônimo de que ninguém se interessa por você, da sua falta de importância ou de contatos.

6 3

Invejou aquele homem. Com toda certeza não se enquadrava na sua “lista de normalidade” que sempre trazia no bolso. Parecia independente, livre, e gostaria muito de conversar com ele, mas estava cansado demais para isso.

Vira-se para um dos “amigos”:

— O que é ser normal?

— Você está com algum confl ito de consciência? Acha que fez alguma coisa que não devia?

Javits havia feito a pergunta errada para o homem errado. Possivelmente seu companheiro agora passaria a achar que estava arrependido de seus passos, e desejava iniciar uma nova vida. Nada disso. E mesmo que se arrependesse, era tarde demais para voltar ao ponto de partida; conhecia as regras do jogo.

— Estou perguntando o que é ser normal.

Um dos “amigos” fi ca desconcertado. O outro continua olhando à sua volta, vigiando o movimento.

— Viver como uma dessas pessoas que não tem ambição nenhuma — responde fi nalmente.

Javits tira a lista do bolso e a coloca em cima da mesa.

— Ando sempre com isso. E vou acrescentando itens.

O “amigo” responde que não pode ver isso agora, precisa prestar atenção ao que está acontecendo. O outro, porém, mais relaxado e mais seguro, lê o que está escrito:

Lista da normalidade

1) É normal qualquer coisa que nos faça esquecer quem somos e o que desejamos, de modo que possamos trabalhar para produzir, reproduzir, e ganhar dinheiro.

2) Ter regras para uma guerra (Convenção de Genebra).

3) Gastar anos fazendo uma universidade, para depois não conseguir trabalho.

6 4

4) Trabalhar de nove da manhã às cinco da tarde em algo que não dá o menor prazer, desde que em trinta anos a pessoa consiga aposentar-se.

5) Aposentar-se, descobrir que já não tem mais energia para desfrutar a vida, e morrer em poucos anos, de tédio.

6) Usar botox.

7) Entender que o poder é muito mais importante que o dinheiro, e o dinheiro é muito mais importante que a felicidade.

8) Ridicularizar quem busca a felicidade em vez do dinheiro, chamando-o de “pessoa sem ambição”.

9) Comparar objetos como carros, casas, roupas, e defi nir a vida em função destas comparações, em vez de tentar realmente saber a verdadeira razão de estar vivo.

10) Não conversar com estranhos. Falar mal do vizinho.

11) Sempre achar que os pais estão certos.

12) Casar, ter fi lhos, continuar juntos mesmo que o amor tenha acabado, alegando que é para o bem da criança (que parece não estar assistindo às constantes brigas).

12a) Criticar todo mundo que tenta ser diferente.

14) Acordar com um despertador histérico ao lado da cama.

15) Acreditar em absolutamente tudo que está impresso.

16) Usar um pedaço de pano colorido amarrado no pescoço, sem qualquer função aparente, mas que atende pelo pomposo nome de “gravata”.

17) Nunca ser direto nas perguntas, mesmo que a outra pessoa entenda o que se está querendo saber.

18) Manter um sorriso nos lábios quando se está morrendo de vontade de chorar. E ter piedade de todos os que demonstram seus próprios sentimentos.

19) Achar que arte vale uma fortuna, ou que não vale absolutamente nada.

6 5

20) Sempre desprezar aquilo que não foi difícil de conseguir, porque não houve o “sacrifício necessário”, e portanto não deve ter as qualidades requeridas.

21) Seguir a moda, mesmo que tudo pareça ridículo e desconfortável.

22) Estar convencido de que toda pessoa famosa tem toneladas de dinheiro acumulado.

23) Investir muito na beleza exterior, e se preocupar pouco com a beleza interior.

24) Usar todos os meios possíveis para mostrar que, embora seja uma pessoa normal, está infi nitamente acima dos outros seres humanos.

25) Em um meio de transporte público, jamais olhar diretamente nos olhos de uma pessoa, caso contrário isso pode ser interpretado como um sinal de sedução.

26) Quando entrar no elevador, manter o corpo voltado para a porta de saída, e fi ngir que é a única pessoa lá dentro, por mais lotado que esteja.

27) Jamais rir alto em um restaurante, por melhor que seja a história.

28) No hemisfério norte, usar sempre a roupa combinando com a estação do ano; braços de fora na primavera (por mais frio que esteja) e casaco de lã no outono (por mais quente que esteja).

29) No hemisfério sul, encher a árvore de natal de algodão, mesmo que o inverno nada tenha a ver com o nascimento de Cristo.

30) À medida que for fi cando mais velho, achar-se dono de toda a sabedoria do mundo, embora nem sempre tenha vivido o sufi ciente para saber o que está errado.

31) Ir a um chá de caridade e achar que com isso já colaborou o su-fi ciente para acabar com as desigualdades sociais do mundo.

32) Comer três vezes por dia, mesmo sem fome.

6 6

33) Acreditar que os outros sempre são melhores em tudo: são mais bonitos, mais capazes, mais ricos, mais inteligentes. É

muito arriscado aventurar-se além dos próprios limites, melhor não fazer nada.

34) Usar o carro como uma arma e uma armadura invencível.

35) Dizer impropérios no trânsito.

36) Achar que tudo que seu fi lho faz de errado é culpa das companhias que ele escolheu.

37) Casar-se com a primeira pessoa que lhe oferecer uma posição social. O amor pode esperar.

38) Dizer sempre “eu tentei”, mesmo que não tenha tentado absolutamente nada.

39) Deixar para viver as coisas mais interessantes da vida quando já não tiver mais forças para tal.

40) Evitar a depressão com doses diárias e maciças de programas de TV.

41) Acreditar que é possível estar seguro de tudo que conquistou.

42) Achar que mulheres não gostam de futebol, e que homens não gostam de decoração e cozinha.

43) Culpar o governo por tudo de ruim que acontece.

44) Estar convencido de que ser uma pessoa boa, decente, respei-tosa signifi ca que os outros vão pensar que é fraca, vulnerável, e facilmente manipulável.

45) Estar igualmente convencido de que a agressividade e a descor-tesia no trato com os outros são sinônimos de uma personalidade poderosa.

46) Ter medo de fi broscopia (homens) e parto (mulheres).

O “amigo” ri:

— Você devia fazer um fi lme baseado nisso — comenta.

“Mais um. Não conseguem pensar em outra coisa. Não sabem o que eu faço, apesar de estarem sempre comigo. Eu não faço fi lmes.”

6 7

Um fi lme sempre começava com alguém que já pertence ao meio

— o chamado produtor. Leu um livro, ou teve uma idéia brilhante enquanto dirigia pelas auto-estradas de Los Angeles, que na verdade é um grande subúrbio em busca de uma cidade. Mas está sozinho, no carro e na vontade de transformar aquela brilhante idéia em algo que possa ser visto na tela.

Descobre se os direitos do livro ainda estão disponíveis. Se a resposta é negativa, vai em busca de outro produto — afi nal são publicados mais de 60 mil títulos por ano só nos Estados Unidos. Se a resposta é positiva, telefona direto para o autor e faz a menor oferta possível, geralmente aceita porque não são apenas os atores e atrizes que gostam de estar associados à máquina dos sonhos: todo autor sente-se mais importante quando suas palavras são transformadas em imagens.

Marcam um almoço. O produtor diz que está diante de “uma obra de arte, extremamente cinematográfi ca”, e que o escritor é um

“gênio que merece ser reconhecido”. O escritor explica que passou cinco anos trabalhando naquele texto, e pede para participar do roteiro. “Não deve, porque é uma linguagem diferente”, é a resposta.

“Mas você fi cará satisfeito com o resultado.”

Completando com: “O fi lme será fi el ao livro.” O que é uma completa e absoluta mentira, e ambos sabem disso.

O escritor pensa que dessa vez precisará aceitar as condições que serão propostas, e diz para si mesmo que na próxima vez será diferente. Concorda. O produtor agora demonstra que é preciso se associar a um grande estúdio, por causa do fi nanciamento do projeto.

Diz que terá tal e tal celebridade nos papéis principais — o que é outra mentira completa e absoluta, mas sempre repetida, e que sempre dá resultados no momento de seduzir alguém. Compra a chamada

“opção”, ou seja, paga algo em torno de 10 mil dólares para reter os direitos durante três anos. E o que acontecerá depois? “Bem, pa-garemos dez vezes esta quantia, e você terá direito a 2% do lucro lí-

6 8

quido.” Isso termina a parte fi nanceira da conversa, já que o escritor acredita que ganhará uma fortuna com parte do lucro.

Se tivesse perguntado a amigos, saberia que os contadores de Hollywood conseguem a magia de fazer com que um fi lme JAMAIS

tenha um saldo positivo.

O almoço termina com o produtor já tirando um contrato imenso do bolso, e perguntando se pode assinar agora, para que o estúdio saiba que realmente tem o produto nas mãos. O escritor, de olho na porcentagem (inexistente), e na possibilidade de ver seu nome na fachada de um cinema (também inexistente, pois o máximo que terá é uma linha nos créditos, “baseado no livro de...”) assina sem pensar muito.

Vaidade das vaidades, tudo é vaidade, e não há nada de novo debaixo do sol, já dizia Salomão há mais de três mil anos.

O produtor começa a bater nas portas dos estúdios. Já tem um certo nome, de modo que algumas delas se abrem, mas nem sempre sua sugestão é aceita. Neste caso, ele sequer se dá ao trabalho de chamar o escritor para um novo almoço — manda uma carta dizendo que, apesar do seu entusiasmo, a indústria do cinema ainda não entendeu aquele tipo de história, e que está devolvendo o contrato (que ele não assinou, claro).

Se a proposta é aceita, o produtor vai até a pessoa na escala mais baixa e menos cara da hierarquia: o roteirista. Aquele que irá passar dias, semanas, meses, escrevendo várias vezes a idéia original ou a adaptação do livro para a tela. Os roteiros são enviados ao produtor (jamais ao autor do livro), que tem por hábito recusar automati-camente o primeiro rascunho, na certeza de que o roteirista pode fazer melhor. Outras semanas e meses de café, insônia e sonho para o jovem talento (ou o velho profi ssional — aqui não existem meios-termos) que refaz cada uma das cenas, que são recusadas ou transformadas pelo produtor (e o roteirista se pergunta: “Se ele sabe escrever melhor que eu, por que não o faz?” Neste momento, pensa em seu salário, e volta para o computador sem reclamar muito).

6 9

Finalmente, o texto está quase pronto: nesta hora, o produtor pede para que sejam retiradas referências políticas que podem criar problema com um público mais conservador; que sejam acrescen-tados mais beijos, porque as mulheres gostam disso. Que a história tenha começo, meio, fi m, e um herói que leva todos às lágrimas com seu sacrifício e sua dedicação. Que alguém perca a pessoa adorada no começo do fi lme, e reencontre no fi nal. No fundo, a grande maioria dos roteiros pode ser resumida em uma simples linha: Homem ama mulher. Homem perde mulher. Homem recupera mulher.

Noventa por cento dos fi lmes são variações desta mesma linha.

Os fi lmes que fogem a esta regra precisam ter muita violência para compensar, ou muitos efeitos especiais para agradar à platéia. E

a fórmula, já testada milhares de vezes, é sempre vencedora; portanto é melhor não correr riscos.

Munido de uma história que considera bem escrita, o produtor vai em busca de quem?

Do estúdio que fi nanciou o projeto. Mas o estúdio tem uma fi la de fi lmes para colocar nas cada vez mais escassas salas de cinema do mundo. Pede que aguarde um pouco, ou que procure um distribuidor independente — não sem antes fazer com que o produtor assine outro gigantesco contrato (que inclusive prevê direitos exclusivos para

“fora do planeta Terra”) se responsabilizando pelo dinheiro gasto.

“E é exatamente neste momento que entra em cena gente como eu.” O distribuidor independente, que pode andar na rua sem ser reconhecido, embora nas festas da indústria todos saibam quem é. A pessoa que não descobriu o tema, não acompanhou o roteiro, não investiu um centavo.

Javits é o intermediário. É o distribuidor!

Recebe o produtor em seu pequeno escritório (o fato de ter um avião grande, casa com piscina, convites para tudo que está aconte-7 0

cendo no mundo é exclusivamente para seu conforto — o produtor não merece nem mesmo água mineral). Pega o DVD com o fi lme, leva para casa. Assiste aos primeiros cinco minutos. Se gostar, vai até o fi nal — mas isso acontece uma vez a cada cem novos produtos apresentados. Neste caso, gasta 10 centavos em uma chamada telefônica, e diz que o produtor volte a se apresentar em tal data, em tal hora.

“Assinamos um compromisso”, diz ele, como se estivesse fazendo um grande favor. “Eu distribuo.”

O produtor tenta negociar. Quer saber em quantas salas de cinema, em quantos países, quais as condições. Perguntas absolutamente inúteis, porque já sabe o que vai escutar: “Depende das primeiras rea-

ções do público-teste.” O produto é mostrado para platéias selecionadas entre todas as camadas da sociedade, gente que foi escolhida a dedo por companhias de pesquisa especializadas. O resultado é analisado por profi ssionais. Se é positivo, outros 10 centavos são gastos em uma chamada telefônica, e no dia seguinte, Javits o recebe com três cópias de mais um contrato gigantesco. O produtor pede tempo para que seu advogado leia. Javits diz que não tem nada contra isso, mas como precisa fechar o programa da temporada, não pode garantir que, na volta, já não esteja com outro fi lme no circuito.

O produtor olha apenas a cláusula que diz quanto vai ganhar.

Fica satisfeito com o que vê, e assina. Não deseja perder aquela oportunidade.

Já se passaram muitos anos desde que se sentou com o escritor para discutir o assunto, e se esqueceu que agora está vivendo a mesma situação que ele.

Vaidade das vaidades, tudo é vaidade, e não há nada de novo debaixo do sol, já dizia Salomão há mais de três mil anos.

Enquanto vê o salão enchendo de convidados, Javits de novo se pergunta o que estava fazendo ali. Controla mais de 500 salas de cinema nos Estados Unidos, tem contrato de exclusividade com outras 7 1

cinco mil no resto do mundo, onde os exibidores estavam obrigados a comprar tudo que ele oferecesse, mesmo que às vezes não desse resultado. Sabiam que um simples fi lme de boa bilheteria pode compensar com vantagem outros cinco que não tiveram público su-fi ciente. Dependiam de Javits, o megadistribuidor independente, o herói que conseguira quebrar o monopólio dos grandes estúdios, e transformar-se em uma lenda no meio.

Jamais tinham perguntado como conseguira essa façanha; desde que continuasse lhes oferecendo um grande sucesso a cada cinco fracassos (a média dos grandes estúdios era um grande sucesso para cada nove fracassos), esta pergunta não tinha a menor importância.

Mas Javits sabia por que conseguira ser tão bem-sucedido. E por isso não saía jamais sem seus dois “amigos”, que naquele momento se encarregavam de responder chamadas, marcar encontros, aceitar convites. Embora os dois tivessem um físico razoavelmente normal, longe da corpulência dos gorilas que estavam na porta, valiam por um exército. Tinham sido treinados em Israel, servido em Uganda, Argentina, e Panamá. Enquanto um se concentrava no celular, o outro movia incessantemente os olhos — decorando cada pessoa, cada movimento, cada gesto. Revezavam-se na tarefa, da mesma maneira que os tradutores simultâneos e os controladores aéreos fazem; a habilidade requer descanso a cada quinze minutos.

O que está fazendo naquele “almoço”? Podia ter fi cado no hotel tentando dormir, já está cansado de ser bajulado, elogiado, e ter de dizer a cada minuto, sorridente, que não lhe dessem um cartão de visita porque iria perdê-lo. Quando insistiam, pedia gentilmente que falassem com uma de suas secretárias (devidamente hospedada em outro hotel de luxo na Croisette, sem direito a dormir, sempre atenta ao telefone que não parava de tocar, sempre respondendo aos correios eletrônicos de salas de cinema no mundo inteiro, que vinham junto com propostas de aumentar o pênis ou de ter orgasmos repetidos, apesar de todos os fi ltros contra mensagens indese-7 2

jáveis). Dependendo de um código com a cabeça, um dos seus dois assistentes dava o endereço e o telefone da secretária, ou dizia que naquele momento seus cartões tinham acabado.

O que está fazendo naquele “almoço”? Era hora de estar dormindo em Los Angeles, por mais tarde que tivesse chegado de uma festa. Javits conhece a resposta, mas não quer aceitá-la: tem medo de fi car sozinho. Inveja o homem que chegou cedo e começou a beber seu coquetel, com o olhar distante, aparentemente relaxado, sem grandes preocupações em mostrar-se ocupado ou importante.

Resolve convidá-lo para tomar algo com ele. Mas nota que já não está mais lá.

Neste momento, sente uma picada nas costas.

“Mosquitos. Por isso detesto festas na areia.”

Quando vai coçar a mordida, retira de seu corpo um pequeno alfi nete. Que brincadeira idiota. Olha para trás, e a uma distância de aproximadamente dois metros, com vários convidados passando entre eles, um negro com cabelos típicos da Jamaica dava gargalhadas, enquanto um grupo de mulheres o olhava com respeito e desejo.

Está muito cansado para aceitar a provocação. Melhor deixar o negro fi ngir-se de engraçadinho — isso é tudo que ele tem na vida para impressionar os outros.

— Idiota.

Os dois companheiros de mesa reagem à súbita mudança de po-sição do homem a quem estavam encarregados de proteger por 435

dólares por dia. Um deles leva a mão até o ombro direito, onde uma arma automática está em um coldre impossível de ser visto por fora do paletó. O outro levanta-se e, com um salto discreto (afi nal, estavam em uma festa), coloca-se entre o negro e seu patrão.

— Não foi nada — diz Javits. — Apenas uma brincadeira.

Mostra o alfi nete.

Aqueles dois idiotas estavam preparados para ataques com arma de fogo, punhais, agressões físicas, ameaças de atentados. Eram sem-7 3

pre os primeiros a entrar em seu quarto de hotel, prontos para atirar se fosse preciso. Adivinhavam quando alguém carregava uma arma (o que era comum em muitas cidades do mundo) e não desgrudavam o olho até que a pessoa em questão provasse não ser uma ameaça.

Quando Javits tomava um elevador, fi cava espremido entre os dois, que grudavam seus corpos um ao outro, criando uma espécie de parede. Nunca os tinha visto tirar as pistolas, porque uma vez que isso acontecesse, elas seriam disparadas; geralmente, resolviam qualquer problema apenas com o olhar e uma conversa calma.

Problemas? Nunca tivera nenhum problema desde que conseguira os “amigos”. Como se a simples presença dos dois fosse o sufi ciente para afastar os maus espíritos e as más intenções.

— Aquele homem. Um dos primeiros a chegar aqui, que se sentou sozinho naquela mesa — diz um. — Ele estava armado, não estava?

O outro murmura algo como “possivelmente”. Mas já fazia tempo desaparecera da festa pela porta principal. E fora vigiado o tempo todo, porque não sabiam para onde apontavam os olhos detrás dos óculos escuros que usava.

Relaxam. Um volta a cuidar do telefone, o outro fi xa os olhos no negro jamaicano, que retribui o olhar, sem qualquer medo. Há algo estranho com aquele homem; mas se tornasse a fazer qualquer coisa, a partir daquele dia iria precisar usar dentadura. Tudo seria feito com o máximo de discrição possível, na areia, longe dos olhos de todos, e por apenas um deles, enquanto o outro fi caria esperando com o dedo no gatilho. Provocações como essa podem ser apenas um disfarce, cujo único objetivo consiste em afastar os guarda-costas da vítima. Já estavam acostumados com esse velho truque.

— Tudo bem...

— Não está nada bem. Chamem uma ambulância. Não consigo mover minha mão.

7 4

12:53 PM

Que sorte!

Ela esperava tudo naquela manhã, menos encontrar-se com o homem que — tinha certeza — iria mudar sua vida. Mas ele está ali, com seu ar desleixado de sempre, sentado com dois amigos, porque os poderosos não precisam de nada para mostrar do que são capazes.

Nem sequer usam guarda-costas.

Segundo Maureen, as pessoas em Cannes podiam ser divididas em duas categorias:

a) as bronzeadas, que passavam o dia inteiro no sol (porque eventualmente já eram vencedores), usavam um crachá solicitado nas áreas restritas do Festival. Quando chegavam em seus ho-téis, vários convites as esperavam — a grande maioria jogada na lata do lixo.

b) as pálidas, que corriam de um escritório escuro para o próximo, enfrentando testes, assistindo a coisas ótimas que se perderiam por causa do excesso de ofertas, ou tolerando verdadeiros horrores que podiam ganhar um lugar no sol (entre as bronzeadas), porque tinham o contato certo com a pessoa indicada.

Javits Wild ostenta um bronzeado invejável.

O evento que toma conta daquela pequena cidade do sul da França durante 12 dias, que faz aumentar todos os preços, que permite que apenas carros autorizados circulem pelas ruas, que enche o aeroporto de jatos privados e as praias de modelos, não é constituído apenas de um tapete vermelho cercado de fotógrafos por onde caminham as grandes estrelas em direção à porta do Palácio do Congresso.

Cannes não é sobre moda, é sobre cinema!

Embora o lado do luxo e do glamour fosse o mais visível, a verdadeira alma do Festival é o gigantesco mercado paralelo da indústria: compradores e vendedores vindos do mundo inteiro se encontram 7 5

para negociar produtos acabados, investimentos, idéias. Em um dia normal, 400 projeções são feitas em toda cidade — em sua maioria em apartamentos alugados por temporada, com gente espalhada desconfortavelmente em torno das camas, reclamando do calor e exigindo água mineral e atenções especiais, o que deixa os exibidores com os nervos à fl or da pele e um sorriso gelado no rosto. Precisam aceitar tudo, ceder a todas as provocações, porque é importante mostrar aquilo que demora geralmente anos para ser feito.

Ao mesmo tempo, enquanto essas 4.800 novas produções lutam com unhas e dentes pela chance de sair daquele quarto de hotel e ganhar uma verdadeira exibição em salas de cinema, o mundo dos sonhos começa a andar em sentido contrário: as novas tecnologias ganham terreno, as pessoas já não saem tanto de casa por causa da insegurança, do excesso de trabalho, dos canais de televisão a cabo

— nos quais podem escolher geralmente em torno de 500 fi lmes por dia, por um custo quase nulo.

E o que é pior: a internet hoje permite que todo mundo seja um cineasta. Portais especializados mostram fi lmes de bebês andando, homens e mulheres sendo decapitados nas guerras, mulheres que exibem seus corpos apenas pelo prazer de saber que alguém do outro lado estaria tendo um momento de prazer solitário, pessoas con-geladas, acidentes reais, cenas de esporte, desfi les de moda, vídeos de câmeras ocultas que pretendiam criar situações constrangedoras para os inocentes que passam diante delas.

Claro, as pessoas continuam a sair. Mas preferem gastar o dinheiro em restaurantes e roupas de marca, porque o resto está na tela de suas televisões de alta defi nição ou nos seus computadores.

Filmes. Já havia desaparecido em um passado longínquo a época em que todos se lembravam dos grandes vencedores da Palma de Ouro. Agora, se perguntassem quem havia ganhado no ano anterior, mesmo as pessoas que participaram do Festival eram incapazes de recordar. “Algum romeno”, dizia um. “Não, tenho certeza que foi 7 6

um alemão”, comentava outro. Iam sorrateiramente consultar o ca-tálogo e descobriam que tinha sido um italiano — que por sinal foi exibido apenas nos circuitos alternativos.

As salas de cinema, que depois de um período de concorrência com as locadoras de vídeo haviam voltado a crescer, parecem estar de novo em uma fase de decadência — competindo com DVDs de antigas produções que são entregues gratuitamente na compra de um jornal, locação através da internet, pirataria universal. Isso torna a distribuição mais selvagem: se um novo lançamento for considerado um investimento altíssimo por algum estúdio, eles forçam para que esteja no máximo de salas ao mesmo tempo, deixando pouco espaço para qualquer nova produção que se aventure no ramo.

E os poucos aventureiros que resolvem correr o risco — apesar de todos os sinais contrários — descobrem tarde demais que não basta ter um produto de qualidade nas mãos. Para que um fi lme chegue às grandes capitais do mundo os custos de promoção são proibitivos: anúncios de página inteira em jornais e revistas, recepções, assessores de imprensa, viagens de promoção, equipes cada vez mais caras, sofi sticados equipamentos de fi lmagem, mão-de-obra que começa a escassear. E o pior de todos os problemas: alguém que distribua o produto fi nal.

Mesmo assim, a cada ano continua a peregrinação de um lugar para o outro, horários marcados, a Superclasse que presta atenção a tudo menos ao que está sendo projetado na tela, companhias interessadas em pagar um décimo do preço justo para darem a “honra”

a determinado cineasta de ter seu trabalho mostrado na televisão, pedidos para que todo o material seja refeito de modo a não ofender as famílias, exigências de nova edição, promessas (nem sempre cumpridas) de que se mudarem por completo o roteiro e investirem em certo tema, terão um contrato no ano seguinte.

As pessoas ouvem, aceitam — porque não têm escolha. A Superclasse manda no mundo, seus argumentos são doces, sua voz suave, 7 7

seu sorriso delicado, mas suas decisões, defi nitivas. Eles sabem. Eles aceitam ou rejeitam. Eles têm o poder.

E o poder não negocia com ninguém, apenas consigo mesmo. Entretanto, nem tudo estava perdido. Tanto no mundo da fi cção, como no mundo real, sempre existia um herói.

E Maureen olha orgulhosa: o herói está diante de seus olhos!

O grande encontro que vai fi nalmente acontecer daqui a dois dias depois de quase três anos de trabalho, sonhos, telefonemas, viagens a Los Angeles, presentes, pedidos a amigos do seu Banco de Favores, interferência de um ex-amante seu, que tinha cursado com ela a escola de cinema, e achou que era muito mais seguro trabalhar em uma importante revista especializada no assunto do que se arriscar a perder a cabeça e o dinheiro.

“Falarei com ele”, dissera o ex-namorado. “Mas Javits não de pende de ninguém, nem mesmo de jornalistas que podem promover ou destruir seus produtos. Ele está acima de tudo: já pensamos em fazer uma reportagem para tentar descobrir como conseguiu ter nas mãos tantos exibidores, e nenhuma pessoa com quem trabalha quis prestar declarações a respeito. Falo, mas não coloco nenhuma pressão.”

Falou. Conseguiu que ele assistisse a Os segredos do porão. No dia seguinte, recebeu um telefonema dizendo que se encontrariam em Cannes.

Maureen sequer ousou dizer que estava a apenas dez minutos de táxi do seu escritório: marcou uma hora na longínqua cidade da França. Conseguiu um bilhete de avião para Paris, tomou um trem que demorou um dia inteiro para chegar ao local, exibiu um voucher a um mal-humorado gerente de um hotel de quinta categoria, instalou-se em um quarto de solteiro no qual tinha que passar por cima das malas cada vez que precisasse ir ao banheiro, arranjou — ainda com seu ex-namorado — convites para alguns eventos de segunda categoria, como a promoção de um novo tipo de vodka ou o lan-7 8

çamento de uma nova linha de camisetas; já era tarde demais para conseguir o passe que permite a entrada no Palácio dos Festivais.

Gastara um dinheiro acima do seu orçamento, e viajara mais de vinte horas seguidas, mas teria os seus dez minutos.

E tinha certeza que, no fi nal, sairia com um contrato e um futuro pela frente. Sim, a indústria do cinema vivia uma crise, mas e daí?

Os fi lmes (embora poucos) ainda não continuavam fazendo sucesso?

As cidades não estavam cheias de cartazes dos novos lançamentos? As revistas de celebridades traziam matérias sobre quem? Artistas de cinema! Maureen sabia — melhor dizendo, estava convencida — que a morte do cinema já havia sido decretada muitas vezes, e mesmo assim ele continuava sobrevivendo. “O cinema acabou” quando chegou a televisão. “O cinema acabou” quando chegaram as locadoras.

“O cinema acabou” quando a internet começou a permitir acessos a sites de pirataria. Mas o cinema estava ali, naquelas ruas da pequena cidade no Mediterrâneo, que devia sua fama justamente ao Festival.

Agora, tudo era uma questão de aproveitar a sorte que lhe caíra dos céus.

E aceitar tudo, absolutamente tudo. Javits Wild está ali. Javits já tinha visto seu fi lme. O tema tinha tudo para dar certo: a exploração sexual, voluntária ou forçada, estava ganhando um destaque muito grande na mídia por causa de uma série de casos de repercussão mundial. Era o momento certo para Os segredos do porão ter seus cartazes expostos na cadeia de exibição que controlava.

Javits Wild, o rebelde com causa, o homem que estava revolucio-nando a maneira com que os fi lmes atingiam o grande público. Apenas o ator Robert Redford havia tentado algo semelhante, com seu Sundance Film Festival, para cineastas independentes — mas mesmo assim, apesar de décadas de esforço, Redford ainda não tinha conseguido quebrar a grande barreira que movimentava as centenas de milhões de dólares nos Estados Unidos, na Europa e na Índia. Javits Wild, porém, era um vencedor.

7 9

Javits Wild, a redenção dos cineastas, o grande mito, o aliado das minorias, o amigo dos artistas, o novo mecenas — que através de um inteligente sistema (que ela desconhecia por completo, mas sabia que dava resultado) agora atingia também salas no mundo inteiro.

Javits Wild havia lhe convidado para um encontro de dez minutos no dia seguinte. Isso queria simplesmente dizer: havia aceito seu projeto, e agora tudo era apenas uma questão de detalhes.

“Aceitarei tudo. Absolutamente tudo”, repete.

Evidente que em dez minutos Maureen não conseguirá dizer absolutamente nada do que havia passado durante os oito anos (melhor dizendo, um quarto da sua vida) que estivera envolvida com a produção de seu fi lme. Inútil explicar que havia cursado uma faculdade de cinema, dirigido alguns comerciais, feito dois curtas-metragens que tiveram uma ótima acolhida em diversos salões de cidades do interior, ou em bares alternativos em Nova York. Que, para levantar o milhão de dólares necessário para a produção profi ssional, hipote-cara a casa que recebera como herança de seus pais. Que esta era sua única chance, já que não teria outra casa para fazer a mesma coisa.

Tinha acompanhado de perto a carreira de seus outros amigos de curso, que depois de muito lutar haviam escolhido o mundo confortável dos comerciais — cada vez mais presentes — ou um emprego obscuro, mas garantido, em uma das muitas empresas que produziam seriados para a TV. Depois que seus pequenos trabalhos foram bem aceitos, começou a sonhar mais alto, e a partir daí já não tinha mais como controlar isso.

Estava convencida de que tinha uma missão: transformar esse mundo em um lugar melhor para as gerações vindouras. Juntar-se com outras pessoas iguais a ela, mostrar que a arte não era apenas uma maneira de entreter ou divertir uma sociedade perdida. Expor os defeitos dos líderes, salvar as crianças que neste momento mor-riam de fome em algum lugar da África. Denunciar os problemas do meio ambiente. Acabar com a injustiça social.

8 0

Claro, era um projeto ambicioso, mas tinha certeza de que sua obstinação terminaria por levá-la a realizá-lo. Para isso, precisava purifi car sua alma, e sempre recorria às quatro forças que a guia-vam: amor, morte, poder e tempo. É necessário amar, porque somos amados por Deus. É necessária a consciência da morte, para entender bem a vida. É necessário lutar para crescer — mas sem cair na armadilha do poder que conseguimos com isso, porque sabemos que ele não vale nada. Finalmente, é necessário aceitar que nossa alma

— embora seja eterna — está neste momento presa na teia do tempo, com suas oportunidades e limitações.

Embora presa na teia do tempo, podia trabalhar com o que lhe dava prazer e entusiasmo. E através dos seus fi lmes seria capaz de deixar sua contribuição ao mundo que parecia se desintegrar à sua volta, mudar a realidade, transformar os seres humanos.

Quando seu pai morreu, depois de queixar-se a vida inteira de que jamais tivera a oportunidade de fazer o que sempre sonhou, ela entendeu algo muito importante: transformações acontecem justamente nesses momentos de crise.

Não gostaria de terminar a vida como ele. Não gostaria de dizer à sua fi lha “Eu quis, em determinado momento eu pude, mas não tive coragem de arriscar tudo”. Ao receber a herança, entendeu na mesma hora que esta lhe havia sido dada por uma única razão: permitir que cumprisse seu destino.

Aceitou o desafi o. Ao contrário das outras adolescentes que sempre desejavam ser atrizes famosas, seu sonho era contar histórias que as gerações seguintes ainda pudessem ver, sorrir e sonhar. Seu grande exemplo era Cidadão Kane: primeiro fi lme de um radialista que desejava criticar um poderoso magnata da imprensa americana, tornou-se um clássico não apenas por sua história, mas por lidar de maneira inovadora e criativa com os problemas éticos e técnicos da época. Bastou um simples fi lme para que jamais fosse esquecido.

8 1

“Seu primeiro fi lme.”

É possível acertar logo de saída. Mesmo que seu autor, Orson Welles, nunca mais tenha feito nada à altura. Mesmo que ele tenha desaparecido do cenário (isso acontece) e agora se limitasse a ser estudado nos cursos de cinema: com toda certeza, em breve alguém viria “redescobrir” seu gênio. Cidadão Kane não fora seu único le-gado: provara a todos que bastava um excelente primeiro passo, e teria convites para o resto de sua vida.

Honraria esses convites. Prometera a si mesma jamais esquecer as difi culdades pelas quais passara, e fazer da sua vida algo que tornasse o ser humano mais digno.

E como existe apenas UM primeiro fi lme, concentrou todo seu esforço físico, suas preces, sua energia emocional em um único projeto. Ao contrário de seus amigos, que viviam enviando roteiros, propostas, idéias, e terminavam trabalhando em várias coisas ao mesmo tempo sem que nenhuma delas desse resultado, Maureen dedicou-se de corpo e alma a Os segredos do porão, a história de cinco freiras que recebem a visita de um maníaco sexual. Em vez de tentar convertê-lo à salvação cristã, entendem que o único diálo-go possível é aceitar as normas do seu mundo cheio de aberrações; decidem entregar seus corpos para fazer com que ele entenda a gló-

ria de Deus através do amor.

O seu plano era simples: as atrizes em Hollywood, por mais famosas que sejam, normalmente desaparecem dos elencos quando chegam aos 35 anos. Continuam freqüentando as páginas de revistas de celebridades por mais tempo, são vistas em leilões benefi centes, grandes festas, participam de causas humanitárias, e quando notam que vão realmente sumir dos holofotes, começam a se casar e se di-vorciar, criar escândalos públicos — tudo isso por mais uns meses, umas semanas, uns dias de glória. Ora, nesse período que vai do desemprego à obscuridade total, o dinheiro já não tem mais importância: aceitariam qualquer coisa para estar de novo nas telas.

8 2

Maureen se aproximou de mulheres que há menos de uma década estavam no topo do mundo, agora sentiam que o chão começava a escorregar sob seus pés, e precisavam desesperadamente voltar para onde viviam antes. O roteiro era bom; foi enviado para seus agentes, que pediram um salário absurdo e escutaram um simples “não”

como resposta. Seu próximo passo foi bater na porta de cada uma; disse que já tinha dinheiro para o projeto, e todas terminaram aceitando — sempre pedindo segredo pelo fato de estarem trabalhando quase de graça.

Em uma indústria como aquela, era impossível começar pensando de maneira humilde. De vez em quando, em seus sonhos, o fantasma de Orson Welles aparecia: “Tente o impossível. Não comece por baixo, porque embaixo você já está. Suba rapidamente, antes que tirem a escada. Se tiver medo, faça uma prece, mas siga adiante.” Tinha uma ótima história, um elenco de primeiríssima qualidade, e sabia que era necessário produzir algo que fosse aceito pelos grandes estúdios e distribuidores, sem que com isso se obrigasse a abrir mão da qualidade.

Era possível e obrigatório que arte e comércio andassem juntos.

O resto era o resto: críticos adeptos de masturbação mental que adoravam fi lmes que ninguém compreendia. Pequenos circuitos alternativos em que todas as noites a mesma dúzia de pessoas saía das sessões para passar madrugadas em bares, fumando e comentando uma única cena (cujo signifi cado, aliás, era possivelmente completamente distinto da intenção com que fora fi lmada). Diretores que davam conferências para explicar o que deveria ser óbvio para a platéia. Encontros de sindicatos para reclamar que o Estado não apoiava o cinema local. Manifestos em revistas intelectuais, frutos de reuniões intermináveis, nos quais faziam as mesmas queixas sobre o desinteresse do governo em apoiar a arte. Uma ou outra nota publicada na grande imprensa e geralmente lida apenas pelos interessados ou pela família dos interessados.

8 3

Quem muda o mundo? A Superclasse. Aqueles que fazem. Que interferem no comportamento, nos corações e mentes do maior nú-

mero de pessoas possível.

Por isso queria Javits. Queria o Oscar. Queria Cannes.

E já que para chegar a tudo isso era impossível um trabalho democrático — tudo que as outras pessoas queriam era dar opinião sobre a melhor maneira de fazer algo, sem jamais se envolverem com os riscos — ela simplesmente apostou tudo. Contratou a equipe que estava disponível, reescreveu durante meses o roteiro, convenceu ótimos — e desconhecidos — diretores de arte, fi gurinistas, atores coadjuvantes a participarem, prometendo quase nenhum dinheiro, mas muita visibilidade no futuro. Todos se impressionavam com a lista das cinco atrizes principais (“O orçamento deve ser muito, muito alto!”), pediam grandes salários no início, e terminavam convencidos de que participar de um projeto como aquele seria importantíssimo para seus currículos. Maureen estava tão contagiada pela idéia que o entusiasmo parecia abrir-lhe todas as portas.

Agora faltava o salto fi nal, aquilo que faria a diferença. Não basta para um escritor ou músico desenvolver algo de qualidade, é preciso que sua obra não termine mofando na estante ou na gaveta.

É preciso vi-si-bi-li-da-de!

Enviou uma cópia a apenas uma pessoa: Javits Wild. Usou todos os seus contatos. Foi humilhada, e mesmo assim seguiu adiante. Foi ignorada, mas isso não tirou sua coragem. Foi maltratada, ridicula-rizada, excluída, mas continuou a acreditar que era possível, porque colocara cada gota do seu sangue no que acabara de fazer. Até que seu ex-namorado entrou em cena, e Javits Wild marcou um encontro.

Está de olho nele durante o almoço, saboreando com antecipação o momento que passarão juntos, daqui a dois dias. De repente, nota que fi ca paralisado, com os olhos no vazio. Um dos seus amigos olha para trás, para os lados, sempre mantendo a mão dentro do paletó. O

outro pega seu celular e começa a digitar histericamente as teclas.

8 4

Teria acontecido alguma coisa? Seguramente que não; as pessoas que estão mais perto continuam conversando, bebendo, desfrutando mais um dia de Festival, festas, sol e corpos bonitos.

Um dos homens tenta levantá-lo e fazê-lo caminhar, mas Javits parece não conseguir se mover. Não deve ser nada. Bebida em excesso, no máximo. Cansaço. Stress.

Não pode ser nada. Tinha chegado tão longe, estava tão próxi-ma e...

De longe, começou a escutar uma sirene. Deve ser a polícia, abrindo caminho no trânsito eternamente congestionado para alguma personalidade importante.

Um dos homens coloca o braço de Javits em seu ombro, e o carrega em direção à porta. A sirene se aproxima. O outro homem, sem tirar a mão de dentro do paletó, move a cabeça em todas as direções.

Em um dado momento seus olhos se cruzam.

Javits está sendo levado rampa acima por um de seus amigos, e Maureen se perguntava como alguém que parecia tão frágil era capaz de carregar um corpanzil daqueles sem muito esforço.

O som da sirene pára exatamente diante da grande tenda. A esta altura Javits já havia desaparecido com um de seus amigos, mas o segundo homem caminha em sua direção, ainda com uma das mãos dentro do paletó.

— O que aconteceu? — pergunta assustada. Porque anos de trabalho na arte de dirigir atores haviam lhe ensinado que a face do sujeito diante dela parecia feita de pedra, como a de um assassino profi ssional.

— Você sabe o que aconteceu — a voz tinha um sotaque que ela não conseguia identifi car.

— Vi que ele começou a passar mal. O que aconteceu?

O homem não tira a mão de dentro do seu paletó. E neste instante, Maureen teve a idéia que talvez mudasse um pequeno incidente em uma grande possibilidade.

8 5

— Posso ajudar? Posso ir até ele?

A mão parece relaxar um pouco, mas os olhos continuam prestando atenção a cada movimento que ela fazia.

— Vou com vocês. Conheço Javits Wild. Sou sua amiga.

No que pareceu uma eternidade, mas que não deve ter durado mais que uma fração de segundo, o homem virou-se e saiu andando a passos rápidos em direção à Croisette, sem dizer uma só palavra.

A cabeça de Maureen funcionava a todo vapor. Por que ele havia dito que ela sabia o que tinha acontecido? E por que, subitamente, havia perdido por completo o interesse nela?

Os outros convidados não notam absolutamente nada — exceto o barulho da sirene, que possivelmente atribuem a algo que tinha acontecido na rua. Mas sirenes não combinam com alegria, sol, bebidas, contatos, belas mulheres, belos homens, gente pálida e gente bronzeada. Sirenes pertencem a outro mundo, onde existem acidentes, ataques cardíacos, doenças, crimes. Sirenes não interessavam nem um pouco a nenhuma das pessoas que estava ali.

A cabeça de Maureen pára de girar. Algo tinha acontecido com Javits, e isso era um presente dos céus. Corre até a porta, vê uma ambulância a toda velocidade na pista interditada, de novo com as sirenes ligadas.

— É meu amigo! — diz para um dos guarda-costas na entrada.

— Para onde foi levado?

O homem dá o nome de um hospital. Sem refl etir um só instante, Maureen começa a correr em busca de um táxi. Dez minutos depois entende que não há táxis na cidade, exceto aqueles chamados pelos porteiros de hotel, graças a generosas gorjetas. Como está sem dinheiro no bolso, entra em uma pizzaria, mostra o mapa que carrega consigo, aprende que deve continuar a correr pelo menos durante meia hora em direção ao seu objetivo.

Tinha corrido a vida inteira, isso não faria muita diferença.

8 6

1:00 PM

— Bom dia.

— Boa tarde — uma delas responde. — Já passou do meio-dia.

Exatamente como tinha imaginado. Cinco moças parecidas fi sicamente com ela. Todas maquiadas, de pernas de fora, decotes provocantes, ocupadas com seus telefones e seus SMS.

Nenhuma conversa, porque já se reconhecem como almas gê-

meas, tendo passado pelas mesmas difi culdades, aceitado sem reclamar os nocautes, enfrentado os mesmos desafi os. Todas procurando acreditar que um sonho não tinha data para terminar, a vida pode mudar de uma hora para a outra, o momento certo está esperando, a vontade está sendo testada.

Todas possivelmente tinham brigado com suas famílias, que acreditavam que a fi lha terminaria na prostituição.

Todas tinham já subido no palco, experimentado a agonia e o êxtase de ver o público, saber que as pessoas tinham os olhos cravados na cena diante delas, sentido a eletricidade no ar e aplausos no fi -

nal. Todas imaginaram centenas de vezes que alguém da Superclasse estivesse na platéia, e um dia seriam procuradas no camarim depois do espetáculo com algo mais concreto além de propostas para jantar, pedidos de telefone, cumprimentos pelo excelente trabalho.

Todas já tinham aceito três ou quatro desses convites, até entenderem que aquilo não levava a lugar nenhum além da cama de um homem normalmente mais velho, poderoso, mas interessado apenas na conquista. E geralmente casado, como todo homem interessante.

Todas tinham um namorado jovem, mas quando alguém perguntava o estado civil, diziam: “Livre e desimpedida.” Todas achavam que conseguiam dominar bem a situação. Todas escutaram centenas de vezes que tinham talento, faltava uma oportunidade, e ali, diante delas, estava a pessoa que iria transformar por completo suas vidas.

Todas acreditaram algumas vezes. Todas caíram na armadilha do 8 7

excesso de confi ança e se julgaram donas da situação, até se darem conta no dia seguinte de que o telefone que haviam recebido caía no ramal de uma secretária mal-humorada, que não passava, de jeito nenhum, a chamada para o patrão.

Todas já tinham ameaçado contar que foram enganadas, dizendo que venderiam a história para os jornais de escândalo. Nenhuma delas fez isso, porque ainda estavam na fase do “não posso me quei-mar no meio artístico”.

Possivelmente, uma ou duas delas haviam passado pela prova de Alice no País das Maravilhas, e agora queriam provar à família que eram mais capazes do que pensavam. Por sinal, as famílias já haviam visto suas fi lhas em comerciais, pôsteres ou outdoors espalhados pela cidade e, depois das brigas iniciais, estavam absolutamente convencidas de que o destino de suas meninas era um só: Brilho e glamour.

Todas pensaram que o sonho era possível, que um dia iriam reconhecer seu talento, até compreenderem que só existe uma única palavra mágica naquele ramo:

“Contatos.”

Todas haviam distribuído seus books assim que chegaram a Cannes. E fi cavam vigiando o celular, freqüentando os lugares possíveis, tentando entrar nos lugares impossíveis, sonhando que alguém as convidasse para as festas durante a noite, e para o maior de todos os prêmios: o tapete vermelho do Palácio do Congresso. Mas aquele era talvez o sonho mais difícil de realizar — tão difícil que sequer confessavam a si mesmas, para evitar que os sentimentos de rejeição e de frustração terminassem por destruir a alegria que precisavam mostrar de qualquer jeito, mesmo que não estivessem contentes.

Contatos.

Através de muitos encontros errados, conseguiram um ou outro que as levou a algum lugar. Por isso estavam ali. Porque tinham contatos, e através deles um produtor da Nova Zelândia as havia 8 8

chamado. Nenhuma perguntava para quê; sabiam apenas que precisavam ser pontuais, já que ninguém tinha tempo a perder, muito menos as pessoas da indústria. Só quem tinha mesmo tempo disponível eram elas, as cinco moças na sala de espera, ocupadas com seus celulares e suas revistas, enviando compulsivamente SMS para ver se tinham sido convidadas para alguma coisa naquele dia, tentando falar com os amigos, e jamais se esquecendo de dizer que no momento não estavam disponíveis, tinham um encontro muito importante com um produtor de cinema.

Gabriela foi a quarta pessoa a ser chamada. Tentara ler o que dizia os olhos das três primeiras que saíram da sala sem dizer palavra, mas todas eram... atrizes. Capazes de esconder qualquer sentimento de alegria ou tristeza. Caminhavam decididas para a porta de saída, desejavam “boa sorte” com uma voz fi rme, como se dissessem: “Não precisam fi car nervosas, meninas, vocês não têm mais nada a perder.

O papel já é meu.”

Uma das paredes do apartamento estava coberta por um pano negro. No chão, cabos elétricos de todos os tipos, luzes cobertas por uma armação de arame, onde haviam montado uma espécie de guarda-chuva com um pano branco estendido adiante. Equipamento de som, monitores, e uma câmera de vídeo. Pelos cantos estavam garrafas de água mineral, maletas de metal, tripés, folhas espalhadas, e um computador. Sentada no chão, uma mulher de óculos, de aproximadamente 35 anos, folheava seu book.

— Horrível — diz, sem olhar para ela. — Horrível — repetia.

Gabriela não sabe exatamente o que fazer. Talvez fi ngir que não está escutando, ir para o canto onde o grupo de técnicos conversa animadamente enquanto acende um cigarro atrás do outro, ou simplesmente fi car parada.

— Detesto essa — continuou a mulher.

8 9

— Sou eu.

Era impossível controlar a língua. Tinha saído correndo por metade de Cannes, fi cado quase duas horas em uma sala de espera, sonhado mais uma vez que sua vida ia mudar para sempre (embora estes delírios estivessem cada vez mais sob controle, e já não se deixava excitar tanto como antigamente), e não precisava de mais nada para deprimi-la.

— Sei disso — disse a mulher, sem tirar os olhos das fotos. — Devem ter custado uma fortuna. Tem gente que vive de fazer books, escrever currículos, dar cursos de teatro, enfi m, ganhar dinheiro por causa da vaidade de gente como você.

— Se acha horrível, por que me chamou?

— Porque estamos precisando de uma pessoa horrível.

Gabriela ri. A mulher fi nalmente levanta a cabeça e a olha de cima a baixo.

— Gostei da sua roupa. Odeio pessoas vulgares.

O sonho de Gabriela voltava. O coração palpitou.

A mulher lhe estende um papel.

— Vá até a marcação.

E virando-se para a equipe:

— Apaguem os cigarros! Fechem a janela para não atrapalhar o som!

A “marcação” era uma cruz feita com fi ta adesiva amarela no solo. Desta maneira, a luz não precisava ser refeita, e a câmera não tinha que se movimentar — o ator estava no lugar indicado pelo equipamento técnico.

— Estou suando com o calor aqui. Posso pelo menos ir ao banheiro e colocar uma base, um pouco de maquiagem?

— Poder, claro que pode. Mas quando voltar, já não terá mais tempo para a gravação. Precisamos entregar esse material antes do fi nal da tarde.

9 0

Todas as outras moças que entraram devem ter feito a mesma pergunta, e obtido a mesma resposta. Melhor não perder tempo — tira um lenço de papel da bolsa e toca levemente a face, enquanto se encaminha para a marca.

Um assistente vai para diante da câmera, enquanto Gabriela luta contra o tempo, tentando ler pelo menos uma vez o que estava escrito naquela meia folha de papel.

— Teste número 25, Gabriela Sherry, Agência Thompson.

“Vinte e cinco?”

— Rodando — disse a mulher de óculos.

O local fi cou em silêncio completo.

— “Não, não acredito no que está dizendo. Ninguém é capaz de cometer crimes sem uma razão.”

— Comece de novo. Você está falando com seu namorado.

— “Não. Não acredito no que está dizendo! Ninguém é capaz de cometer crimes assim, sem nenhuma razão.”

— A palavra “assim” não está no texto. Você acha que o roteirista, que trabalhou durante meses, não pensou na possibilidade de colocar “assim”? E não a eliminou porque achou inútil, superfi cial, desnecessária?

Gabriela respira fundo. Não tem mais nada a perder, exceto a pa-ciência. Agora vai fazer o que bem entende, sair dali, ir para a praia, ou voltar para dormir mais um pouco. Precisa repousar para estar em plena forma quando começarem os coquetéis durante a tarde.

Uma estranha, deliciosa calma toma conta dela. De repente, sente-se protegida, amada, agradecida por estar viva. Ninguém a obrigava a estar ali, agüentando de novo aquela humilhação toda.

Pela primeira vez em todos aqueles anos, estava consciente do seu poder, que julgava nunca ter existido.

— “Não, não acredito no que está dizendo. Ninguém é capaz de cometer crimes sem razão.”

9 1

— Próxima frase.

A ordem tinha sido desnecessária. Gabriela ia continuar de qualquer jeito.

— “Melhor irmos até o médico. Acho que você está precisando de ajuda.”

— “Não” — contracenou a mulher de óculos, que fazia o papel de “namorado”.

— “Está bem. Não vamos ao médico. Vamos passear um pouco, e você me conta exatamente o que está acontecendo. Eu te amo. Se ninguém mais neste mundo se importa com você, eu me importo.”

As frases na folha de papel haviam terminado. O ambiente estava em silêncio. Uma estranha energia toma conta do local.

— Diga à moça que está esperando que pode ir embora — ordena a mulher de óculos a uma das pessoas presentes.

Será que era o que ela estava pensando?

— Vá até a ponta esquerda da praia, onde existe a marina que se encontra no fi nal da Croisette, em frente à Allée des Palmiers. Ali um barco estará esperando pontualmente à 1:55 PM para levá-la ao encontro do Sr. Gibson. Estamos enviando o vídeo agora, mas ele gosta de conhecer pessoalmente as pessoas com quem tem possibilidade de trabalhar.

Um sorriso se abre no rosto de Gabriela.

— Eu disse “possibilidade”. Não disse “vai trabalhar”.

Mesmo assim, o sorriso continua. Gibson!

9 2

1:19 PM

Entre o inspetor Savoy e o legista, deitada sobre uma mesa de aço inoxidável, está uma bela jovem de aproximadamente 20 anos, completamente nua.

E morta.

— O senhor tem certeza?

O legista se dirige até uma pia, também de aço inoxidável. Retirou as luvas de borracha, atirou-as no lixo, e abriu a torneira.

— Absoluta certeza. Nenhum vestígio de droga.

— Então, o que aconteceu? Uma jovem como essa, ter um ataque cardíaco?

Tudo que se ouve na sala é o barulho da água correndo.

“Eles pensam sempre no óbvio: drogas, ataque cardíaco, coisas do tipo.”

Demora mais do que o necessário para terminar de lavar as mãos

— um pouco de suspense não fazia mal ao seu trabalho. Passa desin-fetante nos braços, e joga no lixo o material descartável que usara na autópsia. Depois se volta e pede que o inspetor olhe o corpo da moça de alto a baixo.

— Detalhadamente, sem nenhum pudor; faz parte de sua profi s-são saber prestar atenção aos detalhes.

Savoy examina cuidadosamente o cadáver. Em determinado momento, estende a mão para levantar um dos braços, mas o legista o detém.

— Não é necessário tocá-la.

Os olhos de Savoy percorrem o corpo nu da menina. A esta altura sabia bastante a respeito dela — Olivia Martins, fi lha de pais portugueses, namorando um jovem sem profi ssão defi nida, freqüentador das noites de Cannes, e que neste momento estava sendo interrogado longe dali. Um juiz autorizou que seu apartamento fosse aberto, e encontraram pequenos frascos de THC (tetraidrocanabinol, o prin-9 3

cipal elemento alucinógeno da marijuana, e que hoje em dia podia ser ingerido em uma mistura com óleo de gergelim, o que não deixa cheiro no ambiente e tem um efeito muito maior que a absorção através do fumo). Seis envelopes contendo um grama de cocaína cada um. Marcas de sangue no lençol que agora está sendo enviado para um laboratório. Um pequeno trafi cante, no máximo. Conhecido da polícia, com uma ou duas passagens pela prisão, mas sem que jamais tivesse sido acusado de violência física.

Olivia era linda, mesmo depois de morta. Sobrancelhas grossas, ar infantil, seios…

“Não posso pensar nisso. Sou um profi ssional.”

— Não vejo absolutamente nada.

O legista sorri — e Savoy fi ca levemente irritado com seu jeito arrogante. Aponta para uma pequena, imperceptível marca arroxeada entre o ombro esquerdo e o pescoço da moça.

Em seguida, mostra outra marca semelhante, no lado direito do torso, entre duas costelas.

— Poderia começar descrevendo detalhes técnicos, como obstru-

ção da veia jugular e da artéria carótida, ao mesmo tempo em que outra força semelhante era aplicada em determinado feixe de nervos, mas com tal precisão que é capaz de causar uma paralisia completa da parte superior do corpo...

Savoy não diz nada. O legista entende que não era hora de demonstrar sua cultura, ou brincar com a situação. Fica com pena de si mesmo: lidava com a morte todos os dias, vivia cercado de cadáveres e de gente séria, seus fi lhos jamais comentavam a profi ssão do pai, e nunca tinha assunto nos jantares, já que as pessoas detestam conversar sobre temas que consideram macabros. Mais de uma vez perguntou se havia escolhido a profi ssão certa.

— Ou seja: ela foi morta por estrangulamento.

Savoy continua em silêncio. Sua cabeça trabalhava a toda velocidade: estrangulamento no meio da Croisette, durante o dia?

9 4

Os pais haviam sido entrevistados, e a menina saíra de casa com a mercadoria — ilegalmente, já que vendedores ambulantes não pagavam impostos ao governo, e portanto estavam proibidos de trabalhar.

“Mas isso não vem ao caso no momento.”

— Entretanto — continua o legista — há algo intrigante nisso.

Em um estrangulamento normal, as marcas aparecem em ambos os ombros — ou seja, a clássica cena em que alguém agarra o pescoço da vítima enquanto ela se debate para soltar-se. Neste caso, uma das mãos, melhor dizendo, um simples dedo impediu o sangue de atingir o cérebro, enquanto outro dedo fazia com que o corpo fi casse paralisado, incapaz de reagir. Algo que exige uma técnica sofi sticadíssima, e um conhecimento perfeito do organismo humano.

— E ela poderia ter sido morta em outro local, e trazida para o banco onde a encontramos?

— Se isso tivesse acontecido, deixaria marcas no seu corpo à medida que era arrastada para o local. Foi a primeira coisa que eu procurei, considerando a possibilidade de ter sido morta apenas por uma pessoa. Como não vi nada, procurei indícios de mãos segurando suas pernas e seus braços, na eventualidade de termos mais de um criminoso. Nada. Além do mais, sem querer entrar muito em detalhes técnicos, existem certas coisas que acontecem no momento da morte, que deixam vestígios. Como urina, por exemplo, e...

— O que o senhor quer dizer?

— Que ela foi morta no local onde foi encontrada. Que, pela marca dos dedos, apenas uma pessoa participou do crime. Que conhecia o criminoso, já que ninguém a viu tentando fugir. Que ele estava sentado do seu lado esquerdo. Que deve ser alguém treinado para isso, com grande experiência em artes marciais.

Savoy agradece com a cabeça, e dirige-se rapidamente para a saí-

da. No caminho, telefona para a delegacia onde o rapaz estava sendo interrogado.

9 5

— Esqueçam essa história de drogas — disse ele. — Vocês têm um assassino nas mãos. Procure saber tudo que ele conhece sobre artes marciais. Estou indo diretamente para aí.

— Não — respondeu uma voz do outro lado da linha. — Vá até o hospital. Acho que temos outro problema.

9 6

1:28 PM

A gaivota voava por cima de uma praia no Golfo, quando viu um rato. Desceu dos céus, e perguntou ao roedor:

— Onde estão suas asas?

Cada bicho fala um idioma, o rato não entendeu o que ela dizia; mas notou que o animal à sua frente tinha duas coisas estranhas e grandes saindo de seu corpo.

“Deve sofrer alguma doença”, pensou o rato.

A gaivota percebeu que o rato olhava fi xamente suas asas:

— Pobrezinho. Foi atacado por monstros, que lhe deixaram surdo e roubaram as asas.

Compadecida, pegou-o em seu bico, e levou-o para passear nas alturas. “Pelo menos ele mata a saudade”, pensava, enquanto voavam. Depois, com todo cuidado, deixou-o no chão.

O rato, durante alguns meses, tornou-se uma criatura profunda mente infeliz: tinha conhecido as alturas, viu um mundo vasto e belo.

Mas, com o passar do tempo, terminou de novo acostumando-se a ser rato, e achou que o milagre que tinha acontecido em sua vida não passava de um sonho.

Era uma história de sua infância. Mas neste momento, ele está no céu: pode ver o mar azul-turquesa, os luxuosos iates, as pessoas que parecem formigas lá embaixo, as tendas armadas na praia, as colinas, o horizonte à sua esquerda além do qual estava a África e todos os seus problemas.

O solo se aproxima com velocidade. “Sempre que possível, é necessário ver os homens do alto”, pensa. “Só assim entendemos sua verdadeira dimensão e pequenez.”

Ewa parece entediada ou nervosa. Hamid nunca soube direito o que se passa na cabeça de sua mulher, embora estejam juntos há mais 9 7

de dois anos. Mas embora Cannes seja um sacrifício para todos, não pode deixar a cidade antes do planejado; ela já devia estar acostumada com tudo isso, porque a vida do seu ex-marido não parece muito diferente da sua; os jantares de que é obrigado a participar, os eventos que precisa organizar, as constantes mudanças de país, de continente, de língua.

“Sempre se comportou assim ou... será que... não me ama como antes?”

Pensamento proibido. Concentre-se em outras coisas, por favor.

O barulho do motor não permite conversas, exceto usando os fones de ouvido que possuem um microfone acoplado. Ewa nem sequer os havia tirado do suporte ao lado do seu assento; mesmo que neste momento ele pedisse que colocasse os fones para dizer pela milésima vez que era a mulher mais importante em sua vida, que faria o possível para que tivesse uma semana excelente em seu primeiro Festival, seria impossível. Por causa do sistema de som a bordo, a conversa sempre era escutada pelo piloto — e Ewa detesta demonstrações públicas de afeto.

Ali estão eles, naquela bolha de vidro que está quase chegando no píer. Já pode distinguir o imenso carro branco, um Maybach, o modelo mais caro e sofi sticado da Mercedes Benz. Em breve estariam sentados em seu interior, com uma música relaxante, um console com champagne gelada e a melhor água mineral do mundo.

Consultou seu relógio de platina, cópia certifi cada de um dos primeiros modelos produzidos em uma pequena fábrica na cidade de Schaffhausen. Ao contrário das mulheres, que podem gastar fortunas com brilhantes, o relógio é a única jóia permitida a um homem de bom gosto, e só os verdadeiros entendidos conheciam a importância daquele modelo que raramente aparecia nos anúncios de revistas de luxo.

Isso, entretanto, é verdadeira sofi sticação: saber o que existe de melhor, mesmo que os outros jamais tenham ouvido falar.

9 8

E fazer o que existe de melhor, mesmo que os outros percam um tempo imenso criticando.

Eram já quase duas horas da tarde, as bolsas de valores na Europa estavam fechando, e a Dow Jones de Nova York ia abrir dali a poucos minutos. Quando chegasse, daria um telefonema — apenas um telefonema — com as instruções daquele dia. Ganhar dinheiro no “cassino”, como chamava os fundos de investimento, não era seu esporte favorito; mas precisava fi ngir que estava atento ao que seus gerentes e engenheiros fi nanceiros faziam. Tinham a proteção, o apoio e a vigilância do sheik, e mesmo assim era importante mostrar que estava a par do que acontecia.

Dois telefonemas e nenhuma instrução determinada para comprar ou vender alguma ação. Porque sua energia está concentrada em algo diferente; naquela tarde pelo menos duas atrizes — uma importante e uma desconhecida — iriam exibir seus modelos no tapete vermelho. Claro, tem assessores que podem se ocupar de tudo, mas gosta de estar envolvido pessoalmente, nem que seja para relembrar constantemente a si mesmo que cada detalhe é importante, que não perdeu o contato com a base sobre a qual construiu seu império. Fora isso, pretende ocupar o resto do seu tempo na França procurando aproveitar ao máximo a companhia de Ewa, apresen-tando-a a gente interessante, passeando pela areia, almoçando sozinhos em um restaurante desconhecido em qualquer cidade vizinha, caminhando de mãos dadas pelos vinhedos que consegue ver no horizonte lá embaixo.

Sempre se julgou incapaz de se apaixonar por algo além do seu trabalho, embora em sua lista de conquistas constasse uma série invejável de relações com mulheres mais invejáveis ainda. No momento em que Ewa apareceu, descobriu-se um outro homem: dois anos juntos, e seu amor era mais forte e mais intenso que nunca.

Apaixonado.

9 9

Ele, Hamid Hussein, um dos estilistas mais celebrados no planeta, a face visível de um gigantesco conglomerado internacional de luxo e glamour. Ele, que lutara contra tudo e contra todos, enfrentara os preconceitos de quem vem do Oriente Médio e tem uma religião diferente, usara a sabedoria ancestral de sua tribo para poder sobreviver, aprender, e terminar no topo do mundo. Ao contrário do que imaginavam, não tinha vindo de uma família rica e inundada por petróleo. Seu pai tinha sido comerciante de tecidos, que um belo dia caíra nas graças de um sheik porque simplesmente se recusara a obedecer a uma ordem.

Quando tinha dúvidas em qualquer decisão, gostava de lembrar o exemplo que recebera na adolescência: dizer “não” aos poderosos, mesmo que esteja correndo um risco altíssimo. Na quase totalidade das vezes, dava o passo certo. E nas poucas ocasiões em que dera o passo errado, viu que as conseqüências não foram tão graves como imaginava.

Seu pai. Que jamais pôde assistir ao sucesso do fi lho. Seu pai, que quando o sheik começou a comprar todos os terrenos disponí-

veis naquela parte do deserto para poder construir uma das cidades mais modernas do mundo, teve coragem de dizer a um dos seus emissários:

“Não vou vender. Há muitos séculos minha família está aqui.

Aqui enterramos nossos mortos. Aqui aprendemos a sobreviver às intempéries e aos invasores. Não se vende o lugar que Deus nos en-carregou de cuidar neste mundo.”

A história volta à sua cabeça.

Os emissários aumentaram o preço de compra. Como não conseguiam nada, voltaram irritados e dispostos a fazer o que fosse possível para tirar aquele homem dali. O sheik começava a fi car impaciente — gostaria de iniciar logo seu projeto porque tinha grandes planos, o preço do petróleo subira no mercado internacional, o dinheiro devia ser usado antes que as reservas se esgotassem e já não 1 0 0

houvesse mais possibilidade de criar uma infra-estrutura atraente aos investimentos estrangeiros.

Mas o velho Hussein continuava a recusar qualquer preço por sua propriedade. Até que um dia o sheik resolveu ir conversar diretamente com ele.

— Posso lhe oferecer tudo que desejar — disse para o comerciante de tecidos.

— Então dê uma educação adequada para meu fi lho. Ele já está com 16 anos, e não existe nenhuma perspectiva aqui.

— Em troca, você me vende a casa.

Houve um longo momento de silêncio, até que escutou seu pai, olhando nos olhos do sheik, dizer aquilo que jamais esperava ouvir.

— O senhor tem obrigação de educar os seus súditos. E não posso trocar o futuro da minha família pelo seu passado.

Lembra-se de ter visto uma tristeza imensa nos seus olhos, quando continuou:

— Se o meu fi lho puder ter pelo menos uma oportunidade na vida, aceito sua oferta.

O sheik saiu sem dizer nada. No dia seguinte, pediu que o comerciante lhe enviasse o rapaz para conversarem. Encontrou-o no palácio que havia sido construído ao lado do antigo porto, depois de passar por ruas interditadas, gigantescas gruas metálicas, operários trabalhando sem parar, quarteirões inteiros sendo demolidos.

O governante foi direto ao assunto:

— Sabe que desejo comprar a casa de seu pai. Resta muito pouco petróleo em nossa terra e antes que nossos poços dêem o último suspiro é necessário mudar nossa dependência, e descobrir outros caminhos. Provaremos ao mundo que temos capacidade de vender não apenas nosso óleo, como também nossos serviços. Entretanto, para dar os primeiros passos é necessário fazer algumas reformas importantes, como construir um bom aeroporto, por exemplo. Necessitamos de terras para que os estrangeiros possam construir seus 1 0 1

edifícios — meu sonho é justo, e minha intenção é boa. Vamos precisar de gente educada no mundo das fi nanças, e você ouviu a conversa com seu pai.

Hamid procurava disfarçar o medo; havia mais de uma dezena de pessoas assistindo à audiência. Mas o seu coração já tinha uma resposta pronta para cada pergunta formulada.

— O que deseja fazer?

— Estudar alta-costura.

As pessoas se entreolharam. Talvez não soubessem direito do que estava falando.

— Estudar alta-costura. Grande parte dos tecidos que meu pai compra é revendido para os estrangeiros, que por sua vez têm lucros cem vezes maiores quando os transformam em roupas de luxo.

Tenho certeza de que podemos fazer isso aqui. Estou convencido de que a moda será uma das maneiras de quebrar o preconceito que o resto do mundo tem contra nós. Se entenderem que não nos vestimos como bárbaros, vão terminar nos aceitando melhor.

Desta vez ouviu-se um murmúrio na corte. Estava falando de roupas? Aquilo era coisa de ocidentais, mais preocupados com o que se passava no exterior que no interior de uma pessoa.

— Por outro lado, o preço que meu pai está pagando é muito alto. Prefi ro que continue com a casa. Eu trabalharei com os tecidos que tem, e se o Deus Misericordioso assim desejar, conseguirei realizar o meu sonho. Assim como Sua Alteza, também sei onde quero chegar.

A corte ouvia, assombrada, um jovem desafi ar o grande líder da região e recusar-se a cumprir o desejo do próprio pai. Mas o sheik sorriu com a resposta.

— Onde se estuda alta-costura?

— Na França. Na Itália. Praticando com os mestres. Na verdade, existem algumas universidades, mas nada substitui a experiência. É

muito difícil, mas se o Deus Misericordioso quiser eu conseguirei.

1 0 2

O sheik pediu que voltasse no fi nal da tarde. Hamid caminhou pelo porto, visitou o bazar, deslumbrou-se com as cores, os tecidos, os bordados — adorava cada chance que tinha de passear por ali.

Imaginou que tudo aquilo seria destruído em breve, e entristeceu-se porque uma parte do passado, da tradição, estaria perdida. Seria possível deter o progresso? Seria inteligente impedir o desenvolvi-mento de uma nação? Lembrou-se das muitas noites em claro que passou desenhando à luz de vela, reproduzindo os modelos que os beduínos usavam, temendo que também os costumes tribais terminassem destruídos pelas gruas e pelos investimentos estrangeiros.

Na hora marcada, retornou ao palácio. Havia ainda mais gente em torno do governante.

— Tomei duas decisões — disse o sheik. — A primeira: vou arcar com as suas despesas durante um ano. Penso que teremos sufi cientes rapazes interessados em fi nanças, mas ninguém até hoje veio a mim para dizer que se interessa por costura. Me parece uma loucura, mas todos dizem que sou louco com meus sonhos, e mesmo assim cheguei onde estou agora. Portanto, não posso desmentir meu próprio exemplo.

“Por outro lado, nenhum dos meus assessores tem qualquer contato com as pessoas a que se referiu, de modo que estarei pagando uma pequena mesada para que não se sinta obrigado a mendigar na rua. Quando voltar para cá, será como um vencedor; você representa nosso lugar e as pessoas precisam aprender a respeitar nossa cultura. Antes de sair, terá que aprender as línguas dos países aonde vai. Quais são?”

— Inglês, francês, italiano. Agradeço muito sua generosidade, mas o desejo de meu pai...

O sheik fez sinal para que se calasse.

— E minha segunda decisão é a seguinte. A casa do seu pai permanecerá onde está. Nos meus sonhos, ela será cercada de arranha-céus, o sol já não poderá entrar através das janelas, e ele acabará se 1 0 3

mudando. Mas a casa será conservada ali para sempre. No futuro, as pessoas se lembrarão de mim, e dirão: “Ele foi grande, porque mudou seu país. E ele foi justo, porque respeitou o direito de um vendedor de tecidos.”

O helicóptero pousa na extremidade do píer, e as recordações são deixadas de lado. Hamid desce primeiro, e estende a mão para ajudar Ewa. Toca sua pele, olha com orgulho para a mulher loura, toda vestida de branco, a roupa irradiando o sol que brilhava à sua volta, a outra mão segurando o discreto e belo chapéu de tom levemente bege. Caminham entre as fi las de iates ancorados nos dois lados, em direção ao carro que os espera já com o motorista segurando a porta aberta.

Segura a mão da mulher e sussurra ao seu ouvido:

Загрузка...