Olha para o seu relógio: ainda tem mais 12 horas na cidade, tempo sufi ciente antes de tomar seu avião com a mulher que ama e voltar para...

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...para onde? Seu trabalho em Moscou depois de tudo que havia experimentado, sofrido, refl etido, planejado? Ou fi nalmente renascer através de todas as suas vítimas, escolher a liberdade absoluta, descobrir a pessoa que não sabia quem era, e a partir deste momento fazer exatamente as coisas que sonhava fazer quando ainda estava com Ewa?

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4:34 PM

Jasmine fi ca olhando o mar enquanto fuma um cigarro inteiro sem pensar em nada. Nestes momentos sente uma conexão profunda com o infi nito, como se não fosse ela quem estivesse ali, mas algo mais poderoso, capaz de coisas extraordinárias.

Lembra-se de um velho conto que lera não sabia mais onde. Nasrudin apareceu na corte com um magnífi co turbante, pedindo dinheiro para caridade.

“Você veio me pedir dinheiro, e está usando um ornamento muito caro na cabeça. Quanto custou esta peça maravilhosa?” — perguntou o soberano.

“Foi uma doação de alguém muito rico. E seu preço, pelo que pude apurar, são quinhentas moedas de ouro” — respondeu o sábio sufi .

O ministro sussurrou: “É mentira. Nenhum turbante custa esta fortuna.”

Nasrudin insistiu:

“Não vim aqui só para pedir, vim também para negociar. Sei que, em todo o mundo, apenas um soberano seria capaz de comprá-lo por seiscentas moedas, para que eu pudesse dar o lucro aos pobres, e assim aumentar a doação que precisa ser feita.”

O sultão, lisonjeado, pagou o que Nasrudin pedia. Na saída, o sábio comenta com o ministro:

“Você pode conhecer muito bem o valor de um turbante, mas sou eu quem conhece até onde a vaidade pode levar um homem.”

Era essa a realidade em torno de si. Não tinha nada contra a sua profi ssão, não julgava as pessoas pelos seus desejos, mas estava consciente do que é realmente importante na vida. E gostaria de permanecer com os pés na terra, embora as tentações estivessem por todos os cantos.

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Alguém abre a porta, diz que falta apenas meia hora para entrarem na passarela. Aquilo que geralmente era a pior parte do dia, o longo período de tédio que precede o momento do desfi le, está chegando ao fi nal. As moças deixavam seus iPods e telefones celulares de lado, os maquiadores retocam os detalhes, os cabeleireiros refazem as mechas que haviam saído de lugar.

Jasmine senta-se diante do espelho do camarim e deixa que as pessoas façam seu trabalho.

— Não fi que nervosa só porque é Cannes — diz a maquiadora.

— Não estou nervosa.

Por que haveria de estar? Ao contrário, cada vez que pisava a passarela sentia uma espécie de êxtase, a famosa injeção de adrenalina na veia. A maquiadora parece disposta a conversar, comenta sobre as rugas das celebridades que passaram por suas mãos, promove um novo creme, diz que está cansada de tudo aquilo, pergunta se tem algum convite extra para uma festa. Jasmine ouve tudo com infi nita paciência, porque seu pensamento está nas ruas de Antuérpia, no dia em que decidira procurar os fotógrafos.

Passara por uma pequena difi culdade, mas tudo dera certo no fi nal.

Assim seria hoje. Assim fora então, quando — junto com a mãe, que queria ver a fi lha recuperar-se rapidamente da sua depressão e terminara aceitando acompanhá-la — tocou a campainha do fotó-

grafo que a havia abordado na rua. A porta abria para uma pequena sala, com uma mesa transparente coberta de negativos de fotos, outra mesa com um computador, e uma espécie de prancheta de arquiteto cheia de papéis. O fotógrafo estava acompanhado de uma senhora de aproximadamente 40 anos, que a olhou de alto a baixo e sorriu. Apresentou-se como coordenadora de eventos, e os quatro sentaram-se.

— Eu tenho certeza que sua fi lha tem um grande futuro como modelo — disse a mulher.

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— Estou aqui apenas para acompanhá-la — respondeu a mãe.

— Se tiver qualquer coisa a dizer, dirija-se diretamente a ela.

A mulher levou alguns segundos para recuperar-se. Pegou uma fi cha, começou a anotar detalhes e medidas, enquanto comentava:

— Evidente que Cristina não é um bom nome. Muito comum. A primeira coisa que precisamos é mudar isso.

“Cristina não era um bom nome por outras razões”, pensava ela.

Porque pertencia a uma moça que fi cara inválida no dia em que tes-temunhara um assassinato, e morrera quando negou o que os seus olhos teimavam em esquecer. Quando resolveu mudar tudo, come-

çou pela maneira com que sempre lhe chamavam desde criança. Precisava mudar tudo, absolutamente tudo. Portanto, tinha a resposta na ponta da língua:

— Jasmine Tiger. Doçura de uma fl or, perigo de um animal selvagem.

A mulher pareceu gostar.

— A carreira de modelo não é fácil, e você tem sorte de ter sido escolhida para dar um primeiro passo. Claro, é necessário acertar muitos pontos, mas estamos aqui justamente para ajudá-la a chegar aonde deseja. Faremos suas fotos e enviaremos para as agências especializadas. Você precisará também de um composite.

Ficou esperando que Cristina perguntasse: “O que é um composite?” Mas não houve pergunta. De novo, a mulher se recompôs rapidamente.

Composite, como imagino que você deve saber, é uma folha em papel especial, com sua melhor foto e suas medidas de um lado.

Atrás, mais fotos — em diversas situações. De biquíni, de estudante, eventualmente uma apenas mostrando o rosto, outra com um pouco mais de maquiagem, para que possa também ser selecionada no caso de desejarem alguém que pareça mais velho. Seus seios...

Outro momento de silêncio.

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— ...seus seios talvez sejam um pouco além das medidas conven-cionais de uma modelo.

Virou-se para o fotógrafo:

— Precisaremos disfarçar isso. Tome nota.

O fotógrafo tomou nota. Cristina — agora rapidamente transformando-se em Jasmine Tiger — pensava: “Mas na hora de me chama-rem, eles vão descobrir que tenho seios maiores do que imaginam!”

A mulher pegou uma linda pasta de couro, e tirou uma espécie de lista.

— Precisaremos chamar um maquiador. Um cabeleireiro. Você não tem a menor experiência em passarela, não é verdade?

— Nenhuma.

— Pois ali não se caminha como se anda na rua. Se fi zer isso, terminará caindo por causa da velocidade e dos saltos altos. Os pés devem ser colocados um diante do outro, como um gato. Não sorria jamais. E sobretudo, a postura é fundamental.

Ela fez três marcas ao lado da lista no papel.

— Será necessário alugar algumas roupas.

Mais uma marca.

— Mas penso que no momento isso é tudo.

Levou de novo a mão à bolsa elegante, e retirou uma calculadora.

Pegou a lista, anotou alguns números, somou-os. Ninguém na sala ousava pronunciar uma palavra.

— Em torno de 2 mil euros, eu acho. Não vamos contar as fotos, porque Yasser — ela virou-se para o fotógrafo — é caríssimo, mas resolveu fazer de graça, desde que você permita que use o material.

Podemos convocar o maquiador e o cabeleireiro para amanhã de manhã, e eu vou entrar em contato com o curso, para ver se arranjo uma vaga. Com certeza irei conseguir. Da mesma maneira estou certa que você, ao investir em si mesma, está criando novas possibilidades para o seu futuro, e em breve esta despesa será coberta.

— A senhora está dizendo que eu devo pagar?

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De novo a “coordenadora de eventos” pareceu desconcertada.

Geralmente, as moças que chegavam ali deviam estar loucas para realizar o sonho de toda uma geração; querem ser as mulheres mais desejadas do planeta, e jamais fazem perguntas indelicadas, que podem deixar os outros constrangidos.

— Escute, querida Cristina…

— Jasmine. A partir do momento que eu cruzei aquela porta, me transformei em Jasmine.

O telefone tocou. O fotógrafo tirou-o do bolso, e dirigiu-se para o fundo da sala, até então completamente às escuras. Quando abriu uma das cortinas, Jasmine pôde ver uma parede coberta de negro, tripés com fl ashes, caixas com luzes que brilhavam, e vários focos de luz no teto.

— Escute, querida Jasmine, há milhares, milhões de pessoas que gostariam de estar em sua posição. Você foi selecionada por um dos mais importantes fotógrafos da cidade, terá os melhores profi ssionais para ajudá-la, e eu me ocuparei pessoalmente de dirigir sua carreira. Entretanto, como qualquer outra coisa na vida, é necessário acreditar que pode vencer, e investir para que isso aconteça. Sei que é bela o sufi ciente para ter muito sucesso, mas isso não basta nesse mundo extremamente competitivo. É preciso também ser a melhor, e isso custa dinheiro, pelo menos no início.

— Mas se você acha que eu tenho todas essas qualidades, porque não investe o seu dinheiro?

— Farei isso mais adiante. No momento, precisamos ver qual o seu grau de comprometimento. Quero ter certeza de que deseja realmente ser uma profi ssional, ou se é mais uma menina deslumbra-da com a possibilidade de viajar, conhecer o mundo, encontrar um marido rico.

O tom da mulher agora era severo. O fotógrafo voltou do estúdio.

— É o maquiador ao telefone. Quer saber a que horas deve chegar amanhã.

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— Se isso realmente for necessário, eu consigo arranjar a quantia… — disse a mãe.

Mas Jasmine já estava se levantando, e andava direto para a porta, sem apertar a mão dos dois.

— Muito obrigada. Não tenho esse dinheiro. E mesmo que tivesse, usaria em outra coisa.

— Mas é o seu futuro!

— Justamente. É o meu futuro, e não o seu.

Saiu aos prantos. Primeiro tinha ido a uma boutique de luxo e não apenas haviam lhe tratado mal, como insinuaram que mentira ao dizer que conhecia o dono. Agora imaginava que iria começar uma nova vida, descobrira um nome perfeito para si mesma, e precisava de 2 mil euros para dar o primeiro passo!

Mãe e fi lha voltaram para casa, sem trocar uma palavra. O telefone tocou várias vezes; ela olhava o número, e tornava a guardá-lo no bolso.

— Por que não atende? Não temos um outro encontro esta tarde?

— Pois trata-se exatamente disso. Não temos 2 mil euros.

A mãe segurou-a pelos ombros. Sabia o estado frágil da fi lha, e precisava fazer alguma coisa.

— Sim, nós temos. Eu trabalho todos os dias desde que seu pai morreu, e nós temos 2 mil euros. Temos mais, se for necessário. Uma faxineira aqui na Europa ganha bem, porque ninguém gosta de estar limpando a sujeira dos outros. E estamos falando do seu futuro. Não vamos voltar para casa.

O telefone tocou mais uma vez. Jasmine voltara a ser Cristina, e obedeceu ao que sua mãe exigia. Do outro lado da linha a mulher identifi cou-se, disse que estaria duas horas atrasada por causa de outro compromisso, e pedia desculpas.

— Não tem importância — respondeu Cristina. — Mas antes que a senhora perca o seu tempo, gostaria de saber quanto vai custar o trabalho.

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— Quanto vai custar?

— Sim. Acabo de vir de um outro encontro, e me cobraram 2 mil euros pelas fotos, maquiagem…

A mulher do outro lado da linha riu.

— Não vai custar nada. Conheço o truque, e falamos sobre isso quando você chegar aqui.

O estúdio era parecido, mas a conversa foi diferente. A fotógrafa queria saber por que seu olhar parecia mais triste agora — pelo visto ainda se lembrava do primeiro encontro. Cristina comentou o que acontecera naquela manhã; a mulher explicou que era algo absolutamente normal, embora hoje em dia estivesse mais controlado pelas autoridades. Naquele exato momento, em muitos lugares do mundo, moças relativamente bonitas estavam sendo convidadas a mostrar “o potencial” de sua beleza, pagando caro para isso. Sob o pretexto de procurar novos talentos, alugavam quartos de hotéis de luxo, coloca-vam aparelhos de fotografi a, prometiam pelo menos um desfi le durante o ano, ou “o dinheiro de volta”, cobravam uma fortuna pelos retratos, chamavam profi ssionais falidos para atuar como maquiadores e cabeleireiros, sugeriam escolas de modelo, e muitas vezes desapareciam sem deixar rastros. Cristina tivera a sorte de ir até um estúdio de verdade, mas fora inteligente o bastante para recusar a oferta.

— É parte da vaidade humana, e não existe nada de errado nisso

— desde que você saiba se defender, claro. Acontece não apenas na moda, mas em muitas outras áreas: escritores que publicam seus pró-

prios trabalhos, pintores que patrocinam suas exposições, cineastas que se endividam para disputar um lugar ao sol com os grandes es-túdios, meninas de sua idade que largam tudo e vão trabalhar como garçonetes em grandes cidades, na esperança que algum dia um produtor descubra seu talento e as convide para o estrelato.

Não, não ia fazer as fotos agora. Precisava conhecê-la melhor, porque apertar o botão da máquina é a última coisa em um longo 2 1 1

processo, que começa por desvendar a alma da pessoa. Marcaram um encontro no dia seguinte, conversaram mais.

— Você precisa escolher um nome.

— Jasmine Tiger.

Sim, o desejo havia voltado.

A fotógrafa a convidou para um fi nal de semana em uma praia na fronteira da Holanda, e ali passaram mais de oito horas por dia fazendo todos os tipos de experiência diante das lentes da câmera.

Era preciso expressar com o rosto as emoções que certas palavras despertavam: “fogo!” ou “sedução!” ou “água!”. Mostrar o lado bom e o lado ruim da própria alma. Olhar para a frente, para o lado, para baixo, para o infi nito. Imaginar gaivotas e demônios. Sentir-se atacada por homens mais velhos, abandonada em um banheiro de bar, violentada por um ou mais homens, pecadora e santa, perversa e inocente.

Fizeram fotos ao ar livre — seu corpo parecia congelar de frio, mas ela era capaz de reagir a cada estímulo, obedecer cada sugestão.

Usaram um pequeno estúdio que havia sido montado em um dos quartos, onde diferentes músicas eram tocadas, e a iluminação modifi cada a cada instante. Jasmine se maquiava, a fotógrafa cuidava de arranjar seu cabelo.

— Estou bem? Por que está gastando seu tempo comigo?

— Conversamos mais tarde.

A mulher passava as noites olhando o trabalho, refl etindo, ano-tando coisas. Nunca dizia se estava contente ou decepcionada com os resultados.

Só na segunda-feira de manhã, Jasmine (Cristina estava defi nitivamente morta àquela altura) escutou uma opinião. Estavam na esta-

ção de trem de Bruxelas, aguardando a conexão para Antuérpia:

— Você é a melhor.

— Não é verdade. — A mulher a olhou espantada.

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— Sim, você é a melhor. Trabalho nesta área há vinte anos, já fotografei uma infi nidade de pessoas, trabalhei com modelos profi ssionais e artistas de cinema. Gente com experiência; mas nenhum, absolutamente nenhum mostrou sua capacidade de expressar sentimentos como você o fez.

“Sabe como isso se chama? Talento. Para certas categorias de profi ssionais, é fácil medi-lo: diretores que são capazes de pegar uma empresa à beira da falência e torná-la lucrativa. Esportistas que quebram recordes. Artistas que foram capazes de sobreviver no mínimo duas gerações através de suas obras. Mas para uma modelo, como eu posso dizer e garantir isso? Porque sou uma profi ssional.

Você conseguiu mostrar seus anjos e demônios através da lente de uma câmera, e isso não é fácil. Não estou falando de jovens que gostam de se vestir de vampiros e freqüentar as festas góticas. Não estou falando de moças que fazem um ar inocente e procuram despertar a pedofi lia escondida nos homens. Estou falando de verdadeiros de-mônios, e de verdadeiros anjos.”

As pessoas andavam de um lado para o outro na estação. Jasmine olhou o horário do trem, sugeriu que fossem até o lado de fora — estava louca para fumar um cigarro e ali era proibido. Pensava se devia ou não dizer o que lhe passava pela alma naquele momento.

— Pode ser que eu tenha talento, mas se esse for o caso, eu só consegui demostrá-lo por uma única razão. Por sinal, durante os dias que passamos juntos, você quase não falou de sua vida privada, e tampouco perguntou sobre a minha. Quer que ajude com a bagagem? Fotografi a devia ser uma profi ssão masculina: sempre há muito equipamento para transportar.

A mulher riu.

— Não tenho nada de especial para dizer, exceto que adoro meu trabalho. Chego aos 38 anos divorciada, sem fi lhos, com uma sé-

rie de contatos que me permitem viver confortavelmente, mas sem 2 1 3

grandes luxos. Por sinal, gostaria de acrescentar algo ao que disse: caso tudo corra certo, você jamais, JAMAIS irá se comportar como uma pessoa que depende de sua profi ssão para sobreviver, mesmo que seja o caso.

“Se não seguir meu conselho, será facilmente manipulada pelo sistema. Claro que usarei suas fotos, e ganharei dinheiro com elas. Mas a partir de agora, sugiro que contrate uma agente profi ssional.”

Acendeu outro cigarro; era agora ou nunca.

— Sabe por que consegui mostrar meu talento? Por causa de algo que jamais imaginei que fosse acontecer em minha vida: apaixonar-me por uma mulher. Que desejaria ter ao meu lado, guiando-me através dos passos que precisarei dar. Uma mulher que, com sua doçura e seu rigor, conseguiu invadir minha alma soltando o que havia de pior e de melhor nos subterrâneos do espírito. Não fez isso através de longas aulas de meditação, ou com técnicas de psicanálise

— como minha mãe desejaria e insistia que fosse. Usou...

Deu uma pausa. Estava com medo, mas precisava continuar: não tinha absolutamente mais nada a perder.

— Usou uma máquina fotográfi ca.

O tempo na estação de trem fi cou em suspenso. As pessoas não caminhavam mais, os ruídos desapareceram, o vento já não soprava mais, a fumaça do cigarro congelou-se no ar, todas as luzes se apa-garam — exceto as de dois pares de olhos que brilhavam mais que nunca, fi xos um no outro.

— Está pronto — diz a maquiadora.

Jasmine levanta-se e olha sua companheira, caminhando sem parar através do salão improvisado em camarim, acertando os detalhes, conferindo os acessórios. Deve estar nervosa, afi nal é seu primeiro desfi le em Cannes, e dependendo dos resultados pode conseguir um bom contrato com o governo belga.

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Tem vontade de ir até ela e acalmá-la. Dizer que tudo ia correr bem como havia corrido até então. Escutaria um comentário do tipo: “Você tem apenas 19 anos, o que sabe da vida?”

Responderia: conheço sua capacidade, da mesma maneira que você conhece a minha. Conheço a relação que mudou nossas vidas desde o dia em que, há três anos, você levantou a mão e tocou sua-vemente o meu rosto naquela estação de trem. Nós duas estávamos assustadas, lembra? Mas sobrevivemos ao nosso próprio medo. Gra-

ças a isso eu estou aqui e você, além de ser uma excelente fotógrafa, está envolvida naquilo que sempre sonhou fazer: desenhar e produzir roupas.

Sabe que tal comentário não é uma boa idéia: pedir para que al-guém se acalme faz com que a pessoa fi que mais nervosa ainda.

Vai até a janela e acende outro cigarro. Está fumando muito, mas fazer o quê? É seu primeiro grande desfi le na França.

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4:43 PM

Uma moça de tailleur preto e blusa branca está na porta. Pergunta seu nome, confere na lista, e pede para que aguarde um pouco: a suíte estava cheia. Dois homens e uma outra mulher, talvez mais jovem que ela, também estão esperando.

Todos comportados, em silêncio, aguardando sua vez. Quanto tempo vai demorar? O que está exatamente fazendo ali?

Pergunta a si mesma, e escuta duas respostas.

A primeira lembra que deve continuar adiante. Gabriela, a otimista, a que tinha perseverado o bastante para chegar até o estrelato e agora precisa pensar na grande estréia, nos convites, nas viagens em avião privado, nos anúncios espalhados pelas capitais do mundo, nos fotógrafos em plantão permanente na frente da sua casa, interessados na maneira como se veste, em que boutiques faz suas compras, quem é o homem ruivo e musculoso que foi visto ao seu lado em uma boate da moda. A volta vitoriosa até a cidade onde nasceu, os amigos com olhar de inveja e espanto, os projetos de caridade que pretende apoiar.

A segunda lembra que Gabriela, a otimista, a que tinha perseverado o bastante para chegar até o estrelato, está agora caminhando no fi o de uma navalha, de onde é fácil escorregar para um dos dois lados e cair no abismo. Porque Hamid Hussein nem sequer sabia de sua existência, jamais a tinham visto maquiada e pronta para uma festa, o vestido talvez não fosse do seu tamanho, precisaria de ajustes e isso faria com que chegasse tarde ao encontro no Martinez. Já tinha 25 anos de idade, era possível que nesse momento outra candidata estivesse no iate, podiam ter mudado de idéia, ou talvez fosse essa mesma a intenção: conversar com duas ou três pretendentes, e ver qual delas era capaz de se sobressair na multidão. As três seriam convidadas para a festa, sem que uma soubesse da existência da outra.

Paranóia.

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Não, não era paranóia, apenas realidade. Além do mais, embora Gibson e a Celebridade só aceitassem projetos importantes, mesmo assim não havia sucesso garantido. E se algo acontecesse de errado, a culpa seria exclusivamente dela. O fantasma do Chapeleiro Louco em Alice no País das Maravilhas ainda continua presente. Não tinha o talento que imaginava, é apenas uma pessoa esforçada. Não foi abençoada com a sorte de outros — até o momento nada de importante acontecera em sua vida, apesar de lutar dia e noite, noite e dia.

Desde o momento em que chegara em Cannes não havia descansa-do: distribuíra seus books — que haviam custado caríssimo — para várias companhias encarregadas de selecionar elencos, e apenas um teste fora confi rmado. Se fosse realmente alguém especial, a essa altura podia estar escolhendo que papel aceitar. Estava sonhando alto demais, em breve iria sentir o gosto da derrota, e ele seria muito mais amargo, já que quase chegara lá, seus pés tocaram a margem do oceano da fama... e não tinha conseguido.

“Estou atraindo más vibrações. Sei que elas estão aqui. Preciso me controlar.”

Não pode fazer ioga diante daquela mulher de tailleur e das três pessoas que esperam em silêncio. Precisa afastar os pensamentos negativos, mas de onde eles estão vindo? Segundo os entendidos — afi -

nal, lera muito sobre o assunto em uma época que achava que não conseguia nada por causa da inveja alheia —, com toda certeza uma atriz que fora rejeitada estava neste momento concentrando toda a sua energia para tornar a conseguir o papel. Sim, podia sentir isso, ERA A VERDADE! A única saída agora era deixar que sua mente abandonasse aquele corredor e fosse em busca do seu Eu Superior, que está conectado com todas as forças do Universo.

Respira fundo, sorri, e diz para si mesma:

“Neste momento, estou espalhando a energia do amor à minha volta, ela é mais poderosa que as forças das sombras, o Deus que 2 1 8

habita em mim saúda o Deus que habita em todos os habitantes do planeta, mesmo aqueles que...”

Escuta uma gargalhada. A porta da suíte se abre, um grupo de jovens de ambos os sexos, sorridentes, alegres, acompanhados de duas celebridades femininas, saem e vão direto para o elevador. Os dois homens e a mulher entram, recolhem as dezenas de sacolas que foram deixadas do lado da porta, e se juntam ao grupo que os espera.

Pelo visto, deviam ser assistentes, motoristas, secretários.

— É a sua vez — disse a moça de tailleur.

“A meditação não falha nunca.”

Sorri para a recepcionista, e quase perde o fôlego: o interior do apartamento parece uma caverna de tesouros: óculos de todos os tipos, cabides de roupas, malas de diversos modelos, jóias, produtos de beleza, relógios, sapatos, meias, aparelhos eletrônicos. Uma senhora loura, também com uma lista na mão e um celular pendurado no pescoço, vem ao seu encontro. Confere seu nome e pede que a siga.

— Não temos muito tempo a perder. Vamos direto ao que interessa.

Começaram a caminhar para um dos quartos, e Gabriela vê mais tesouros — luxo, glamour, coisas que sempre contemplou em vitrines, mas que jamais teve oportunidade de chegar tão perto — exceto quando estavam sendo usadas por outras pessoas.

Sim, tudo aquilo a está esperando. Precisa ser rápida, e decidir exatamente o que vai usar.

— Posso começar pelas jóias?

— Não vai escolher nada. Já sabemos o que HH deseja. E terá que nos devolver o vestido amanhã de manhã.

HH. Hamid Hussein. Sabem o que ele deseja para ela!

Atravessam o quarto; em cima da cama e nos móveis em volta estão mais produtos: camisetas, pilhas de especiarias e temperos, um painel de uma conhecida marca de máquinas de café tendo ao seu lado várias delas embrulhadas para presente. Entram por um cor-2 1 9

redor, e fi nalmente abrem-se as portas de um salão maior. Jamais imaginou que hotéis tinham suítes tão gigantescas.

— Chegamos ao templo.

Um elegante painel horizontal branco, como o logotipo da famosa marca de alta-costura, está colocado em cima de um imenso leito de casal. Uma criatura andrógina — que Gabriela não sabe dizer se é homem ou mulher — os espera em silêncio. Extremamente magra, cabelos longos completamente sem cor, sobrancelhas raspadas, anéis nos dedos, correntes saindo da calça apertada no corpo.

— Dispa-se.

Gabriela tira a blusa e a calça jeans, ainda tentando adivinhar o sexo da outra pessoa presente, que neste momento foi para um dos grandes cabides horizontais e retirou um vestido vermelho.

— Tire também o sutiã. Ele deixa marcas no modelo.

Existe um grande espelho no quarto, mas está virado em outra direção, e não lhe permite ver como o vestido cai em seu corpo.

— Precisamos andar rápido. Hamid disse que, além da festa, ela precisa subir os degraus.

SUBIR OS DEGRAUS!

A expressão mágica!

O vestido não fi cou bem. A mulher e o andrógino começam a fi car nervosos. A mulher pede que traga duas, três opções diferentes, porque ela irá subir os degraus com a Celebridade, que a esta altura já está pronta.

“Subir os degraus” com a Celebridade! Será que estava sonhando?

Decidem por um vestido longo, dourado, grudado ao corpo, com um grande decote até a cintura. Em cima, na altura dos seios, uma corrente de ouro faz com que a abertura não vá além do que a imaginação humana pode suportar.

A mulher está nervosa. O andrógino tornou a sair e volta com uma costureira, que dá os retoques necessários na bainha. Se pudesse dizer qualquer coisa naquele minuto, seria para que parassem de fa-2 2 0

zer isso: costurar uma roupa no corpo signifi ca que seu destino está também sendo costurado e interrompido. Mas isso não é hora para superstições — e muitas atrizes famosas devem enfrentar o mesmo tipo de situação todos os dias, sem que nada de ruim lhes aconteça.

Chega uma terceira pessoa com uma mala imensa. Vai até um canto do gigantesco quarto e começa a desmontá-la; é uma espécie de estúdio portátil de maquiagem, incluindo um espelho cercado de luzes. O andrógino está diante dela, ajoelhado como uma Madalena arrependida, experimentando sapato atrás de sapato.

Cinderela! Que daqui a pouco vai se encontrar com o Príncipe Encantado, e “subir os degraus” com ele!

— Este está bom — diz a mulher.

O andrógino começa a colocar os outros sapatos de volta em suas caixas.

— Dispa-se de novo. Terminaremos os retoques do vestido enquanto preparam seu cabelo e maquiagem.

Que bom, as costuras no corpo terminaram. Seu destino está aberto de novo.

Vestida apenas de calcinha, é conduzida até o banheiro. Ali, um kit portátil de lavar e secar cabelos já está instalado, um homem de cabe-

ça raspada a espera, pede que se sente e coloque sua cabeça para trás, em uma espécie de bacia de aço. Usa um chuveiro manual adaptado à torneira da pia para lavar os seus cabelos, e como todos os outros ali parece estar à beira de um ataque de nervos. Reclama do ruído lá fora; precisa de um lugar tranqüilo para poder trabalhar direito, mas ninguém lhe dá ouvidos. Além do mais, jamais tem tempo sufi ciente para fazer o que deseja — tudo é sempre em cima da hora.

— Ninguém consegue entender a gigantesca responsabilidade que pesa sobre meus ombros.

Não está falando para ela, mas para si mesmo. Continua:

— Quando você sobe os degraus, você acha que estão vendo você? Não, estão vendo meu trabalho. MINHA maquiagem. MEU

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estilo de cabelo. Você é apenas uma tela onde eu pinto, desenho, faço minhas esculturas. Se estiver errado, o que os outros vão dizer?

Posso perder o emprego, sabia?

Gabriela sente-se ofendida, mas precisa acostumar-se com aquilo.

É assim o mundo do glamour e do brilho. Mais tarde, quando for realmente alguém, irá escolher pessoas bem-educadas e gentis para trabalhar com ela. No momento, volta a concentrar-se em sua maior virtude: paciência.

A conversa é interrompida pelo barulho do secador de cabelos, semelhante ao de um avião decolando. Por que reclama do ruído lá fora?

Enxuga os cabelos com alguma violência, e pede que caminhe rá-

pido para o estúdio de maquiagem portátil. Ali, o humor do homem muda por completo: fi ca em silêncio, contempla a fi gura no espelho, parece estar em outro mundo. Caminha de um lado para o outro usando o secador e a escova da mesma maneira que Michelangelo usava o martelo e o cinzel para trabalhar a escultura de David. E ela procura manter os olhos fi xos adiante, e lembra-se dos versos de um poeta português:

“O espelho refl ete certo; não erra porque não pensa. Pensar é es-sencialmente errar.”

O andrógino e a mulher voltam, faltam apenas vinte minutos para que a limusine chegue e a leve até o Martinez, onde deve encontrar-se com a Celebridade. Não existe local para estacionar ali, devem estar pontualmente na hora. O cabeleireiro murmura alguma coisa, como se fosse um artista incompreendido pelos seus senhores, mas sabe que tem que cumprir os horários. Começa a trabalhar em seu rosto como Michelangelo pintando os murais da Capela Sistina.

Limusine! Subir os degraus! Celebridade!

“O espelho refl ete certo; não erra porque não pensa.”

Não pense, ou irá deixar-se contagiar pelo estresse e pelo mau-humor reinante: as vibrações negativas podem voltar. Adoraria per-2 2 2

guntar o que é aquela suíte cheia de coisas tão diferentes, mas deve comportar-se como se estivesse acostumada a freqüentar lugares como aquele. Michelangelo dá os últimos retoques sob o ar severo da mulher e o olhar distante do andrógino. Levanta-se, é rapidamente vestida, calçada, tudo está em seu lugar, graças a Deus.

Pegam em algum lugar do salão uma pequena bolsa de couro Hamid Hussein. O andrógino abre, tira um pouco de papel que está ali dentro para fazer com que conserve sua forma, olha o resultado com o mesmo ar distante de sempre, mas parece aprovar o volume e entrega-lhe.

A mulher lhe dá quatro cópias de um gigantesco contrato, com pequenos marcadores vermelhos colados nas margens, onde está escrito: “Assine aqui.”

— Ou assina sem ler, ou leve para casa, ou telefone para o seu advogado, diga que precisa de mais tempo para tomar uma decisão.

Você irá subir os degraus de qualquer jeito, porque já não há nada que possamos fazer. Entretanto, se este contrato não estiver aqui amanhã de manhã, basta devolver o vestido.

Lembra-se da mensagem enviada pela agente: aceite qualquer coisa. Gabriela pega a caneta que lhe é estendida, vai até as páginas onde estão os marcadores, assina tudo rapidamente. Não tem nada, absolutamente nada a perder. Se as cláusulas não forem justas, com certeza poderá acioná-los na justiça, dizendo que foi pressionada a fazer aquilo: mas antes precisa fazer o que sempre sonhou.

A mulher recolhe as cópias e desaparece sem se despedir. O Michelangelo está de novo desmontando a mesa de maquiagem, imerso em seu mundo onde a injustiça é a única lei, seu trabalho nunca é reconhecido, não tem tempo para fazer aquilo que gostaria, e se alguma coisa der errado a culpa é exclusivamente dele. O andrógino pede que o siga até a porta da suíte, consulta o seu relógio — onde Gabriela pode ver o símbolo de uma caveira no mostrador — e fala pela primeira vez desde que se conheceram.

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— Faltam ainda três minutos. Não pode descer assim e fi car exposta ao olhar dos outros. E eu devo acompanhá-la até a limusine.

A tensão volta: já não está mais pensando em limusine, celebridade, subir os degraus — está com medo. Precisa conversar.

— O que é essa suíte? Por que tem tantos objetos diferentes?

— Inclusive um safári para o Quênia — diz o andrógino, apontando para um canto. Ela não havia notado uma faixa discreta de uma companhia de aviação, com alguns envelopes em cima de uma mesa. — Gratuito, como tudo o mais aqui, exceto as roupas e acessórios do Templo.

Máquinas de café, aparelhos eletrônicos, vestidos, bolsas, reló-

gios, bijuterias, safári para o Quênia.

Tudo absolutamente grátis?

— Sei o que está pensando — diz o andrógino com sua voz que não é nem de homem nem de mulher, mas de um ser interplanetá-

rio. — Sim, gratuito. Melhor dizendo, uma troca honesta, já que não existe nada grátis neste mundo. Este é um dos muitos “Quartos de Presentes” espalhados por Cannes durante a época do Festival.

Os eleitos entram aqui e escolhem o que desejam; são pessoas que vão circular por aí usando a blusa de A, os óculos de B, receberão outras pessoas importantes nas suas casas e, no fi nal da festa, irão até a cozinha preparar um café em um novo modelo de máquina.

Transportarão seus computadores em bolsas feitas por C, terminarão por recomendar os cremes de D, que estão sendo lançados agora no mercado, e se sentirão importantes fazendo isso — porque possuem algo exclusivo, que ainda não chegou às lojas especializadas. Irão para a piscina com a bijuteria de E, serão fotografados com o cinto de F — nenhum desses produtos está ainda no mercado. Quando chegarem ao mercado, a Superclasse já fez a propaganda necessária

— não exatamente porque gostam, mas pela simples razão que ninguém mais tem acesso àquilo. Neste momento, os pobres mortais gastarão todas as suas economias para comprar esses produtos. Nada 2 2 4

mais simples, minha querida. Os produtores investem em algumas amostras, e os eleitos se transformam em cartazes ambulantes.

“Mas não se anime; você ainda não chegou lá.”

— E o que o safári para o Quênia tem a ver com tudo isso?

— Você quer melhor propaganda que um casal de meia-idade chegando entusiasmado de sua “aventura na selva”, as câmeras cheias de fotos, recomendando a todos esse passeio exclusivo? Todos os seus amigos vão querer experimentar a mesma coisa. Repito: não existe absolutamente nada grátis neste mundo. Por sinal, os três minutos passaram, é hora de descer e preparar-se para subir os degraus.

Uma limusine branca os espera. O chofer, de luvas e quepe, abre a porta. O andrógino dá as últimas instruções:

— Esqueça o fi lme, não é por causa disso que você está subindo os degraus. Quando chegar lá em cima, cumprimente o diretor do Festival, o prefeito, e logo depois de entrar no Palácio do Congresso, caminhe em direção ao banheiro que fi ca no primeiro andar. Vá até o fi nal desse corredor, vire à esquerda e saia por uma porta lateral.

Alguém a estará esperando ali; sabem como está vestida, e a levarão para uma nova sessão de maquiagem, penteado, um momento de repouso no terraço. Eu a encontro ali, e a acompanharei até o jantar de gala.

— Mas os diretor e os produtores não vão fi car aborrecidos?

O andrógino fez um sinal com os ombros e voltou para o hotel com seus passos cadenciados e estranhos. O fi lme? O fi lme não tinha a menor importância. O importante mesmo era:

SUBIR OS DEGRAUS!

Ou seja, a expressão local para designar o tapete vermelho, o supremo corredor da fama, o lugar onde todas as celebridades do mundo do cinema, das artes, do grande luxo eram fotografadas, e o material distribuído por agências para os quatro cantos do mundo, publicado em revistas que iam da América ao Oriente, do Norte ao Sul do planeta.

2 2 5

— O ar-condicionado está bom, madame?

Ela faz um sinal positivo com a cabeça para o chofer.

— Se desejar algo, há uma garrafa de champagne gelada no console à sua esquerda.

Gabriela abre o console, pega uma taça de cristal, estende os braços para bem distante do seu vestido, escuta o barulho da rolha desprendendo-se da garrafa, serve uma taça que bebe imediatamente, torna a enchê-la e bebe outra vez. Do lado de fora, cabeças curiosas tentavam ver quem estava dentro do imenso carro com vidros fumê, andando pela pista especial. Em breve, ela e a Celebridade estariam ali, juntos, o início não apenas de uma nova carreira, mas de uma incrível, bela, intensa história de amor.

É uma mulher romântica e se orgulha disso.

Lembra-se de que deixara a roupa e a bolsa no “Quarto dos Presentes”. Não tinha a chave do apartamento em que estava hospedada.

Não tinha para onde ir quando a noite acabasse. Aliás, se algum dia escrevesse um livro sobre sua vida, seria incapaz de contar a história daquele dia: acordando de ressaca em um apartamento com roupas e colchonetes espalhados pelo chão, desempregada, de mau humor

— e seis horas depois em uma limusine, pronta para caminhar pelo tapete vermelho diante de uma multidão de jornalistas, ao lado de um dos homens mais desejados do mundo.

Suas mãos tremem. Pensa em beber mais uma taça de champagne, mas resolve não correr o risco de aparecer embriagada nos degraus da fama.

“Relaxe, Gabriela. Não esqueça quem você é. Não se deixe levar por tudo que está acontecendo agora — seja realista.”

Repete sem cessar estas frases à medida que se aproximam do Martinez. Mas, querendo ou não, jamais poderia voltar a ser quem era antes. Não havia uma porta de saída — exceto aquela que o an-drógino indicou, e que leva para uma montanha mais alta ainda.

2 2 6

4:52 PM

Até mesmo o Rei dos Reis, Jesus Cristo, precisou passar pela prova diante da qual Igor agora se encontra: a sedução do demônio. E

ele precisa agarrar-se com unhas e dentes à sua fé para que consiga não fraquejar na missão que lhe foi concedida.

O demônio está pedindo que pare, que perdoe, que deixe tudo aquilo de lado. O demônio é um profi ssional de primeiríssima qualidade, e assusta os fracos com sentimentos de medo, preocupações, impotência, desespero.

No caso dos fortes, as tentações são muito mais sofi sticadas: boas intenções. Foi isso que ele fez com Jesus quando o encontrou no deserto: sugerir que transformasse as pedras em alimento. Assim, não apenas poderia saciar sua fome, mas também a de todos aqueles que imploravam algo para comer. Jesus, entretanto, agiu com a sabedoria que era de se esperar do Filho de Deus. Respondeu que nem só de pão vive o homem, mas também de tudo aquilo que vem do Espírito.

Boas intenções, virtude, integridade, o que é exatamente isso?

Pessoas que se diziam íntegras porque obedeciam seu governo terminaram construindo os campos de concentração na Alemanha. Mé-

dicos que estavam convencidos de que o comunismo era um sistema justo deram atestado de insanidade e exilaram na Sibéria todos os intelectuais que eram contra o regime. Soldados vão para a guerra matar em nome de um ideal que não conhecem direito, cheios de boas intenções, virtude, integridade.

Não é nada disso. O pecado para o bem é uma virtude, a virtude para o mal é um pecado.

Em seu caso, o perdão é a maneira que o Maligno encontrou para deixar sua alma em confl ito. Diz: “Você não é o único que passa por isso. Muita gente já foi abandonada pela pessoa que mais amou, e 2 2 7

mesmo assim conseguiu transformar amargura em felicidade. Imagine as famílias das pessoas que, por sua causa, acabam de deixar este mundo: serão tomadas de ódio, sede de vingança, amargura. É assim que você pretende melhorar o mundo? É isso que você gostaria de oferecer à mulher que ama?”

Mas Igor é mais sábio que as tentações que agora parecem possuir sua alma: se resistir mais um pouco, aquela voz acabará por cansar-se e desaparecer. Principalmente porque uma das pessoas que enviou ao Paraíso está a cada minuto mais presente em sua vida; a menina de sobrancelhas grossas diz que tudo está bem, que existe uma grande diferença entre perdoar e esquecer. Não existe o menor ódio em seu coração, e não está fazendo aquilo para vingar-se do mundo.

O demônio insiste, mas ele precisa mostrar-se fi rme, relembrar a razão por que está ali.

Entra na primeira pizzaria que vê. Pede uma marguerita e uma Coca-Cola normal. Melhor alimentar-se agora, não conseguirá —

como nunca conseguiu — comer direito em jantares com outras pessoas na mesa. Todas se sentem na obrigação de manter uma conversa animada, relaxada, e adoram interrompê-lo justamente quando está pronto para saborear mais um pouco do delicioso prato à sua frente.

Em ocasiões normais, tem sempre um plano para evitar isso: bom-bardear os outros com perguntas, de modo que todos possam dizer coisas inteligentes enquanto ele janta tranqüilo. Mas nesta noite não está disposto a ser conveniente e social. Será antipático e distante.

Em último caso, pode alegar que não fala a língua.

Sabe que nas próximas horas a Tentação está mais forte que nunca, pedindo que pare, que desista de tudo. Mas ele não pretende parar; seu objetivo é terminar a missão planejada, mesmo que a razão pela qual se dispôs a cumpri-la esteja mudando.

Não tem a menor idéia se três mortes violentas fazem parte da estatística normal de um dia em Cannes; se for assim, a polícia não 2 2 8

irá suspeitar que algo diferente está acontecendo. Continuarão com seus procedimentos burocráticos e poderá embarcar como previsto durante a madrugada. Tampouco sabe se já o identifi caram; há o casal que passava de manhã e cumprimentou a vendedora, um dos guarda-costas do homem havia prestado atenção, e alguém presen-ciara o assassinato da mulher.

A Tentação agora está mudando de estratégia: quer deixá-lo assustado, como faz com as pessoas fracas. Pelo visto, o demônio não tem a menor idéia de tudo que passou, e como saiu fortalecido da prova que o destino lhe impusera.

Pega seu celular e digita uma nova mensagem.

Imagina qual a reação de Ewa quando recebê-la. Algo em seu interior diz que ela fi cará assustada e contente ao mesmo tempo. Está profundamente arrependida do passo que deu há dois anos — deixando tudo para trás, inclusive suas roupas e jóias, e pedindo que seu advogado entrasse em contato com ele para os procedimentos ofi ciais de divórcio.

Motivo: incompatibilidade de gênios. Como se todas as pessoas interessantes do mundo pensassem rigorosamente igual, e tivessem muitas coisas em comum. Claro que era uma mentira: tinha se apaixonado por outro.

Paixão. Quem no mundo pode dizer que, depois de mais de cinco anos de casado, não olhou para o lado e desejou estar em outra companhia? Quem pode dizer que não traiu pelo menos uma vez na vida, mesmo que esta traição tenha se passado apenas no imaginário da pessoa? E quantas mulheres e homens saíram de casa por causa disso, descobriram que a paixão não dura, e terminaram voltando para seus verdadeiros parceiros? Um pouco de maturidade, e tudo seria esquecido. Isso é absolutamente normal, aceitável, parte da bio-logia humana.

Claro, teve que aprender isso aos poucos. No início, instruiu seus advogados para serem de uma rigidez nunca vista — se ela quisesse 2 2 9

largá-lo teria que também abrir mão da fortuna que acumularam juntos, centavo por centavo, durante quase vinte anos. Embriagou-se durante uma semana, enquanto aguardava a resposta; pouco se importava com o dinheiro, estava fazendo aquilo porque a queria de volta de qualquer maneira, e essa era a única pressão que conhecia.

Ewa era uma pessoa íntegra. Os advogados dela aceitaram as condições.

A imprensa tomou conhecimento do caso — e foi pelos jornais que soube da nova relação de sua ex-esposa. Um dos mais bem-sucedidos costureiros do planeta, alguém que viera do nada, como ele. Que tinha em torno de 40 anos, como ele. Que era conhecido por não ser arrogante, e trabalhava dia e noite.

Como ele.

Não podia entender o que havia acontecido. Pouco antes de embarcar para uma feira de moda em Londres, tinham passado um dos raros momentos de solidão e romance em Madri. Embora tivessem viajado no jato da companhia, se hospedado num hotel com todos os confortos possíveis e imagináveis, haviam resolvido redescobrir o mundo juntos. Não reservavam restaurantes, entravam em enormes fi las de museus, usavam táxis em vez das limusines com chofer sempre esperando do lado de fora, andavam e se perdiam pela cidade.

Comiam muito, bebiam mais ainda, chegavam exaustos e contentes, voltaram a fazer amor todas as noites.

Ambos precisavam se controlar para não se conectarem aos seus computadores portáteis, ou para deixar os telefones celulares desligados. Mas conseguiram. E voltaram para Moscou com o coração cheio de lembranças, e um sorriso no rosto.

Ele mergulhou de novo em seu trabalho, surpreso ao ver que as coisas haviam continuado a funcionar bem apesar de sua ausência.

Ela partiu para Londres na semana seguinte, e nunca mais voltou.

Igor contratou um dos melhores escritórios de vigilância privada

— normalmente usado para espionagem industrial ou política — e 2 3 0

foi obrigado a ver centenas de fotos em que sua mulher aparecia de mãos dadas com o novo companheiro. Os detetives conseguem arranjar-lhe uma “amiga” desenhada sob medida, através de informações fornecidas por seu ex-marido. Ewa a encontra por acaso em uma loja de departamentos; viera da Rússia, foi “abandonada pelo marido”, não arranja emprego por causa das leis britânicas, e agora está a ponto de passar fome. Ewa desconfi a a princípio, depois resolve ajudá-la. Fala com seu namorado, que resolve correr os riscos e termina arranjando um emprego em um dos seus escritórios, embora não tenha papéis legais.

É sua única “amiga” que fala a língua materna. Está só. Teve problemas matrimoniais. Segundo os psicólogos da empresa de vigilância, o modelo ideal para obter as informações desejadas: sabe que Ewa ainda não conseguiu se adaptar ao novo meio, e faz parte do instinto normal de todo ser humano dividir coisas íntimas com um desconhecido em circunstâncias semelhantes. Não para encontrar uma resposta; simplesmente para desafogar a alma.

A “amiga” grava todas as conversas, que acabam na mesa de Igor, e são mais importantes que os papéis a assinar, os convites a aceitar, os presentes que precisam ser enviados aos principais clientes, fornecedores, políticos, empresários.

As fi tas são muito mais úteis — e muito mais dolorosas que as fotos. Descobre que a relação com o famoso costureiro começou dois anos antes, na Semana de Moda de Milão, onde os dois se encontravam por motivos profi ssionais. Ewa resistiu no início — o homem vivia cercado das mais belas mulheres do mundo, e àquela altura ela já estava com 38 anos. Mesmo assim, terminaram indo para a cama em Paris, na semana seguinte.

Quando escutou isso, notou que fi cara excitado, e não entendeu direito a resposta do seu corpo. Por que o simples fato de imaginar sua mulher de pernas abertas, sendo penetrada por outro homem, lhe provocava uma ereção em vez de repulsa?

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Foi o único momento em que julgou haver perdido a sanidade.

E resolveu fazer uma espécie de confi ssão pública, para diminuir o sentimento de culpa. Conversando com seus companheiros, contava que “um amigo seu” sentia imenso prazer ao saber que sua mulher estava tendo relações extraconjugais. Foi aí que veio a surpresa.

Os companheiros, geralmente grandes executivos e políticos de diversas classes sociais e nacionalidades, fi cavam horrorizados no início. Mas após o décimo copo de vodka confessavam que isso era uma das coisas mais excitantes que pode acontecer em um casamento. Um deles sempre pedia que a mulher lhe contasse os detalhes mais sórdidos, as palavras que tinham sido ditas. Outro confessou que os clubes de swing — locais freqüentados por casais que desejam ter experiências sexuais coletivas — eram a terapia ideal para salvar um casamento.

Um exagero. Mas fi cou feliz em saber que não era o único homem que se excitava ao saber que sua mulher tivera relações com outros.

E fi cou infeliz por conhecer tão pouco o gênero humano, principalmente o masculino — suas conversas giravam apenas em torno de negócios, raramente entrando no terreno pessoal.

Volta a pensar nas fi tas. Em Londres (as semanas de moda, para facilitar a vida dos profi ssionais, aconteciam de maneira sucessiva) o tal costureiro já estava apaixonado; o que não era difícil acreditar, já que tinha encontrado uma das mulheres mais especiais do mundo.

Ewa, por sua vez, continuava cheia de dúvidas: Hussein era o segundo homem com quem fazia amor em sua vida, trabalhavam no mesmo ramo, ela sentia-se imensamente inferior. Teria que renunciar ao sonho de trabalhar com moda, porque era impossível concorrer com seu futuro marido — e voltaria a ser uma simples dona de casa.

Pior do que isso: não conseguia explicar por que alguém tão poderoso podia interessar-se por uma russa de meia-idade.

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Igor poderia explicar, se ela lhe desse pelo menos uma oportunidade de conversarem: sua simples presença era capaz de despertar a luz de todos que a cercavam, fazer com que todos dessem o melhor de si mesmos, que surgissem das cinzas do passado cheios de luz e de esperança. Porque isso havia acontecido com o jovem que voltara de uma guerra sangrenta e inútil.

A Tentação volta. O demônio diz que não é exatamente assim, ele mesmo havia superado seus traumas através do trabalho compulsivo. Embora isso pudesse ser considerado uma desordem psicológica pelos psiquiatras, na verdade era uma maneira de superar as próprias feridas através do perdão e do esquecimento. Ewa não era exatamente tão importante assim: Igor precisava deixar de identifi car todas as suas emoções com uma relação que já não existia.

“Você não é o primeiro”, repetia o demônio. “Você está sendo levado a fazer o mal pensando que desta maneira desperta o bem.”

Igor começa a fi car nervoso. Era um homem bom, e sempre que precisara agir de maneira dura, tinha sido em nome de uma causa maior: servir seu país, evitar que os excluídos não sofressem desnecessariamente, usar ao mesmo tempo a outra face e o chicote, como fi zera Jesus Cristo, seu único modelo de vida.

Faz um sinal-da-cruz, na esperança de que a Tentação se afaste.

Força-se a lembrar das fi tas, do que Ewa dizia, de sua infelicidade com o novo companheiro. Mas que jamais pretende voltar ao passado, porque fora casada com um “desequilibrado”.

Que absurdo. Pelo visto, estava passando por um processo de lavagem cerebral em seu novo ambiente. Devia andar em péssimas companhias. Tem certeza de que está mentindo quando comenta com sua amiga russa que havia decidido se casar por uma única ra-zão: medo de fi car sozinha.

2 3 3

Em sua juventude sentia-se sempre rejeitada pelos outros, não conseguia jamais ser ela mesma — era obrigada a fi ngir constantemente que se interessava pelas mesmas coisas que suas amigas, que participava dos mesmos jogos, que se divertia nas festas, que buscava um homem bonito, que lhe desse segurança no lar, fi lhos, e fi delida-de conjugal. “Tudo mentira”, confessa.

Na verdade, sempre sonhou com a aventura e o desconhecido. Se pudesse ter escolhido uma profi ssão quando ainda era adolescente, seria trabalhar com arte. Desde criança adorava recortar e fazer colagens com fotos das revistas do Partido Comunista; embora detestas-se o que visse ali, conseguia colorir os vestidos sombrios e alegrar-se com os resultados. Por causa das difi culdades em encontrar roupas de boneca, vestia seus brinquedos com fi gurinos feitos pela sua mãe.

Ewa não apenas admirava as roupinhas, mas dizia a si mesma que um dia seria capaz de fazer a mesma coisa.

Não existia moda na antiga União Soviética. Só passaram a saber o que acontecia no resto do planeta quando o Muro de Berlim foi abaixo e as revistas estrangeiras começaram a entrar no país. Ela já era uma adolescente, e agora fazia colagens mais vivas e mais interessantes, até que um dia resolveu comentar com a família que seu sonho era exatamente isso: desenhar roupas.

Assim que terminou a escola, seus pais a enviaram para uma faculdade de Direito. Por mais que estivessem contentes com a liberdade recém-conquistada, havia certas idéias capitalistas que estavam ali para destruir o país, afastar o povo da verdadeira arte, trocar Tolstói e Pushkin por livros de espionagem, corromper o balé clássico com aberrações modernas. Sua fi lha única precisava ser afastada rapidamente da degradação moral que tinha vindo junto com a Coca-Cola e os carros de luxo.

Na universidade encontrou um rapaz bonito, ambicioso, que pensava exatamente como ela: não podemos continuar achando que o 2 3 4

regime em que nossos pais viveram vá retornar. Ele se foi e para sempre. É hora de começar uma nova vida.

Adorou o rapaz. Começaram a sair juntos. Viu que era inteligente e iria conseguir muitas coisas na vida. Era capaz de entendê-la. Claro, havia lutado na guerra do Afeganistão, havia sido atingido durante um combate, mas nada sério; nunca reclamou do passado, e nos muitos anos em que estiveram juntos, jamais demonstrou qualquer sintoma de desequilíbrio ou trauma.

Certa manhã trouxe-lhe um buquê de rosas. Disse que estava abandonando a universidade para começar um negócio por conta própria. Em seguida, propôs casamento. Ela aceitou; embora não tivesse por ele nada além de admiração e companheirismo, achava que o amor viria com o tempo e a convivência. Além do mais, o rapaz era o único que realmente a entendia e a estimulava; se deixasse escapar aquela oportunidade, talvez nunca mais encontrasse alguém que a aceitava como era.

Casaram-se sem grandes formalidades e sem o apoio da família. O

rapaz conseguiu dinheiro junto a pessoas que ela considerava perigosas, mas não podia fazer nada. Pouco a pouco, a companhia que havia aberto começou a crescer. Depois de quase quatro anos juntos, ela fez

— morrendo de medo — sua primeira exigência: que pagasse logo as pessoas que haviam lhe emprestado dinheiro no passado, e que não pareciam muito interessadas em recebê-lo de volta. Ele seguiu seu conselho, e mais tarde viria a agradecer muitas vezes por isso.

Os anos se passaram, as necessárias derrotas aconteceram, as noites em claro se sucediam, até que as coisas começaram a melhorar, e a partir daí o patinho feio da história começou a seguir exatamente o roteiro das histórias infantis: transformou-se em um belo cisne, cobiçado por todos.

Ewa reclamou de sua vida como dona de casa. Em vez de reagir como os maridos de suas amigas, para os quais o trabalho era sinôni-mo de falta de feminilidade, ele comprou uma loja em um dos pontos 2 3 5

mais cobiçados de Moscou. Passou a vender modelos dos grandes costureiros mundiais, embora jamais arriscasse a fazer seus próprios desenhos. Mas seu trabalho tinha outras compensações: viajava para os grandes salões de moda, convivia com pessoas interessantes, e foi então que conheceu Hamid. Até hoje não sabia se o amava — possivelmente a resposta seria “não”. Mas sentia-se confortável ao seu lado. Não tinha nada a perder quando ele confessou que jamais encontrara alguém como ela, e lhe propôs que vivessem juntos. Não tinha fi lhos. Seu marido era casado com o próprio trabalho, e eventualmente sequer notaria sua falta.

“Deixei tudo para trás”, dizia Ewa em uma das fi tas. “E não me arrependo de minha decisão. Teria feito a mesma coisa mesmo que Hamid — contra a minha vontade — não tivesse comprado a linda fazenda na Espanha e a colocado em meu nome. Tomaria a mesma decisão se Igor, meu ex-marido, tivesse me oferecido metade de sua fortuna. Tomaria a mesma decisão porque sei que não preciso mais ter medo. Se um dos homens mais desejados do mundo quer estar ao meu lado, sou melhor do que eu mesma penso.”

Em outra fi ta, ele nota que sua amada devia estar passando por problemas psicológicos muito sérios.

“Meu marido perdeu a razão. Não sei se é a guerra, ou a tensão causada por excesso de trabalho, mas ele pensa que pode entender os desígnios de Deus. Antes de decidir ir embora, fui procurar um psiquiatra para que pudesse entendê-lo melhor, ver se era possível salvar nossa relação. Não entrei em detalhes para não o comprometer, e não vou entrar em detalhes agora com você. Mas acho que ele seria capaz de coisas terríveis se julgasse que estava fazendo o bem.

“O psiquiatra me explicou que muita gente generosa, e com compaixão pelo seu semelhante, de uma hora para outra é capaz de mudar por completo de atitude. Alguns estudos foram feitos a respeito, e chamam esta mudança de ‘O Efeito de Lúcifer’, o anjo mais amado por Deus, que terminou querendo exercer o mesmo poder que Ele.”

2 3 6

“E por que isso acontece?”, pergunta uma outra voz feminina.

Mas, pelo visto, não planejaram bem o tempo de gravação. A fi ta termina ali.

Ele gostaria muito de saber a resposta. Porque sabe que não está se igualando a Deus. Porque tem certeza de que a sua amada está inven-tando tudo aquilo para si mesma, com medo de voltar e de não ser aceita. Claro, já teve que matar por necessidade, mas o que isso tem a ver com o casamento? Matou na guerra, sob a permissão ofi cial que os soldados têm. Matou duas ou três pessoas, sempre procurando o melhor para elas — que não tinham mais condição de viver com dignidade. Em Cannes, estava apenas cumprindo uma missão.

E só mataria alguém que ama se entendesse que estava louca, que havia perdido o seu caminho, e começara a destruir sua própria vida.

Não permitiria nunca que a decadência da mente comprometesse um passado de brilho e generosidade.

Só mataria alguém que ama para salvá-la de uma longa e dolorosa autodestruição.

Igor olha a Maserati que acabara de parar diante dele, em local proibido; um carro absurdo e desconfortável, obrigado a andar à mesma velocidade que os outros apesar da potência do seu motor, baixo demais para estradas secundárias, perigoso demais para as rodovias.

Um homem em torno dos 50 anos — mas querendo parecer 30

— abre a porta e sai, fazendo um imenso esforço, já que a porta se encontra muito próxima do chão. Entra na pizzaria, pede uma

“quattro formaggi” para levar.

Maserati e pizzaria. Estas coisas não combinam. Mas acontecem.

A Tentação volta. A esta altura já não está mais lhe falando de perdão, de generosidade, de esquecer o passado e seguir adiante — é algo diferente, que começa a colocar dúvidas de verdade em sua mente. E se Ewa fosse, como dizia, completamente infeliz? Se, ape-2 3 7

sar do seu profundo amor por ele, estivesse já mergulhada no abismo sem volta de uma decisão mal tomada, como aconteceu com Adão no momento em que aceitou a maçã que lhe era oferecida, e terminou por condenar todo o gênero humano?

Planejou tudo, repete para si mesmo pela milésima vez. Sua idéia era voltarem juntos, não deixar que uma palavra tão pequena como

“adeus” pudesse arrasar por completo a vida de ambos. Entende que um casamento sempre passa por suas crises, principalmente depois de 18 anos.

Mas sabe que um bom estrategista precisa estar constantemente mudando de planos. Envia de novo a mensagem pelo celular, só para certifi car-se de que terminará recebendo. Levanta-se, faz uma ora-

ção, e pede que não precise beber do cálice da renúncia.

A alma da pequena vendedora de artesanato está ao seu lado.

Entende agora que cometera uma injustiça; não custava nada esperar mais um pouco até encontrar um adversário à sua altura, como o pseudo-atlético de cabelos acaju naquele almoço. Ou agir pela absoluta necessidade de salvar uma pessoa de novos sofrimentos, como fi zera com a mulher na praia.

A menina de sobrancelhas grossas, porém, parece fl utuar como uma santa à sua volta, e pede para que não se arrependa; ele agiu corretamente, salvando-a de um futuro de sofrimentos e dor. Sua alma pura vai afastando pouco a pouco a Tentação, fazendo compreender que a razão pela qual está em Cannes não é forçar a volta de um amor perdido — isso é impossível.

Está ali para salvar Ewa da decadência e da amargura. Embora ela tenha sido injusta com ele, o que fez para ajudá-lo merece recompensa.

“Sou um homem bom.”

Vai até o caixa, paga a conta, pede uma pequena garrafa de água mineral. Quando sai, derrama todo o seu conteúdo na cabeça.

Precisa pensar com lucidez. Sonhou tanto para que este dia chegasse, e agora está confuso.

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5:00 PM

Apesar de a moda renovar-se a cada seis meses, uma coisa continua exatamente igual: os seguranças na porta estão sempre com ternos negros.

Hamid estudara alternativas para seus desfi les — seguranças com roupas coloridas, por exemplo. Ou todos vestidos de branco. Mas caso saísse da regra geral, os críticos iriam comentar mais sobre as

“inovações inúteis” do que escrever sobre aquilo que realmente interessava: a coleção na passarela. Além do mais, preto é uma cor perfeita: conservadora, misteriosa, gravada no inconsciente coletivo através dos antigos fi lmes de Hollywood. Os bons sempre se vestiam de branco, e os maus de negro.

“Imagine se a Casa Branca se chamasse Casa Negra. Todos iriam pensar que ali habitava o gênio das trevas.”

Toda cor tem seu propósito, embora pensem que são escolhidas por acaso. Branco signifi ca pureza e integridade. Negro intimida.

Vermelho choca e paralisa. Amarelo chama a atenção. Verde faz com que tudo pareça tranqüilo, é possível seguir adiante. Azul acalma.

Laranja confunde.

Guarda-costas precisavam estar vestidos de negro. Era assim desde o início, e assim deveria continuar.

Como sempre, três entradas diferentes. A primeira para a imprensa em geral, poucos jornalistas e muitos fotógrafos carregando seus pesados equipamentos, que parecem gentis uns com os outros mas estão sempre dispostos a dar cotoveladas nos companheiros quando chega o momento de conseguir o melhor ângulo, a foto única, o momento perfeito, a falha gritante. A segunda para os convidados, e a Semana de Moda de Paris não era em nada diferente daquele balneário do sul da França; as pessoas sempre mal vestidas, com quase toda certeza sem dinheiro para comprar o que seria mostrado 2 3 9

ali. Mas precisam estar presentes com suas pobres calças jeans, suas camisetas de mau gosto, seus tênis de marca sobressaindo a todo o resto, convencidas de que isso signifi ca descontração e familiaridade com o ambiente, o que era uma completa mentira. Algumas usavam bolsas e cintos que podiam ter custado caro, e isso era ainda mais patético: como se colocassem um quadro de Velásquez em uma moldura de plástico.

Finalmente, a entrada para os VIPs. Os seguranças nunca sabem de nada, limitam-se a manter os braços cruzados na frente, e a mostrar um olhar ameaçador — como se fossem os verdadeiros donos do local. A moça gentil aproxima-se, educada para decorar o rosto das pessoas famosas. Tem uma lista na mão e se dirige até o casal.

— Sejam bem-vindos, Sr. e Sra. Hussein. Obrigado por terem confi rmado a presença.

Passam na frente de todo mundo; embora o corredor seja o mesmo, uma separação de pilares de metal com fi tas de veludo vermelho mostra na verdade quem é quem, e quais são as pessoas mais importantes. Este é o momento da Pequena Glória, ser tratado de maneira especial, e mesmo que aquele desfi le não faça parte do calendário ofi cial — afi nal de contas era preciso não esquecer que Cannes é um Festival de Cinema —, o protocolo deve ser rigorosamente res-peitado. Por causa da Pequena Glória em todos os eventos paralelos (como jantares, almoços, coquetéis), homens e mulheres passam horas diante do espelho, convencidos de que a luz artifi cial não faz tão mal à pele como o sol lá fora, onde precisam usar toneladas de cremes protetores. Estão a dois passos da praia, mas preferem as sofi sticadas máquinas de bronzear nos institutos de beleza sempre a uma quadra do local onde estão hospedados. Desfrutariam de uma linda vista se resolvessem passear pela Croisette, mas quantas calorias iriam perder nessa caminhada? Melhor usar as esteiras rolantes também instaladas em miniacademias nos hotéis.

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Assim estarão em plena forma, vestindo-se de maneira estudada-mente casual para os almoços em que comem de graça e sentem-se importantes porque foram convidadas, os jantares de gala em que é preciso pagar muito dinheiro ou ter contatos em posição de destaque, as festas que acontecem depois dos jantares e se estendem até de madrugada, o último café ou uísque no bar do hotel. Isso tudo com muitas visitas ao banheiro para retocar a maquiagem, ajeitar a gravata, retirar as partículas de pele ou de poeira dos ombros do paletó, verifi car se o batom continua com o mesmo contorno.

Finalmente, a volta para os seus quartos de hotel de luxo, onde encontrarão o leito preparado, o menu do café-da-manhã, a previsão do tempo, um bombom de chocolate (retirado imediatamente do local porque signifi ca calorias em dobro), um envelope com seus nomes escritos em bela caligrafi a (jamais aberto, porque ali dentro está a carta padronizada do gerente do hotel lhes dando as boas-vindas) ao lado de uma cesta de frutas (avidamente devoradas porque contêm uma dose razoável de fi bras, bom para o funcionamento do organismo e ótimo para evitar gases). Olham-se no espelho enquanto tiram a gravata, a maquiagem, os vestidos e os smokings, e dizem para si mesmos: nada, nada de importante aconteceu hoje. Talvez amanhã seja melhor.


Ewa está bem vestida, usando um HH que refl ete discrição e elegância ao mesmo tempo. Os dois são encaminhados para os assentos que fi cam diretamente em frente à passarela, ao lado do local onde fi carão os fotógrafos — que agora já começam a entrar e instalar seus equipamentos.

Um jornalista se aproxima e faz a pergunta de sempre:

— Senhor Hussein, qual foi o melhor fi lme que viu até agora?

— Acho prematuro dar alguma opinião — é a resposta de sempre. — Vi muita coisa boa, interessante, mas prefi ro esperar o fi nal do Festival.

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Na verdade, não viu absolutamente nada. Mais tarde irá conversar com Gibson para saber qual “o melhor fi lme da temporada”.

A moça loura, educada e bem vestida, pede que o repórter se afaste. Pergunta se irão participar do coquetel que será oferecido pelo governo da Bélgica logo depois do desfi le. Diz que um dos ministros do governo está presente, e gostaria de conversar com ele. Hamid considera a proposta, já que o país está investindo fortunas para fazer com que seus costureiros ganhem destaque no cenário internacional — e assim possam recuperar o esplendor perdido depois que suas colônias na África desapareceram.

— Sim, talvez vá tomar uma taça de champagne.

— Acho que temos um encontro logo depois com Gibson — corta Ewa.

Hamid entende o recado. Diz para a produtora que havia esquecido esse compromisso, mas que entrará em contato com o ministro mais adiante.

Alguns fotógrafos descobrem que estão ali, e começam a disparar suas câmeras. No momento, são as únicas pessoas que interessam à imprensa. Mais tarde, chegam alguns manequins que já causaram comoção e furor no passado, que posam e sorriem, dão autógrafos para algumas das pessoas mal vestidas na platéia, e fazem o possível para serem notadas — na esperança de verem seus rostos de novo nas páginas impressas. Os fotógrafos se voltam para elas, sabendo que estão fazendo isso apenas para cumprir o dever, dar uma satisfação aos seus editores; nenhuma daquelas fotos será publicada. A moda é o presente; as manequins de três anos atrás

— excluindo as que ainda são capazes de se manter nas manchetes de jornais por causa de escândalos cuidadosamente estudados por suas agentes, ou porque realmente conseguiram destacar-se das demais

— são lembradas apenas por aquelas pessoas que sempre fi cam atrás das cercas de metal na entrada dos hotéis, ou por senhoras que não conseguem acompanhar a velocidade com que as coisas mudam.

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As antigas modelos que acabam de entrar estão conscientes disso (e entenda-se por “antiga” alguém que já atingiu seus 25 anos), e se desejam aparecer não é porque sonhem voltar às passarelas: estão pensando em arranjar um papel em um fi lme, ou participar como apresentadora de um programa de televisão a cabo.

Quem estará na passarela aquele dia, além de Jasmine — sua úni-ca razão de estar ali?

Seguramente, nenhuma das quatro ou cinco top models do mundo, porque estas fazem apenas o que desejam, cobram uma fortuna, e não têm nenhum interesse em aparecer em Cannes para prestigiar o evento dos outros. Hamid calcula que verá duas ou três Classe A, como deve ser o caso de Jasmine, ganhando em torno de 1.500 euros para trabalhar naquela tarde; para isso é preciso ter carisma e, sobretudo, futuro na indústria. Outras duas ou três modelos Classe B, profi ssionais que sabem desfi lar com perfeição, exibem uma silhueta adequada, mas que não tiveram a sorte de participar de eventos paralelos como convidadas especiais para festas dos conglomerados de luxo, custarão entre 800 e 600 euros. O resto do grupo será constituído da Classe C, meninas que acabaram de entrar na roda-viva dos desfi les, e que ganham entre 200 e 300 euros para “conseguir experiência necessária”.

Hamid sabe o que se passa na cabeça de algumas moças desse terceiro grupo: vou vencer. Vou mostrar a todos do que sou capaz.

Serei uma das modelos mais importantes do planeta, mesmo que tenha que seduzir homens mais velhos.

Homens mais velhos, porém, não são tão estúpidos como elas pensam; a maioria é menor de idade, e isso pode conduzir à prisão em quase todos os países do mundo. A lenda é completamente diferente da realidade: ninguém consegue chegar ao topo graças à sua generosidade sexual; é preciso muito mais que isso.

Carisma. Sorte. A agente certa. O momento adequado. E o momento adequado, para os estúdios de tendência, não é o que aquelas 2 4 3

meninas que acabam de entrar no mundo da moda estão pensando.

Leu as pesquisas mais recentes, e tudo indica que o público está cansado de ver mulheres anoréxicas, diferentes, com olhares provocantes e idade indefi nida. As agências de casting (que selecionam manequins) estão buscando algo que parece extremamente difícil de encontrar: a menina do apartamento ao lado. Ou seja, alguém que seja absolutamente normal, que transmita a todos que virem os cartazes e as fotos nas revistas especializadas a sensação de que “eu sou como ela”.

E encontrar uma mulher extraordinária que aparente uma “pessoa normal” é uma tarefa quase impossível.

Foi-se o tempo das manequins que serviam apenas como cabides ambulantes para os estilistas. Claro, é mais fácil vestir alguém magro

— a roupa sempre cai melhor. Foi-se o tempo em que a publicidade para produtos de luxo masculino era feita em cima de lindos modelos; funcionou muito na época yuppie, no fi nal dos anos 80, mas hoje em dia não vende absolutamente mais nada. Ao contrário da mulher, o homem não tem um padrão defi nido de beleza: o que ele quer mesmo encontrar nos produtos que compra é algo que o asso-cie ao companheiro de escritório ou de bebida.

O nome de Jasmine chegou até Hamid como “ela é a verdadeira face da sua nova coleção”, simplesmente porque a viram desfi lar; veio junto de comentários como “tem um carisma extraordinário, e mesmo assim todos podem reconhecer-se nela”. Ao contrário das manequins Classe C, que estão atrás de contatos e de homens que se dizem poderosos e capazes de transformá-las em estrelas, a melhor promoção no mundo da moda — e possivelmente em qualquer coisa que se deseja promover — são os comentários que a indústria faz.

No momento em que alguém está para ser “descoberta”, as apostas começam a aumentar sem que exista nenhuma lógica para isso.

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Às vezes dá certo. Às vezes dá errado. Mas o mercado é assim, não se pode ganhar sempre.

A sala começa a se encher — os assentos da primeira fi la estão reservados, um grupo de homens de terno e mulheres elegantemente vestidas ocupa algumas cadeiras e o resto continua vazio. O público é colocado na segunda, terceira e quarta fi las. Uma famosa modelo

— casada com um jogador de futebol, que já fez muitas viagens ao Brasil porque “adora o país”, é agora o centro das atenções dos fo-tógrafos. Todo mundo sabe que “viagem ao Brasil” é sinônimo de

“cirurgia estética”, mas ninguém ousa comentar abertamente; entretanto, depois de algum tempo de convivência, perguntam discretamente se, além de visitarem as belezas de Salvador e dançarem no carnaval do Rio, podem encontrar ali algum médico que tenha experiência em operação plástica. Um cartão de visitas troca rapidamente de mãos, e a conversa termina por ali.

A menina loura e gentil aguarda que os profi ssionais da imprensa terminem seu trabalho (também estão perguntando à modelo qual o melhor fi lme que viu até agora), em seguida a conduz para o único assento livre ao lado de Hamid e Ewa. Os fotógrafos se aproximam e tiram dezenas de fotos do trio — o grande costureiro, sua esposa, e a modelo transformada em dona de casa.

Alguns jornalistas querem saber o que acha do trabalho da estilista. Ele já está acostumado com este tipo de pergunta:

— Vim para conhecer. Escutei que tem muito talento.

Os jornalistas insistem, como se não tivessem escutado a resposta.

São belgas em sua quase totalidade — a imprensa francesa ainda não está interessada no tema. A moça loura e simpática pede que deixem os convidados em paz.

Eles se afastam. A ex-modelo que sentou ao seu lado tenta puxar conversa, dizendo que adora tudo o que faz. Ele agradece gentilmente; se ela esperava como resposta “precisamos conversar depois 2 4 5

do desfi le”, a esta altura deve estar desapontada. Mesmo assim, ela começa a contar o que tem acontecido em sua vida — as fotos, os convites, as viagens.

Ele escuta tudo com infi nita paciência, mas assim que tem uma chance (ela acaba de virar-se para falar com alguém) vira-se para Ewa pedindo que o salve deste diálogo de surdos. Sua mulher, po-rém, está mais estranha que nunca, e recusa-se a conversar; a única saída é ler o que diz o folheto explicativo do desfi le.

A coleção é uma homenagem a Ann Salens, considerada a pionei-ra da moda belga. Começou no fi nal dos anos 60, com uma pequena boutique, mas logo entendeu que a maneira de se vestir criada pelos jovens hippies que viajavam de todo mundo em direção à Amsterdã tinha um potencial gigantesco. Capaz de enfrentar — e vencer — os sóbrios estilos que vigoravam na burguesia da época, terminou vendo seu trabalho usado por alguns dos ícones, como a rainha Paola, ou a grande musa do movimento existencialista francês, a cantora Juliette Gréco. Foi uma das criadoras do “desfi le-show”, que misturava as roupas na passarela com espetáculos de luz, som, e arte.

Mesmo assim, não ganhou muita projeção além das fronteiras do seu país. Sempre tivera um medo gigantesco de câncer; e como diz a Bíblia em seu livro de Jó, “tudo o que eu mais temia me aconteceu”.

Morreu da doença que mais a assustava, enquanto via seus negócios indo por água abaixo por causa da sua absoluta falta de talento para lidar com dinheiro.

E como tudo que acontece em um mundo que se renova a cada seis meses, foi completamente esquecida. Era muito corajosa a atitude da estilista que em poucos minutos estaria mostrando sua cole-

ção: voltar ao passado, em vez de tentar inventar o futuro.

Hamid guarda o folheto no bolso; se Jasmine não fosse aquilo que esperava, iria conversar com a estilista e ver se tem algum projeto 2 4 6

que poderiam desenvolver em comum. Sempre há espaço para novas idéias — desde que os concorrentes estejam sob sua supervisão.

Olha em torno: os refl etores estão bem posicionados, é relativamente boa a quantidade de fotógrafos presentes — não esperava que isso acontecesse. Talvez a coleção seja realmente digna de se ver, ou talvez o governo belga tenha usado toda a sua infl uência para trazer a imprensa, oferecendo passagens e hospedagem. Existe ainda uma possibilidade para todo aquele interesse, mas Hamid torce para estar errado: Jasmine. Se deseja levar adiante os seus planos, ela precisa ser uma desconhecida completa do grande público. Até o momento, escutou apenas comentários de gente ligada ao meio em que trabalha. Caso seu rosto já tivesse aparecido em muitas revistas, seria uma perda de tempo contratá-la. Primeiro, porque alguém já teria chegado antes. Segundo, estaria fora de questão associá-la com algo novo.

Hamid faz os cálculos; aquele evento não deve estar custando barato, mas o governo belga está tão certo como o sheik: moda para as mulheres, esporte para os homens, celebridades para ambos os sexos, esses são os únicos assuntos que interessam a todos os mortais, e os únicos que podem projetar a imagem de um país no cenário internacional. Claro, no caso específi co da moda, existe a conversa

— que pode demorar anos — com a Federação. Mas um dos diri-gentes está sentado ao lado dos políticos belgas; pelo visto, não estão com vontade de perder tempo.

Outros VIPs chegam, sempre acompanhados da simpática moça loura. Parecem um pouco desorientados, não sabem exatamente o que estão fazendo ali. Estão bem vestidos demais, deve ser o primeiro desfi le a que assistem na França, vindos diretamente de Bruxelas.

Com toda certeza não fazem parte da fauna que neste momento inunda a cidade por causa do festival de cinema.

Cinco minutos de atraso. Ao contrário da Semana de Moda de Paris, na qual praticamente nenhum desfi le começa na hora marca-2 4 7

da, muitas outras coisas diferentes estão acontecendo na cidade, e a imprensa não pode fi car esperando por muito tempo. Mas logo se dá conta de que está errado: a maior parte dos jornalistas presentes foi conversar e entrevistar os ministros; são quase todos estrangeiros, vindos do mesmo país. Política e moda só combinam em uma situação como essa.

A simpática menina loura se dirige até onde estão concentrados, e pede que voltem aos seus lugares: o espetáculo vai começar. Hamid e Ewa não trocam uma palavra. Ela não parece contente nem descontente — e isso é o pior de tudo. Se reclamasse, se sorrisse, se dissesse alguma coisa! Mas nada, nenhum sinal do que está acontecendo no seu interior.

Melhor se concentrar no interior do painel que vê ao fundo, de onde sairão os modelos. Ali pelo menos ele sabe o que está se passando.

Há alguns minutos, as modelos retiraram todas as roupas de baixo, fi caram completamente nuas — para não deixar marcas nos vestidos que vão apresentar. Já colocaram o primeiro, e aguardam que as luzes se apaguem, a música comece, e uma pessoa — geralmente uma mulher — toque em suas costas, indicando o tempo exato para saírem em direção aos refl etores e ao público.

As modelos classes A, B, e C têm diferentes graus de nervosismo

— sendo que as menos experientes são as mais excitadas. Algumas fazem uma prece, outras procuram ver através da cortina se algum conhecido está presente, se o pai ou a mãe conseguiram o lugar adequado. Devem ser dez ou doze, cada uma com sua foto diante do local onde estão penduradas em ordem as roupas que trocam em questão de segundos, voltando para a passarela completamente relaxadas, como se estivessem usando aquele modelo desde o início da tarde. Os últimos retoques já foram dados na maquiagem, nos cabelos.

Repetem para si mesmas:

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“Não posso escorregar. Não posso tropeçar na bainha. Fui escolhida pessoalmente pela estilista entre sessenta modelos. Estou em Cannes. Alguém importante deve estar na platéia. Sei que HH está presente, e pode me escolher para sua marca. Dizem que o local está cheio de fotógrafos e jornalistas.

“NÃO POSSO SORRIR porque assim diz a regra. Os pés devem seguir uma linha invisível. Preciso andar como se estivesse marchan-do, por causa do salto! Não importa que o andar seja artifi cial, que não me sinta bem — não posso me esquecer disso!

“Tenho que chegar na marcação, virar para um lado, parar por dois segundos, e voltar logo em seguida, com a mesma velocidade, sabendo que assim que eu desaparecer de cena haverá alguém esperando para tirar minha roupa, colocar a próxima, sem que eu sequer possa olhar no espelho! Preciso confi ar que tudo vai dar certo. Preciso mostrar não apenas meu corpo, não apenas meu vestido, mas a força do meu olhar!”

Hamid olha para o teto: ali está a marcação, um foco de luz mais intenso que os outros. Se a modelo andar mais adiante, ou parar antes, não será bem fotografada; neste caso, os editores de revista — melhor dizendo, os diretores de revistas belgas — escolherão outro manequim. A imprensa francesa a esta altura está na frente dos hotéis, no tapete vermelho, nos coquetéis de fi nal de tarde, ou comendo um sanduíche e se preparando para o principal jantar de gala daquela noite.

As luzes do salão se apagam. Os refl etores da passarela se acendem.

O grande momento chega.

Um poderoso sistema de som enche o ambiente com uma trilha sonora de músicas dos anos 60 e 70. Aquilo transporta Hamid para um outro mundo que jamais pôde conhecer, mas de que havia escutado falar. Sentia certa nostalgia do que nunca conhecera, e alguma revolta — por que não vivera o grande sonho dos jovens que percor-riam o mundo naquela época?

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Entra a primeira modelo, e a visão se mistura com o som — a roupa colorida, cheia de vida, de energia, contando uma história que aconteceu há muito tempo, mas que o mundo parecia ainda gostar de escutar outras vezes. Ao seu lado, ouve as dezenas, centenas de cliques das máquinas fotográfi cas. As câmeras estão gravando. A primeira modelo faz o desfi le perfeito — vem até o ponto de luz, gira para a direita, permanece dois segundos, e volta. Terá aproximadamente quinze segundos até chegar aos bastidores — ali desmonta sua pose e sai correndo em direção ao cabide onde está a próxima roupa, despe-se com rapidez, veste-se mais rápido ainda, toma seu lugar na fi la, e está pronta para o próximo passo. A estilista assiste a tudo através de um circuito interno de TV, mordendo os lábios e esperando que ninguém escorregue, que o público entenda o que quer dizer, que termine sendo aplaudida no fi nal, que o emissário da Federação se deixe impressionar.

O desfi le continua. Na posição que está, tanto Hamid como as câmeras de TV vêem o porte elegante, as pernas com passos fi rmes.

Para as pessoas sentadas nas fi las laterais — e que não estão acostumadas com desfi le, como deve ser o caso da maioria dos VIPs ali presentes — há uma sensação estranha: por que “marcham” em vez de andar, como a maioria dos manequins que estão acostumadas a ver nos programas de moda? Seria isso uma invenção da estilista para tentar dar um toque de originalidade?

Não, responde silenciosamente Hamid para si mesmo. Por causa dos saltos altos. Porque assim têm fi rmeza sufi ciente a cada passo. O

que as câmeras mostram — porque estão fi lmando de frente — não é exatamente o que acontece no mundo real.

A coleção é melhor do que pensava — uma volta no tempo com toques contemporâneos e criativos. Nada de excessos — porque o segredo da moda é o mesmo da cozinha: saber dosar bem os ingre-dientes usados. Flores e contas que relembram os anos loucos, mas 2 5 0

foram colocadas de tal forma que parecem absolutamente modernas. Já seis manequins desfi laram pela passarela, e em uma delas notou um ponto no joelho, que a maquiagem não consegue disfar-

çar: minutos antes devia ter aplicado ali uma dose de heroína, para acalmar-se e para controlar o apetite.

De repente, Jasmine aparece. Usa uma blusa branca de mangas compridas, toda bordada à mão, uma saia também branca que vai abaixo dos joelhos. Caminha com segurança, e ao contrário das que passaram antes, sua seriedade não é estudada: é natural, absolutamente natural. Hamid lança um olhar rápido para a platéia: todos na sala parecem hipnotizados pela presença de Jasmine, ninguém dá atenção à modelo que está saindo ou entrando depois que ela completa seu percurso e começa a retornar ao camarim.

“Perfeita!”

Em suas duas próximas aparições na passarela, ele mantém os olhos em cada detalhe do seu corpo; e vê que ele irradia algo muito mais forte do que suas curvas bem desenhadas. Como poderia defi nir isso? O casamento do Céu e do Inferno, o Amor e o Ódio andando de mãos dadas.

Como qualquer desfi le, aquele não dura mais que quinze minutos

— embora tenha custado meses de trabalho para ser concebido e montado. No fi nal a estilista entra em cena, agradece os aplausos, as luzes se acendem, a música pára — e só então se dá conta de que estava adorando aquela trilha sonora. A moça simpática torna a vir até eles e dizer que alguém do governo belga está muito interessado em uma conversa. Ele abre sua carteira de couro tira um cartão, diz que está hospedado no Hotel Martinez, e que terá muito prazer em marcar um encontro para o dia seguinte.

— Mas gostaria muito de conversar com a estilista e a modelo negra. Você por acaso sabe em que jantar estarão hoje à noite? Posso esperar aqui por uma resposta.

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Torceu para que a simpática loura voltasse logo. Os jornalistas se aproximaram e iniciaram a série de perguntas de sempre: melhor dizendo, a mesma pergunta repetida por jornalistas diferentes:

“O que achou do desfi le?”

— Muito interessante — a resposta também era sempre a mesma.

— E o que isso quer dizer?

Com a delicadeza de um profi ssional experiente, Hamid movia-se em direção ao jornalista seguinte. Nunca tratar mal a imprensa; mas nunca responder a nenhuma pergunta, dizer apenas o que é conveniente naquele momento.

A simpática loura voltou. Não, não iam ao grande jantar de gala daquela noite. Apesar de todos os ministros presentes, a política do Festival era ditada por outro tipo de poder.

Hamid disse que irá mandar entregar em mãos os convites necessários, o que é imediatamente aceito. Com toda certeza, a estilista esperava esse tipo de resposta, e estava consciente do produto que tinha em mãos.

Jasmine.

Sim, ela é a pessoa. Raramente iria utilizá-la em um desfi le, porque é mais forte que as roupas que está usando. Mas para ser “o rosto visível de Hamid Hussein”, não existia ninguém melhor.

Ewa torna a ligar o celular na saída. Segundos depois aparece um envelope voando por um céu azul, descendo na base da tela, e abrindo-se. Tudo isso para dizer: “Você tem uma mensagem.”

“Que animação ridícula”, pensa Ewa.

De novo o número bloqueado. Tem dúvidas se deve ou não abrir o texto, mas a curiosidade é mais forte que o medo.

— Pelo visto, algum admirador descobriu seu telefone — brinca Hamid. — Nunca recebeu tantas mensagens como hoje.

— Pode ser.

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Na verdade, gostaria de dizer: “Será que você não percebe? Depois de dois anos juntos, não consegue ver o meu estado de terror, ou pensa que estou apenas em meu período menstrual?”

Finge ler despreocupadamente o que está escrito: Destruí outro mundo por sua causa. E já começo a me perguntar se vale a pena fazer isso, porque parece que você não está entendendo nada. Seu coração está morto.

— Quem é? — pergunta Hamid.

— Não tenho a menor idéia. Não mostra o número. Mas sempre é bom ter admiradores desconhecidos.

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5:15 PM

Três crimes. Todas as estatísticas haviam sido superadas em apenas algumas horas, e mostravam um aumento de 50% no total.

Vai até o carro e usa a freqüência especial do rádio.

— Existe um assassino em série na cidade.

A voz murmurou algo do outro lado. O barulho da estática corta algumas palavras, mas Savoy entende o que diz.

— Não tenho certeza. Mas não tenho dúvida tampouco.

Mais comentários, mais estática.

— Não sou louco, comandante, e não vivo entrando em contra-dições. Por exemplo: não tenho certeza de que meu salário vai ser depositado no fi nal do mês, e no entanto não tenho dúvidas: será que me explico?

Estática e voz irritada do outro lado.

— Não estou discutindo aumento de salário, mas certezas e dúvidas podem conviver, principalmente em uma profi ssão como a nossa. Sim, deixemos este assunto de lado e vamos ao que nos interessa.

É bem possível que os telejornais noticiem três crimes, porque o sujeito no hospital acaba de morrer. Evidente que apenas nós sabemos que todos foram cometidos com técnicas bastante sofi sticadas, e por causa disso ninguém vai suspeitar que estejam interligados. Mas de repente Cannes começará a ser vista como uma cidade insegura. E se isso continuar amanhã, começarão as especulações a respeito de um único assassino. O que deseja que faça?

Comentários alterados do comandante.

— Sim, estão aqui perto. O rapaz que testemunhou o assassinato está contando tudo para eles; nestes dez dias temos fotógrafos e jornalistas em todos os buracos. Achei que iam estar todos no tapete vermelho, mas, pelo visto, estava enganado; acho que lá tem muito repórter e pouco assunto.

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Mais comentários alterados. Ele tira um bloco do bolso e anota um endereço.

— Está bem. Sairei daqui e irei até Monte Carlo conversar com a pessoa que me indica.

A estática parou: a pessoa do outro lado da linha havia desligado.

Savoy caminha até o fi nal do píer, coloca a sirene no teto do seu carro em volume máximo, e sai dirigindo como um louco — esperando atrair os repórteres para um outro crime inexistente. Eles conhecem o truque e não se movem, continuam entrevistando o rapaz.

Estava começando a fi car excitado. Finalmente poderia deixar a papelada toda para ser preenchida por um subalterno, e dedicar-se àquilo que sempre sonhou: desvendar assassinatos que desafi am a lógica. Gostaria de ter razão — um assassino em série está na cidade, e começa a aterrorizar seus habitantes. Por causa da velocidade com que a informação é difundida nos dias de hoje, em pouco tempo estaria diante dos holofotes, explicando que “nada está ainda provado”, mas de tal maneira que ninguém acredite por completo, e assim os holofotes continuam brilhando até que o criminoso seja descoberto. Porque apesar de todo o brilho e glamour, Cannes ainda é uma pequena cidade do interior — onde todos sabem o que se passa, e não será difícil encontrar o criminoso.

Fama. Celebridade.

Será que está pensando apenas em si mesmo, e não no bem-estar dos cidadãos?

Mas o que há de errado em buscar um pouco de glória, quando há anos é obrigado a conviver com estes doze dias em que todo mundo quer brilhar além de suas próprias capacidades? Isso termina conta-giando todo mundo. Todo mundo gosta de ver o seu trabalho reconhecido pelo público; os cineastas ali estão fazendo a mesma coisa.

“Deixe de pensar na glória; ela virá por si mesma, desde que você execute bem seu trabalho. Além do mais, a fama é caprichosa: ima-2 5 6

gine se termina sendo considerado incapaz da missão que lhe foi confi ada? A humilhação também será pública.

“Concentre-se.”

Depois de trabalhar quase vinte anos na polícia ocupando todos os tipos de cargo, sendo promovido por mérito, lendo montanhas de relatórios e documentos, entendera que na maior parte das vezes em que chegam a um criminoso, a intuição é sempre tão importante quanto a lógica. O perigo neste exato momento em que se dirige para Monte Carlo não é o assassino — que deve estar exausto por causa da gigantesca quantidade de adrenalina que foi misturada com seu sangue, e apreensivo, porque foi reconhecido por alguém. O

grande inimigo é a imprensa. Os jornalistas seguem sempre o mesmo princípio de misturar técnica com intuição: se conseguissem estabelecer um laço, por menor que seja, uma relação entre três assassinatos, a polícia perderia por completo o controle e o Festival pode se transformar em um caos absoluto, com gente não querendo mais sair nas ruas, estrangeiros viajando antes da hora, comerciantes fazendo protestos pela inefi ciência da polícia, manchetes em todos os jornais do mundo — afi nal de contas um assassino em série é sempre muito mais interessante na vida real do que nas telas.

E nos anos seguintes, o Festival de Cinema já não seria o mesmo: o mito do terror se instalaria, o luxo e o glamour escolheriam um lugar mais apropriado para mostrar seus produtos, e pouco a pouco toda aquela festa de mais de sessenta anos de existência terminaria se transformando em um evento menor, longe dos holofotes e das revistas.

Tem uma grande responsabilidade. Melhor dizendo, tem duas grandes responsabilidades: a primeira é saber quem está cometendo aqueles crimes, e impedi-lo antes que mais um cadáver apareça em sua jurisdição. A segunda é controlar a imprensa.

Lógica. Precisa pensar com lógica. Qual daqueles repórteres presentes, na sua maior parte vindos de cidades distantes, tem a exata 2 5 7

noção de quantos crimes são cometidos ali? Quantos deles se preo-cupariam em telefonar para a Guarda Nacional e procurar saber as estatísticas?

Resposta lógica: nenhum. Pensam apenas no que acaba de acontecer. Estão excitados porque um grande produtor teve um ataque cardíaco durante um dos almoços tradicionais que acontecem no período do Festival. Ninguém ainda sabe que fora envenenado — o relatório do legista está no banco de trás do seu carro. Ninguém ainda sabe — e possivelmente não saberá nunca — que fazia parte de um grande esquema de lavagem de dinheiro.

Resposta não lógica: sempre tem alguém que pensa diferente dos outros. É preciso, assim que for possível, dar todas as explicações necessárias, organizar uma entrevista coletiva, mas falar apenas do crime da produtora americana no banco de praça; assim, os outros incidentes serão momentaneamente esquecidos.

Uma mulher importante no mundo do cinema é assassinada.

Quem se interessará pela morte de uma menina sem qualquer expressão? Neste caso, todos vão chegar à mesma conclusão que ele, logo no início das investigações: excesso de drogas.

Não há risco.

Voltemos à produtora de cinema; talvez não seja tão importante como imagina, ou a esta altura o comissário já estaria chamando seu telefone celular. Fatos: um homem bem vestido, de aproximadamente 40 anos, cabelos começando a fi car grisalhos, que fi cara conversando com ela algum tempo enquanto admiravam o horizonte e eram observados pelo jovem escondido atrás das pedras. Depois de enfi ar um estilete com a técnica de um cirurgião, sai caminhando lentamente, e agora já se misturava com centenas, milhares de pessoas parecidas com ele.

Desliga a sirene por alguns instantes, e telefona para o inspetor-substituto que permanecera na cena do crime, e que agora devia estar sendo interrogado em vez de interrogar. Pede para que respon-2 5 8

da aos seus carrascos, jornalistas que sempre atrapalham com suas conclusões precipitadas, que tinha “quase certeza” de que havia sido um crime passional.

— Não diga que está certo. Diga que as circunstâncias podem indicar isso, já que os dois estavam juntos, namorando. Não se trata de roubo ou de vingança, mas de um dramático acerto de contas de problemas pessoais.

“Cuidado para não mentir; suas declarações estão sendo gravadas, e isso poderá ser usado mais tarde contra você.”

— E por que devo explicar isso?

— Porque as circunstâncias indicam. E quanto mais cedo tiverem algum tipo de satisfação, melhor para nós.

— Estão perguntando qual foi a arma do crime.

— “Tudo indica” que foi um punhal, como disse a testemunha.

— Mas ele não tem certeza.

— Se nem a testemunha sabe o que viu, o que você pode afi rmar além do “tudo indica”? Assuste o rapaz; diga também para ele que suas palavras estão sendo gravadas pelos jornalistas, e mais tarde poderão ser usadas contra ele.

Desliga. Daqui a pouco o inspetor-substituto ia começar com perguntas inconvenientes.

“Tudo indica” que foi crime passional, mesmo que a vítima tivesse acabado de chegar na cidade, vinda dos Estados Unidos. Mesmo que estivesse hospedada sozinha em seu quarto de hotel. Mesmo que, pelo pouco que conseguiram apurar, seu único compromisso fora um encontro sem maiores conseqüências durante a manhã, no mercado aberto de fi lmes que se encontra ao lado do Palácio do Congresso. Os jornalistas não teriam acesso a todas essas informações.

E havia algo muito mais importante que só ele sabia — ninguém mais em sua equipe, ninguém mais no mundo.

A vítima estivera no hospital. Conversaram um pouco e a mandara embora — para a morte.

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Torna a ligar a sirene, para fazer com que o ruído ensurdecedor afaste qualquer sentimento de culpa. Não, não fora ele quem enfi ara o estilete em seu corpo.

Claro que pode pensar: “Tal senhora estava ali, na sala de espera, porque tem relação com a máfi a da droga, e queria saber se realmente o assassinato tinha sido bem-sucedido.” Isso é coerente com a

“lógica”, e se comunicar o encontro casual ao seu superior, começa-rão a investigar nessa direção. Claro que inclusive pode ser verdade; fora morta com requintes de sofi sticação, como acontecera com o distribuidor de Hollywood. Ambos eram americanos. Ambos tinham sido assassinados por instrumentos pontiagudos. Tudo indicava que se tratava do mesmo grupo, e que os dois tinham relação entre si.

Quem sabe está enganado, e não existe nenhum assassino em sé-

rie atuando na cidade?

Porque a menina encontrada no banco, com marcas de asfi xia provocadas por mãos experientes, talvez tivesse contato na noite anterior com alguém do grupo que viera para encontrar-se com o produtor. Talvez vendesse outras além das mercadorias que costumava expor na calçada: drogas.

Imagina a cena: os estrangeiros chegam para acertar contas. Em um dos muitos bares, o distribuidor local apresenta um deles para a linda menina de sobrancelhas grossas, “que trabalha conosco”. Terminam indo para a cama, mas o estrangeiro bebeu mais do que devia, a língua está solta, a Europa tem um ar diferente, perde o controle e fala mais do que devia. No dia seguinte, logo de manhã, dá-se conta do erro e encarrega o assassino profi ssional — que sempre acompanha bandos como esses — de resolver o problema.

Enfi m, tudo perfeitamente claro, se encaixando, sem deixar margens para dúvidas.

Tudo se encaixa tão claramente que, por essa razão, não faz nenhum sentido. Não era possível que um cartel de cocaína tivesse decidido acertar suas contas em uma cidade que, por causa do evento 2 6 0

que estava acontecendo ali, tinha convocado um número extra de policiais vindos de todo o resto do país, que se somam aos guarda-costas privados, aos seguranças contratados para as festas, aos detetives que se encarregavam de vigiar 24 horas por dia as caríssimas jóias que circulavam pelas ruas e pelos salões.

E se esse fosse o caso, também seria bom para sua carreira: os acertos de contas da máfi a trazem tantos holofotes como a presença de um assassino em série.

Pode relaxar; seja qual for o caso, irá ganhar a notoriedade que sempre achou que merecia.

Desliga a sirene. Em meia hora já percorreu quase toda a auto-estrada, cruzou uma barreira invisível e entrou em outro país, está a apenas alguns minutos de seu destino. Mas sua cabeça está pensando em coisas que, teoricamente, deveriam ser proibidas.

Três crimes no mesmo dia. Suas orações estavam com as famílias dos mortos, como dizem os políticos. Evidentemente que tem consciência de que o Estado o paga para manter a ordem, e não para fi car contente quando ela é quebrada de maneira tão violenta. A esta altura o comissário deve estar dando socos na parede, consciente da gigantesca responsabilidade de resolver dois problemas: encontrar o criminoso (ou criminosos, porque talvez ainda não esteja convencido de sua tese), e afastar a imprensa. Todos estão muito preocupados, as delegacias da região já foram avisadas, os carros estão recebendo através do computador um retrato falado do assassino. Algum polí-

tico possivelmente terá seu merecido repouso interrompido, porque o chefe de polícia acha o tema muito delicado, e quer passar a responsabilidade para esferas mais altas.

O político difi cilmente cairá na armadilha, dizendo apenas que façam a cidade voltar ao normal o mais breve possível, já que “mi-lhões, ou centenas de milhões de euros dependem disso”. Não quer aborrecer-se; tem assuntos mais importantes a resolver, como a mar-2 6 1

ca de vinho que irão servir aquela noite aos convidados de determinada delegação estrangeira.

“E eu? Estou no caminho certo?”

Os pensamentos proibidos voltam: ele está feliz. O momento mais importante em toda a sua carreira dedicada a preencher papéis e cuidar de assuntos irrelevantes. Nunca imaginou que uma situação semelhante o deixaria no estado eufórico em que se encontra agora

— o verdadeiro detetive, o homem que tem uma teoria que vai contra a lógica, que terminará sendo condecorado porque foi o primeiro a ver aquilo que ninguém mais conseguia enxergar. Não confessará a ninguém, nem mesmo à sua mulher — que fi caria horrorizada com a atitude do marido, certa de que perdera a razão por causa do perigoso ambiente de trabalho em que vivia.

“Estou contente. Excitado.”

Suas orações estavam com as famílias dos mortos; seu coração, depois de alguns anos de inércia, voltava ao mundo dos vivos.

Ao contrário do que Savoy havia imaginado — uma grande biblioteca cheia de livros empoeirados, pilhas de revistas pelos cantos, uma mesa coberta de papéis desordenados — o escritório era imaculadamente branco, algumas luminárias de bom gosto, uma confortável poltrona, a mesa transparente com uma gigantesca tela de computador.

Completamente vazia, exceto pelo teclado sem fi o e por um pequeno bloco de notas com uma luxuosa caneta Montegrappa sobre ele.

— Tire esse sorriso do rosto, e mostre algum ar de preocupação

— diz o homem de barbas brancas, de paletó tweed apesar do calor, gravata, calça bem cortada, o que não combina de maneira nenhuma com a decoração do seu escritório ou com o tema que estavam discutindo.

— Do que o senhor está falando?

— Sei como se sente. Está diante do caso de sua vida, em um lugar onde nunca acontece nada. Passei pelo mesmo confl ito interior 2 6 2

quando vivia e trabalhava em Penycae, Swansea, West Glamorgan, SA9 1GB, Grã-Bretanha. E foi graças a um assunto semelhante que terminei sendo transferido para a Scotland Yard em Londres.

“Paris. Esse é o meu sonho.” Mas não diz nada. O estrangeiro o convida para sentar-se.

— Espero que realize seu sonho profi ssional. Muito prazer, Stanley Morris.

Savoy resolve mudar de assunto.

— O comissário teme que a imprensa acabe especulando a respeito de um assassino em série.

— Podem especular o que quiserem, estamos em um país livre. É

o tipo de assunto que vende jornal, transformando a vida pacata de aposentados em algo excitante, que acompanham detalhadamente em todos os meios de comunicação possíveis qualquer novidade sobre o assunto, com uma mistura de medo e de certeza que “não vai acontecer conosco”.

— Espero que o senhor tenha recebido uma descrição detalhada das vítimas. Na sua opinião, isso caracteriza um assassino em sé-

rie, ou estamos diante de alguma vingança dos grandes cartéis do tráfi co?

— Sim, recebi. Por sinal, queriam enviar por fax — este instrumento que não tem mais qualquer utilidade nos dias de hoje. Pedi que mandassem por correio eletrônico, mas sabe o que responde-ram? Que não estão acostumados. Imagine! Uma das forças policiais mais bem equipadas do mundo, ainda usa fax!

Savoy move-se na cadeira, demonstrando alguma impaciência. Não está ali para discutir os avanços e recuos da tecnologia moderna.

— Vamos ao trabalho — diz o Dr. Morris, que havia se transformado em uma celebridade na Scotland Yard, resolvera passar sua aposentadoria no sul da França, e que possivelmente estava tão contente quanto ele porque saía da rotina aborrecida das leituras, dos concertos, dos chás e jantares benefi centes.

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— Como nunca estive diante de um caso desses, talvez seja necessário saber primeiro se o senhor concorda com a minha teoria de que há um único criminoso em ação. E me diga em que terreno estou pisando.

Dr. Morris explica que teoricamente está certo: três crimes com algumas características em comum são sufi cientes para caracterizar um assassino em série. Normalmente, eles se passam na mesma área geográfi ca (neste caso, a cidade de Cannes), e…

— Então, o assassino em massa...

Dr. Morris o interrompe e pede que não use termos incorretos.

Assassinos em massa são terroristas ou adolescentes imaturos que entram em uma escola, em uma lanchonete e atiram em tudo o que vêem — para em seguida terminar sendo mortos pela polícia ou cometendo suicídio. Têm preferência por arma de fogo e bombas, capazes de causar o maior dano possível no menor espaço de tempo

— geralmente dois a três minutos no máximo. Estas pessoas não se importam com as conseqüências de seus atos — porque já conhecem o fi nal da história.

No inconsciente coletivo, o assassino em massa é mais fácil de ser aceito, já que é considerado um “desequilibrado mental”, e portanto é fácil estabelecer uma diferença entre “nós” e “ele”. O assassino em série, porém, lida com algo muito mais complicado — o instinto destrutivo que toda pessoa tem dentro de si.

Faz uma pausa.

— Você já leu O médico e o monstro, de Robert Louis Ste-venson?

Savoy explicou que tinha pouco tempo para leitura, já que trabalhava muito. O olhar de Morris tornou-se glacial.

— E você acha que eu não trabalho?

— Não foi isso que quis dizer. Escuta, senhor Morris, estou aqui em missão de urgência. Prefi ro não discutir tecnologia ou literatura.

Quero saber o que concluiu dos relatórios.

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— Sinto muito, mas neste caso temos que ir para a literatura. O

médico e o monstro é a história de um sujeito absolutamente normal, Dr. Jekyll, que em certos momentos tem impulsos destruidores in-controláveis e transforma-se em alguém diferente, Mr. Hyde. Todos nós temos esses instintos, senhor inspetor. Quando o assassino em série está atuando, ele não apenas ameaça a nossa segurança; ameaça também nossa sanidade. Porque cada ser humano na face da terra, querendo ou não, tem uma imenso poder destruidor dentro de si mesmo, e muitas vezes gostaria de experimentar a sensação mais reprimida pela sociedade — tirar uma vida.

“As razões podem ser muitas: idéia de que está consertando o mundo, vingança de algo remoto que aconteceu na infância, ódio re-primido pela sociedade, etc. Mas, consciente ou inconscientemente, todo ser humano já pensou nisso — mesmo que tenha sido durante a sua infância.”

Outro silêncio proposital.

— Suponho que o senhor, independente do cargo que ocupa, já deve saber exatamente que sensação é essa. Já esquartejou algum gato, ou teve um prazer mórbido em atear fogo em insetos que não lhe fazem mal nenhum.

É a vez de Savoy devolver o olhar glacial, e não dizer nada. Morris, porém, interpreta o silêncio como um “sim”, e continua falando com a mesma descontração e superioridade de antes:

— Não creia que vá encontrar uma pessoa visivelmente desequili-brada, cabelos desgrenhados e um sorriso de ódio no rosto. Se lesse um pouco mais — embora saiba que é uma pessoa ocupada... — eu sugeriria um livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém. Ali, ela analisa o julgamento de um dos maiores assassinos em série da história. Claro que no caso em questão ele precisou de ajudantes, ou não teria levado a cabo a gigantesca tarefa que lhe incumbiram de executar: purifi cação da raça humana. Um momento.

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Mexe na tela do seu computador. Sabe que o homem que está diante dele quer apenas resultados, o que é absolutamente impossí-

vel nesse terreno. Precisa educá-lo, prepará-lo para os difíceis dias que virão.

— Aqui está. Arendt faz uma detalhada análise do julgamento de Adolf Eichmann, responsável pelo extermínio de seis milhões de ju-deus na Alemanha nazista. Na página 25, diz que meia dúzia de psiquiatras encarregados de examiná-lo concluíram que era uma pessoa comum. Seu perfi l psicológico, sua atitude com relação à mulher, fi -

lhos, mãe e pai, eram completamente dentro de todos os padrões sociais que se espera de um homem responsável. E Arendt continua:

“O problema com Eichmann é que se parecia um ser humano como muitos outros, onde não se nota nenhuma tendência perver-tida ou sádica. Na verdade, são pessoas absolutamente normais (...) Do ponto de vista de nossas instituições, sua normalidade era tão aterrorizadora como os crimes que cometeu.”

Agora pode entrar no assunto.

— Notei pelas autópsias que não houve qualquer tentativa de abuso sexual das vítimas...

— Dr. Morris, eu tenho um problema a resolver, e preciso fazer isso rapidamente. Quero ter certeza de que estamos diante de um assassino em série. É óbvio que ninguém podia violar um homem em uma festa ou uma moça em um banco de praça.

É como se não dissesse nada. O outro ignora suas palavras e continua:

— ...o que é comum em muitos dos assassinos em série. Alguns deles têm várias características, digamos, “humanas”. Enfermeiras que matam pacientes em estado terminal, mendigos que são assassinados e ninguém se dá conta, funcionários do Bem-estar Social que, compadecidos da difi culdade de certos pensionistas idosos e invá-

lidos, chegam à conclusão que uma outra vida será muito melhor 2 6 6

para eles — um caso assim aconteceu recentemente na Califórnia.

Há também os que procuram reorganizar a sociedade: neste caso, as prostitutas são as maiores vítimas.

— Senhor Morris, eu não vim aqui...

Desta vez, Morris levanta ligeiramente a voz.

— E eu tampouco o convidei. Estou fazendo um favor. Se quiser, pode ir embora. Se fi car, pare de interromper a cada minuto o meu raciocínio; quando desejamos capturar a pessoa, precisamos entender como ela pensa.

— Então o senhor realmente acha que é um assassino em série?

— Ainda não terminei.

Savoy controlou-se. E por que estava com tanta pressa? Não seria interessante deixar que a imprensa fi zesse o estardalhaço de sempre, antes de vir com a solução desejada?

— Está bem. Continue.

Morris ajeita-se na cadeira e move o monitor de modo que Savoy possa ver o que está ali: na gigantesca tela, uma gravura, possivelmente do século XIX.

— Esse é o mais famoso de todos os assassinos em série: Jack, o Estripador. Atuou em Londres, apenas na segunda metade do ano de 1888, terminando com a vida de cinco a sete mulheres em lugares públicos ou semipúblicos. Abria seus ventres, extraía seus intestinos e seus úteros. Jamais o encontraram. Transformou-se em um mito, e até hoje procura-se sua verdadeira identidade.

A tela do computador mudou para algo que parecia um mapa astral.

— Essa era a assinatura de Zodíaco. Matou comprovadamente cinco casais na Califórnia, durante dez meses; jovens que paravam seus carros em lugares isolados para desfrutar de um pouco de intimidade. Enviava uma carta para a polícia com este símbolo, parecido com a cruz celta. Até hoje, ninguém conseguiu saber quem era.

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“Tanto no caso de Jack, como no caso de Zodíaco, estudiosos acreditam que eram pessoas que procuravam restabelecer a moral e o bom costume em suas regiões. Tinham, digamos assim, uma missão a cumprir. E ao contrário do que a imprensa quer fazer crer com seus nomes criados para assustar, como ‘O Estrangulador de Boston’, ou

‘O Infanticida de Toulouse’, convivem com seus vizinhos nos fi nais de semana, e trabalham duro para ganhar o sustento. Nenhum deles se benefi cia fi nanceiramente dos seus atos criminosos.”

A conversa estava começando a interessar a Savoy.

— Ou seja, pode ser absolutamente qualquer pessoa que veio para Cannes passar o período do Festival...

— …decidido, conscientemente, a semear o terror por uma razão completamente absurda, como por exemplo “lutar contra a ditadura da moda” ou “acabar com a divulgação de fi lmes que estimulam a violência”. A imprensa cria uma expressão horripilante para designá-

lo, e começa a levantar suspeitas. Crimes que nada têm a ver com o assassino começam a ser atribuídos a ele. O pânico está instalado, e só termina se por acaso — eu repito, por acaso — ele é preso. Porque muitas vezes age por um período de tempo, e desaparece por completo. Deixou sua marca na história, eventualmente escreve algum diário que será descoberto depois da sua morte, e isso é tudo.

Savoy já não olha mais o relógio. Seu telefone toca, mas ele resolve não atender: o tema era mais complicado do que imaginava.

— O senhor concorda comigo.

— Sim — diz a autoridade máxima da Scotland Yard, o homem que tinha se transformado em lenda ao resolver cinco casos que todos davam por perdidos.

— Por que acha que estamos diante de um assassino em série?

Morris viu no seu computador o que parecia ser um correio eletrônico, e sorriu. O inspetor à sua frente tinha fi nalmente passado a respeitar o que dizia.

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— Pela completa ausência de motivos nos crimes que comete. A maioria desses criminosos tem o que chamamos de “assinatura”: escolhem apenas um tipo de vítima, que pode ser homossexual, prostituta, mendigo, casais que se ocultam na fl oresta, etc. Outros são chamados de “assassinos assimétricos”: matam porque não conseguem controlar o impulso. Chegam a um certo ponto em que esse impulso é satisfeito e param de matar até que a pressão seja novamente in-controlável. Estamos diante de um desses.

“Há várias coisas a considerar neste caso: o criminoso tem um alto nível de sofi sticação. Escolheu armas diversas — as próprias mãos, veneno, estilete. Não está sendo movido pelos motivos clássicos: sexo, alcoolismo, desordens mentais visíveis. Conhece a anatomia humana — e essa é a sua única assinatura por enquanto. Deve ter planejado os crimes com muita antecedência, porque o veneno não deve ter sido fácil de conseguir, de modo que podemos classifi cá-lo entre aqueles que julgam estar “cumprindo uma missão” que ainda não sabemos qual é. Pelo que pude deduzir da menina, e essa é a única pista que temos até agora, usou um tipo de arte marcial russa, chamada Sambo.

“Eu poderia ir mais longe, e dizer que é parte de sua assinatura aproximar-se da vítima e fi car amigo dela por algum tempo. Mas esta teoria não encaixa com o assassinato que foi cometido em pleno almoço, numa praia de Cannes. Pelo visto, a vítima estava com dois guarda-costas que teriam reagido. E também estava sendo vigiada pela Europol.”

Russo. Savoy pensa em pegar o telefone e pedir que fi zessem uma pesquisa urgente em todos os hotéis da cidade. Homem de aproximadamente 40 anos, bem vestido, cabelos ligeiramente grisalhos, russo.

— O fato de ter usado uma técnica marcial russa não signifi ca que ele é desta nacionalidade — Morris adivinhava seu pensamento, 2 6 9

como bom ex-policial que era. — Da mesma maneira que tampouco podemos deduzir que é índio da América do Sul, porque utilizou o curare.

— E então?

— Então, é esperar pelo próximo crime.

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6:50 PM

Cinderela!

Se as pessoas acreditassem mais nos contos de fadas em vez de escutar apenas seus maridos e pais — que acham tudo impossível

— estariam vivendo a mesma coisa que ela experimenta agora, dentro de uma das inumeráveis limusines que se encaminham, lenta mas inexoravelmente, em direção aos degraus, ao tapete vermelho, à maior passarela da moda no planeta.

A Celebridade está ao seu lado, sempre sorridente, vestindo um belo traje a rigor. Pergunta se está tensa. Claro que não: em sonhos não existem tensões, nervosismo, ansiedade ou medo. Tudo é perfeito, as coisas se passam como no cinema — a heroína sofre, luta, mas consegue realizar tudo que sempre desejou.

— Se Hamid Hussein resolver levar adiante o projeto, e se o fi l-me for o sucesso que ele espera, prepare-se para outros momentos iguais.

Se Hamid Hussein resolver levar adiante o projeto? Mas já não está tudo combinado?

— Assinei um contrato quando fui pegar as roupas no Salão de Presentes.

— Esqueça o que eu disse, não quero estragar seu momento tão especial.

— Por favor, continue.

A Celebridade esperava exatamente aquele tipo de comentário da garota boba. Tem um prazer imenso de fazer o que pede.

— Já participei de inúmeros projetos que começam e não terminam jamais. Faz parte do jogo, mas não se preocupe com isso agora.

— E o contrato?

— Contratos são para advogados discutirem enquanto ganham dinheiro. Por favor, esqueça o que eu disse. Aproveite este momento.

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O “momento” vai se aproximando. Por causa do trânsito lento, as pessoas podem ver quem está dentro dos carros, mesmo com os vidros fumê separando os mortais dos eleitos. A Celebridade acena, algumas mãos batem na janela pedindo para que abra só por um instante, que dê um autógrafo, tire uma fotografi a.

A Celebridade acena, como se não estivesse entendendo o que querem, e convencido de que um sorriso é sufi ciente para inundar o mundo com a sua luz.

Há um verdadeiro clima de histeria do lado de fora. Senhoras com seus pequenos bancos portáteis que devem estar sentadas ali desde a manhã fazendo tricô, homens com barrigas de cerveja que parecem estar morrendo de tédio mas são obrigados a acompanhar suas esposas de meia-idade vestidas como se elas também fossem subir o tapete vermelho, crianças que não estão entendendo absolutamente nada do que acontece mas sabem que se trata de algo importante. Asiáticos, negros, brancos, gente de todas as idades separadas por barreiras de aço da estreita faixa por onde as limusines andam, querendo acreditar que estão apenas a dois metros de distância dos grandes mitos do planeta, quando na verdade essa distância é de centenas de milhares de quilômetros. Porque não é apenas a barreira de aço e o vidro do carro que fazem a diferença, mas a chance, a oportunidade, o talento.

Talento? Sim, ela quer acreditar que o talento também conta, mas sabe que isso é o resultado de um jogo de dados entre os deuses, que escolhem determinadas pessoas, enquanto as outras são colocadas do outro lado do abismo intransponível, com a única missão de aplaudir, adorar, e condenar quando chega o momento em que a corrente muda de rumo.

A Celebridade fi nge conversar com ela — mas, na verdade, não está dizendo nada, apenas a olha e move os lábios, como grande ator que é. Não o faz com desejo nem prazer; Gabriela entende de imedia-to que ele não quer ser antipático com seus fãs do lado de fora, mas 2 7 2

ao mesmo tempo já não tem mais paciência para acenar, distribuir sorrisos e beijos.

— Você deve estar achando que sou uma pessoa arrogante, cínica, com um coração de pedra — fi nalmente diz algo. — Se algum dia chegar aonde pretende, irá entender o que sinto: não há saída. O

sucesso escraviza ao mesmo tempo em que vicia, e no fi nal do dia, com um homem ou uma mulher diferente na cama, terminará se perguntando: valeu a pena? Por que sempre desejei isso?

Faz uma pausa.

— Continue.

— Não sei por que estou lhe contando isso.

— Porque quer me proteger. Porque é um homem de bem. Por favor, continue.

Gabriela podia ser ingênua em muitas coisas, mas era uma mulher, e sabia como arrancar quase tudo o que desejava de um homem. Neste caso, a ferramenta certa é a vaidade.

— Não sei por que sempre desejei isso — a Celebridade tinha caído na armadilha, e agora mostrava seu lado frágil, enquanto os fãs acenavam do lado de fora. — Muitas vezes, quando retorno ao hotel depois de um exaustivo dia de trabalho, entro debaixo do chuveiro e fi co um tempo enorme escutando apenas o som da água caindo em meu corpo. Duas forças opostas estão lutando dentro de mim; a que me diz que devia dar graças aos céus, e a que me diz que devia abandonar tudo enquanto é tempo.

“Nestes momentos, sinto-me a pessoa mais ingrata do mundo.

Tenho meus fãs, e já me falta paciência. Sou convidado para as festas mais cobiçadas do mundo, e tudo que desejo é sair logo e voltar para meu quarto, fi car em silêncio lendo um bom livro. Homens e mulheres de boa vontade me dão prêmios, organizam eventos e fazem tudo para que eu me sinta feliz, e na verdade o que me sinto é exausto, inibido, achando que não mereço tudo isso porque não sou digno do meu sucesso. Entende?”

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Por uma fração de segundo, Gabriela sente compaixão pelo homem que está ao seu lado: imagina quantas festas foi obrigado a participar durante o ano, sempre com alguém pedindo uma foto, um autógrafo, contando uma história absolutamente desinteressante enquanto ele fi nge prestar atenção, propondo algum novo projeto, constrangendo-o com o clássico “você não se lembra de mim?”, pegando seus celulares e pedindo que dê apenas uma palavra com o fi lho, a mulher, a irmã. E ele sempre alegre, sempre atento, sempre bem-disposto e educado, um profi ssional de primeira qualidade.

— Entende?

— Entendo. Mas gostaria de ter os confl itos que você tem, e sei que ainda falta muito.

Mais quatro limusines, e chegarão ao destino. O chofer avisa que se preparem. A Celebridade abaixa um pequeno espelho do teto, ajeita sua gravata, e ela faz a mesma coisa com o cabelo. Gabriela já pode notar um pedaço do tapete vermelho, embora os degraus ainda estejam fora do seu campo de visão. A histeria desapareceu por encanto, a multidão agora é constituída de pessoas que usam um colar de identifi cação no pescoço, conversam uns com os outros e não prestam a menor atenção em quem está dentro dos carros, porque já estão cansados de ver a mesma cena.

Faltam dois carros. Do seu lado esquerdo, aparecem alguns degraus da passarela. Homens vestidos de terno e gravata estão abrindo as portas, e as agressivas barreiras de metal foram substituídas por cordas de veludo que se apóiam em pilares de madeira e bronze.

— Droga!

A Celebridade dá um grito. Gabriela leva um susto.

— Droga! Olha quem está ali! Olha quem está saindo do carro neste momento!

Gabriela vê uma Super-Celebridade feminina, também vestida por Hamid Hussein, que acaba de colocar seus pés no início do tapete vermelho. A Celebridade volta a cabeça na direção oposta do Palá-

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cio do Congresso, ela acompanha seu olhar, vê algo completamente inesperado. Uma parede humana, de quase três metros de altura, com fl ashes disparando sem cessar.

— Está olhando para o lugar errado — consola-se a Celebridade, que parece ter perdido todo o seu charme, gentileza, e problemas existenciais. — Esses daí não foram credenciados. São da imprensa secundária.

— Por que “droga”?

A Celebridade não consegue esconder sua irritação. Ainda falta um carro para que cheguem.

— Você não está vendo? De que mundo você é, menina? Quando entrarmos no tapete vermelho, as câmeras dos fotógrafos escolhidos, que estão exatamente no meio do percurso, vão estar com suas lentes apontadas para ela!

E voltando-se para o chofer:

— Ande mais devagar!

O chofer aponta para um homem vestido à paisana, também com identifi cação no pescoço, fazendo sinal com as mãos para que sigam adiante e não atrapalhem o trânsito.

A Celebridade respira fundo; aquele não é o seu dia de sorte. Por que resolvera dizer tudo aquilo à atriz principiante ao seu lado? Sim, era verdade, estava farto da vida que levava, e mesmo assim não podia imaginar algo diferente.

— Não saia correndo — diz. — Vamos fazer o possível para demorar o máximo aqui embaixo. Deixamos um bom espaço entre a moça e a gente.

A “moça” era a Super-Celebridade.

O casal que estava no carro anterior não parece atrair tanta aten-

ção — embora deva ser importante porque ninguém chega até o iní-

cio dos degraus sem antes ter escalado muitas montanhas na vida.

Seu companheiro parece relaxar um pouco, mas é a vez de Gabriela fi car tensa, sem saber exatamente como se comportar. Suas 2 7 5

mãos estão suando. Ela agarra a bolsa cheia de papel dentro, respira fundo e faz uma prece.

— Ande devagar — diz a Celebridade. — E não fi que muito perto de mim.

A limusine chega. Ambas as portas são abertas.

De repente, um barulho imenso parece tomar conta do universo inteiro, gritos vindos de todos os lados — até aquele momento ela não havia se dado conta de que estava em um carro à prova de som e não podia escutar nada. A Celebridade desce sorridente, como se nada tivesse acontecido dois minutos atrás e ele continuasse a ser o centro do universo — independente das confi ssões que fi zera no carro, e que pareciam ser verdadeiras. Um homem em confl ito consigo mesmo, com seu mundo, com sua história — que não pode mais dar nenhum passo atrás.

“Em que estou pensando? Devo concentrar-me, viver o presente!

Subir os degraus!”

Os dois acenam para a imprensa “secundária”, e gastam bons momentos ali. Pessoas lhe estendem papéis, ele dá autógrafos e agradece aos fãs. Gabriela não sabe exatamente se deve colocar-se ao seu lado, ou se deve seguir em direção ao tapete vermelho e à entrada do Palácio do Congresso — mas é salva por alguém que lhe estende um papel, uma caneta, e pede que autografe.

Não é o primeiro autógrafo de sua vida, mas é o mais importante até agora. Ela olha para a senhora que conseguiu esgueirar-se até a área reservada, dá um sorriso, pergunta seu nome — mas não consegue escutar nada por causa dos gritos dos fotógrafos.

Ah, como gostaria que esta cerimônia estivesse sendo transmitida ao vivo para o mundo inteiro, que sua mãe a estivesse vendo chegar em um vestido deslumbrante, acompanhada de um ator famosíssimo (embora ela agora começasse a ter dúvidas, mas era melhor afastar rapidamente aquelas vibrações negativas da cabeça), dando o mais 2 7 6

importante autógrafo dos seus 25 anos de vida! Não consegue entender o nome da mulher, sorri, e escreve algo como “com amor”.

A Celebridade se aproxima dela:

— Vamos. O caminho está livre.

A mulher para quem acabara de escrever palavras de carinho lê o que está escrito e reclama:

— Não é um autógrafo! Preciso de seu nome para poder identifi car na foto!

Gabriela fi nge não escutar — nada no mundo pode destruir este momento mágico.

Começam a subir a suprema passarela européia, com policiais fazendo uma espécie de cordão de segurança, embora o público esteja longe dali. Em ambos os lados, na fachada do edifício, gigantescas telas de plasma mostram aos pobres mortais do lado de fora o que está acontecendo naquele santuário ao ar livre. De longe vêm os gritos histéricos e o som de palmas. Quando chegam em uma espécie de degrau mais extenso, como se tivessem atingido o primeiro andar, nota outra multidão de fotógrafos, só que desta vez vestidos a rigor, berrando o nome da Celebridade, pedindo que se vire para aqui, para ali, só mais uma, por favor chegue mais perto, olhe para cima, olhe para baixo! Outras pessoas passam por eles e continuam subindo os degraus, mas os fotógrafos não estão interessados nelas; a Celebridade ainda mantém intacto o seu glamour, fi nge uma certa displicência, brinca um pouco para mostrar que está relaxado e acostumado com aquilo.

Gabriela nota que também está chamando a atenção; embora não gritem seu nome (não têm a menor idéia de quem é) imaginam que seja o novo romance do famoso ator, pedem para que se aproximem um do outro e tirem fotos juntos (o que a Celebridade faz por alguns segundos, sempre a uma prudente distância, evitando qualquer contato físico com ela).

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Sim, haviam conseguido escapar da Super-Celebridade! Que a esta altura já está na porta do Palácio dos Festivais, cumprimentando o presidente do Festival de Cinema e o prefeito de Cannes.

A Celebridade faz um sinal com a mão para que continuem subindo os degraus. Ela obedece.

Olha adiante, vê outra tela gigante colocada estrategicamente de modo que as pessoas possam ver a si mesmas. Uma voz anuncia pelo alto-falante instalado no local:

— Neste momento, está chegando...

E diz o nome da Celebridade e do seu fi lme mais famoso. Mais tarde, alguém irá lhe contar que todos os que já estão dentro da sala estão assistindo por um circuito interno à mesma cena que o monitor de plasma mostra do lado de fora.

Sobem os degraus restantes, chegam até a porta, cumprimentam o presidente do Festival, o prefeito da cidade, e entram no recinto pro-priamente dito. Tudo aquilo havia durado menos de três minutos.

A esta altura, a Celebridade está cercada de gente que quer falar um pouco, admirar um pouco, tirar fotos (mesmo os eleitos fazem isso, tiram fotos com gente famosa). Faz um calor sufocante ali dentro, Gabriela teme que a maquiagem vá ser afetada, e...

A maquiagem!

Sim, tinha esquecido por completo. Agora deve sair por uma porta situada à esquerda, alguém a está esperando lá fora. Desce meca-nicamente os degraus, passa por dois ou três seguranças. Um deles pergunta se está saindo para fumar e se pretende retornar para o fi lme. Ela responde que não, e segue adiante.

Cruza outra série de barreiras de ferro, ninguém lhe pergunta nada — porque está saindo, e não tentando invadir o local. Pode ver as costas da multidão que continua acenando e gritando para as limusines que não param de chegar. Um homem vem em sua direção, pergunta seu nome, e pede que o siga.

— Pode esperar um minuto?

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O homem parece surpreso, mas acena positivamente com a cabe-

ça. Gabriela mantém os olhos cravados em um carrossel antigo, que possivelmente está ali desde o início do século passado, e continua a girar, enquanto as crianças saltam nos brinquedos.

— Podemos ir agora? — Pergunta delicadamente o homem.

— Só mais um minuto.

— Vamos chegar tarde.

Mas Gabriela já não consegue mais controlar o choro, a tensão, o medo, o terror daqueles três minutos que acaba de viver. Soluça compulsivamente — pouco importa a maquiagem, ela será refeita de qualquer maneira. O homem estende o braço para que ela se apóie e não tropece com seus saltos altos; os dois começam a caminhar pela praça que vai dar na Croisette, o ruído da multidão vai fi cando cada vez mais distante, os soluços compulsivos vão fi cando cada vez mais altos. Está chorando todas as lágrimas do dia, da semana, dos anos em que sonhou com aquele momento — e que terminou sem que pudesse se dar conta do que tinha acontecido.

— Desculpa — diz ela para o homem que acompanha.

Ele afaga sua cabeça. Seu sorriso demonstra carinho, compreensão, e piedade.

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7:31 PM

Tinha fi nalmente entendido que é impossível procurar a felicidade a qualquer custo — a vida já lhe dera o máximo, e começava a entender que tinha sido sempre generosa com ele. Agora, e pelo resto dos seus dias, iria se dedicar a desenterrar os tesouros escondidos no seu sofrimento, e aproveitar cada segundo de alegria como se fosse o último.

Tinha vencido as tentações. Estava protegido pelo espírito da menina que entendia perfeitamente sua missão, e que agora começava a abrir seus olhos para as verdadeiras razões de sua viagem a Cannes.

Por alguns instantes naquela pizzaria, enquanto relembrava o que havia escutado nas fi tas, a Tentação acusou-o de ser um desequilibrado mental, capaz de acreditar que tudo era permitido em nome do amor. Mas, graças a Deus, o seu momento mais difícil já fi cara para trás.

É uma pessoa absolutamente normal; seu trabalho exige disciplina, horários, capacidade de negociação, planejamento. Muitos de seus amigos dizem que recentemente anda mais isolado que antes; o que não sabem é que sempre foi assim. O fato de ser obrigado a participar de festas, ir a casamentos e batizados, fi ngir que se divertia jogando golfe aos domingos — tudo aquilo não passa de estratégia em busca de seu objetivo profi ssional. Sempre detestou a vida mun-dana, com as pessoas escondendo por detrás de sorrisos a verdadeira tristeza de suas almas. Não custou muito para aprender que a Superclasse é tão dependente de seu sucesso como um usuário de drogas, e muito mais infeliz do que os que não almejam nada além de uma casa, um jardim, uma criança brincando, um prato de comida na mesa e uma lareira acesa no inverno. Estes têm consciência de seus limites, sabem que a vida é curta, e por que devem ir mais adiante?

A Superclasse tenta vender seus valores. Os seres humanos normais se queixam da injustiça divina, invejam o poder, sofrem ao ver 2 8 1

que os outros estão se divertindo; não percebem que ninguém está se divertindo, todos estão preocupados, inseguros, escondendo o gigantesco complexo de inferioridade por trás de suas jóias, seus carros, suas carteiras recheadas de dinheiro.

Igor é uma pessoa de gostos simples, embora Ewa sempre reclamasse da maneira como se vestia. Mas para que comprar uma camisa acima de um preço razoável, se a etiqueta está escondida atrás do seu pescoço? Qual a vantagem de freqüentar restaurantes da moda, se nada de importante é dito ali? Ewa costumava dizer que não conversava muito nas ocasiões em que seu trabalho obrigava a freqüentar festas e eventos. Igor tentava mudar seu comportamento, e se esfor-

çava para ser simpático — mas tudo aquilo lhe parecia absolutamente desinteressante. Olhava as pessoas à sua volta falando sem parar, comparando preços de ações na bolsa, comentando as maravilhas de seu novo iate, fazendo longas observações sobre pintores expres-sionistas só porque haviam gravado o que o guia turístico dissera durante uma viagem a um museu de Paris, afi rmando que tal escritor é melhor que o outro — porque haviam lido as críticas, já que nunca têm tempo de ler um livro de fi cção.

Todos cultos. Todos ricos. Todos absolutamente encantadores. E

todos se perguntando no fi nal do dia: “Não é o momento de parar?”

E todos respondendo a si mesmos: “Se fi zer isso, minha vida perde o sentido.”

Como se soubessem o que é o sentido da vida.

A Tentação perdeu a batalha. Queria fazê-lo acreditar que estava louco: uma coisa é planejar o sacrifício de certas pessoas, a outra é ter a capacidade e a coragem de executá-los. A Tentação dizia que todos nós sonhamos cometer crimes, mas que só os desequilibrados transformam esta idéia macabra em realidade.

Igor é equilibrado. Bem-sucedido. Se assim desejasse, poderia contratar um assassino profi ssional, o melhor do mundo, para que 2 8 2

executasse sua tarefa e mandasse os recados necessários à Ewa. Ou poderia contratar a melhor agência de relações públicas do mundo; no fi nal de um ano seria assunto não apenas em jornais especializados em economia, mas nas revistas que falam de sucesso, brilho e glamour. Com toda certeza, nesse momento sua ex-mulher pesa-ria as conseqüências de sua decisão equivocada, e ele saberia o momento certo de lhe enviar fl ores e pedir para que voltasse — estava perdoada. Tem seus contatos em todas as camadas sociais, desde os empresários que chegaram ao topo através de muita perseverança e esforço até os criminosos que nunca tiveram uma chance de poder mostrar seu lado positivo.

Se está em Cannes não é porque tem um prazer mórbido em ver o que mostram os olhos de uma pessoa quando ela está diante do Inevitável. Se resolveu colocar-se na linha de tiro, na posição arrisca-da em que se encontra agora, é porque tem certeza de que os passos que está dando durante este dia que parece não terminar nunca se-rão fundamentais para que o novo Igor que existe dentro de si possa nascer das cinzas de sua tragédia.

Sempre foi um homem capaz de tomar decisões difíceis e ir até o fi nal, mesmo que ninguém, nem mesmo Ewa, soubesse o que se passava nos corredores escuros de sua alma. Sofreu em silêncio muitos anos as ameaças de pessoas e grupos, reagiu com discrição quando se julgou forte o bastante para liquidar as pessoas que o ameaçavam.

Precisou exercer um imenso autocontrole para não deixar que sua vida fi casse marcada pelas más experiências por que passou. Nunca levou seus medos e seus terrores para casa: Ewa precisava ter uma vida tranqüila, sem tomar conhecimento dos sobressaltos que todo homem de negócios vive. Escolheu poupá-la, e não foi correspondi-do, nem sequer entendido.

O espírito da menina o tranqüilizara com este pensamento, mas acrescentara uma coisa que não tinha pensado até então: não estava ali para reconquistar a pessoa que o havia abandonado, mas para 2 8 3

entender, fi nalmente, que ela não valia todos aqueles anos de dor, todos aqueles meses de planejamento, toda a sua capacidade de perdoar, ser generoso, ter paciência.

Mandou uma, duas, três mensagens, e Ewa não reagiu. Seria fací-

limo para ela procurar saber onde estava hospedado. Cinco ou seis telefonemas para os hotéis de luxo não resolveriam a questão, já que havia se registrado com nome e profi ssão diferentes; mas quem procura, acha.

Lera as estatísticas: Cannes tem apenas 70.000 habitantes; esse número é geralmente triplicado durante o período do Festival, mas as pessoas que chegam vão sempre aos mesmos lugares. Onde estava ela? Hospedada no mesmo hotel que ele, freqüentando o mesmo bar

— porque tinha visto os dois na noite anterior. Mesmo assim, Ewa não caminhava pela Croisette à sua procura. Não telefonava para amigos comuns, tentando saber onde estava; pelo menos um tinha todos os dados, já que imaginara que aquela que julgava ser a mulher da sua vida iria contatá-lo ao saber que estava tão perto.

O amigo tinha instruções para dizer como podiam se encontrar

— mas até agora, absolutamente nada.

Tira a roupa, entra no chuveiro. Ewa não merecia tudo aquilo.

Tem quase certeza de que a encontrará esta noite, mas a cada momento isso parece perder a importância. Talvez sua missão seja muito maior do que simplesmente recuperar o amor de uma pessoa que o traiu, que espalha coisas negativas a seu respeito. O espírito da menina de sobrancelhas grossas faz com que se lembre da história contada por um velho afegão, no intervalo de uma batalha.

A população de uma cidade no alto de uma das montanhas desertas de Herat, depois de muitos séculos de desordem e maus governantes, está desesperada. Não pode abolir a monarquia de uma hora para outra, e, ao mesmo tempo, já não agüenta as muitas gerações 2 8 4

de reis arrogantes e egoístas. Reúne a Loya Jirga, como é conhecido o conselho dos sábios do local.

A Loya Jirga decide: elegeriam um rei a cada quatro anos, e este teria o poder completo e absoluto. Poderia aumentar os impostos, exigir obediência total, escolher uma mulher diferente todas as noites para levar ao seu leito, comer e beber até não agüentar mais.

Vestiria as melhores roupas, cavalgaria os melhores animais. Enfi m: qualquer ordem, por mais absurda que fosse, seria obedecida sem que ninguém pudesse questionar sua lógica ou sua justiça.

Entretanto, no fi nal desses quatro anos, seria obrigado a renunciar o trono e abandonar o local, levando apenas a família e a roupa do corpo. Todos sabiam que isso signifi cava a morte em três ou quatro dias no máximo, já que naquele vale não existia nada além de um imenso deserto, congelante no inverno, e insuportavelmente quente no verão.

Os sábios da Loya Jirga imaginam que ninguém se arriscaria a tomar o poder, e poderiam voltar ao sistema antigo de eleições democráticas. A decisão foi promulgada: o trono do governante estava vago, mas as condições para ocupá-lo eram rígidas. Em um primeiro momento, várias pessoas fi caram animadas com a possibilidade. Um velho com câncer aceitou o desafi o, mas morreu da doença durante o mandato, com um sorriso no rosto. Um louco sucedeu-o, mas por causa de suas condições mentais partiu quatro meses depois (havia entendido errado) e desapareceu no deserto. A partir daí, começaram a correr histórias dizendo que o trono estava amaldiçoado, e ninguém mais resolveu arriscar-se. A cidade fi cou sem governante, a confusão começou a instalar-se, os habitantes entenderam que as tradições monárquicas precisam ser esquecidas para sempre, e se prepararam para mudar seus usos e costumes. A Loya Jirga começa a comemorar a sábia decisão de seus membros: não obrigaram o povo a fazer uma escolha, apenas conseguiram eliminar a ambição daqueles que desejavam o poder a qualquer custo.

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Neste momento aparece um jovem, bem casado, e pai de três fi lhos.

— Aceito o cargo — diz ele.

Os sábios tentam explicar os riscos do poder. Dizem que tem fa-mília, que aquilo não passava de uma invenção para desestimular aventureiros e déspotas. Mas o rapaz se mantém fi rme em sua decisão. E como é impossível voltar atrás, a Loya Jirga não tem outro remédio a não ser esperar mais quatro anos antes de levar seus planos adiante.

O rapaz e sua família se tornam excelentes governantes; são justos, distribuem melhor a riqueza, abaixam o preço dos alimentos, dão festas populares para celebrar as mudanças de estação, estimulam o trabalho artesanal e a música. Entretanto, todas as noites uma grande caravana de cavalos deixa o local arrastando pesadas carroças cujo conteúdo está coberto por tecidos de juta, de modo que ninguém pode ver o que há lá dentro.

E jamais retornam.

No início, os sábios da Loya Jirga imaginam que o tesouro está sendo saqueado. Mas ao mesmo se consolam com o fato de que o rapaz nunca se aventurara muito além das muralhas da cidade; se tivesse feito isso e galgado a primeira montanha, iria descobrir que os cavalos morreriam antes de chegar muito longe — estão no meio de um dos lugares mais inóspitos do planeta. Reúnem-se de novo, e dizem: deixemos que ele faça como quer. Assim que terminar seu reino, vamos até o local onde os cavalos caíram de exaustão, os ca-valeiros morreram de sede, e recuperaremos tudo.

Param de preocupar-se e aguardam com paciência.

No fi nal de quatro anos, o rapaz é obrigado a descer do trono e abandonar a cidade. A população revolta-se: afi nal de contas, há muito tempo não tiveram um governante tão sábio e tão justo!

Mas a decisão da Loya Jirga precisa ser respeitada. O rapaz vai até sua mulher e seus fi lhos, e pede que os acompanhe.

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— Farei isso — diz a mulher. — Mas pelo menos deixe nossos fi lhos aqui; eles poderão sobreviver e contar sua história.

— Confi e em mim.

Como as tradições tribais são rígidas, a mulher não tem alternativa se não obedecer ao marido. Montam seus cavalos, vão para a porta da cidade, despedem-se dos amigos que fi zeram enquanto governavam o local. A Loya Jirga está contente: mesmo com todos aqueles aliados, o destino precisa ser cumprido. Ninguém mais se arriscará a subir ao trono, e as tradições democráticas serão fi nalmente restabelecidas.

Assim que puderem, recuperarão o tesouro que a esta altura deve estar abandonado no deserto, a menos de três dias dali.

A família segue para o vale da morte em silêncio. A mulher não ousa conversar nada, as crianças não entendem o que está se passando, e o jovem parece estar imerso em seus pensamentos. Cruzam uma colina, passam o dia inteiro atravessando uma gigantesca planí-

cie, e dormem no alto da colina seguinte.

A mulher desperta ainda de madrugada — quer aproveitar seus dois últimos dias de vida para olhar as montanhas da terra que tanto amou. Vai até o topo, olha para baixo, para o que sabe ser uma outra planície absolutamente deserta. E leva um susto.

Durante quatro anos as caravanas que partiam à noite não levavam jóias nem moedas de ouro.

Levavam tijolos, sementes, madeira, telhas, tecidos, especiarias, animais, objetos tradicionais de perfurar o solo para encontrar água.

Diante dos seus olhos está uma outra cidade — muito mais moderna, mais bela, com tudo funcionando.

— Esse é o seu reino — diz o rapaz que acabou de acordar e juntar-se a ela. — Desde que soube do decreto, sabia que era inú-

til tentar corrigir em quatro anos o que séculos de corrupção e má administração haviam destruído. Mas tinha uma única certeza: era possível começar tudo de novo.

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Está começando tudo de novo, enquanto a água cai em seu rosto.

Entendeu fi nalmente porque a primeira pessoa com quem realmente conversou em Cannes está agora ao seu lado, corrigindo seu curso, ajudando-o a fazer os ajustes necessários, explicando que seu sacrifí-

cio não foi por acaso e nem foi desnecessário. Por um lado, o fi zera entender que Ewa sempre fora uma entidade perversa, apenas interessada em ascensão social, mesmo que isso signifi casse abandonar a família.

“Quando voltar para Moscou, procure fazer esporte. Muito esporte. Isso o ajudará a libertar-se das tensões.”

Consegue ver seu rosto nas nuvens de vapor provocadas pela água quente. Nunca esteve tão próximo de alguém como está agora de Olivia, a menina de sobrancelhas grossas.

“Siga adiante. Mesmo que já não esteja mais convencido, siga adiante; os desígnios de Deus são misteriosos, e às vezes o caminho só se mostra quando a pessoa começa a andar.”

Obrigado, Olivia. Quem sabe está ali para mostrar ao mundo as aberrações do presente, do qual Cannes era a suprema manifestação?

Não tem certeza. Mas seja o que for, está ali por uma razão, e seus dois anos de tensão, planejamento, medo, incertezas estão fi nalmente sendo justifi cados.

Pode imaginar como será o próximo Festival: pessoas precisando usar cartões magnéticos mesmo nas festas de praia, atiradores de elite em todos os tetos, centenas de policiais à paisana misturando-se com a multidão, detectores de metal em cada porta de hotel, onde grandes fi lhos da Superclasse terão que esperar até que policiais re-vistem suas bolsas, tirem seus sapatos altos, peçam que retornem porque esqueceram algumas moedas no bolso e o dispositivo apitou, ordenem que os senhores de cabelos grisalhos levantem os braços e sejam revistados como um criminoso qualquer, conduzam as mu-2 8 8

lheres a uma única cabine de lona instalada na entrada — destoan-do por completo da antiga elegância local —, onde devem esperar pacientemente em uma fi la para serem revistadas, até que a policial feminina descubra o que fez soar o alarme: os suportes de aço que fi cam na parte inferior dos sutiãs.

A cidade começará a mostrar sua verdadeira face. Luxo e glamour são substituídos por tensão, insultos, olhares indiferentes de policiais, tempo perdido. Isolamento cada vez maior — desta vez provocado pelo sistema, e não pela eterna arrogância dos eleitos.

Custos proibitivos que caem nas costas dos contribuintes, por causa das forças militares deslocadas para um simples balneário com o úni-co objetivo de proteger gente que está tentando se divertir.

Manifestações. Trabalhadores honestos protestando contra aquilo que julgam um absurdo. O governo dá uma declaração dizendo que começa a considerar a possibilidade de transferir os custos para os organizadores do Festival. Os patrocinadores — que podiam arcar com essas despesas — já não estão mais interessados, porque um deles foi humilhado por um agente de quinta categoria, que o mandou calar a boca e respeitar o esquema de segurança.

Cannes começa a morrer. Dois anos mais tarde, dão-se conta de que tudo aquilo que fi zeram para manter a lei e a ordem tinha realmente valido a pena: nenhum crime durante o Festival. Os terroristas não estão mais conseguindo semear o pânico.

Querem voltar atrás, mas é impossível; Cannes continua a morrer. A nova Babilônia é destruída. A Sodoma dos tempos modernos está sendo riscada do mapa.

Sai do banho com uma decisão tomada: quando voltar para a Rússia, irá mandar seus empregados descobrirem o nome da famí-

lia da moça. Fará doações anônimas através de bancos insuspeitos.

Mandará um escritor de talento escrever sua história, e arcará com os custos das traduções no resto do mundo.

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“A história de uma menina que vendia artesanato, era espancada por seu noivo, explorada pelos pais, até que um dia entrega sua alma a um estranho, e com isso muda uma parte do planeta.”

Abre o armário, pega a camisa imaculadamente branca, o smoking bem passado, os sapatos de verniz feitos à mão. Não tem problemas com o nó da gravata-borboleta, fazia isso pelo menos uma vez por semana.

Liga a televisão: é a hora dos jornais locais. O desfi le no tapete vermelho ocupa grande parte do noticiário, mas há uma pequena reportagem sobre uma mulher que foi assassinada em um píer.

A polícia cercou o local, o garoto que presenciou a cena (Igor presta atenção, mas não tem o menor interesse em vingar-se de nada) diz que viu um casal de namorados sentar-se para conversar, o homem tirou o pequeno estilete de metal e começou a passar pelo corpo da vítima, a mulher parecia contente. Por isso não chamou logo a polícia, estava convencido de que era uma brincadeira.

“Como se parecia?”

Branco, aproximadamente 40 anos, com tal e tal roupa, e maneiras delicadas.

Não há por que se preocupar. Abre sua pasta de couro, e retira dois envelopes. Um convite para a festa que está para começar em uma hora (embora, na verdade, todos saibam que terá um mínimo de 90 minutos de atraso), na qual sabe que irá encontrar Ewa: se ela não veio até ele, paciência. Agora é tarde, ele irá ao encontro dela de qualquer maneira. Menos de 24 horas foram sufi cientes para entender com que tipo de mulher se havia casado, e como sofrera inutilmente durante dois anos.

O outro é um envelope prateado, hermeticamente fechado, onde está escrito “Para você” com uma bela caligrafi a, que tanto pode ser feminina ou masculina.

Os corredores são vigiados por câmeras de vídeo — como acontece na maioria dos hotéis hoje em dia. Em algum porão do edifício 2 9 0

há uma sala escura, cercada de monitores, onde um grupo de pessoas atentas nota cada detalhe do que está acontecendo. Suas energias estão voltadas para tudo que saia do normal, como o homem que estava há horas subindo e descendo as escadas do hotel: enviaram um agente para saber o que acontecia, e receberam como resposta

“exercício grátis”. Como estava hospedado ali, o agente pediu desculpas e se afastou.

Claro, não se interessam por hóspedes que entram nos quartos de outros e saem apenas no dia seguinte, geralmente depois que o café-

da-manhã é servido. Isso é normal. Isso não lhes diz respeito.

Os monitores estão conectados a sistemas especiais de gravação digital; tudo que se passa nas dependências públicas do hotel é arquivado durante seis meses em um cofre do qual apenas os gerentes possuem a chave. Nenhum hotel do mundo quer perder sua clientela porque algum marido ciumento, com bastante dinheiro, conseguiu subornar uma das pessoas que vigiam o movimento de determinado ângulo do corredor, e colocou (ou vendeu) o material para uma revista de escândalos, depois de apresentar as provas na justiça e evitar que a mulher se benefi cie de parte da sua fortuna.

Se isso algum dia acontecesse, seria um trágico golpe no prestí-

gio do estabelecimento, que preza por sua discrição e confi abilidade. A taxa de ocupação imediatamente sofreria uma queda radical

— afi nal de contas, se um casal escolheu ir para um hotel de luxo é porque sabe que os funcionários jamais vêem nada além daquilo que estão educados para ver. Se alguém pede uma refeição no quarto, por exemplo, o garçom entra com os olhos cravados no carrinho, estende a conta para ser assinada pela pessoa que abriu a porta, e jamais — JAMAIS — olha em direção à cama.

As prostitutas e os prostitutos de luxo se vestem como pessoas discretas — embora os homens que neste momento estão na sala escura cercada de monitores saibam exatamente quem são, usando um sistema de dados fornecido pela polícia. Isso também não lhes 2 9 1

diz respeito, mas mantêm uma atenção especial na porta por onde entraram até que os vejam sair. Em alguns hotéis, a telefonista é encarregada de inventar uma chamada falsa para ver se tudo está bem com o hóspede: ele atende o telefone, uma voz feminina pergunta por uma pessoa inexistente, escuta um insulto do tipo “você errou de quarto”, e o barulho do telefone sendo desligado. Missão cumprida: não há motivos para preocupações.

Os bêbados fi cam surpresos quando caem no chão, experimen-tam a chave de um quarto que não é o deles, vêem que a porta não abre e começam a espancá-la. Neste momento, aparecendo do nada, surge um funcionário solícito do hotel que está passando ali “por acaso” e se propõe a acompanhá-lo ao lugar certo (geralmente, em um andar e em um número diferentes).

Igor sabe que todos os seus passos ali estão registrados no subterrâneo do hotel: o dia, a hora, o minuto e o segundo de cada uma de suas entradas no lobby, saídas do elevador, caminhadas até a porta da suíte, e o instante em que usa o cartão magnético que serve de chave. A partir dali, já pode respirar aliviado; ninguém tem acesso ao que está acontecendo lá dentro, já seria violar demais a intimidade alheia.

Fecha sua porta e sai.

Teve tempo de estudar as câmeras do hotel assim que chegou de viagem na noite anterior. Da mesma maneira que acontece com os carros — por mais espelhos retrovisores que tenham, sempre há um ponto “cego” que impede o motorista de ver algum veículo no instante da ultrapassagem —, as câmeras mostram claramente tudo que acontece no corredor, exceto os quatro apartamentos que fi cam nas esquinas. Evidente que se um dos homens no subterrâneo vir que uma pessoa passa por determinado local e não aparece na tela seguinte, alguma coisa suspeita aconteceu — talvez um desmaio — e logo enviará alguém para verifi car a ocorrência. Se chegar ali e não 2 9 2

vir ninguém, fi ca evidente que foi convidado a entrar, e isso passa a ser um assunto privado entre os hóspedes.

Mas Igor não pretende parar. Caminha pelo corredor com o ar mais natural do mundo, e na altura da curva para o hall dos elevadores desliza o envelope prateado por debaixo da porta do quarto

— possivelmente uma suíte — que se encontra no ângulo.

Tudo não demorou mais do que uma fração de segundo; se al-guém lá embaixo resolveu acompanhar seus movimentos, não percebeu nada. Muito mais tarde, quando requisitar as fi tas para tentar identifi car o culpado pelo ocorrido, terá muita difi culdade em determinar o momento exato da morte. Pode ser que o hóspede não esteja ali, e só abra o envelope quando voltar de algum dos eventos da noite. Pode ser que tenha aberto o envelope logo em seguida, mas o produto que contém não atua imediatamente.

Durante todo esse tempo, várias pessoas terão passado pelo mesmo local, todos serão suspeitos, e se alguém mal vestido — ou dedicado a trabalhos menos ortodoxos como massagens, prostituição, entrega de drogas — tiver a pouca sorte de fazer o mesmo percurso, será imediatamente preso e interrogado. Durante um festival de cinema, as chances de que um indivíduo com tais características apareça no monitor são imensas.

Está consciente de que existe um perigo que não havia considerado: alguém assistiu ao assassinato da mulher na praia. Depois de alguma burocracia, será chamado para assistir às fi tas. Mas está registrado com passaporte falso e nome fi ctício, cuja foto mostra um homem de óculos com bigode (o hotel nem se deu ao trabalho de conferir, e caso o fi zesse, explicaria que raspou o bigode e usa lentes de contato agora).

Supondo que sejam mais rápidos que qualquer polícia do mundo, e já tenham concluído que uma única pessoa resolveu criar alguns inconvenientes para o bom andamento do Festival, fi carão esperando sua volta, e assim que retornar ao quarto será convidado a prestar 2 9 3

declarações. Mas Igor sabe que aquela é a última vez que caminha pelos corredores do Martinez.

Entrarão em seu quarto. Encontrarão uma valise completamente vazia, sem qualquer impressão digital. Irão até o banheiro, e pensarão consigo mesmos: “Veja só, tão rico e resolve lavar suas roupas na pia do hotel! Será que não pode pagar a lavanderia?”

Um policial colocará a mão para pegar o que considera ser “prova onde serão encontrados vestígios de DNA, impressões digitais, fi os de cabelo”. Dará um grito: seus dedos foram queimados pelo ácido sulfúrico que neste momento dissolve todo o material que deixara para trás. Precisa apenas do seu passaporte falso, cartões de crédito, e dinheiro vivo — tudo isso nos bolsos do smoking, junto com a pequena Beretta, arma desprezada pelos entendidos.

Viajar sempre foi fácil para ele: detesta carregar peso. Mesmo tendo uma missão complicada a cumprir em Cannes, escolheu material leve, fácil de transportar. Não consegue compreender como algumas pessoas trazem gigantescas malas, mesmo quando precisam passar apenas um ou dois dias fora de casa.

Não sabe quem abrirá o envelope, e isso não lhe interessa: quem faz a escolha não é ele, mas o Anjo da Morte. Muita coisa pode acontecer nesse meio tempo — inclusive absolutamente nada.

O hóspede pode telefonar para a portaria, dizer que entregaram algo para a pessoa errada, e pedir que venham recolhê-lo. Ou jogá-

lo no lixo, achando que é mais um dos bilhetes gentis da direção do hotel, perguntando se tudo está correndo bem; tem outras coisas para ler, e precisa se preparar para alguma festa. Se for um homem que espera a mulher chegar a qualquer instante, irá colocá-lo no bolso, certo de que a mulher que encontrou durante a tarde e que tentou seduzir de qualquer maneira agora está lhe dando uma resposta positiva. Pode ser um casal; como nenhum dos dois sabe a quem se destina o “para você”, aceitam mutuamente que não cabe 2 9 4

a eles agora começar a levantar suspeitas um sobre o outro, e atiram o envelope pela janela.

Se, entretanto, apesar de todas essas possibilidades, o Anjo da Morte estiver realmente decidido a roçar suas asas no rosto do des-tinatário, então ele (ou ela) vai rasgar a parte superior, e ver o que tem dentro.

Algo que deu muito trabalho para ser colocado ali.

Precisou da ajuda dos seus antigos “amigos e colaboradores”, que antes haviam lhe emprestado uma soma considerável para que pudesse montar sua companhia, e fi caram muito descontentes quando descobriram que ele resolvera pagá-los de volta, pois desejavam cobrá-la apenas quando fosse conveniente para eles — afi nal, estavam muito contentes que um negócio absolutamente legal lhes permitisse integrar de novo no sistema fi nanceiro russo um dinheiro cuja origem era difícil de explicar.

Mesmo assim, depois de um período em que quase não se falavam, voltaram a ter relações. Sempre que pediam qualquer favor

— como arranjar vaga na universidade para a fi lha, ou conseguir ingressos para alguns concertos a que seus “clientes” desejavam assistir — Igor movia o céu e a terra para atendê-los. Afi nal de contas, foram os únicos que acreditaram em seus sonhos, independente dos motivos que tinham para isso. Ewa — e agora, cada vez que pensava nela, sentia uma irritação que era difícil controlar — os acusava de terem usado a inocência do seu marido para lavarem dinheiro de trá-

fi co de armas. Como se isso fi zesse alguma diferença; ele não estava envolvido nem na compra, nem na venda, e em qualquer negócio no mundo ambas as partes precisam lucrar.

E todos têm seus momentos difíceis. Alguns dos seus antigos fi -

nanciadores passaram algum tempo na prisão, e ele jamais os aban-donou — mesmo sabendo que não precisava mais de ajuda. A dignidade de um homem não é medida pelas pessoas que tem em torno 2 9 5

de si quando está no ápice do sucesso, mas pela capacidade de não esquecer as mãos que se estenderam quando mais precisava. Se estas mãos estavam sujas de sangue ou de suor, dá no mesmo: uma pessoa à beira do precipício não pergunta quem o está ajudando a voltar para terra fi rme.

O sentimento de gratidão é importante em um homem: ninguém chega muito longe se esquece aqueles que estavam ao seu lado quando precisava. E ninguém precisa fi car lembrando que ajudou ou foi ajudado: Deus está com os olhos fi xos em seus fi lhos e fi lhas, recom-pensando apenas aqueles que se comportam à altura das bênçãos que lhes foi confi ada.

Assim, quando precisou do curare, soube a quem recorrer — embora tivesse que pagar um preço absurdo por algo relativamente comum nas fl orestas tropicais.

Chega ao salão do hotel. O local da festa está a mais de meia hora de carro, ia ser muito difícil achar um táxi se fi casse parado no meio-fi o. Aprendera que a primeira coisa que se faz quando se chega a um lugar como esse é dar — sem pedir nada em troca — uma generosa gorjeta ao concierge; todos os homens de negócio bem-sucedidos costumavam fazer isso, e sempre conseguiam reservas para os melhores restaurantes, entradas para os espetáculos que gostariam de ver, informações sobre certos pontos na cidade que não estavam em guias turísticos porque escandalizariam as famílias de classe média.

Com um sorriso, pede e consegue um carro na mesma hora, enquanto ao seu lado um outro hóspede reclama dos problemas de transporte que está sendo obrigado a enfrentar. Gratidão, necessidade e contatos. Qualquer problema pode ser resolvido.

Inclusive a complicada produção do envelope prateado, com o sugestivo “para você” escrito em bela caligrafi a. Tinha deixado para usá-lo no fi nal de sua tarefa, porque se Ewa, por acaso, não tivesse 2 9 6

oportunidade de entender as outras mensagens, essa — a mais sofi sticada de todas — não deixaria margem para dúvidas.

Seus antigos amigos tinham dado um jeito de providenciar o que necessitava. Ofereceram-no de graça, mas ele preferiu pagar; tinha dinheiro, e não gostava de contrair dívidas.

Não fez perguntas desnecessárias; sabia apenas que a pessoa que o havia fechado hermeticamente precisou usar luvas e uma máscara contra gases. Sim, neste caso o preço foi mais justo do que o curare, porque a manipulação é mais delicada — embora o produto não seja muito difícil de conseguir, já que é usado em metalurgia, produção de papel, roupas, plásticos. Tem um nome relativamente assustador: cianureto. Mas seu odor se parece com amêndoas, e sua aparência é inofensiva.

Deixa de pensar em quem fechou, e começa a imaginar quem irá abrir o envelope — perto do rosto, como é normal. Irá encontrar um cartão branco, onde fora impresso em computador uma frase em francês:

“Katyusha je t’aime.”

“Katyusha? Do que se trata isso?”, perguntará a pessoa.

Nota que o cartão está coberto de pó. O contato do ar com o pó transformará o produto em gás. Um cheiro de amêndoas toma conta do ambiente.

A pessoa vai fi car surpresa; podiam ter escolhido algum aroma melhor. Deve ser mais uma dessas propagandas de perfume, refl etirá em seguida. Retira o papel, vira-o de um lado para o outro, e o gás que desprende do pó começa a se espalhar cada vez mais rápido.

“Que tipo de brincadeira é essa?”

Esta será sua última refl exão consciente. Deixa o cartão em cima da mesa de entrada se dirige para o banheiro, pensando em tomar uma ducha, terminar a maquiagem, ajeitar a gravata.

Neste momento, descobre que seu coração está disparado. Não estabelece imediatamente uma relação com o perfume que tomou 2 9 7

conta de seu quarto — afi nal de contas, não tem inimigos, apenas concorrentes e adversários. Antes mesmo de chegar no banheiro nota que não consegue fi car de pé. Senta-se na beira da cama. Uma dor de cabeça insuportável e difi culdade de respirar são os próximos sintomas; logo depois, vem a ânsia de vômito. Mas não terá tempo para isso; perde rapidamente a consciência, antes mesmo de poder relacionar o conteúdo do envelope com o seu estado.

Em poucos minutos — porque a concentração do produto foi expressamente recomendada para ser a mais densa possível — o pul-mão pára de funcionar, o corpo se contrai, as convulsões começam, o coração não bombeia mais o sangue, e a morte chega.

Indolor. Piedosa. Humana.

Igor entra no táxi e dá o endereço: Hotel Du Cap, Eden Roc, Cap d’Antibes.

O grande jantar de gala daquela noite.

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7:40 PM

O andrógino, vestido com uma blusa negra, gravata borboleta branca, e uma espécie de túnica indiana sobre as mesmas calças justas que realçam sua esqualidez, diz que a hora em que estão chegando pode ser algo muito bom ou muito ruim.

— O trânsito está melhor do que eu pensava. Seremos um dos primeiros a entrar no Eden Roc.

Gabriela, que a esta altura já passou por outra sessão de “retoques” no penteado e na pintura do rosto — desta vez com uma maquiadora que parecia absolutamente entediada com o seu trabalho

— não entende o comentário.

— Depois de todos esses engarrafamentos, não é melhor que sejamos precavidos? Como é que isso pode ser ruim?

O andrógino dá um profundo suspiro antes de responder, como se tivesse que explicar o óbvio a alguém que ignora as leis mais ele-mentares do brilho e do glamour.

— Pode ser bom porque você estará sozinha no corredor...

Olha para ela. Vê que não compreende o que está falando, dá outro suspiro, e recomeça:

— Ninguém entra diretamente nesse tipo de festa usando uma porta. Sempre passa por um corredor, onde de um lado estão os fo-tógrafos, e do outro há uma parede com a marca do patrocinador da festa pintada e repetida várias vezes. Nunca viu revistas de celebridades? Não reparou que estão sempre com alguma marca de algum produto atrás enquanto sorriem para as câmeras?

Celebridade. O andrógino arrogante tinha deixado escapar uma palavra inadequada. Admitia, sem querer, que estava acompanhando uma delas. Gabriela saboreou a vitória em silêncio, embora fosse adulta o sufi ciente para saber que ainda havia muito caminho adiante.

— E o que existe de errado em chegar na hora?

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Mais um suspiro.

— Os fotógrafos podem ainda não ter chegado. Mas vamos torcer para que tudo dê certo, assim eu me livro logo destes folhetos com a sua biografi a.

— Minha biografi a?

— Você acha que todo mundo sabe quem é? Não, minha fi lha.

Eu vou ter que ir até lá, entregar este maldito papel a cada um, dizer que daqui a pouco irá entrar a grande estrela do próximo fi lme de Gibson, e que preparem suas câmeras. Farei um sinal para o grupo assim que você aparecer no corredor.

“Não serei muito gentil com eles; estão acostumados a serem sempre tratados como aqueles que estão no degrau mais baixo na escala de poder em Cannes. Direi que estou lhes fazendo um grande favor, e isso é tudo; a partir daí, não vão correr o risco de perder uma oportunidade como essa porque podem ser despedidos, e o que não falta nesse mundo é gente com uma máquina e uma conexão de internet, louca para colocar na rede mundial alguma coisa que todos, absolutamente todos, deixaram passar. Penso que em alguns anos os jornais vão utilizar apenas os serviços de anônimos, e com isso diminuir seus custos — já que a circulação de revistas e jornais está cada vez menor.”

Queria mostrar seu conhecimento sobre a mídia, mas a moça ao seu lado não se interessa; pega um dos papéis, e começa a ler.

— Quem é Lisa Winner?

— Você. Mudamos seu nome. Ou melhor, este nome já estava escolhido mesmo antes de ter sido selecionada. A partir de agora é assim que se chama: Gabriela é italiano demais, e Lisa pode ser de qualquer nacionalidade. Os estúdios de tendências explicam que sobrenomes de quatro a seis letras são sempre mais fáceis de serem guardados pelo grande público: Fanta. Taylor. Burton. Davis. Woods.

Hilton. Quer que eu continue?

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— Já vi que você entende de mercado; agora preciso descobrir quem sou — segundo minha nova biografi a.

Não procurou disfarçar a ironia em sua voz. Estava ganhando terreno; começava a se comportar como uma estrela. Começou a ler o que estava escrito ali: a grande revelação escolhida entre mais de mil participantes para trabalhar na primeira produção cinematográfi ca do famoso costureiro e empresário Hamid Hussein... etc.

— Os folhetos já estavam impressos há mais de um mês — disse o andrógino, fazendo a balança pesar de novo a seu favor, e saboreando sua pequena vitória. — Foi escrito pela equipe de marketing do grupo; eles não erram nunca. Veja certos detalhes como: “Trabalhou como modelo, fez curso de arte dramática.” Confere com você, não é verdade?

— Isso signifi ca que fui selecionada mais pela minha biografi a do que pela qualidade do meu teste.

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