— Espero que tenha gostado do almoço. São grandes coleciona-dores de arte. E o fato de terem colocado um helicóptero à disposi-
ção dos seus convidados é muito generoso da parte deles.
— Adorei.
Mas o que Ewa queria dizer mesmo: “Detestei. E além do mais, estou assustada. Recebi uma mensagem no meu telefone celular, e sei quem a enviou, embora não possa identifi car o número.”
Entram no gigantesco carro que servia apenas para duas pessoas; o resto era espaço vazio. O ar-condicionado está na temperatura ideal, a música é perfeita para um momento daqueles. Ele pergunta se deseja um pouco de champagne. Não, uma água mineral é o bastante.
— Vi seu ex-marido ontem no bar do hotel, antes de sair para jantar.
— Impossível. Ele não tem negócios a fazer em Cannes.
Ela gostaria de ter dito: “Talvez você esteja certo, havia uma mensagem no meu telefone. É melhor pegarmos o primeiro avião e partir imediatamente daqui.”
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— Tenho certeza.
Hamid nota que sua mulher não está com muita vontade de conversar. Tinha sido educado para respeitar a privacidade daqueles a quem amava, e obriga-se a pensar em outra coisa.
Pede licença, dá o telefonema que precisava para o seu agente em Nova York. Escuta com paciência duas ou três frases, e interrompe com delicadeza as notícias sobre as tendências do mercado. Aquilo tudo não dura mais de dois minutos.
Faz uma segunda ligação para o diretor que havia escolhido para seu primeiro fi lme. Ele está indo até o barco para encontrar-se com a Celebridade — e sim, a moça tinha sido selecionada, e deveria aparecer às duas da tarde.
Vira-se de novo para Ewa; mas ela continua aparentemente sem disposição para conversar, o olhar distante, sem fi xar-se em absolutamente nada do que se passava além dos vidros da limusine. Talvez esteja preocupada porque terá pouco tempo no hotel: será preciso trocar rapidamente de roupa, e partir para um desfi le não muito importante, de uma costureira belga. Precisa ver com seus próprios olhos a tal modelo africana, Jasmine, que seus assessores diziam ser o rosto ideal para sua próxima coleção.
Queria saber como a moça vai agüentar a pressão de um evento em Cannes. Se tudo der certo, será uma de suas principais estrelas na Semana de Moda de Paris, marcada para outubro.
Ewa mantém os olhos fi xos na vidraça do carro, mas não está vendo absolutamente nada do que se passa do lado de fora. Conhece bem o senhor bem-vestido, de maneiras doces, criativo, lutador, que está sentado ao seu lado. Sabia que a deseja como jamais um homem desejou uma mulher, exceto aquele a quem havia deixado. Pode confi ar nele, embora esteja sempre cercado pelas mulheres mais belas do planeta. Ali está uma pessoa honesta, trabalhadora, ousada, que havia enfrentado muitos desafi os para chegar até aquela limusine e 1 0 5
poder oferecer-lhe uma taça de champagne ou um copo de cristal com sua água mineral preferida.
Poderoso, capaz de protegê-la de qualquer perigo, menos de um, o pior de todos.
Seu ex-marido.
Não quer despertar suspeitas agora, pegando seu telefone celular para reler o que está escrito ali: já conhece a mensagem de cor:
“Destruí um mundo por você, Katyusha.”
Não entende o conteúdo. Mas ninguém mais na face da Terra a chamaria por aquele nome.
Havia se educado para amar Hamid, embora deteste a vida que leva, as festas que freqüenta, os amigos que tem. Não sabe se conseguiu — há momentos em que entra em uma depressão tão profunda que pensa em suicidar-se. O que sabe é que ele foi sua salvação em um momento em que se julgava perdida para sempre, incapaz de sair da armadilha do seu casamento.
Muitos anos atrás, havia se apaixonado por um anjo. Que tivera uma infância triste, fora convocado pelo exercito soviético para uma guerra absurda no Afeganistão, voltara para um país que começava a se desintegrar, e mesmo assim soubera superar todas as difi culdades.
Começou a trabalhar duro, enfrentou tensões gigantescas para conseguir empréstimos junto a pessoas perigosas, passou noites em claro pensando em como pagá-los, agüentou sem reclamar a corrupção do sistema, já que era necessário tendo que subornar algum funcionário do governo sempre que pedia uma nova licença para um empreendimento que iria melhorar a qualidade de vida do seu povo. Era idealista e amoroso. De dia, conseguia exercer sua liderança sem ser questionado, porque a vida lhe educara e o serviço militar o fi zera entender o sistema de hierarquia. De noite, abraçava-se a ela e pedia que o protegesse, que o aconselhasse, que rezasse para que tudo cor-1 0 6
resse bem, que conseguisse sair das muitas armadilhas que apareciam diariamente no seu caminho.
Ewa acariciava seus cabelos, garantia que tudo estava bem, que era um homem bom, e que Deus sempre recompensava os justos.
Pouco a pouco, as difi culdades foram dando lugar às oportunidades. A pequena empresa que montara depois de muito mendigar para assinar contratos começou a crescer, porque era um dos poucos que havia investido em algo que ninguém acreditava que podia dar certo num país que ainda sofria por causa de sistemas de comunicação obsoletos. O governo mudou e a corrupção diminuiu. O dinheiro começou a entrar — lentamente no início e depois em grandes, imensas quantidades. Mesmo assim, os dois jamais esqueciam as difi culdades pelas quais haviam passado, e nunca desperdiçavam um centavo; contribuíam com obras de caridade e associações de ex-combatentes, viviam sem grandes luxos, sonhando com o dia em que poderiam deixar tudo e passar a viver em uma casa retirada do mundo. Quando isso acontecesse, esqueceriam que tinham sido obrigados a conviver com gente que não tinha ética e dignidade.
Gastavam grande parte do seu tempo em aeroportos, aviões e hotéis, trabalhavam durante 18 horas por dia, e durante anos jamais pude-ram desfrutar um mês de férias juntos.
Mas alimentavam o mesmo sonho: chegaria o momento em que aquele ritmo frenético se transformaria em uma lembrança distante.
As cicatrizes que esse período deixara seriam medalhas de uma luta travada em nome da fé e dos sonhos. Afi nal de contas, o ser humano
— assim acreditava então — havia nascido para amar e conviver com a pessoa amada.
E o processo começou a inverter-se. Já não mais mendigavam contratos, eles começaram a aparecer espontaneamente. Uma revista de negócios importante publicou uma matéria de capa com seu marido, e a sociedade local começou a enviar convites para festas 1 0 7
e eventos. Passaram a ser tratados como rei e rainha, e o dinheiro entrava em quantidades cada vez maiores.
Era preciso adaptar-se aos novos tempos: compraram uma bela casa em Moscou, tinham todo o conforto possível. Os antigos associados de seu marido — que no início lhe haviam emprestado dinheiro, pago em cada centavo, apesar dos juros exorbitantes — terminaram na prisão por razões que ela não conhecia e não gostaria de conhecer. Mesmo assim, a partir de determinada época, Igor passou a ser acompanhado por guarda-costas; em um primeiro momento, apenas dois deles, veteranos e amigos dos combates do Afeganistão.
Outros se incorporaram à medida que a pequena fi rma se transformava em uma gigantesca multinacional, abrindo fi liais em diversos países, presente em sete diferentes fusos horários, com investimentos cada vez mais altos e mais diversifi cados.
Ewa passava os dias em centros comerciais ou em chás com amigas, nos quais conversavam sempre as mesmas coisas. Igor queria ir mais longe.
Sempre mais longe, o que não era de se estranhar; afi nal de contas, só chegara onde estava agora por causa da sua ambição e do seu trabalho incansável. Quando lhe perguntava se não haviam chegado muito além do que tinham planejado e se não seria o momento de se afastar de tudo para realizar o sonho de viver apenas o amor que um sentia pelo outro, ele pedia um pouco mais de tempo. Foi aí que co-meçou a beber. Certa noite, depois de um longo jantar com amigos regado a vodka e vinho, ela teve uma crise de nervos quando voltou para casa. Disse que não agüentava mais aquela vida vazia, precisava fazer alguma coisa ou terminaria louca.
Igor perguntou se não estava satisfeita com o que tinha.
— Estou satisfeita. Justamente este é o problema: estou satisfeita, mas você não. E não estará nunca. É inseguro, tem medo de perder tudo que conquistou, não sabe sair de um combate quando já con-1 0 8
seguiu o que queria. Você irá terminar se destruindo. E você está acabando com o nosso casamento e com o meu amor.
Não era a primeira vez que falava assim com o marido; suas conversas sempre tinham sido honestas, mas ela sentiu que estava chegando ao seu limite. Não agüentava mais comprar, detestava os chás, odiava os programas de televisão a que precisava fi car assistindo enquanto aguardava sua volta do trabalho.
— Não diga isso. Não diga que estou acabando com nosso amor.
Eu prometo que em breve vamos deixar tudo isso para trás, tenha um pouco de paciência. Talvez seja o momento de começar a fazer alguma coisa, porque deve estar levando uma vida infernal.
Pelo menos ele reconhecia isso.
— O que gostaria de fazer?
Sim, talvez essa fosse a saída.
— Trabalhar com moda. Sempre sonhei com isso.
O marido satisfez imediatamente seu desejo. Na semana seguinte, apareceu com as chaves de uma loja em um dos melhores centros comerciais de Moscou. Ewa fi cou entusiasmada — sua vida agora ganhava outro sentido, os longos dias e noites de espera terminariam para sempre. Pediu dinheiro emprestado, e Igor investiu o que foi necessá-
rio para que tivesse uma chance de alcançar o sucesso merecido.
Os banquetes e festas — nos quais se sentia sempre como uma estranha — passaram a ter um novo interesse; graças aos contatos, em apenas dois anos dirigia o mais cobiçado local de alta-costura em Moscou. Embora tivesse uma conta conjunta com seu marido, e ele jamais fi zesse questão de saber quanto gastava, fez questão de pagar o dinheiro que ele havia lhe emprestado. Começou a viajar sozinha, em busca de desenhos e marcas exclusivas. Contratou empregados, passou a entender de contabilidade, transformou-se — para sua pró-
pria surpresa — em uma excelente mulher de negócios.
Igor havia lhe ensinado tudo. Igor era o grande modelo, o exemplo a ser seguido.
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E justamente quando tudo estava bem, sua vida ganhara um novo sentido, o Anjo da Luz que iluminara seu caminho começou a dar mostras de desequilíbrio.
Estavam em um restaurante em Irkutsk, depois de terem passado o fi nal de semana em uma aldeia de pescadores na margem do lago Baikal. A essa altura a companhia tinha dois aviões e um helicóptero, de modo que podiam viajar o mais longe possível e voltar na segunda-feira para começarem tudo de novo. Nenhum dos dois reclamava do pouco tempo que passavam juntos, mas era evidente que os muitos anos de luta estavam começando a deixar marcas.
Mesmo assim, sabiam que o amor era mais forte que tudo e, enquanto estivessem juntos, estariam a salvo.
No meio do jantar à luz de velas, um mendigo visivelmente embriagado entrou no restaurante e caminhou até eles e sentou-se na mesa para conversar, interrompendo aquele precioso momento em que estavam sós, longe da correria de Moscou. Um minuto depois, o dono já estava pronto para retirá-lo dali, mas Igor pediu que não fi zesse nada — ele mesmo se encarregaria do assunto. O mendigo fi -
cou animado, pegou a garrafa de vodka e bebeu no próprio gargalo, começou a fazer perguntas (“Quem são vocês? Como conseguem ter dinheiro, quando todos vivemos na pobreza aqui?”), reclamou da vida e do governo. Igor agüentou tudo aquilo por alguns minutos.
Em seguida pediu licença, pegou o sujeito pelo braço e o levou até o lado de fora — o restaurante encontrava-se em uma rua que nem sequer calçamento tinha. Seus dois guarda-costas o esperavam. Ewa viu pela janela que seu marido trocou apenas algumas palavras com eles, algo como “Fiquem de olho na minha mulher”, e caminhou para uma pequena rua lateral. Voltou minutos depois, sorrindo.
— Não irá perturbar mais ninguém — disse.
Ewa notou que seus olhos haviam mudado; pareciam tomados de uma imensa alegria, alegria maior do que demonstrara durante o fi nal de semana que passaram juntos.
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— O que você fez?
Mas Igor pediu mais vodka. Ambos beberam até o fi nal da noite — ele sorrindo, alegre, e ela querendo entender apenas o que lhe interessava: talvez tivesse dado dinheiro ao homem para sair da miséria, já que sempre tinha demonstrado generosidade com o seu próximo menos favorecido.
Quando voltaram para a suíte do hotel, ele fez um comentário:
— Aprendi isso ainda na minha juventude, quando lutava em uma guerra injusta, por um ideal que não acreditava. Sempre é possível acabar com a miséria de maneira defi nitiva.
Não, Igor não pode estar ali, Hamid deve ter feito alguma confusão. Os dois tinham se visto apenas uma vez, na portaria do edifício onde moravam em Londres, quando ele descobriu o endereço e foi até lá para implorar que Ewa voltasse. Hamid o recebeu, mas não o deixou entrar, ameaçando chamar a polícia. Durante uma semana ela se recusou a sair de casa, dizendo que estava com dor de cabeça, mas sabendo que na verdade o Anjo da Luz havia se transformado na Maldade Absoluta.
Abre de novo o celular. Lê de novo as mensagens.
Katyusha. Só mesmo uma pessoa era capaz de chamá-la assim. A pessoa que mora no seu passado e aterrorizará o seu presente pelo resto da vida, por mais que se julgue protegida, distante, vivendo em um mundo a que ele não tem acesso.
A mesma pessoa que, na volta de Irkutsk — como se libertado de uma gigantesca pressão —, começara a falar mais livremente sobre as sombras que povoavam sua alma.
“Ninguém, absolutamente ninguém pode ameaçar nossa intimidade. Já basta o tempo que gastamos para criar uma sociedade mais justa e mais humana; quem não respeitar os nossos momentos de liberdade deve ser afastado de tal maneira que jamais pense em voltar.”
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Ewa tinha medo de perguntar o que signifi cava “de tal maneira”.
Julgava conhecer seu marido, mas de uma hora para a outra parecia que um vulcão submerso havia começado a rugir, e as ondas de choque se propagavam com cada vez mais intensidade. Lembrou-se de algumas conversas noturnas com o jovem rapaz que um dia tivera que se defender durante a guerra no Afeganistão, e para isso fora necessário matar. Jamais vira arrependimento ou remorso nos seus olhos:
“Sobrevivi, e é isso que importa. Minha vida podia ter acabado em uma tarde de sol, em um amanhecer nas montanhas cobertas de neve, em uma noite em que jogávamos baralho na tenda de campanha, certos de que a situação estava sob controle. E se tivesse morrido, isso não mudaria em nada a face do mundo; seria mais uma estatística para o exército, e mais uma medalha para a família.
“Mas Jesus me ajudou — sempre reagi a tempo. Porque atravessei as provas mais duras pelas quais um homem pode passar, o destino me concedeu as duas coisas mais importantes na vida: sucesso no trabalho, e a pessoa que amo.”
Uma coisa era reagir para salvar a própria vida, a outra era “afastar para sempre” um pobre bêbado que havia interrompido um jantar, e que poderia ter sido facilmente afastado pelo dono do restaurante.
Aquilo não lhe saía da cabeça; ia para sua loja mais cedo, e quando voltava para casa fi cava até tarde no computador. Queria evitar uma pergunta. Conseguiu controlar-se durante alguns meses marcados pelos programas de sempre: viagens, feiras, jantares, encontros, leilões de caridade. Chegou mesmo a achar que havia interpretado mal o que o marido dissera em Irkutsk, e culpou-se por ser tão superfi cial em seu julgamento.
Com o passar do tempo, a pergunta foi perdendo sua importância, até o dia em que participavam de um jantar de gala em um dos mais luxuosos restaurantes de Milão, que seria encerrado com um leilão benefi cente. Ambos estavam na mesma cidade por razões 1 1 2
diversas: ele para acertar detalhes de um contrato com uma fi rma italiana, Ewa para a Semana de Moda, quando pretendia fazer algumas compras para a sua boutique em Moscou.
E o que tinha acontecido no meio da Sibéria tornou a acontecer em uma das cidades mais sofi sticadas do mundo. Desta vez um amigo seu, também embriagado, sentou-se na mesa sem pedir permissão e começou a brincar, dizendo coisas inconvenientes para ambos. Ewa notou a mão de Igor crispar-se em um dos talheres. Com todo cuidado e gentileza possíveis, pediu ao seu conhecido que se reti rasse.
A esta altura, já tinha bebido várias taças de Asti Spumante, como os italianos se referem ao que antes era chamado de “champagne”.
O uso da palavra foi proibido por causa das chamadas “reservas de domínio”: champagne era o vinho branco com determinado tipo de bactéria que através de um rigoroso processo de controle de qualidade começa a gerar gases no interior da garrafa à medida que enve-lhece por um mínimo de 15 meses — o nome referia-se à região em que era produzido. Spumante era exatamente a mesma coisa, mas a lei européia não permitia que usassem o nome francês, já que seus vinhedos se encontravam em locais diferentes.
Começaram a conversar sobre a bebida e as leis, enquanto ela procurava afastar a pergunta que já havia esquecido, e agora voltava com toda força. Enquanto conversavam, bebiam mais. Até que houve um momento em que não conseguiu se controlar:
— Que mal há quando alguém perde um pouco a elegância e vem nos incomodar?
A voz de Igor mudou de tom.
— Raramente viajamos juntos. Claro, sempre penso a respeito do mundo em que vivemos: sufocados pelas mentiras, acreditando mais na ciência que nos valores espirituais, nos obrigando a alimentar nossas almas com coisas que a sociedade diz que são importantes, enquanto vamos morrendo aos poucos, porque entendemos o que se passa à nossa volta, sabemos que estamos sendo forçados a fazer 1 1 3
coisas que não planejamos, e mesmo assim somos incapazes de deixar tudo para dedicar nossos dias e noites à verdadeira felicidade: família, natureza, amor. Por quê? Porque somos obrigados a terminar aquilo que começamos, de modo que possamos conseguir a tão desejada estabilidade fi nanceira que nos permita desfrutar o resto de nossas vidas dedicados apenas um para o outro. Porque somos responsáveis. Sei que você às vezes acha que estou trabalhando demais: não é verdade. Estou construindo nosso futuro, e em breve estare-mos livres para sonhar e viver nossos sonhos.
Estabilidade fi nanceira era o que não faltava ao casal. Além do mais, não tinham dívidas, e podiam levantar daquela mesa apenas com seus cartões de crédito, deixar o mundo que Igor parecia detes-tar, e recomeçar tudo de novo, sem jamais precisar se preocupar com dinheiro. Já tinha conversado muitas vezes sobre isso, e Igor sempre repetia o que acabara de dizer: faltava mais um pouco. Sempre mais um pouco.
Entretanto, não era hora de discutir o futuro do casal.
— Deus pensou em tudo — continuou ele. — Estamos juntos porque essa foi Sua decisão. Sem você, não sei se teria chegado tão longe, embora ainda não consiga compreender sua importância na minha vida. Foi Ele que nos colocou lado a lado, e me emprestou Seu poder para defendê-la sempre que for necessário. Ensinou-me que tudo obedece a um plano determinado; preciso respeitá-lo em seus menores detalhes. Se não fosse assim, ou eu estaria morto em Kabul, ou na miséria em Moscou.
E foi aí que o Spumante, ou champagne, mostrou do que é capaz, independente do nome que usem para batizá-lo.
— O que aconteceu com aquele mendigo no meio da Sibéria?
Igor não se lembrava do que estava falando. Ewa tornou a contar o que aconteceu dentro do restaurante.
— Gostaria de saber o resto.
— Eu o salvei.
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Ela respirou aliviada.
— Eu o salvei de uma vida imunda, sem perspectivas, com aqueles invernos congelantes, o corpo sendo lentamente destruído pelo álcool.
Eu fi z com que sua alma pudesse partir em direção à luz, porque no momento em que entrou no restaurante para destruir nossa felicidade, entendi que seu espírito estava sendo habitado pelo Maligno.
Ewa notou que seu coração disparava. Não precisava pedir que dissesse “Eu o matei”. Estava claro.
— Sem você, eu não existo. Qualquer coisa, qualquer pessoa que tente nos separar ou destruir o pouco tempo que temos juntos neste momento de nossas vidas deve ser tratada como merece.
Ou seja, talvez estivesse querendo dizer: deve ser morta. Será que isso já tinha acontecido antes, e ela não havia notado? Bebeu, e bebeu mais, enquanto de novo Igor começava a relaxar: como não abria sua alma com ninguém, adorava cada conversa que tinham.
— Falamos a mesma língua — continuou. — Vemos o mundo da mesma maneira. Nos completamos um ao outro com a perfeição que só é permitida àqueles que colocam o amor acima de tudo. Repito: sem você, eu não existo.
“Olhe para a Superclasse que nos cerca, que se crê tão importante, com consciência social, pagando fortunas por certas peças sem valor em leilões de caridade que vão desde ‘coleta de fundos para salvar os desabrigados de Ruanda’ a um ‘jantar benefi cente pela preservação dos pandas chineses’. Para eles, os pandas e os esfomeados querem dizer a mesma coisa; sentem-se especiais, acima da média, porque estão fazendo algo útil. Já estiveram em um combate? Não: eles criam as guerras, mas não lutam nelas. Se o resultado é bom, recebem todos os cumprimentos. Se o resultado é ruim, a culpa é dos outros. Eles se amam.”
— Meu amor, gostaria de lhe perguntar outra coisa...
Neste momento, um apresentador subia ao palco e agradecia a todos que haviam comparecido ao jantar. O dinheiro arrecadado 1 1 5
seria usado para a compra de medicamentos nos campos de refugiados na África.
— Você sabe o que ele não disse? — continuou Igor, como se não tivesse escutado sua pergunta. — Que apenas 10% do montante chegará ao destino. O resto será utilizado para pagar este evento, os custos do jantar, a divulgação, as pessoas que trabalharam — melhor dizendo, aquelas que tiveram a “brilhante idéia”, tudo isso a preços exorbitantes. Usam a miséria como meio de fi carem cada vez mais ricos.
— E por que estamos aqui?
— Porque precisamos estar aqui. Faz parte do meu trabalho. Não tenho a menor intenção de salvar Ruanda ou de enviar medicamentos aos refugiados — mas estou consciente disso. O resto do público está usando seu dinheiro para limpar suas consciências e suas almas da culpa. Enquanto o genocídio ocorria no país, eu fi nanciei um pequeno exército de amigos, que impediu mais de duas mil mortes entre as tribos hútu e tútsi. Sabia disso?
— Você nunca me contou.
— Não é necessário. Você sabe como me preocupo com os outros.
O leilão começa com uma pequena mala de viagem Louis Vuit-ton. É arrematada por dez vezes o seu valor. Igor assiste a tudo aquilo impassível, enquanto ela bebe outra taça, perguntando se deve ou não fazer a tal pergunta.
Um artista plástico, ao som de Marilyn Monroe cantando, pinta uma tela enquanto dança. Os lances vão às alturas — o equivalente ao preço de um pequeno apartamento em Moscou.
Mais uma taça. Mais uma peça a ser vendida. Mais um preço absurdo.
Bebeu tanto naquela noite que teve que ser carregada até o hotel.
Antes que ele a colocasse na cama, ainda consciente, fi nalmente teve coragem:
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— E se eu lhe deixasse algum dia?
— Beba menos da próxima vez.
— Responda.
— Isso jamais poderia acontecer. Nosso casamento é perfeito.
A lucidez volta, mas entende que agora tem uma desculpa, e fi nge-se mais bêbada ainda.
— Entretanto, se isso acontecesse?
— Eu faria com que voltasse. E sei como conseguir as coisas que desejo. Mesmo que fosse necessário destruir universos inteiros.
— E se eu arranjasse outro homem?
O olhar dele não parecia aborrecido, mas benevolente.
— Mesmo que dormisse com todos os homens da Terra, meu amor é mais forte.
E desde então, o que no início parecia uma bênção, começou a transformar-se em um pesadelo. Estava casada com um monstro, um assassino. O que era aquela história de fi nanciar um exército de mercenários para salvar uma luta tribal? Quantos homens havia matado para impedir que atrapalhassem a tranqüilidade do casal? Evidente que podia culpar a guerra, os traumas, os momentos difíceis pelos quais ele havia passado; mas muitos outros viveram a mesma coisa, e não tinham saído com a idéia de que exerciam a Justiça Divina, cumpriam o Grande Plano Superior.
— Não tenho ciúmes — repetia Igor sempre que ia viajar a trabalho. — Porque você sabe o quanto te amo, e eu sei o quanto me ama. Jamais ocorrerá qualquer coisa que desestabilize nossa vida em comum.
Agora estava mais convencida que nunca: não era amor. Era algo mórbido, que cabia a ela aceitar, e viver prisioneira pelo resto da vida do sentimento de terror.
Ou tentar libertar-se o mais cedo possível, na primeira oportunidade que surgisse.
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Apareceram várias. Mas o mais insistente, o mais perseverante, era justamente o homem com quem jamais imaginaria ter uma re-lação sólida. O costureiro que deslumbrava o mundo da moda, que ia fi cando cada vez mais famoso, recebendo uma quantidade imensa de dinheiro do seu país para que o mundo pudesse entender que
“as tribos nômades” tinham valores sólidos, que iam além do terror imposto por uma minoria religiosa. O homem que tinha o mundo da moda cada vez mais aos seus pés.
A cada feira em que se encontravam, ele era capaz de largar tudo, desmarcar almoços e jantares, apenas para que pudessem fi car algum tempo juntos, em paz, trancados em um quarto de hotel, muitas vezes sem sequer fazer amor. Assistiam televisão, comiam, ela bebia (ele jamais tocava em uma gota de álcool), saíam para passear pelos parques, entravam em livrarias, conversavam com estranhos, falavam pouco do passado, nada do futuro, e muito do presente.
Resistiu o quanto pode, não estava, e jamais esteve apaixonada por ele. Mas quando lhe propôs que deixasse tudo de lado e se mudasse para Londres, aceitou na hora. Era a única saída do seu inferno particular.
Uma outra mensagem acaba de entrar em seu telefone. Não pode ser; já não se comunicavam há anos.
“Destruí outro mundo por sua causa, Katyusha.”
— Quem é?
— Não tenho a menor idéia. Não mostra o número.
Queria dizer: “Estou aterrorizada.”
— Estamos chegando. Lembre-se de que temos pouco tempo.
A limusine tem que fazer algumas manobras para chegar até a entrada do Hotel Martinez. Em ambos os lados, por detrás de barreiras de metal colocadas pela polícia, pessoas de todas as idades passam o dia inteiro esperando ver alguma celebridade de perto. Tiram fotos 1 1 8
com suas câmeras digitais, contam aos seus amigos, enviam por internet para as comunidades virtuais de que faziam parte. Sentiriam que a longa espera estava justifi cada por aquele simples e único momento de glória: conseguiram ver a atriz, o ator, o apresentador de TV!
Mesmo sendo graças a eles que a fábrica continue produzindo, não têm autorização para se aproximar; guarda-costas em lugares estratégicos exigem a todos que entram uma prova de que estão hospedados no hotel, ou têm um encontro com alguém ali. Nesta hora, é preciso tirar do bolso os cartões magnéticos que servem de chaves, ou serão barrados na frente de todo mundo. Se for o caso de uma reunião de trabalho ou de um convite para um drinque no bar, dão o nome aos seguranças e, diante do olhar de todos, aguardam a che-cagem: verdade ou mentira. O guarda-costas usa seu rádio para chamar a recepção, o tempo parece não terminar nunca, e fi nal mente são admitidos — depois da humilhação pública.
Exceto para os que entram de limusine, claro.
As duas portas do Maybach branco foram abertas — uma pelo motorista, a outra pelo porteiro do hotel. As câmeras se voltam para Ewa e começam a disparar; embora ninguém a conheça, se está hospedada no Martinez, se chega em um carro caríssimo, com toda certeza é alguém importante. Talvez a amante do homem ao seu lado
— e neste caso, se ele estivesse escondendo algum caso extraconjugal, sempre há a possibilidade de enviar as fotos para alguma revista de escândalos. Ou quem sabe a bela mulher de cabelos ruivos é uma famosíssima celebridade estrangeira, que talvez ainda não fosse conhecida na França? Mais tarde iriam descobrir seu nome nas chamadas revistas “people”, e fi cariam contentes de terem estado a quatro ou cinco metros dela.
Hamid olha para a pequena multidão espremida por detrás das barreiras de ferro. Jamais entendeu isso porque fora criado em um lugar onde essas coisas não acontecem. Certa vez perguntou a um amigo por que tamanho interesse:
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— Não pense que está sempre diante de fãs — respondeu o amigo. — Desde que o mundo é mundo, o homem acredita que a proximidade de algo inatingível e misterioso o cubra de bênçãos. Por isso as peregrinações em busca de gurus e lugares sagrados.
— Em Cannes?
— Em qualquer lugar onde uma celebridade inatingível apareça de longe; seu aceno é como aspergir partículas de ambrosia e maná dos deuses sobre as cabeças de seus adoradores.
“O resto é igual. Os gigantescos concertos musicais se parecem com as grandes concentrações religiosas. O público que fi ca do lado de fora de uma peça de teatro lotada, esperando que a Superclasse entre e saia. As multidões que vão aos estádios de futebol ver um bando de homens correndo atrás de uma bola. Ídolos. Ícones, porque se transformam em retratos semelhantes às pinturas que vemos nas igrejas, e são cultuados nos quartos de adolescentes, donas de casa, e até mesmo nos escritórios de grandes executivos de indústria, que invejam a celebridade apesar do imenso poder que possuem.
“Existe uma única diferença: nesse caso, o público é o juiz supremo, que hoje aplaude e amanhã quer ver algo terrível sobre seu ído-lo na primeira revista de escândalos. Assim podem dizer: ‘Coitado.
Ainda bem que não sou como ele.’ Hoje adoram, e amanhã apedre-jam e crucifi cam sem qualquer sentimento de culpa.”
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1:37 PM
Ao contrário de todas as moças que haviam chegado naquela ma-nhã para o trabalho, e que procuram afastar o tédio das cinco horas que separam a maquiagem e o penteado do momento do desfi le com seus iPods e telefones celulares, Jasmine tem os olhos cravados em mais um livro. Um bom livro de poesias:
Em duas partiu-se a estrada num dourado bosque E a lamentar as duas não poder trilhar
e ser um só viajante, por um tempo ali estive a olhar para uma delas até onde num declive em meio ao arvoredo eu a via se dobrar.
Segui pela outra então, bastante equivalente, mas a exercer talvez apelo mais intenso
por de relva ser coberta e de uso estar carente; ainda que por ambas passasse muita gente
e a seus leitos fosse o dano igualmente extenso E ao ver que nas manhãs sobre ambas haveria leito de folhas por passo algum enegrecido.
Oh, a primeira deixei para outro dia!
mas ciente que uma via nos leva a outra via, suspeitei não lá voltar tendo uma vez partido.
Estarei dizendo num suspiro meu
Em tempos e lugares de distância imensa
Em duas partiu-se num bosque a estrada, e eu...
Eu escolhi a que menos gente percorreu
e foi isso o que fez toda a diferença.
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Escolhera a estrada menos percorrida. Isso custara um preço alto, mas valeu a pena. As coisas chegaram no momento certo. O amor apareceu quando mais precisava dele — e continuava até hoje. Fazia seu trabalho por ele, com ele, para ele.
Melhor dizendo: para ela.
Jasmine na verdade se chama Cristina. No seu currículo consta que tinha sido descoberta por Anna Dieter em uma viagem ao Quênia, mas evitava propositadamente maiores detalhes sobre o caso, deixando no ar a possibilidade de uma infância sofrida e faminta, no meio de confl itos civis. Na realidade, apesar de sua cor negra, havia nascido na tradicional cidade de Antuérpia, na Bélgica
— fi lha de pais foragidos dos eternos confl itos entre as tribos hútus e tútsis, em Ruanda.
Aos 16 anos, em um fi nal de semana que acompanhava a mãe para ajudá-la em mais um dos intermináveis trabalhos de faxina, um homem se aproximou, pediu licença, e apresentou-se como fotógrafo.
— Sua fi lha é de uma beleza única — disse. — Gostaria que pudesse trabalhar comigo como modelo.
— O senhor está vendo esta bolsa que carrego? Aqui está material de limpeza; trabalho dia e noite para que ela possa freqüentar uma boa escola e ter um diploma no futuro. Tem apenas 16 anos.
— É a idade ideal — disse o fotógrafo, estendendo o cartão para a moça. — Se mudar de idéia, me avise.
Continuaram a caminhar, mas a mãe notou que a fi lha guardara o cartão.
— Não acredite. Esse não é o seu mundo; tudo que desejam é deitar-se com você.
Não era preciso o comentário — embora as meninas de sua classe sempre morressem de inveja, e os rapazes fi zessem de tudo para levá-la a uma festa, tinha consciência de suas origens e seus limites.
Continuou não acreditando quando a mesma coisa aconteceu pela segunda vez. Acabara de entrar em uma sorveteria quando uma 1 2 2
mulher mais velha comentou sua beleza, e disse que era fotógrafa de moda. Agradeceu, aceitou o cartão, e prometeu que telefonaria — o que não tinha o menor plano de fazer, embora aquele fosse o sonho de todas as moças de sua idade.
Como nada acontece apenas duas vezes, três meses depois ela estava olhando uma vitrine de roupas caríssimas, quando uma das pessoas saiu e veio em sua direção.
— O que você faz, menina?
— O que eu farei, deveria ser sua pergunta. Vou me formar como veterinária.
— Está no caminho errado. Você não gostaria de trabalhar para a gente?
— Não tenho tempo para vender roupas. Quando posso, trabalho para ajudar minha mãe.
— Não estou sugerindo que venda nada. Gostaria que fi zesse uns ensaios fotográfi cos com a nossa coleção.
E aqueles encontros seriam apenas boas lembranças do passado, quando estivesse casada, com fi lhos, realizada em sua profi ssão e no amor, se não fosse por um episódio que aconteceria poucos dias depois.
Estava com vários amigos em uma boate, dançando e contente por estar viva, quando um grupo de dez rapazes entrou aos berros.
Nove deles tinham bastões em que haviam incrustado lâminas de barbear, e gritavam para que todos se afastassem. O pânico imediatamente instalou-se, as pessoas corriam, Cristina não sabia exatamente o que fazer, embora seu instinto pedisse para que fi casse imóvel, e olhasse para o outro lado.
Mas ela não conseguiu mover a cabeça, viu quando o décimo rapaz se aproximou de um de seus amigos, tirou um punhal do bolso, agarrou-o por trás, e o degolou ali mesmo. Assim como chegou, o grupo saiu — enquanto o resto das pessoas gritava, corria, sentava-se no chão e chorava. Alguns poucos se aproximaram da vítima para 1 2 3
tentar socorrê-lo, mesmo sabendo que já era tarde demais. Outros simplesmente olhavam a cena em estado de choque, como Cristina.
Conhecia o rapaz assassinado, sabia quem era o assassino, qual o motivo do crime (uma briga que tinha acontecido em um bar pouco antes de terem ido para a boate), mas parecia fl utuar nas nuvens, como se tudo não passasse de um sonho, e daqui a pouco estaria acordada, suando em bicas, mas contente em saber que os pesadelos têm hora para terminar.
Não era um sonho.
Em poucos minutos estava de volta a terra, gritando para que alguém fi zesse alguma coisa, gritando para que ninguém fi zesse nada, gritando sem saber por que, e seus berros pareciam deixar as pessoas mais nervosas ainda, o lugar se transformara em um pandemônio total, a polícia acabara de entrar com armas na mão, paramédicos, detetives que alinharam todos os jovens em uma parede, começaram a interrogar imediatamente, pedir os documentos, os telefones, os endereços. Quem tinha feito aquilo? Qual a razão? Cristina não conseguia dizer nada. O cadáver, coberto por um lençol, foi retirado.
Uma enfermeira forçou-a a tomar um comprimido, explicando que não poderia dirigir de volta para casa, devia pegar um táxi ou um meio de transporte público.
No dia seguinte bem cedo, o telefone de sua casa tocou. A mãe tinha resolvido passar o dia junto com sua fi lha, que parecia estar au-sente do mundo. A polícia insistiu em falar diretamente com ela — devia apresentar-se numa delegacia antes do meio-dia e procurar certo inspetor. A mãe recusou. A polícia ameaçou: não tinham escolha.
Chegaram na hora marcada. O inspetor queria saber se conhecia o assassino.
As palavras da mãe ainda ressoavam em sua cabeça: “Não diga nada. Somos imigrantes, somos negros, eles são brancos, eles são belgas. Quando saírem da prisão, virão atrás de você.”
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— Não sei quem foi. Nunca vi antes.
Sabia que, ao dizer isso, estava perdendo por completo seu amor pela vida.
— Claro que sabe — retrucou o policial. — Não se preocupe, nada vai acontecer com você. Quase todo o grupo já está preso, precisamos apenas de testemunhas para o julgamento.
— Não sei de nada. Estava longe quando isso aconteceu. Não vi quem foi.
O inspetor balançou a cabeça, desesperado.
— Terá que repetir isso no tribunal — disse. — Sabendo que o perjúrio, ou seja, mentir diante do juiz, pode acarretar uma pena de prisão tão grande como a dos assassinos.
Meses depois, era convocada para o julgamento; os rapazes estavam todos ali, com seus advogados, e pareciam continuar se divertindo com a situação. Uma das moças presentes na festa apontou o criminoso.
Chegou a vez de Cristina. O promotor pediu que identifi casse a pessoa que tinha degolado seu amigo.
— Não sei quem foi — repetiu.
Era negra. Filha de imigrantes. Estudante com bolsa de estudos do governo. Tudo que desejava agora era recuperar a vontade de viver, pensar que tinha um futuro. Tinha passado semanas olhando o teto do quarto, sem vontade de estudar, de fazer nada. Não, aquele mundo onde tinha vivido até agora não mais lhe pertencia: aos 16 anos, aprendera da pior maneira possível que era absolutamente incapaz de lutar pela sua própria segurança — precisava sair de An-tuérpia de qualquer maneira, viajar o mundo, recuperar sua alegria e suas forças.
Os rapazes foram soltos por falta de provas — precisariam de duas testemunhas para sustentar uma acusação e conseguir que os culpados pagassem pelo crime. Na saída do tribunal, Cristina telefonou para os números nos dois cartões de visita que os fotógrafos 1 2 5
lhe haviam dado, e marcou uma hora. Dali foi direto para a loja de alta-costura, onde o proprietário viera falar com ela.
Não conseguiu nada — as vendedoras diziam que o dono tinha diversas outras espalhadas pela Europa, era ocupadíssimo, e não estavam autorizadas a dar seu telefone.
Mas os fotógrafos têm memória; sabiam quem havia telefonado, e logo marcaram encontros.
Cristina voltou para casa e comunicou a decisão à sua mãe. Não pediu, não tentou convencê-la, simplesmente disse que queria deixar a cidade para sempre.
E sua única oportunidade era aceitar o trabalho de modelo.
De novo Jasmine olha à sua volta. Ainda faltam três horas para o desfi le, e as modelos comem salada, bebem chá, conversam umas com as outras sobre aonde iriam depois. Vinham de diversos países, tinham aproximadamente a sua idade — 19 anos — e deviam estar preocupadas com apenas duas coisas: conseguir um novo contrato naquela tarde, ou descobrir um marido rico.
Conhece a rotina de cada uma: antes de dormir, usam vários cremes para limpar os poros e conservar a pele hidratada — com isso viciando desde cedo o organismo a depender de elementos externos para manter a tonicidade ideal. Acordam, massageiam o corpo com mais cremes, mais hidratantes. Tomam uma xícara de café preto, sem açúcar, acompanhada de frutas com fi bras — de modo que os alimentos que vão ingerir durante o dia passem rapidamente pelos intestinos. Fazem algum tipo de exercício antes de sair para buscar trabalho — geralmente alongam os músculos. Ainda é muito cedo para ginástica, ou seus corpos terminarão ganhando contornos masculinos. Sobem na balança três a quatro vezes por dia — a maioria viaja com uma, porque nem sempre estão hospedadas em hotéis, mas em quartos de pensão. Entram em depressão por causa de cada grama a mais que o ponteiro acusa.
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Suas mães as acompanham quando é possível, porque a maioria tem entre 17 e 18 anos. Jamais confessam que estão apaixonadas por alguém — embora quase todas estejam — já que o amor faz com que as viagens sejam mais longas e mais insuportáveis, e desperta nos namorados a estranha sensação de que estão perdendo a mulher (ou menina?) amada. Sim, pensam em dinheiro, ganham uma mé-
dia de 400 euros por dia, o que é um salário invejável para alguém que muitas vezes sequer completou a idade mínima que permita ter uma carteira de habilitação e dirigir um automóvel. Mas o sonho vai muito além: todas estão conscientes de que em breve serão ultrapas-sadas por novos rostos, novas tendências, e precisam urgentemente mostrar que o talento vai além das passarelas. Vivem pedindo às suas agências que consigam um teste, de modo que possam mostrar que são capazes de trabalhar como atrizes — o grande sonho.
As agências, claro, dizem que vão fazer isso, mas que devem esperar um pouco, estão começando suas carreiras. Na verdade, não têm nenhum contato fora do mundo da moda, ganham uma boa porcentagem, concorrem com outras agências, o mercado não é tão gigantesco assim. É melhor arrancar tudo que for possível agora, antes que o tempo passe e a modelo cruze a perigosa barreira dos 20
anos — quando sua pele estará destruída pelo excesso de cremes, seu corpo viciado em alimentação com baixo teor de calorias, a mente já sendo afetada pelos remédios para inibir o apetite, que terminam por deixar o olhar e a cabeça completamente vazios.
Ao contrário do que diz a lenda, pagam suas despesas — passagem, hotel, e as saladas de sempre. São convocadas pelos assistentes de estilistas para fazer o que chamam de casting, ou seja, a seleção que irá enfrentar a passarela ou a sessão de fotos. Neste momento, estão diante de pessoas invariavelmente mal-humoradas que usam o pouco poder que têm para extravasar as frustrações diárias, e jamais dizem uma palavra gentil ou encorajadora: “horrível” é geralmente o comentário mais escutado. Saem de um teste, vão para o próximo, 1 2 7
agarram-se a seus celulares como se fossem uma tábua de salvação, a revelação divina, o contato com o Mundo Superior em que sonham crescer, projetar-se além dos muitos rostos bonitos, e se transformar em estrelas.
Seus pais se orgulham da fi lha que começou tão bem, e se arrepen-dem de terem comentado que eram contra aquela carreira — afi nal de contas, estão ganhando dinheiro e ajudando a família. Seus namorados têm crises de ciúmes, mas se controlam, porque faz bem ao ego estar com uma profi ssional da moda. Seus agentes trabalham ao mesmo tempo com dezenas de outras moças da mesma idade e com as mesmas fantasias, e têm as respostas certas para as perguntas de sempre: “Não seria possível participar da Semana de Moda de Paris?” “Não acha que tenho carisma sufi ciente para tentar algo no cinema?” Suas amigas as invejam secreta ou abertamente.
Freqüentam todas as festas para que são chamadas. Se comportam como se fossem muito mais importantes do que são, mas no fundo sabem que se alguém conseguir atravessar a barreira de gelo artifi cial que criam em torno de si, esta pessoa será bem-vinda. Olham os homens mais velhos com uma mistura de repulsa e atração — sabem que no bolso deles está a chave para um grande salto, e ao mesmo tempo não querem ser julgadas como prostitutas de luxo. São sempre vistas com um copo de champagne nas mãos, mas isso é apenas parte da imagem que desejam passar. Sabem que o álcool tem elementos que podem afetar o peso, de modo que a bebida preferida é água mineral sem gás — o gás, embora não afete o peso, tem conseqüências imediatas sobre o contorno do estômago. Têm ideais, sonhos, dignidade, embora tudo isso vá desaparecer um dia, quando não conseguirem disfarçar mais as marcas precoces de celulite.
Fazem um pacto secreto consigo mesmas: jamais pensar no futuro. Gastam grande parte do que ganham em produtos de beleza que prometem a juventude eterna. Adoram sapatos, mas são caríssimos; mesmo assim, de vez em quando se dão ao luxo de comprar os me-1 2 8
lhores. Conseguem vestidos e roupas com amigos pela metade do preço. Vivem em pequenos apartamentos com pai, mãe, irmão que está fazendo faculdade, irmã que escolheu uma carreira de bibliotecária ou cientista. Todos imaginam que ganham uma fortuna, e vivem lhe pedindo dinheiro emprestado. Emprestam, porque querem parecer importantes, ricas, generosas, acima dos outros mortais.
Quando vão ao banco, o saldo da conta está sempre em vermelho e o limite do cartão de crédito, estourado.
Acumularam centenas de cartões de visita, encontraram homens bem-vestidos com propostas de trabalho que sabem ser falsas, ligam de vez em quando apenas para manter o contato, sabendo que talvez algum dia precisem de ajuda, mesmo que essa ajuda tenha um preço.
Todas já caíram em armadilhas. Todas já sonharam com o sucesso fácil, para logo entender que isso não existe. Todas já sofreram, aos seus 17 anos, inúmeras decepções, traições, humilhações e, mesmo assim, continuam a acreditar.
Dormem mal por causa dos comprimidos. Escutam histórias sobre anorexia — a doença mais comum no meio, uma espécie de distúrbio nervoso causado pela obsessão com o peso e com a aparência, que termina educando o organismo a rejeitar qualquer tipo de alimento. Dizem que isso não acontecerá com elas. Mas nunca notam quando os primeiros sintomas se instalam.
Saíram da infância diretamente para o mundo do luxo e do glamour, sem passar pela adolescência e pela juventude. Quando lhes perguntam quais os planos para o futuro, têm sempre a resposta na ponta da língua: “Faculdade de fi losofi a. Estou aqui apenas para poder pagar meus estudos.”
Sabem que não é verdade. Melhor dizendo, sabem que existe alguma coisa que soa estranha na frase, mas não conseguem identifi car.
Querem mesmo um diploma? Precisam desse dinheiro para pagar os estudos? Afi nal de contas, não podem se dar ao luxo de freqüentar 1 2 9
uma escola — há sempre um teste pela manhã, uma sessão de fotos à tarde, um coquetel antes que a noite desça completamente, uma festa em que precisam estar presentes para serem vistas, admiradas, desejadas.
Para as pessoas que as conhecem, vivem uma vida de contos de fada. E, durante um certo período, elas também acreditam que esse é realmente o sentido da existência — têm quase tudo que sempre invejaram nas moças que apareciam em revistas e anúncios de cos-méticos. Com um pouco de disciplina, são inclusive capazes de guardar algum dinheiro. Até que, através do exame diário e minucioso da pele, descobrem a primeira marca do tempo. A partir daí, sabem que é apenas uma questão de sorte antes que o estilista ou o fotógrafo note a mesma coisa. Seus dias estão contados.
Eu escolhi a que menos gente percorreu
e foi isso o que fez toda a diferença.
Em vez de voltar para seu livro, Jasmine levanta-se, enche uma taça de champagne (sempre é permitido, e raramente usado), pega um cachorro-quente, e vai até a janela. Fica ali em silêncio, olhando o mar. Sua história é diferente.
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1:46 PM
Acorda suado. Olha o relógio na cabeceira da cama, vê que dor-miu apenas 40 minutos. Está exausto, está assustado, em pânico.
Sempre se julgara incapaz de fazer mal a quem quer que fosse, e terminara matando duas pessoas inocentes aquela manhã. Não era a primeira vez que destruía um mundo, mas sempre tivera boas razões para isso.
Sonhou que a menina no banco da praia vinha ao seu encontro, e em vez de condená-lo, o abençoava. Ele chorava em seu colo, pedia perdão, mas ela parecia não se importar com isso, apenas acariciava o seu cabelo e pedia que se acalmasse. Olivia, a generosidade e o perdão. Agora se pergunta se o amor por Ewa merece o que está fazendo.
Prefere acreditar que está certo. Se a moça está do seu lado, se encontrou-se com ela em um plano maior e mais próximo do Divi-no, se as coisas têm sido mais fáceis do que imaginara, deve haver uma razão para o que está acontecendo.
Não foi complicado burlar a vigilância dos “amigos” de Javits.
Conhecia este tipo de gente: além de fi sicamente preparados para reagir com rapidez e precisão, estavam educados para decorar cada rosto, acompanhar todos os movimentos, intuir o perigo. Com toda certeza sabiam que ele estava armado, e por isso o mantiveram sob vigilância por muito tempo. Mas relaxaram quando entenderam que não era uma ameaça. Devem inclusive ter imaginado que fazia parte do mesmo time, que fora na frente para checar o ambiente, e ver se não havia nenhum perigo para o seu patrão.
Não tinha patrão. E era uma ameaça. No momento em que entrou e decidiu qual a próxima vítima, já não podia voltar atrás — ou perderia o respeito por si mesmo. Notou que a rampa que levava até a tenda era vigiada, mas nada mais fácil que passar pela praia. Saiu 1 3 1
dez minutos depois de haver entrado, esperando que os “amigos”
de Javits notassem. Deu uma volta, desceu pela rampa reservada aos hóspedes do Martinez (teve que mostrar o cartão magnético que serve de chave) e caminhou de novo até o local do “almoço”. Andar na areia de sapatos não era a coisa mais agradável do mundo, e Igor notou o quanto estava cansado por causa da viagem, do medo de ter planejado algo impossível de ser realizado, e da tensão que experimentou logo após haver destruído o universo e as gerações futuras da pobre vendedora de artesanato. Mas precisava ir até o fi nal.
Antes de entrar de novo na grande tenda retirou do bolso o ca-nudinho do suco de abacaxi, que guardara com todo o cuidado.
Abriu o pequeno frasco de vidro que mostrara para a vendedora de artesanato: ao contrário do que dissera, não continha gasolina, mas algo absolutamente insignifi cante: uma agulha e um pedaço de rolha. Usando uma lâmina de metal, adaptou-a para que tivesse o diâmetro do canudo.
Em seguida, voltou à festa, a esta altura já cheia de convidados, que andavam de um lado para o outro aos beijos, abraços, griti-nhos de reconhecimento, segurando coquetéis de todas as cores possíveis para que as mãos fi cassem ocupadas e assim pudessem diminuir a ansiedade, aguardando a abertura do bufê para que pudessem se alimentar — com moderação, porque havia dietas e plásticas a se rem mantidas, e jantares no fi nal do dia, em que eventualmente se riam obrigados a comer mesmo que sem fome, porque assim recomenda a etiqueta.
A maior parte dos convidados era de gente mais velha. O que signifi cava: este evento é para profi ssionais. A idade dos participantes era mais um ponto a favor do seu plano, já que quase todos estavam precisando de óculos de correção para perto. Ninguém os usava, claro, porque a “vista cansada” é um sinal de idade. Ali todos devem 1 3 2
se vestir e se comportar como pessoas na fl or da idade, de “espírito jovem”, “disposição invejável”, fi ngindo que não prestam atenção porque estão preocupados com outras coisas — quando na verdade a única razão é que não conseguem ver exatamente o que está se passando. Suas lentes de contato permitiam decifrar uma pessoa a alguns metros de distância: logo em seguida já saberiam com quem estavam falando.
Só dois convidados reparavam tudo e todos — os “amigos” de Javits. Mas, desta vez, eram eles que estavam sendo observados.
Igor colocou a pequena agulha dentro do canudo, e fi ngiu mergulhá-lo de novo dentro do copo de suco.
Um grupo de moças bonitas, perto da mesa, parecia escutar com atenção as histórias extraordinárias de um jamaicano; na verdade, cada uma devia estar fazendo planos para afastar as concorrentes e levá-lo para a cama — já que a lenda dizia que eram imbatíveis no sexo.
Ele se aproximou, retirou o canudo do copo, soprou o alfi nete em direção à sua vítima. Ficou perto apenas o sufi ciente para ver o homem levar as mãos às costas.
Em seguida, afastou-se para voltar ao hotel e tentar dormir.
O curare, originalmente usado pelos índios da América do Sul para caçar com dardos, pode ser encontrado em hospitais europeus
— já que sob condições controladas é usado para paralisar certos músculos, o que facilita o trabalho do cirurgião. Em doses mortais
— como na ponta do alfi nete que havia disparado — faz com que pássaros caiam no chão em dois minutos, javalis agonizem por um quarto de hora, e grandes mamíferos — como o homem — precisem de vinte minutos para morrer.
Ao atingir a corrente sanguínea, todas as fi bras nervosas do corpo relaxam em um primeiro momento, e depois param de funcionar — provocando asfi xia lenta. O mais curioso — ou o pior, como 1 3 3
diriam alguns — é que a vítima está absolutamente consciente do que se passa, mas não consegue nem se mover para pedir ajuda, nem impedir o processo de paralisia lenta que vai tomando conta do seu corpo.
Na selva, se alguém durante uma caçada corta o dedo no dardo ou na fl echa envenenada, os índios sabem o que fazer: respiração boca a boca e uso de um antídoto à base de ervas que sempre carregam com eles, porque tais acidentes são comuns. Nas cidades, os procedimentos normais de paramédicos são absolutamente inúteis
— porque acham que estão diante de um ataque cardíaco.
Igor não olhou para trás enquanto caminhava de volta. Sabia que neste momento um dos dois “amigos” estava procurando o culpado, enquanto o outro ligava para uma ambulância, que chegaria rápido ao local, mas sem saber direito o que estava acontecendo. Desceriam com suas roupas coloridas, seus coletes vermelhos, um desfi brilador
— aparelho que dá choques no coração — e uma unidade portátil de eletrocardiograma. No caso do curare, o coração parece ser o último músculo a ser afetado, e continua batendo mesmo depois da morte cerebral.
Não notariam nada de anormal nos batimentos cardíacos, coloca-riam soro em uma de suas veias, eventualmente considerariam que se trata de um mal passageiro por causa do calor ou de uma intoxicação alimentar, mas mesmo assim era necessário tomar todas as providências de praxe, o que podia incluir uma máscara de oxigênio. A esta altura os vinte minutos já teriam passado, e embora o corpo pudesse ainda estar vivo, o estado vegetativo era inevitável.
Igor torceu para que Javits não tivesse a sorte de ser socorrido a tempo; passaria o resto de seus dias em uma cama de hospital, em estado vegetativo.
Sim, planejou tudo. Usou seu avião particular para poder entrar na França com uma pistola que não pudesse ser identifi cada e os diversos 1 3 4
venenos que conseguira usando conexões com criminosos chechenos que atuavam em Moscou. Cada passo, cada movimento tinha sido cuidadosamente estudado e ensaiado com precisão, como costumava fazer em um encontro de negócios. Fizera uma lista de vítimas na cabeça: exceto a única que conhecia pessoalmente, todas as outras deviam ser de classes, idades, e nacionalidades diferentes. Analisara por meses a vida de assassinos em série, usando um programa de computador muito popular entre os terroristas, que não deixava pistas das pesquisas que fazia. Tomara todas as providências necessárias para escapar sem ser notado, depois de haver cumprido a sua missão.
Está suando. Não, não se trata de arrependimento — talvez Ewa mereça mesmo todo este sacrifício — mas da inutilidade de seu projeto. Evidente que a mulher que mais amava precisava saber que ele seria capaz de tudo por ela, inclusive destruir universos, mas será que valia mesmo a pena? Ou em determinados momentos é necessário aceitar o destino, deixar que as coisas caminhem normalmente, e que as pessoas voltem ao estado de razão?
Está cansado. Não está mais conseguindo refl etir direito — e quem sabe, melhor que o assassinato é o martírio. Entregar-se, e desta maneira demostrar o sacrifício maior, daquele que oferece a sua própria vida por amor. Foi isso que Jesus fez pelo mundo, é seu melhor exemplo; quando o viram derrotado, preso a uma cruz, pensaram que tudo tinha acabado ali. Saíram orgulhosos de seu gesto, vencedores, certos de que tinham acabado com um problema para sempre.
Está confuso. Seu plano é destruir universos, e não oferecer sua liberdade por amor. A moça de sobrancelhas grossas parecia uma Virgem de Pietat em seu sonho; a mãe com o fi lho nos braços, ao mesmo tempo orgulhosa e sofredora.
Vai até o banheiro, coloca a cabeça debaixo do chuveiro aberto com água gelada. Talvez seja a falta de sono, o lugar estranho, a diferença horária, ou o fato de que já esteja fazendo aquilo que planejou 1 3 5
— e jamais julgou capaz de realizar. Lembra-se da promessa feita diante das relíquias de Santa Madalena em Moscou. Mas será que está agindo certo? Precisa de um sinal.
O sacrifício. Sim, devia ter pensado nisso, mas talvez só mesmo a experiência com os dois mundos que destruiu naquela manhã tenha lhe permitido ver mais claro o que acontece. A redenção do amor através da entrega total. Seu corpo será entregue aos carrascos que julgam apenas os gestos, e se esquecem das intenções e das razões que estão por detrás de qualquer ato considerado “insano” pela sociedade. Jesus (que entende que o amor merece qualquer coisa) receberá seu espírito, e Ewa fi cará com sua alma. Saberá do que ele foi capaz: entregar-se, imolar-se diante da sociedade, tudo em nome de alguém.
Não será condenado à morte, já que a guilhotina foi abolida da França há muitas décadas, mas possivelmente passará muitos anos na prisão.
Ewa se arrependerá de seus pecados. Virá visitá-lo, trará comida, terão tempo para conversar, refl etir, amar — mesmo que seus corpos não se toquem, suas almas fi nalmente estão mais juntas que nunca. Mesmo que precisem esperar para viver na casa que pretende construir perto do lago Baikal, essa espera os purifi cará e os abençoará.
Sim, o sacrifício. Fecha o chuveiro, contempla um pouco seu rosto no espelho, e não vê a si mesmo, mas ao Cordeiro que está prestes a ser imolado de novo. Veste a mesma roupa que usava de manhã, desce até a rua, caminha até o lugar onde a pequena vendedora costumava sentar-se, e aproxima-se do primeiro policial que vê.
— Matei a moça que estava aqui.
O policial olha para o homem bem-vestido, mas com os cabelos desgrenhados e profundas olheiras.
— A que vendia artesanato?
Confi rma com a cabeça: a que vendia artesanato.
O policial não dá muita atenção à conversa. Cumprimenta com a cabeça um casal que passa, carregado de sacolas de supermercado:
— Vocês deviam arranjar um empregado!
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— Desde que você pague o salário — responde a mulher, sorrindo. — Impossível conseguir gente para trabalhar neste lugar do mundo.
— Cada semana a senhora aparece com um diamante diferente no dedo. Não penso que essa seja a verdadeira razão.
Igor olha aquilo sem entender nada. Acabara de confessar um crime.
— O senhor não entendeu direito o que disse?
— Está muito quente. Vá dormir um pouco, descanse, Cannes tem muito a oferecer aos seus visitantes.
— Mas e a moça?
— O senhor a conhecia?
— Jamais a vi antes, em toda a minha vida. Ela estava aqui hoje pela manhã. Eu...
— ...o senhor viu a ambulância chegar, uma pessoa sendo remo-vida. Entendo. E concluiu que ela foi assassinada. Não sei de onde o senhor vem, não sei se tem fi lhos, mas esteja atento às drogas. Dizem que não fazem tão mal assim, e veja o que aconteceu com a pobre fi lha dos portugueses.
E afasta-se sem esperar qualquer resposta.
Devia insistir, dar os detalhes técnicos, e assim ele pelo menos o levaria a sério? Claro, era impossível matar uma pessoa em plena luz do dia, na principal avenida de Cannes. Estava disposto a comentar o outro mundo que se apagou numa festa repleta de gente.
Mas o representante da lei, da ordem, dos bons costumes, não lhe dera ouvidos. Em que mundo estavam vivendo? Precisaria sacar a arma do bolso e atirar em todas as direções, para que fi nalmente acreditassem nele? Precisaria se comportar como um bárbaro, que age sem qualquer motivo para seus atos, até que fi nalmente lhe dessem ouvidos?
Igor acompanha com os olhos o policial, vê que ele atravessa a rua e entra em uma lanchonete. Decide fi car ali mais algum tem-1 3 7
po, esperando que mude de idéia, receba alguma informação da delegacia, e volte para conversar com ele e pedir mais informações sobre o crime.
Mas tem quase certeza de que isso não acontecerá: lembra-se do comentário sobre o diamante no dedo da mulher. Por acaso sabia de onde vinha? Claro que não: caso contrário, o policial já a teria levado para a delegacia, e a acusado de uso de material criminoso.
Para a mulher, claro, o brilhante havia aparecido magicamente em uma loja de alto luxo, depois de ter sido — como sempre diziam os vendedores — lapidado por joalheiros holandeses ou belgas. Era classifi cado pela transparência, o peso, o tipo de corte. O preço podia variar de algumas centenas de euros a algo considerado verdadei-ramente ultrajante pela maioria dos mortais.
Diamante. Brilhante, se assim desejam chamar. Como todos sabiam, um simples pedaço de carvão, trabalhado pelo calor e pelo tempo. Como não contém nada orgânico, é impossível saber quanto tempo leva para mudar sua estrutura, mas geólogos estimam algo entre 300 milhões e 1 bilhão de anos. Geralmente formado a 150
km de profundidade, e que aos poucos vai subindo para a superfície, o que permite a mineração.
Diamante, o material mais resistente e mais duro criado pela natureza, que só pode ser cortado e lapidado por outro. As partículas, os restos desta lapidação serão utilizadas na indústria, em máquinas de polir, cortar, e nada além disso. Diamante serve apenas como uma jóia, e nisso reside sua importância: é absolutamente inútil para qualquer outra coisa.
A suprema manifestação da vaidade humana.
Há poucas décadas, com um mundo que parecia se voltar para coisas práticas e para a igualdade social, estavam desaparecendo do mercado. Até que a maior companhia de mineração do mundo, com sede na África do Sul, resolveu contratar uma das melhores agências 1 3 8
de publicidade do planeta. Superclasse encontra-se com a Superclasse, pesquisas são feitas, e resultam em apenas uma única frase de três palavras:
“Diamantes são eternos.”
Pronto, o problema estava resolvido, as joalherias começaram a investir na idéia, e a indústria voltou a fl orescer. Se diamantes são eternos, nada melhor para expressar o amor, que teoricamente deve também ser eterno. Nada mais determinante para distinguir a Superclasse dos outros bilhões de habitantes que se encontravam na parte de baixo da pirâmide. A demanda pelas pedras aumentou, os preços começaram a subir. Em poucos anos o tal grupo sul-africano, que até então ditava as regras do mercado internacional, viu-se cercado de cadáveres.
Igor sabe do que está falando; quando precisou ajudar os exércitos que se digladiavam em um confl ito tribal, foi obrigado a percorrer um caminho árduo. Não se arrepende: conseguiu evitar muitas mortes, embora quase ninguém saiba disso. Fizera um comentário rápido com Ewa durante algum jantar esquecido, mas resolvera não levar o assunto adiante; quando fi zer caridade, que sua mão esquerda jamais saiba o que faz sua mão direita. Salvou muitas vidas com diamantes, embora isso jamais vá constar de sua biografi a.
Aquele policial que não se importa que um criminoso confesse seus pecados, e elogia a jóia no dedo de uma mulher que carregava sacolas com papel higiênico e produtos de limpeza, não está à altura de sua profi ssão. Não sabe que a tal indústria inútil movimenta em torno de 50 bilhões de dólares por ano, emprega um gigantesco exército de mineradores, transportadores, companhias privadas de segurança, ateliês de lapidação, seguros, vendedores no atacado e nas boutiques de luxo. Não se dá conta de que ela começa no lodo e atravessa rios de sangue, antes de chegar a uma vitrine.
Lodo onde está o trabalhador que passa a sua vida buscando pela pedra que irá enfi m lhe trazer a fortuna desejada. Encontra várias, 1 3 9
vende por uma média de 20 dólares algo que terminará custando 10
mil dólares ao consumidor. Mas afi nal de contas está contente, porque no lugar onde vive as pessoas ganham menos de 50 dólares por ano, e cinco pedras são o sufi ciente para fazer com que leve uma vida curta e feliz, já que as condições de trabalho são as piores possíveis.
As pedras saem das suas mãos através de compradores não identifi cados, e são imediatamente repassadas a exércitos irregulares na Libéria, no Congo, ou em Angola. Nestes lugares, um homem é de-signado para ir até uma pista de pouso ilegal, cercado de guardas armados até os dentes. Um avião pousa, desce um senhor de terno, acompanhado de outro geralmente em mangas de camisa, com uma pequena maleta. Se cumprimentam de maneira fria. O homem com guarda-costas entrega pequenos embrulhos; talvez por superstição, os pacotes são feitos usando-se meias usadas.
O homem em mangas de camisa tira uma lente especial do seu bolso, a coloca em seu olho esquerdo, e começa a verifi car peça por peça. Ao fi nal de uma hora e meia ele já tem uma idéia do material; então retira uma pequena balança eletrônica de precisão de sua mala, e esvazia as meias no prato. Alguns cálculos são feitos em um pedaço de papel. O material é colocado na maleta junto com a balança, o homem de terno faz um sinal para os guardas armados, e cinco ou seis deles entram no avião. Começam a descarregar grandes caixas, que são deixadas ali mesmo, ao lado da pista, enquanto o avião levanta vôo. Toda a operação não demorou mais do que metade de um dia.
As grandes caixas são abertas. Rifl es de precisão, minas antipes-soais, balas que explodem no primeiro impacto, lançando dezenas de mortíferas e pequenas bolas de metal. O armamento é entregue aos mercenários e soldados, e em breve o país se encontra de novo diante de um golpe de Estado cuja crueldade não tem limites. Tribos inteiras são assassinadas, crianças perdem seus pés e seus braços por 1 4 0
causa da munição fragmentada, mulheres são violadas. Enquanto isso, muito longe dali — geralmente em Antuérpia ou em Amsterdã, homens sérios e compenetrados estão trabalhando com carinho, dedicação e amor, cortando com todo cuidado as pedras, extasiados com a própria habilidade, hipnotizados pelas faíscas que começam a emergir em cada uma das novas faces daquele pedaço de carvão que teve sua estrutura transformada pelo tempo. Diamante cortando diamante.
Mulheres gritando em desespero de um lado, o céu coberto por nuvens de fumaça. No outro extremo, antigos e belos edifícios podem ser vistos através das salas bem iluminadas.
No ano de 2002, as Nações Unidas promulgam uma resolução, Kimberley Process, que procura traçar a origem das pedras e proibir que joalherias comprem aquelas que venham de zonas de confl ito.
Por algum tempo, os respeitáveis lapidadores europeus voltam ao monopólio sul-africano em busca de material. Mas logo são encontradas fórmulas de tornar “ofi cial” um diamante, e a resolução passa a servir apenas para que os políticos possam dizer que “estão fazendo alguma coisa para acabar com os diamantes de sangue”, como são conhecidos.
Há cinco anos, Igor trocara pedras por armas, criara um pequeno grupo destinado a encerrar um sangrento confl ito ao norte da Libé-
ria, e conseguira seu intento — só os assassinos foram mortos. As pequenas aldeias voltaram a ter paz, e os diamantes foram vendidos para joalheiros na América, sem qualquer pergunta indiscreta.
Quando a sociedade não age para acabar com o crime, o homem tem todo o direito de fazer aquilo que julga mais correto.
Algo semelhante havia acontecido há alguns minutos naquela praia. Quando os assassinatos fossem descobertos, alguém viria a público dizer a mesma coisa de sempre:
“Estamos fazendo o possível para identifi car o assassino.”
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Pois que fi zessem. De novo o destino, sempre generoso, havia mostrado o caminho a ser percorrido. O martírio não compensa.
Pensando bem, Ewa sofreria muito com sua ausência, não teria com quem conversar durante as longas noites e os intermináveis dias que estaria esperando por sua liberdade. Iria chorar sempre que o ima-ginasse com frio, olhando as paredes brancas da prisão. E quando chegasse a hora de partirem defi nitivamente para a casa do lago Baikal, talvez a idade já não os permitisse viver todas as aventuras que tinham planejado juntos.
O policial saiu da lanchonete e voltou para a calçada.
— O senhor ainda está aqui? Está perdido, e precisando de alguma ajuda?
— Nada, obrigado.
— Vá descansar, como eu sugeri. A esta hora, o sol pode ser muito perigoso.
Volta para o hotel. Abre a ducha, toma banho. Pede à telefonista que o acorde às quatro da tarde — poderia descansar o sufi ciente para recuperar a lucidez necessária, e não fazer bobagens como a que quase acabara com seus planos.
Liga para o concierge, e reserva uma mesa no terraço para quando despertar; gostaria de tomar um chá sem ser incomodado. Em seguida, fi ca olhando o teto, esperando que o sono venha.
Não importa a origem dos diamantes desde que eles brilhem.
Neste mundo, apenas o amor merece absolutamente tudo. O resto não tem a menor lógica.
Igor de novo sentiu, como já havia sentido muitas vezes em sua vida, que estava diante da sensação de liberdade total. A confusão desaparecia aos poucos, a lucidez voltava.
Havia deixado seu destino nas mãos de Jesus. Jesus decidira que devia continuar sua missão.
Dormiu sem qualquer sensação de culpa.
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1:55 PM
Gabriela resolve ir andando bem devagar até o lugar que lhe haviam indicado. Precisa colocar sua cabeça em ordem, precisa acalmar-se. Naquele momento, não apenas seus sonhos mais secretos como seus pesadelos mais tenebrosos podem se transformar em realidade.
O telefone dá um sinal. É uma mensagem de sua agente:
“PARABÉNS. ACEITE, SEJA O QUE FOR. BJS”
Olha a multidão que parece ir de um lado para o outro da Croisette, sem saber o que deseja. Ela tem um objetivo! Não é mais uma das aventureiras que chegam a Cannes e não sabem exatamente por onde começar. Tinha um currículo sério, uma bagagem profi ssional respeitável, jamais procurara vencer na vida usando apenas os seus dotes físicos: era talentosa! Por isso a haviam selecionado para o encontro com o diretor famoso, sem ajuda de ninguém, sem estar vestida de maneira provocante, sem ter tempo para ensaiar direito seu papel.
Claro que ele levaria tudo isso em consideração.
Parou para fazer um lanche — até aquele momento não tinha comido absolutamente nada — e assim que bebeu o primeiro gole de café o pensamento pareceu voltar à realidade.
Por que havia sido ela a escolhida?
Na verdade, qual seria o seu papel no fi lme?
E se, no momento em que Gibson recebesse o vídeo, descobrisse que não era exatamente aquela pessoa que estava procurando?
“Acalme-se.”
Não tem nada a perder, tenta convencer a si mesma. Mas uma voz insiste:
“Você está diante de uma oportunidade única em sua vida.”
Não existem oportunidades únicas, a vida dá sempre outra chance. E a voz insiste de novo:
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“Pode ser. Mas quanto tempo demorará? Você sabe a sua idade, não sabe?”
Sim, claro. Vinte e cinco anos, em uma carreira que as atrizes, mesmo as mais esforçadas... etc.
Não precisa repetir isso. Paga o sanduíche e o café, caminha até o cais — desta vez tentando controlar seu otimismo, policiando-se para não chamar as pessoas de aventureiras, recitando mentalmente as regras de pensamento positivo de que consegue se lembrar —
assim evita pensar no encontro.
“Se você acredita na vitória, a vitória acreditará em você.”
“Arrisque tudo em nome da oportunidade, e afaste-se de tudo que lhe ofereça um mundo de conforto.”
“Talento é um dom universal. Mas é preciso muita coragem para usá-lo; não tenha medo de ser a melhor.”
Não basta concentrar-se naquilo que dizem os grandes mestres, é preciso pedir ajuda dos céus. Começa a rezar, como faz sempre que está angustiada. Sente que precisa fazer uma promessa, e decide ir andando de Cannes até o Vaticano, se conseguir o papel.
Se o fi lme for realmente feito.
“Se tiver um grande sucesso mundial.”
Não, bastava participar de um fi lme com Gibson, porque isso chamaria a atenção de outros diretores e produtores. Se isso acontecer, fará a peregrinação prometida.
Chega no lugar indicado, olha o mar, verifi ca de novo a mensagem que recebera da agente; se ela já sabia, é porque o compromisso devia ser realmente sério. Mas o que signifi cava aceitar qualquer coisa? Dormir com o diretor? Com o ator principal?
Nunca fi zera isso antes, mas agora está disposta a tudo. E, no fundo, quem não sonha dormir com uma das grandes celebridades do cinema?
Volta a concentrar-se no mar. Podia ter passado em casa para mudar de roupa, mas é supersticiosa: se chegara até aquele cais com um 1 4 4
jeans e uma camiseta branca, devia pelo menos esperar até o fi nal do dia para qualquer mudança no fi gurino. Afrouxa o cinto, senta-se em posição de lótus, e começa a praticar ioga. Respira lentamente, e seu corpo, seu coração, seu pensamento, tudo parece voltar ao lugar.
Vê a lancha se aproximando, um homem que salta e se dirige até ela:
— Gabriela Sheery?
Ela faz sinal afi rmativo com a cabeça, o homem pede que o acompanhe. Entram na lancha, começam a navegar por um mar congestionado de iates de todos os tipos e tamanhos. Não lhe dirige qualquer palavra, como se estivesse longe dali, talvez também sonhando com o que se passa nas cabines desses pequenos navios, e como seria bom ser proprietário de um. Gabriela hesita: sua cabeça está cheia de perguntas, de dúvidas, e qualquer palavra simpática pode fazer com que o desconhecido se transforme em um aliado, ajudando-a com preciosas informações sobre a maneira de se comportar neste momento. Mas quem é ele? Será que tem alguma infl uência junto a Gibson, ou é apenas um funcionário de quinta categoria, que se encarrega de trabalhos como pegar atrizes desconhecidas e levá-las até o patrão?
Melhor fi car quieta.
Cinco minutos depois param ao lado de um gigantesco barco todo pintado de branco. Pode ler o nome escrito na proa: Santiago.
Um marinheiro desce uma escada, e a ajuda a subir a bordo. Passou pelo amplo salão central onde, pelo visto, estão preparando uma grande festa para aquela noite. Vão até a popa, onde há uma pequena piscina, duas mesas com guarda-sóis, algumas espreguiçadeiras.
Desfrutando o sol daquele início de tarde, ali estão Gibson e a Celebridade!
“Não me incomodaria de dormir com nenhum dos dois”, diz, sorrindo para si mesma. Sente-se mais confi ante, embora seu coração esteja mais acelerado que de costume.
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A Celebridade a olha de alto a baixo, e dá um sorriso simpático, tranqüilizador. Gibson aperta sua mão de maneira fi rme e decidida, levanta-se, pega uma das cadeiras que estava em torno da mesa mais próxima, e pede que se sente.
Telefona para alguém, e pede o número de um quarto de hotel.
Repete alto, olhando para ela.
Era o que imaginava. Quarto de hotel.
Desliga o telefone.
— Saindo daqui, vá até esta suíte no Hilton. Ali estão expostos os vestidos de Hamid Hussein. Esta noite você está convidada para a festa em Cap d’Antibes.
Não era o que imaginava. O papel era seu! E a festa em Cap d’Antibes, a festa em CAP D’ANTIBES!
Ele se vira para a Celebridade.
— Que lhe parece?
— Melhor escutar um pouco o que ela tem a dizer.
Gibson acena positivamente com a cabeça, fazendo sinal com a mão que sugere “Conte um pouco de você mesma”. Gabriela co-meça com o curso de teatro, os anúncios de que havia participado.
Repara que os dois já não estão mais prestando atenção, devem ter escutado esta mesma história milhares de vezes. Mesmo assim, não consegue parar, fala cada vez mais rápido, achando que não tem mais nada a dizer, a oportunidade de sua vida depende de uma palavra certa que não consegue achar. Respira fundo, procura demonstrar que está à vontade, quer ser original, graceja um pouco, mas é incapaz de sair do roteiro que sua agente ensinou a seguir em um momento como esses.
Dois minutos depois é interrompida por Gibson.
— Perfeito, isso tudo nós sabemos através do seu currículo. Por que não fala sobre você?
Alguma barreira interior se estraçalha sem qualquer aviso. Em vez de entrar em pânico, sua voz agora é mais calma e mais fi rme.
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— Sou apenas mais uma das milhões de pessoas no mundo que sempre sonharam em estar aqui neste iate, olhando o mar, conversando sobre a possibilidade de trabalhar com pelo menos um de vocês dois. E ambos estão conscientes disso. Fora isso, acho que nada que possa dizer irá mudar alguma coisa. Se sou solteira? Sim.
Como toda mulher solteira, tenho um homem apaixonado, que neste momento me espera em Chicago, e está torcendo para que tudo dê errado comigo.
Os dois riem. Ela relaxa um pouco mais.
— Quero lutar até onde for possível, embora saiba que estou quase no limite de minhas possibilidades, já que minha idade começa a ser um problema para os padrões de cinema. Sei que há muitas pessoas com tanto ou mais talento que eu. Fui escolhida, não sei direito para quê, mas resolvi aceitar seja o que for. Talvez esta seja minha última chance, e talvez o fato de estar dizendo isso agora irá diminuir meu valor, entretanto não tenho escolha. Durante a minha vida inteira imaginei um momento como esse: participar de um teste, ser escolhida, e poder trabalhar com profi ssionais de verdade. Este momento aconteceu. Se não for além deste encontro, se voltar para casa de mãos vazias, pelo menos sei que cheguei até aqui por causa da coisa que julgo possuir: integridade e perseverança.
“Sou minha melhor amiga, e minha pior inimiga. Antes de vir para cá pensava que não merecia nada disso, era incapaz de corresponder ao que esperam de mim, e com toda certeza haviam errado no momento de selecionarem a candidata. Enquanto isso, a outra parte do meu coração me dizia que estava sendo recompensada porque não desisti, fi z uma escolha, e fui até o fi nal da luta.”
Desviou os olhos dos dois — de repente sentiu uma imensa vontade de chorar, mas controlou-se porque aquilo podia ser entendido como uma chantagem emocional. A voz bonita da Celebridade in-terrompeu o silêncio.
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— Como em qualquer outra indústria, aqui também temos pessoas honestas, que valorizam o trabalho profi ssional. Foi por isso que cheguei onde estou hoje. E o mesmo aconteceu com nosso diretor.
Já passei pela mesma situação em que você está agora. Sabemos o que sente.
Sua vida inteira até aquele momento desfi lou diante de seus olhos.
Todos os anos em que procurou sem encontrar, em que bateu sem que a porta se abrisse, em que pediu sem sequer ouvir uma palavra como resposta — apenas a indiferença, como se não existisse para o mundo. Todos os “nãos” que escutara quando alguém se dera conta de que, sim, ela estava viva, e merecia pelo menos saber algo.
“Não posso chorar.”
Todas as pessoas que tinham lhe dito que perseguia um sonho inalcançável e que, se tudo agora terminasse dando certo, diriam
“Eu sabia que você tinha talento!”. Seu lábios começaram a tremer: era como se tudo aquilo estivesse saindo de repente do seu coração.
Estava contente por ter a coragem de mostrar-se humana, frágil, e aquilo fazia uma imensa diferença em sua alma. Se Gibson agora se arrependesse da escolha, poderia tomar a lancha de volta sem nenhum arrependimento; no momento da luta, mostrara coragem.
Dependia dos outros. Custara muito para aprender esta lição, mas fi nalmente entendera que dependia dos outros. Conhecia pessoas que se orgulhavam de sua independência emocional, embora na verdade fossem tão frágeis como ela, choravam escondidos, jamais pediam ajuda. Acreditavam em uma regra não escrita, afi rmando que
“o mundo é dos fortes”, em que “sobrevive apenas o mais apto”. Se assim fosse, os seres humanos jamais existiriam, porque fazem parte de uma espécie que precisa ser protegida por um longo período. Seu pai lhe contara certa vez que só atingimos uma certa capacidade de sobreviver depois dos 9 anos de idade, enquanto uma girafa leva apenas cinco horas, e uma abelha já é independente em menos de cinco minutos.
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— Em que está pensando? — pergunta a Celebridade.
— Que não preciso fi ngir que sou forte, e isso me traz um grande alívio. Durante uma parte da minha vida, tive problemas constantes de relacionamento, porque julgava que conhecia mais que todos como chegar onde desejo. Meus namorados me detestavam, e eu não entendia a razão. Certa vez, durante uma turnê de uma peça, pe-guei uma gripe que não me deixou sair do quarto, por mais que me apavorasse a idéia de outra pessoa representando meu papel. Não comia, delirava de febre, chamaram um médico — que me mandou de volta para casa. Achei que tinha perdido o emprego e o respeito dos meus colegas. Mas não aconteceu nada disso: recebia fl ores e telefonemas. Queriam saber como eu estava. De repente, aquelas pessoas que eu julgava meus adversários, que competiam pelo mesmo lugar debaixo dos refl etores, estavam se preocupando comigo!
Uma delas me enviou um cartão com o texto de um médico que foi trabalhar em um país distante:
“‘Todos nós conhecemos uma doença na África Central chamada de doença do sono. O que precisamos saber é que existe uma doen-
ça semelhante que ataca a alma — e que é muito perigosa, porque se instala sem ser percebida. Quando você notar o menor sinal de indiferença e de falta de entusiasmo com relação ao seu semelhante, fi que alerta! A única maneira de prevenir-se contra essa doença é entendendo que a alma sofre, e sofre muito, quando a obrigamos a viver superfi cialmente. A alma gosta de coisas belas e profundas.’”
Frases. A Celebridade lembrou de seu verso preferido, um poema que aprendera ainda na escola, e que o assustava à medida que via o tempo passar: “Teriam que abrir mão de tudo mais, tendo eu a pretensão de ser seu padrão único e exclusivo. ” Escolher algo era talvez a coisa mais difícil na vida de um ser humano; à medida que a atriz contava sua história, ele via seus próprios passos sendo refl etidos.
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A primeira grande oportunidade — também graças ao seu talento como ator de teatro. A vida que mudava de uma hora para a outra, a fama que crescia com mais velocidade do que sua capacidade de adaptar-se a ela, de modo que terminava aceitando convites para lugares onde não devia estar, e rejeitando encontros que teriam lhe ajudado a ir muito além em sua carreira. O dinheiro que, embora não fosse muito, lhe dava a sensação de que tudo podia. Os presentes caros, as viagens para um mundo desconhecido, os aviões privados, restaurantes de luxo, suítes de hotéis que pareciam com os quartos de reis e rainhas que costumava imaginar na infância. As primeiras críticas: respeito, elogios, palavras que tocavam sua alma e seu coração. As cartas que chegavam de todo o mundo, e que no início começara a responder uma por uma, marcar encontro com as mulheres que enviavam fotos, até descobrir que era impossível manter esse ritmo — e o agente não apenas desaconselhava, mas o amedrontava dizendo que podia estar caindo em armadilhas. Mesmo assim, até hoje tinha um especial prazer quando se encontrava com os fãs que seguiam cada passo de sua carreira, abriam páginas na internet dedicadas ao seu trabalho, distribuíam pequenos jornais contando tudo que se passava na sua vida — melhor dizendo, as coisas positivas — e o defendendo de qualquer ataque da imprensa, quando o papel escolhido não era celebrado como devia.
E os anos passando. O que antes era um milagre ou uma chance do destino pela qual prometera jamais deixar-se escravizar começava a se transformar na única razão para continuar vivendo. Até que olha um pouco adiante, e o coração aperta: isso pode acabar um dia. Surgem outros atores mais jovens, aceitando menos dinheiro em troca de mais trabalho e visibilidade. Passa a escutar sempre comentários do grande fi lme que o projetou, que todos citam, embora tenha feito mais outros 99 fi lmes e ninguém realmente se lembre direito.
As condições fi nanceiras já não são mais as mesmas — porque achou que aquilo era um trabalho que jamais terminaria, e forçou 1 5 0
o agente a manter seu preço nas alturas. Resultado: está sendo cada vez menos convidado, embora agora cobre a metade para participar de um fi lme. O desespero começa a dar seus primeiros sinais de vida em um mundo que até então era feito apenas da esperança de chegar cada vez mais longe, mais alto, mais rápido. Não pode desvalorizar-se de uma hora para outra; quando aparece um contrato qualquer, é preciso dizer que “gostou muito do papel, e resolveu fazer de qualquer maneira, mesmo que o salário não seja compatível com o que costuma ganhar”. Os produtores fi ngem que acreditam. O agente fi nge que conseguiu enganá-los, mas sabe que seu “produto” precisa continuar sendo visto em festivais como este, sempre ocupado, sempre gentil, sempre distante — como é importante para os mitos.
O assessor de imprensa sugere que seja fotografado beijando alguma atriz famosa; isso pode render alguma capa em revistas de escândalos. Já entraram em contato com a pessoa escolhida, que também está precisando de publicidade extra — agora é tudo uma questão de escolher o momento adequado durante o jantar de gala desta noite.
A cena deve parecer espontânea, precisam ter certeza de que existe algum fotógrafo por perto — embora ambos não possam, de jeito nenhum, “perceber” que estão sendo vigiados. Mais adiante, quando as fotos forem publicadas, voltarão às manchetes negando o acontecido, dizendo que aquilo é uma invasão da vida privada, advogados abrirão processos contra as revistas, e assessores de imprensa dos dois procurarão manter o assunto vivo o maior intervalo de tempo possível.
No fundo, apesar dos anos de trabalho e da fama mundial, não estava em uma situação muito diferente daquela moça à sua frente.
“Você terá que desistir de tudo, eu serei seu único e exclusivo padrão. ”
Gibson interrompe o silêncio que se instalara por trinta segundos naquele cenário perfeito: o iate, o sol, as bebidas geladas, o barulho das gaivotas, a brisa soprando e afastando o calor.
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— Em primeiro lugar, acho que gostaria de saber que papel irá fazer, já que o nome do fi lme pode mudar daqui até sua estréia. A resposta é a seguinte: você irá contracenar com ele.
E aponta para a Celebridade.
— Ou seja, um dos papéis principais. E sua próxima pergunta, lo-gicamente, deve ser: por que eu, e não uma celebridade feminina?
— Exatamente.
— Explicação: preço. No caso do roteiro que fui encarregado de dirigir, e que será o primeiro fi lme produzido por Hamid Hussein, temos um orçamento limitado. E metade dele vai para a promoção, não para o produto fi nal. Portanto, necessitamos de uma celebridade para chamar a audiência, e de alguém desconhecido, barato, mas que estará ganhando a projeção que merece. Isso não acontece apenas hoje: desde que a indústria do cinema passou a mandar no mundo, os estúdios fazem a mesma coisa para manter acesa a idéia de que fama e dinheiro são sinônimos. Eu me lembro, quando pequeno, de ver aquelas grandes mansões em Hollywood, e achar que os atores ganhavam uma fortuna.
“Mentira. Dez ou vinte celebridades no mundo inteiro podem dizer que ganham uma fortuna. O resto vive de aparências; a casa alugada pelo estúdio, os costureiros e joalheiros emprestando roupas, os carros cedidos por determinado período de tempo, de modo que possam ser associados ao luxo. O estúdio paga tudo que signifi ca glamour, e os atores ganham um salário pequeno. Esse não é o caso da pessoa que está aqui sentada conosco, mas este será seu caso.”
A Celebridade não sabe se Gibson estava sendo verdadeiro, se realmente acreditava estar ainda diante de um dos maiores atores do mundo, ou estava lhe jogando uma farpa. Mas isso não faz a menor diferença, desde que assinem o contrato, o produtor não mude de idéia na última hora, os roteiristas sejam capazes de entregar o texto na data marcada, o orçamento seja rigorosamente cumprido, e uma 1 5 2
excelente campanha de relações públicas comece a funcionar. Já tinha visto centenas de projetos serem interrompidos; isso fazia parte da vida. Mas depois de seu mais recente trabalho ter passado quase despercebido pelo público, precisava desesperadamente de um sucesso avassalador. E Gibson tinha condições de fazer isso.
— Aceito — disse a moça.
— Já conversamos tudo com sua agente. Você assinará um contrato exclusivo conosco. No primeiro fi lme, ganhará 5 mil dólares por mês, durante um ano — e terá que aparecer em festas, ser pro-movida por nosso departamento de relações públicas, viajar para onde mandarmos, dizer aquilo que queremos, não dizer o que pensa. Está claro?
Gabriela faz um sinal positivo com a cabeça. O que mais podia dizer: que 5 mil dólares é o salário de uma secretária na Europa? Era pegar ou largar, e ela não queria mostrar qualquer hesitação: claro que entendia as regras do jogo.
— Portanto — continua Gibson — irá viver como uma milioná-
ria, irá se comportar como uma grande estrela, mas não esqueça que nada disso é verdade. Se tudo correr bem, aumentamos seu salário para 10 mil dólares no próximo fi lme. Depois voltamos a conversar, já que você sempre terá um único pensamento em sua cabeça: “Um dia eu vou me vingar de tudo isso.” Sua agente, é claro, ouviu nossa proposta; ela já sabia o que esperar. Não sei se você sabia.
— Isso não tem importância. Não pretendo tampouco me vingar de nada.
Gibson fi ngiu que não escutou.
— Não a chamei aqui para falar do seu teste: ele foi ótimo, o melhor que vi em muito tempo. Nossa encarregada de selecionar o elenco pensou a mesma coisa. Chamei-a aqui para que fi que claro, desde o início, em que terreno está pisando. Muita atriz ou ator, depois do primeiro fi lme, depois de entender direito que o mundo está aos seus pés, quer mudar as regras. Mas assinaram contratos, 1 5 3
sabem que é impossível, e partem então para crises depressivas, auto-destrutivas, coisas do gênero. Hoje em dia, a nossa política mudou: explicamos claramente o que vai acontecer. Você terá que conviver com duas mulheres: se tudo der certo, uma delas será a que o mundo inteiro adora. A outra é a que sabe, a todo o momento, que não tem absolutamente nenhum poder.
“Portanto, aconselho que antes de ir ao Hilton para pegar a roupa desta noite, pense bem em todas as conseqüências. No momento em que você entrar na suíte, terá quatro cópias de um gigantesco contrato lhe esperando. Antes de assiná-lo, o mundo inteiro lhe pertence, e pode fazer de sua vida o que desejar. No momento em que colocar sua assinatura no papel, já não é dona de mais nada; controlaremos desde sua maneira de cortar o cabelo até os lugares onde deve comer — mesmo que não tenha apetite. Evidente que poderá ganhar dinheiro em publicidade, usando sua fama, e é por causa disso que as pessoas aceitam essas condições.”
Os dois homens se levantam.
— Sente-se bem em contracenar com ela?
— Dará uma excelente atriz. Mostrou emoção em um momento em que todos querem mostrar apenas efi ciência.
— Não pense que este iate é meu — diz Gibson, depois de chamar alguém para acompanhá-la até a lancha que a levaria de volta ao porto.
Ela havia entendido direito o recado.
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3:44 PM
— Vamos até o primeiro andar tomar um café — diz Ewa.
— Mas temos o desfi le daqui a uma hora. E você sabe como está o trânsito.
— Dá tempo para um café.
Sobem as escadas, dobram à direita, vão até o fi nal do corredor, o segurança colocado na porta já os conhece e apenas os cumprimenta.
Passam por algumas vitrines de jóias — diamantes, rubis, esmeraldas
— e saem de novo para o sol do terraço que se encontra no primeiro andar. Ali, a famosa marca de jóias alugava todos os anos o espaço, para receber amigos, celebridades, jornalistas. Móveis de bom gosto, um farto bufê com iguarias selecionadas constantemente abastecido, sentam-se em uma mesa protegida por um guarda-sol. Um garçom aproxima-se, pedem água mineral com gás e café expresso. O gar-
çom pergunta se desejam algo do bufê. Agradecem, dizem que já tinham almoçado.
Em menos de dois minutos ele volta com o que pediram.
— Está tudo bem?
— Está tudo ótimo.
“Está tudo péssimo”, pensa Ewa. “Exceto o café.”
Hamid sabe que algo estranho está se passando com sua mulher, mas deixaria a conversa para outro momento. Não quer pensar nisso. Não quer arriscar-se a ouvir algo como “vou deixá-lo”. Tem disciplina sufi ciente para controlar-se.
Em uma das outras mesas está um dos mais famosos estilistas do mundo, com sua máquina fotográfi ca ao lado, e um olhar distante —
como quem deseja deixar claro que não quer ser incomodado. Ninguém se aproxima, e quando alguma pessoa desavisada tenta ir até ele, a relações públicas do local, uma simpática senhora de 50 anos, pede gentilmente que o deixem em paz, precisa descansar um pouco do constante assédio de modelos, jornalistas, clientes, empresários.
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Lembra-se de quando o vira pela primeira vez, tantos anos atrás que parecia uma eternidade. Já estava em Paris há mais de onze meses, fi zera alguns amigos no meio, batera em várias portas, e graças aos contatos do sheik (que dissera não conhecer ninguém no meio, mas que tinha amigos em outras posições de poder) conseguira um emprego como desenhista em uma das mais respeitadas marcas de alta-costura. Em vez de fazer apenas os esboços baseados nos ma-teriais que tinha diante de si, costumava permanecer no ateliê até altas horas da noite, trabalhando por conta própria com as amostras do material que trouxera da sua terra. Durante este período, foi chamado duas vezes de volta: na primeira soube que seu pai tinha morrido e lhe deixara como testamento a pequena empresa familiar de compra e venda de tecidos. Antes mesmo que tivesse tempo de refl etir, soube por um emissário do sheik que alguém se encarregaria de administrar o negócio, investiriam o que fosse necessário para que prosperasse, e todos os direitos continuariam em seu nome.
Perguntou qual a razão, já que o sheik demonstrara total desco-nhecimento ou falta de interesse pelo tema.
— Uma fi rma francesa, fabricante de malas, pretende instalar-se aqui. A primeira coisa que fi zeram foi procurar nossos fornecedores de tecido, prometendo que o usariam em alguns de seus produtos de luxo. Então já temos clientes, honramos nossas tradições, e mante-mos o controle da matéria-prima.
Voltou a Paris sabendo que a alma do seu pai estava no Paraíso, e sua memória permaneceria na terra que tanto amou. Continuou trabalhando além da hora, fazendo desenhos com temas de beduí-
nos, experimentando amostras que trouxera consigo. Se a tal fi rma francesa — conhecida por sua ousadia e seu bom gosto — estava interessada no que produziam em sua terra, com toda certeza em breve a notícia chegaria na capital da moda e a demanda seria grande.
Tudo era uma questão de tempo. Mas, pelo visto, as notícias corriam rapidamente.
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Certa manhã foi chamado pelo diretor. Pela primeira vez entrava naquela espécie de templo sagrado, a sala do grande costureiro, e fi cou impressionado com a desorganização do local. Jornais em todos os cantos, papéis empilhados em cima da mesa antiga, uma quantidade imensa de fotos pessoais com celebridades, capas de revista emolduradas, amostras de material, e um vaso cheio de plumas brancas de todos os tamanhos.
— Você é ótimo no que está fazendo. Dei uma olhada nos esboços que deixa ali, expostos, para todo mundo ver. Peço que tenha mais cuidado com isso; nunca sabemos se alguém vai mudar de emprego amanhã, e carregar boas idéias para outra marca.
Hamid não gostou de saber que estava sendo espionado. Mas permaneceu quieto, enquanto o diretor continuava.
— Por que digo que é bom? Porque vem de uma terra onde as pessoas se vestem de maneira distinta, e está começando a entender como adaptar isso para o Ocidente. Existe apenas um grande problema: esse tipo de tecido nós não conseguimos encontrar aqui. Esse tipo de desenho tem conotações religiosas; a moda é sobretudo a ves-timenta da carne, embora refl ita muito o que o espírito quer dizer.
O diretor foi até uma das pilhas de revista em um canto, e como se soubesse de cor tudo que estava ali, retirou algumas edições, possivelmente compradas nos bouquinistes — os livreiros que desde a época de Napoleão espalham seus livros na margem do Sena. Abriu uma antiga Paris Match com Christian Dior na capa.
— O que fez deste homem uma lenda? Soube entender o gênero humano. Dentre as muitas revoluções que provocou na moda, uma delas merece ser destacada: logo após a Segunda Guerra Mundial, quando a Europa inteira não tinha praticamente como vestir-se por causa da escassez de tecidos, criou fi gurinos que necessitavam de enorme quantidade de material. Desta maneira, não mostrava apenas uma bela mulher vestida, mas o sonho de que tudo voltaria a ser como era; elegância, abundância, fartura. Foi atacado e difamado 1 5 7
por isso, mas sabia que estava na direção correta — que é sempre a direção contrária.
Colocou a Paris Match exatamente no lugar de onde a havia retirado, e voltou com uma outra revista.
— E aqui está Coco Chanel. Abandonada na infância por seus pais, ex-cantora de cabaré, o tipo da mulher que tem tudo para esperar apenas o pior da vida. Mas aproveitou a única chance que teve
— amantes ricos — e em pouco tempo transformava-se na mulher mais importante da costura em sua época. O que fez? Libertou as outras mulheres da escravidão dos corpetes, aqueles objetos de tortura que moldavam o tórax e impediam qualquer movimento natural.
Errou em uma coisa: escondeu seu passado, quando isso a ajudaria a transformar-se em uma lenda mais poderosa ainda — a mulher que sobreviveu apesar de tudo.
Tornou a colocar a revista no lugar, e continuou:
— Você deve perguntar: e por que não fi zeram isso antes? Nunca teremos a resposta certa. Claro que devem ter tentado — costureiros que foram completamente esquecidos pela história, porque não sou-beram refl etir em suas coleções o espírito do tempo em que viviam.
Para que o trabalho de Chanel pudesse ter a repercussão que viria a ter, não bastava o talento da criadora ou os amantes ricos: a sociedade precisava estar pronta para a grande revolução feminista que ocorreu no mesmo período.
O diretor fez uma pausa.
— É agora o momento da moda do Oriente Médio. Justamente porque as tensões e o medo que mantêm o mundo em suspense vêem da sua terra. Sei disso porque sou o diretor desta casa. Afi nal de contas, tudo começa em um encontro dos principais fornecedores de tinta e pigmentação.
“Afi nal de contas, tudo começa em um encontro dos principais fornecedores de tinta e pigmentação.” Hamid olhou de novo o gran-1 5 8
de estilista sentado sozinho, no terraço, com a máquina fotográfi ca pousada na poltrona ao seu lado. Possivelmente ele também o tinha visto entrar, e pensava agora de onde tirou tanto dinheiro para chegar a ser seu maior competidor.
O homem que agora olha o vazio e fi nge não se preocupar com nada tinha feito o possível para que não entrasse na Federação. Imaginava que o petróleo estava fi nanciando seus negócios, e isso era uma concorrência desleal. Não sabia que, oito meses depois da morte de seu pai, e dois meses depois que o diretor da marca para a qual trabalhava lhe havia oferecido um cargo melhor — embora seu nome não pudesse aparecer, já que a casa tinha outro estilista contratado para brilhar nos holofotes e nas passarelas — o sheik o mandara chamar de novo, desta vez para um encontro pessoal.
Quando chegou no que antes era sua cidade, teve difi culdades em reconhecer o lugar. Esqueletos de arranha-céus formavam uma fi la interminável na única avenida da cidade, o trânsito era insuportável, o antigo aeroporto estava próximo do caos completo, mas a idéia do governante começava a se materializar: aquele seria o lugar de paz no meio das guerras, o paraíso dos investimentos no meio dos tumultos do mercado fi nanceiro mundial, a face visível da nação que tantos se compraziam em criticar, humilhar, cercar de preconceitos. Outros países da região começaram a acreditar na cidade que se erguia no meio do deserto, e o dinheiro começou a jorrar — primeiro como uma fonte, em seguida como um rio caudaloso.
O palácio, entretanto, ainda era o mesmo, embora outro bem maior estivesse sendo construído não muito longe dali. Hamid chegou animado para o encontro, dizendo que havia recebido uma excelente proposta de trabalho, e já não precisava mais da ajuda fi -
nanceira; muito pelo contrário, iria pagar cada centavo que haviam investido nele.
— Peça demissão — disse o sheik.
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Hamid não entendeu. Sim, sabia que a empresa que seu pai lhe deixara estava dando resultados ótimos, mas tinha outros sonhos para o seu futuro. Mas não podia desafi ar por uma segunda vez o homem que lhe ajudara tanto.
— Em nosso único encontro, eu pude dizer “não” a Sua Alteza porque defendia os direitos de meu pai, que sempre foram mais importantes do que qualquer outra coisa neste mundo. Agora, po-rém, preciso dobrar-me à vontade do meu governante. Se acha que perdeu seu dinheiro investindo no meu trabalho, farei o que pede.
Voltarei para cá e cuidarei de minha herança. Se é preciso renunciar a meu sonho para honrar o código de minha tribo, farei isso.
Disse estas palavras com voz fi rme. Não podia demonstrar fra-queza diante de um homem que respeita a força do outro.
— Não pedi que voltasse para cá. Se foi promovido, é porque já sabe o que precisa para formar sua própria marca. É isso que quero.
“Que eu crie minha própria marca? Será que estou entendendo direito?”
— Vejo cada vez mais as grandes marcas de luxo se instalando aqui — continuou o sheik. — E sabem o que estão fazendo: nossas mulheres estão começando a mudar as maneiras de pensar e de vestir. Mais do que qualquer investimento estrangeiro, o que tem afetado mais nossa região é a moda. Tenho conversado com homens e mulheres que entendem do assunto; sou apenas um velho beduíno que quando viu seu primeiro carro, achou que devia ser alimentado como os camelos.
“Gostaria que os estrangeiros lessem nossos poetas, escutassem nossa música, dançassem e cantassem os temas que vêm sendo trans-mitidos de geração em geração através da memória de nossos antepassados. Mas pelo visto, ninguém está interessado nisso. Para aprenderem a respeitar nossa tradição, só existe uma única maneira: aquela em que você trabalha. Se entenderem quem somos através da maneira como nos vestimos, terminarão entendendo o resto.”
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No dia seguinte, encontrou-se com um grupo de investidores de outros países. Colocaram à sua disposição uma fantástica soma de dinheiro, e um prazo para que tudo fosse reembolsado. Perguntaram se aceitava o desafi o, se estava preparado para ele.
Hamid pediu tempo para pensar. Foi até o túmulo do seu pai, rezou a tarde inteira. Caminhou durante a noite pelo deserto, sentiu o vento que congelava seus ossos, e voltou até o hotel onde os estrangeiros estavam hospedados. “Bendito aquele que consegue dar aos seus fi lhos asas e raízes”, diz um provérbio árabe.
Precisava das raízes: existe um lugar no mundo onde nascemos, aprendemos uma língua, descobrimos como nossos antepassados su-peravam seus problemas. Em um dado momento, passamos a ser responsáveis por este lugar.
Precisava das asas. Elas nos mostram os horizontes sem fi m da imaginação, nos levam até nossos sonhos, nos conduzem a lugares distantes. São as asas que nos permitem conhecer as raízes de nossos semelhantes, e aprender com eles.
Pediu inspiração a Deus, e começou a rezar. Duas horas depois, lembrou-se de uma conversa de seu pai com um dos amigos que freqüentavam a loja de tecidos:
“— Hoje de manhã, meu fi lho me pediu dinheiro para comprar um carneiro; devo ajudá-lo?
“— Esta não é uma situação de emergência. Então, aguarde mais uma semana antes de atender o seu fi lho.
“— Mas tenho condições de ajudá-lo agora; que diferença fará esperar uma semana?
“— Uma diferença muito grande. A minha experiência mostra que as pessoas só dão valor a algo quando têm a oportunidade de duvidar se irão ou não conseguir o que desejam.”
Fez com que os emissários esperassem uma semana, e em seguida aceitou o desafi o. Precisava de gente que se ocupasse do dinheiro, 1 6 1
que o investisse da maneira que indicasse. Precisava de empregados, de preferência vindos da mesma aldeia. Precisava de mais um ano no atual emprego, para aprender o que faltava.
Só isso.
“Tudo começa em uma fábrica de tintas.”
Não é exatamente assim: tudo começa quando as companhias que procuram as tendências do mercado, conhecidas por estúdios de tendência (em francês, “cabinets de tendence”, em inglês “trend adapters”), notam que determinada camada da população se interessa mais por determinados assuntos que por outros — e isso nada tem a ver diretamente com a moda. Esta pesquisa é feita com base em entrevistas com consumidores, monitoração por amostras, mas sobretudo através da observação cuidadosa de um exército de pessoas
— geralmente entre 20 e 30 anos — que freqüenta boates, caminha pelas ruas, lê tudo que se publica em blogs na internet. Jamais olham as vitrines, mesmo que sejam de marcas respeitadas; o que está ali já atingiu o grande público, e está condenado a morrer.
O que os gênios dos estúdios de tendências querem saber exatamente é: qual será a próxima preocupação ou curiosidade do consumidor? Os jovens, por não terem dinheiro bastante para consumir os produtos de luxo, são obrigados a inventar novas roupas. Como vivem grudados no computador, dividem seus interesses com outros, e muitas vezes isso acaba tornando-se uma espécie de vírus que contagia toda a comunidade. Os jovens infl uenciam os pais na política, na leitura, na música — e não o contrário, como pensam os ingênuos.
Por outro lado, os pais infl uenciam os jovens naquilo que chamam de “o sistema de valores”. Mesmo que os adolescentes sejam rebeldes por natureza, sempre acreditam que a família está certa; podem se vestir de maneira estranha e gostar de cantores que soltam uivos e quebram guitarras — mas isso é tudo. Não têm coragem de ir mais adiante e provocar uma verdadeira revolução de costumes.
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“Já fi zeram isso no passado. Mas ainda bem que esta onda passou e retornou ao mar.”
Porque neste momento os estúdios de tendência mostram que a sociedade agora caminha para um estilo mais conservador, longe da ameaça que signifi caram as “suffragettes” (mulheres do início do sé-
culo XX, que lutaram e conseguiram o direito de voto feminino), ou os cabeludos e anti-higiênicos hippies (um grupo de loucos que julgou, um dia, que viver de paz e amor livre era possível).
Em 1960, por exemplo, um mundo envolvido em guerras sangrentas do período pós-colonial, assustado com o perigo de uma guerra atômica, e ao mesmo tempo em plena prosperidade econô-
mica, precisava desesperadamente de encontrar um pouco de alegria; da mesma maneira que Christian Dior havia entendido que a esperança da fartura estava no excesso de tecidos, os estilistas foram procurar uma combinação de cores que levantasse o estado de âni-mo geral: chegaram à conclusão de que o vermelho e o violeta eram capazes de acalmar e provocar ao mesmo tempo.
Quarenta anos mais tarde, a visão coletiva havia mudado por completo: o mundo já não estava sob ameaça de guerra, mas de graves problemas ambientais: os estilistas passaram a optar por tons ligados à natureza, como a areia do deserto, as fl orestas, a água do mar. Entre um período e outro, várias tendências surgem e somem: psicodélica, futurista, aristocrática, nostálgica.
Antes que as grandes coleções sejam defi nidas, os estúdios de tendência de mercado dão um panorama geral do estado de espírito do mundo. E atualmente, parece que o tema central das preocupações humanas — apesar das guerras, da fome na África, do terrorismo, da falta de respeito pelos direitos humanos, da arrogância de algumas nações desenvolvidas — era como iríamos salvar nossa pobre Terra das muitas ameaças que foram criadas pela sociedade.
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“Ecologia. Salvar o planeta. Que ridículo.”
Hamid sabe que não adianta lutar contra o inconsciente coletivo.
Os tons, os acessórios, os tecidos, as supostas ações benefi centes da Superclasse, os livros que estão sendo publicados, as músicas que estão tocando nas rádios, os documentários de ex-políticos, os novos fi lmes, o material usado para sapatos, os sistemas de abasteci-mento de carros, os abaixo-assinados para os congressistas, os bônus sendo vendidos pelos maiores bancos do mundo, tudo parece estar concentrado em apenas uma coisa: salvar o planeta. Fortunas estão sendo criadas da noite para o dia, grandes multinacionais estão conseguindo espaço na imprensa por causa de uma ou outra ação absolutamente irrelevante nessa área, organizações não-governamentais sem o menor escrúpulo conseguem colocar anúncios em poderosas cadeias de televisão, e recebem centenas de milhões de dólares em doações, porque todos parecem absolutamente preocupados com o destino da Terra.
Cada vez que lia nos jornais ou revistas os políticos de sempre usando o aquecimento global, ou a destruição do meio ambiente como plataforma para suas campanhas eleitorais, pensava consigo mesmo:
“Como podemos ser tão arrogantes? O planeta é, foi e será sempre mais forte que nós. Não podemos destruí-lo; se ultrapassarmos determinada fronteira, ele se encarregará de nos eliminar por completo da sua superfície, e continuará existindo. Por que não come-
çam a falar em ‘não deixar que o planeta nos destrua’?”
Porque “salvar o planeta” dá a sensação de poder, de ação, de nobreza. Enquanto “não deixar que o planeta nos destrua” é capaz de nos levar ao desespero, à impotência, à verdadeira dimensão de nossas pobres e limitadas capacidades.
Mas, enfi m, era isso que as tendências mostravam, e a moda precisa se adaptar aos desejos dos consumidores. As fábricas de tintas 1 6 4
estavam agora ocupadas com as melhores tonalidades para a pró-
xima coleção. Os fabricantes de tecido buscavam fi bras naturais, os criadores de acessórios como cintos, bolsas, óculos, relógios faziam o possível para se adaptar — ou pelo menos fi ngir se adaptar, usando normalmente folhetos explicativos, em papel reciclado, sobre como haviam feito um gigantesco esforço para preservar o meio ambiente. Tudo isso seria mostrado aos grandes estilistas na maior feira da moda, fechada ao público, com o sugestivo nome de Première Vision (Primeira Vista).
A partir daí, cada um desenharia suas coleções, usaria sua criatividade, e todos teriam a sensação de que a alta-costura era absolutamente criativa, original, diferente. Nada disso. Todos seguiam ao pé da letra o que os estúdios de tendência de mercado diziam.
Quanto mais importante a marca, menor a vontade de correr risco, já que o emprego de centenas de milhares de pessoas em todo o mundo dependia das decisões de um pequeno grupo, a Superclasse da costura, que já estava exausta de fi ngir que vendia algo diferente a cada seis meses.
Os primeiros desenhos eram feitos pelos “gênios incompreendidos”, que sonhavam em ver um dia seu nome na etiqueta de uma roupa. Trabalhavam aproximadamente de seis a oito meses, no início usando apenas lápis e papel, logo em seguida fazendo protótipos com material barato, mas que poderia ser fotografado em modelos e analisado pelos diretores. De cada cem protótipos, selecionavam em torno de vinte para o desfi le seguinte. Ajustes eram feitos: novos botões, cortes diferentes nas mangas, tipos diversos de costura.
Mais fotos — desta vez com as modelos sentadas, deitadas, andando — e mais ajustes, porque comentários do tipo “só serve para manequins na passarela” podiam destruir uma coleção inteira, e colocar a reputação da marca em jogo. Nesse processo, alguns dos 1 6 5
“gênios incompreendidos” eram sumariamente colocados na porta da rua, sem direito à indenização, já que estavam ali sempre fazendo um “estágio”. Os mais talentosos precisavam rever várias vezes suas criações, e estar absolutamente conscientes de que, por maior sucesso que o modelo tivesse, apenas o nome da marca seria mencionado.
Todos prometiam vingança um dia. Todos diziam a si mesmos que terminariam abrindo sua própria loja, e fi nalmente seriam reconhecidos. Mas todos sorriam e continuavam a trabalhar como se estivessem muito entusiasmados por terem sido escolhidos. E à medida que os modelos fi nais iam sendo selecionados, mais gente era despedida, mais gente contratada (para a próxima coleção), e por fi m os tecidos escolhidos eram usados para produzir os vestidos que seriam apresentados no desfi le.
Como se fosse a primeira vez que estivessem sendo mostrados ao público. O que era parte da lenda, claro.
Porque a essa altura, revendedores do mundo inteiro já tinham em suas mãos fotos das modelos em todas as posições possíveis, detalhes dos acessórios, tipo de textura, preço recomendado, locais onde poderiam encomendar o material. Dependendo do tamanho e da importância da marca, a “nova coleção” começava a ser produzida em larga escala, em diversos lugares do mundo.
Finalmente, chegava o grande dia — melhor dizendo, as três semanas que marcavam o início de uma nova era (que, como todos sabiam, tinha apenas seis meses de duração). Começava em Milão, passava por Paris, e terminava em Londres. Jornalistas do mundo inteiro eram convidados, fotógrafos disputavam um lugar privilegiado, tudo era mantido em grande segredo, jornais e revistas dedicavam páginas e mais páginas às novidades, as mulheres se deslumbravam, os homens olhavam com certo desdém o que julgavam ser apenas uma “moda”, e pensavam que era preciso reservar alguns milhares 1 6 6
de dólares para gastar em algo que não tinha a menor importância para eles, mas que suas esposas consideravam como o grande emble-ma da Superclasse.
Uma semana depois, aquilo que tinha sido apresentado como absoluta exclusividade já estava em lojas do mundo inteiro. Ninguém se perguntava como tinha viajado tão rápido, e sido produzido em tão pouco tempo.
Mas a lenda é mais importante do que a realidade.
Os consumidores não se davam conta de que a moda era criada por aqueles que obedeciam à moda já existente. Que a exclusividade era apenas uma mentira em que queriam acreditar. Que grande parte das coleções elogiadas na imprensa especializada pertencia aos grandes conglomerados de produtos de luxo, que sustentavam essas mesmas revistas e jornais com anúncios de página inteira.
Claro, havia exceções, e depois de alguns anos de luta Hamid Hussein era uma delas. E nisso é que reside seu poder.
Repara que Ewa checa de novo seu celular. Não costumava fazer isso. Na verdade, detestava aquele aparelho, talvez porque lembrasse uma relação passada, uma época da sua vida que jamais conseguira saber o que havia passado, porque não costumavam tocar no assunto. Olha o relógio — ainda podem terminar o café sem sobressaltos.
Olha de novo o costureiro.
Oxalá tudo começasse em uma fábrica de tintas, e terminasse no desfi le. Mas não era assim.
Tanto ele como o homem que agora contempla sozinho o horizonte se encontraram pela primeira vez na Première Vision. Hamid ainda trabalhava na grande marca que o havia contratado como desenhista, embora o sheik já começasse a movimentar um pequeno exército de 11 pessoas que colocaria em prática a idéia de ter a moda como uma maneira de mostrar seu mundo, sua religião, sua cultura.
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— Na maior parte do tempo, fi camos aqui escutando explicações de como as coisas simples podem ser apresentadas de maneira mais complicada — disse.
Passeavam pelos estandes de novos tecidos, tecnologias revolucionárias, as cores que seriam usadas nos dois anos seguintes, os acessórios cada vez mais sofi sticados — fi velas de cinto de platina, carteiras de cartão de crédito que se abriam com o apertar de um botão, pulseiras que podiam ser reguladas milimetricamente com a ajuda de um círculo encrustado de brilhantes.
O outro olhou-o de alto a baixo.
— O mundo sempre foi, e sempre continuará sendo complicado.
— Não acho. E se algum dia tiver que deixar o lugar em que estou agora, será para abrir o meu próprio negócio — que irá exatamente contra tudo isso que estamos vendo.
O costureiro riu.
— Você sabe como é este mundo. Você já ouviu falar da Federa-
ção, não é verdade? Estrangeiros só entram depois de muito, muito esforço.
A Federação Francesa da Alta-Costura era um dos clubes mais fechados do mundo. Defi nia quem participava ou não das Semanas de Moda de Paris, e ditava os padrões dos participantes. Fundada em 1868, tinha um poder gigantesco: registrou a marca “Alta-Costura”
(Haute-Couture), de modo que ninguém mais poderia usar esta expressão sem correr o risco de ser processado. Editava as dez mil có-
pias do Catálogo Ofi cial dos dois grandes eventos anuais, decidiam como seriam distribuídas as duas mil credenciais para jornalistas do mundo inteiro, selecionava os grandes compradores, escolhia os lugares de desfi le — segundo a importância do estilista.
— Sei como é — respondeu Hamid, terminando a conversa por ali. Pressentiu que aquele homem com quem conversava seria, no futuro, um grande estilista. Também entendeu que jamais seriam amigos.
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Seis meses depois, tudo estava pronto para a sua grande aventura
— pediu demissão do emprego, abriu sua primeira loja em Saint-Germain des Près, e começou a lutar como podia. Perdeu muitas batalhas. Mas entendeu uma coisa: não podia dobrar-se à tirania das fi rmas que ditavam as tendências da moda. Precisava ser original, e conseguiu; porque trazia consigo a simplicidade dos beduínos, a sabedoria do deserto, o aprendizado na marca em que trabalhou por mais de um ano, a presença de gente especializada em fi nanças, e tecidos absolutamente originais e desconhecidos.
Dois anos mais tarde, abria cinco ou seis grandes lojas no país inteiro, e tinha sido aceito pela Federação — não apenas por causa do seu talento, mas dos contatos do sheik, cujos emissários nego-ciavam com rigor a concessão de fi liais de companhias francesas em seu país.
E enquanto a água corria por debaixo da ponte, as pessoas mu-davam de opinião, os presidentes eram eleitos ou terminavam seus mandatos, a nova tecnologia ia ganhando cada vez mais adeptos, a internet passava a dominar as comunicações do planeta, a opinião pública passava a cobrar mais transparência em todos os ramos das atividades humanas, o luxo e o glamour voltavam a ocupar o espaço perdido. Seu trabalho crescia e se espalhava pelo resto do mundo: já não era apenas a moda, mas os acessórios, os móveis, os produtos de beleza, os relógios, os tecidos exclusivos.
Hamid agora era dono de um império, e todos aqueles que haviam investido em seu sonho estavam plenamente recompensados com os dividendos que pagava aos acionistas. Continuava a supervisionar pessoalmente grande parte do material que suas empresas produziam, acompanhava as sessões de fotos mais importantes, gostava de desenhar a maioria dos modelos, visitava o deserto pelo menos três vezes ao ano, rezava no lugar onde o pai havia sido enterrado, e prestava contas ao sheik. Agora tinha um novo desafi o diante de si: produzir um fi lme.
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Olha o relógio. Diz a Ewa que está na hora de ir. Ela pergunta se é tão importante assim.
— Não é tão importante. Mas eu gostaria de estar presente.
Ewa levanta-se. Hamid dá um último olhar ao costureiro solitário e famoso que contempla o Mediterrâneo, alheio a tudo.
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4:00 PM
Quando você é jovem, tem sempre o mesmo sonho: salvar o mundo. Alguns terminam esquecendo isso rápido, convencidos de que existem outras coisas importantes para fazer — como constituir família, ganhar dinheiro, viajar e aprender uma língua estrangeira.
Outros, entretanto, decidem que é possível participar de algo que faça uma diferença na sociedade e na maneira como o mundo de hoje será entregue às próximas gerações.
E começam as escolhas de profi ssão: políticos (no início sempre desejando ajudar a comunidade), ativistas sociais (que acreditam que o crime é causado pelas diferenças de classe), artistas (que acham que tudo está perdido, é preciso recomeçar do zero) e... policiais.
Savoy tinha absoluta certeza de que podia ser absolutamente útil.
Depois de ler muitos romances policiais, imaginava que se os maus estivessem atrás das grades, os bons sempre teriam um lugar ao sol.
Cursou a Academia com entusiasmo, tirou notas excelentes nos exames teóricos, adestrou seu físico para enfrentar situações de perigo, aprendeu a atirar com precisão, mesmo que jamais pretendesse matar alguém.
No primeiro ano, achou que estava aprendendo a realidade da profi ssão — seus companheiros se queixavam dos baixos salários, da incompetência da justiça, dos preconceitos relativos ao trabalho, e da ausência quase completa de ação na área em que atuavam. À
medida que o tempo foi passando, a vida e as queixas continuaram quase as mesmas, e apenas uma única coisa foi acrescentada.
Papel.
Intermináveis relatórios sobre o onde, o como e o porquê de determinada ocorrência. Um simples caso de lixo colocado em local proibido exigia que o material em questão fosse revirado em busca do culpado (sempre havia pistas, como envelopes ou tickets de avião), a área fotografada, um mapa desenhado cuidadosamente, 1 7 1
a identifi cação da pessoa, a remessa de uma intimação amigável, a segunda remessa de algo menos gentil, a entrada na justiça caso o transgressor achasse tudo aquilo uma bobagem interminável, os depoimentos, as sentenças, e os recursos feitos por advogados competentes. Enfi m, dois anos podiam se passar até que aquele processo fosse defi nitivamente arquivado, sem nenhuma conseqüência para ambos os lados.
Crimes de morte eram raríssimos. As estatísticas mais recentes mostravam que grande parte das ocorrências em Cannes era ligada a confl itos de meninos ricos em boates caras, roubos de apartamentos que eram usados apenas no verão, infrações de trânsito, denúncias de trabalho clandestino, e confl itos de casais. Claro, devia estar muito contente com isso — em um mundo cada vez mais conturbado, o Sul da França era um oásis de paz, mesmo na época em que milhares de estrangeiros invadiam o local para aproveitar a praia, ou para vender e comprar fi lmes. No ano anterior fora encarregado de quatro casos de suicídio (o que signifi cava seis ou sete quilos de papéis a serem datilografados, preenchidos, assinados), e duas — duas únicas agressões seguidas de morte.
Em apenas algumas horas, as estatísticas de um ano inteiro tinham sido preenchidas. O que estava acontecendo?
Os guarda-costas tinham desaparecido antes mesmo de dar um depoimento — e Savoy anotou mentalmente que assim que tiver tempo fará uma reprimenda por escrito aos policiais encarregados do caso. Afi nal de contas, deixaram escapar as únicas verdadeiras testemunhas do que acontecera — porque a mulher que estava na sala de espera não sabia absolutamente de nada. Em menos de dois minutos entendeu que ela estava longe no momento em que o veneno havia sido disparado, e tudo o que queria era aproveitar-se da situação para chegar perto do famoso distribuidor.
Tudo que lhe sobra, portanto, é ler mais papel.
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Está sentado na sala de espera do hospital, com dois relatórios à sua frente.
O primeiro, escrito pelo médico de plantão, e composto apenas de duas folhas com aborrecidos detalhes técnicos, analisava os danos no organismo do homem que agora se encontra na unidade de terapia intensiva do hospital: envenenamento através de perfuração da parte lombar esquerda, causado por substância desconhecida, mas que neste momento está sendo pesquisada no laboratório, usando-se a agulha que havia injetado a substância tóxica na corrente sanguí-
nea. O único agente classifi cado na lista de venenos capazes de uma reação tão violenta e rápida é a estricnina, mas esta provoca convulsões e espasmos no corpo. Pelo que os seguranças disseram, e que foi confi rmado tanto pelos paramédicos como pela mulher na sala de espera, tal sintoma não fora detectado. Pelo contrário, observou-se uma paralisia imediata dos músculos, com o tórax tombando para a frente, e a vítima podendo ser carregada do local sem chamar a atenção dos demais convidados da festa.
O outro relatório, muito mais extenso, vinha do EPCTF (Euro-pean Police Chiefs Task Force — Força Européia Especial de Chefes de Polícia) e da Europol (Polícia Européia), que acompanhava cada passo da vítima desde que pisara em solo europeu. Os agentes se revezavam, mas na hora do incidente estava sendo vigiado por um agente negro, vindo de Guadalupe, mas com aspecto jamaicano.
“E mesmo assim, a pessoa encarregada de prestar atenção não viu nada. Ou melhor: no momento em que tudo aconteceu teve sua visão parcialmente interrompida por alguém que passava com um copo de suco de abacaxi nas mãos.”
Embora a vítima não tivesse qualquer passagem pela polícia, e fosse conhecida no meio cinematográfi co como um dos mais revolucionários distribuidores de fi lmes da atualidade, seus negócios eram apenas uma fachada para algo muito mais rentável. Segundo a Europol, Javits Wild era um produtor de segunda categoria na indústria 1 7 3
cinematográfi ca até cinco anos atrás, quando foi contatado por um cartel especializado na distribuição de cocaína em território americano para transformar dinheiro sujo em dinheiro limpo.
“Começa a fi car interessante.”
Pela primeira vez, Savoy gosta do que lê. Talvez tenha em mãos um caso importante, longe da rotina dos problemas com o lixo, das brigas de casais, dos roubos de apartamento de temporada, e dos dois assassinatos por ano.
Conhece o mecanismo. Sabe do que estão falando ali naquele relatório. Os trafi cantes ganham fortunas na venda do produto, mas como não podem provar sua origem, jamais conseguem abrir contas bancárias, comprar apartamentos, carros ou jóias, fazer investimentos, transferir grandes quantias de um país para outro — porque o governo vai perguntar: “Mas como conseguiu fi car tão rico? Onde ganhou tudo isso?”.
Para superar esse obstáculo, usam um mecanismo fi nanceiro conhecido por “lavagem de dinheiro”. Ou seja, transformar lucros criminosos em ativos fi nanceiros respeitáveis, que possam fazer parte do sistema econômico, e gerar mais dinheiro ainda. Atribuíam a origem da expressão ao gângster americano Al Capone, que comprara em Chicago a cadeia de lavanderias Sanitary Cleaning Shops, e através dela depositava em bancos o dinheiro que ganhava com a venda ilegal de bebidas durante a Lei Seca nos Estados Unidos. Assim, se alguém lhe perguntasse por que era tão rico, sempre poderia dizer:
“As pessoas estão lavando mais roupa que nunca. Fico contente de ter investido no ramo.”
“Fez tudo certo. Esqueceu-se apenas de declarar o imposto de renda da sua empresa”, pensou Savoy.
A “lavagem de dinheiro” servia não apenas para drogas, mas para muitos outros objetivos: políticos que ganhavam comissão com o su-perfaturamento de obras, terroristas que precisavam fi nanciar operações em diversos lugares do mundo, companhias que gostavam 1 7 4
de esconder seus lucros e prejuízos dos acionistas, indivíduos que achavam o imposto de renda uma invenção inaceitável. Antigamente bastava abrir uma conta numerada em um paraíso fi scal, mas os governos começaram a passar uma série de leis de colaboração mútua, e o mecanismo precisou adaptar-se aos novos tempos.
Uma coisa, porém, era certa: os criminosos estavam sempre muitos passos adiante das autoridades e da fi scalização.
Como funciona agora? De maneira muito mais elegante, sofi sticada, e criativa. Tudo que precisavam era obedecer três etapas claramente defi nidas — colocação, ocultação e integração. Pegar várias laranjas, fazer uma laranjada, e servi-la sem que se suspeite da origem das frutas.
Fazer a laranjada é relativamente fácil: a partir de uma série de contas, pequenas quantias começam a passar de banco para banco, muitas vezes em sistemas elaborados por computador, de modo que possam ir aos poucos se reagrupando mais adiante. Os caminhos são tão tortuosos que é quase impossível seguir os traços dos impulsos eletrônicos. Sim, porque a partir do momento em que o dinheiro está depositado, ele deixa de ser papel e se transforma em códigos digitais compostos de dois algarismos, “0” e “1”.
Savoy pensa em sua conta bancária; independentemente do que tinha ali — e não era muito — estava nas mãos de códigos que trafe-gavam por cabos. E se resolvessem, de uma hora para outra, mudar o sistema de todos os arquivos? E se o novo programa não funcionas-se? Como provar que tinha determinada quantia de dinheiro? Como poder transformar esses “0”e “1” em algo mais concreto, como uma casa ou compras no supermercado?
Não pode fazer nada: está nas mãos do sistema. Mas decide que assim que sair do hospital passará por um caixa eletrônico e pedirá um extrato de sua conta. Anota em sua agenda: a partir de agora 1 7 5
deve fazer isso todas as semanas, e se alguma calamidade acontecer no mundo, terá sempre uma prova em papel.
Papel. De novo a mesma palavra. Por que está delirando desta maneira? Sim, lavagem de dinheiro.
Volta a recapitular o que sabe a respeito da lavagem de dinheiro.
A última etapa é a mais fácil de todas; o dinheiro é reagrupado em uma conta respeitável, como a de uma companhia de investimentos imobiliários, ou em um fundo de aplicações no mercado fi nanceiro.
Se o governo vier com a mesma pergunta, “De onde veio esse dinheiro?”, é fácil explicar: de pequenos investidores que acreditam no que vendemos. A partir daí pode ser investido em mais ações, mais terrenos, aviões, objetos de luxo, casas com piscina, cartões de crédito sem limite de gastos. Os sócios dessas empresas são os mesmos que haviam fi nanciado originalmente as compras de droga, de armas, de tudo que fosse negócio ilícito. Mas o dinheiro está limpo; afi nal de contas, qualquer sociedade pode ganhar milhões de dólares especulando na bolsa de valores ou em terrenos.
Restava o primeiro passo, o mais difícil de todos: “Quem são esses pequenos investidores?”
É aí que entrava a criatividade criminosa. Os “laranjas” eram pessoas que circulavam por cassinos com dinheiro emprestado de um
“amigo”, em países onde a vigilância das apostas era muito menor que a corrupção: ninguém está proibido de ganhar fortunas. Nesse caso, havia combinações prévias com os proprietários, que fi cavam com uma porcentagem do dinheiro que trafegava pelas mesas.
Mas o jogador — uma pessoa de baixa renda — tinha como justifi car ao seu banqueiro, no dia seguinte, a enorme quantia de-positada.
Sorte.
E no dia seguinte, transferia a quase totalidade do dinheiro para o
“amigo” que o emprestou, fi cando com uma pequena porcentagem.
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Antigamente, a maneira preferida era a compra de restaurantes
— que podiam cobrar uma fortuna por seus pratos, e depositar o dinheiro sem levantar suspeitas. Mesmo que alguém passasse e visse as mesas completamente vazias, era impossível provar que ninguém tinha comido ali durante o dia inteiro. Mas agora, com o crescimen-to da indústria do lazer, surgia um processo muito mais criativo.
O sempre imponderável, arbitrário, incompreensível mercado de arte!
Pessoas de classe média e pouca renda levavam a leilão peças que valiam muito, e que alegavam terem sido encontradas no sótão da antiga casa dos avós. Eram arrematadas por muito dinheiro, e re-vendidas na semana seguinte para galerias especializadas, por dez ou vinte vezes o preço original. O “laranja” fi cava contente, agradecia aos deuses pela generosidade do destino, depositava o dinheiro em sua conta, e resolvia fazer um investimento em algum país estrangeiro, com o cuidado de deixar um pouco — a sua porcentagem — no banco original. Os deuses, neste caso, eram os verdadeiros donos das pinturas, que tornavam a arrematá-las nas galerias e colocá-las de novo no mercado através de outras mãos.
Mas havia produtos mais caros, como teatro, produção e distribuição de fi lmes. Era aí que as mãos invisíveis da lavagem de dinheiro faziam realmente sua festa.
Savoy continua lendo o resumo da vida do homem que agora se encontra na unidade de terapia intensiva, preenchendo alguns claros com sua própria imaginação.
Ator que sonhava em se transformar numa grande celebridade.
Não conseguiu emprego — embora até hoje cuidasse de sua aparência como se fosse uma grande estrela — mas terminou se familiari-zando com a indústria. Já na meia-idade, consegue levantar algum dinheiro com investidores e faz um ou dois fi lmes, que são um re-tumbante fracasso, porque não conseguiram a distribuição adequa-1 7 7
da. Mesmo assim, seu nome aparece nos créditos e nas revistas especializadas como alguém que tentou fazer algo que saísse do esquema dos grandes estúdios.
Está em um momento de desespero, não sabe o que fazer de sua vida, ninguém lhe dá uma terceira chance, cansou de implorar dinheiro para gente que só está interessada em investir em sucessos garantidos. Um belo dia é procurado por um grupo de pessoas, algumas gentis, outras que não dão absolutamente uma palavra.
Fazem uma proposta: ele começará a distribuir fi lmes, e sua primeira compra precisa ser algo real, com chance de atingir um grande público. Os principais estúdios farão grandes ofertas pelo produto, mas ele não precisa se preocupar — qualquer quantia proposta será coberta por seus novos amigos. O fi lme vai ser exibido em muitos cinemas, rendendo uma fortuna. Javits ganhará a coisa que mais precisa: reputação. Ninguém, a esta altura, estará investigando a vida daquele produtor frustrado. Dois ou três fi lmes mais tarde, porém, as autoridades vão começar a perguntar de onde vem o dinheiro
— mas aí o primeiro passo já está oculto pelo prazo de fi scalização, que venceu em cinco anos.
Javits inicia uma carreira vitoriosa. Os primeiros fi lmes de sua distribuidora dão lucro, os exibidores passam a acreditar no seu talento para selecionar o que há de melhor no mercado, diretores e produtores querem trabalhar com ele. Para manter as aparências, aceita sempre dois ou três projetos por semestre — o resto são fi lmes com orçamentos gigantescos, estrelas de primeira grandeza, profi ssionais insuspeitos e competentes, com muito dinheiro para a promoção, fi nanciados por grupos estabelecidos em paraísos fi scais. O resultado da bilheteria é depositado em um fundo de investimentos normal, acima de qualquer suspeita, que tem “parte das ações” do fi lme.
Pronto. O dinheiro sujo se transformou em uma obra de arte maravilhosa, que evidentemente não deu o lucro que se esperava, mas 1 7 8
que foi capaz de render milhões de dólares — e agora está sendo aplicado por um dos sócios do empreendimento.
Em determinado momento, um fi scal mais atento — ou uma de-lação de um estúdio — chama a atenção para um fato muito simples: como é que tantos produtores desconhecidos no mercado estão empregando as grandes celebridades, os diretores mais talentosos, gastando fortunas em publicidade, e usando apenas UM distribuidor para os seus fi lmes? A resposta é simples: os grandes estúdios só estão interessados em suas próprias produções, e Javits é o herói, o homem que está rompendo com a ditadura de corporações gigantescas, o novo mito, o David que luta contra o Golias representado por um sistema injusto.
Um fi scal mais consciencioso resolve ir adiante, apesar de todas as explicações razoáveis. As investigações começam, de maneira si-gilosa. As companhias que investiram nos grandes recordes de bilheteria são sempre sociedades anônimas, com sede nas Bahamas, no Panamá, em Cingapura. Neste momento, alguém infi ltrado no departamento de impostos (sempre tem alguém infi ltrado) avisa que aquele canal já não interessa mais — precisam encontrar um novo distribuidor para lavar dinheiro.
Javits se desespera — acostumou-se a viver como milionário e ser cortejado como um semideus. Viaja para Cannes, um excelente disfarce para conversar com seus “fi nanciadores” sem ser molestado, fazer ajustes, trocar pessoalmente os códigos das contas numeradas.
Não sabe que está sendo seguido há tempos, que sua prisão agora é apenas uma questão técnica, decidida por pessoas engravatadas em escritórios mal iluminados: deixarão que continue um pouco mais, a fi m de conseguir mais provas, ou terminam a história ali mesmo?
Os “fi nanciadores”, porém, não gostam de correr riscos inúteis.
O homem pode ser preso a qualquer momento, fazer um acordo com a justiça, e terminar entregando detalhes do sistema montado 1 7 9
— o que inclui, além de nomes, fotos com determinadas pessoas, que foram tiradas sem que ele soubesse.
Só existe uma maneira de resolver o problema: acabando com ele.
Tudo estava claro, e Savoy sabe exatamente como as coisas se desenrolaram. Agora precisa fazer o de sempre.
Papel.
Preencher um relatório, entregar para a Europol, e deixar que os burocratas ali se encarreguem de encontrar os assassinos, pois trata-se de um caso que pode promover muita gente e ressuscitar carreiras estagnadas. As investigações precisam dar resultado, e nenhum de seus superiores acredita que um detetive de uma cidade do interior da França será capaz de grandes descobertas (sim, porque Cannes, apesar de todo o brilho e glamour, não passava de uma pequena cidade do interior durante os outros 350 dias do ano).
Suspeita que a culpa seja de um dos guarda-costas que estava na mesa, já que a proximidade era importante para que o veneno pudesse ser aplicado. Mas não irá mencionar isso. Usará mais papel para fazer uma sindicância entre os empregados que estavam na festa, não encontrará nenhuma testemunha, e dará o caso como encerrado em sua jurisdição — depois de passar alguns dias trocando faxes e mensagens com departamentos acima dos seus.
Voltará para os dois homicídios anuais, as brigas, as multas, quando esteve tão perto de algo que poderia ter uma repercussão internacional. O seu sonho de adolescente — melhorar o mundo, contribuir para uma sociedade mais segura e mais justa, ser promovido, lutar por um posto junto ao Ministério da Justiça, dar à mulher e aos fi lhos uma vida mais confortável, colaborar para a mudança de percepção dos agentes da ordem mostrando que ainda existem policiais honestos, termina sempre na mesma palavra.
Papel.
1 8 0
4:16 PM
O terraço ao lado do bar do Martinez está completamente lotado, e Igor se orgulha de sua própria capacidade de planejar as coisas; mesmo sem jamais ter visitado aquela cidade, havia reservado a mesa
— imaginando que a situação seria exatamente a que está vendo agora. Pede chá com torradas, acende um cigarro, olha à sua volta, e ali está o mesmo cenário de qualquer lugar chique do mundo: mulheres com botox ou anorexia, senhoras cobertas de jóias tomando sorvete, homens com moças mais jovens, casais com ar entediado, moças sorridentes em torno de refrigerantes sem caloria, fi ngindo estar concentradas nas conversas das outras, mas com os olhos per-correndo de um extremo a outro do local, na esperança de encontrarem alguém interessante.
Uma única exceção: três homens e duas mulheres espalharam vá-
rios papéis entre latas de cerveja, discutem em voz baixa, e a toda hora conferem os números em uma calculadora. Parecem ser os únicos que estão realmente envolvidos em algum projeto, mas não é verdade; todo mundo está ali trabalhando, em busca de uma coisa só.
Vi-si-bi-li-da-de.
Que, se tudo corresse bem, terminaria em Fama. Que, se tudo corresse bem, terminaria em Poder. A palavra mágica, que transformava o ser humano em um semideus, um ícone inatingível, difícil de conversar, acostumado a sempre ter seus desejos satisfeitos, capaz de provocar inveja e ciúme quando passa em sua limusine de vidro fumê ou em seu caríssimo carro esportivo, que já não tem mais montanhas difíceis de escalar ou conquistas impossíveis.
Os freqüentadores daquele terraço já ultrapassaram alguma barreira — não estão do lado de fora com câmeras fotográfi cas, atrás de cercas de metal, esperando que alguém saia pela porta principal e encha seus universos de raios de luz. Sim, já chegaram ao lobby do hotel, e agora faltam apenas o poder e a fama, não tendo a menor 1 8 1
importância em que área. Os homens sabem que a idade não é um problema, tudo que necessitam são os contatos certos. As moças que vigiam o terraço com a mesma habilidade de seguranças experimentados sentem que se aproxima uma idade perigosa, em que todas as possibilidades de conseguir alguma coisa através da beleza vão desaparecer de repente. As senhoras mais velhas gostariam de ser reconhecidas e respeitadas por seus dons e sua inteligência, mas os diamantes ofuscam qualquer possibilidade de descoberta desses talentos. Os homens com suas mulheres esperam que alguém passe, lhes dê boa-tarde, todos voltem o olhar para eles e pensem: “É conhecido.” Ou talvez seja famoso, quem sabe?
A síndrome de celebridade — capaz de destruir carreiras, casamentos, valores cristãos, e que cegava os sábios e os ignorantes. Grandes cientistas que foram agraciados com um prêmio importante, e por causa disso abandonaram suas pesquisas que podiam melhorar a humanidade, e passaram a viver de conferências que alimentam o ego e a conta bancária. O índio da selva amazônica, subitamente adotado por um cantor famoso, e que resolve achar que está sendo explorado em sua miséria. O promotor de justiça que trabalha duro defendendo os direitos de pessoas menos favorecidas decide concorrer a um cargo público, ganha a eleição, e passa a se julgar imune a tudo — até que um dia é descoberto em um motel com um profi ssional do sexo, pago pelo contribuinte.
A síndrome de celebridade. Quando as pessoas esquecem quem são, e passam a acreditar no que os outros dizem sobre elas. A Superclasse, o sonho de todos, o mundo sem sombras nem trevas, a palavra “sim” sempre servindo de resposta a qualquer pedido.
Igor é poderoso. Lutara sua vida inteira para chegar onde está. Para que isso acontecesse, fora obrigado a participar de jantares aborrecidos, conferências que não terminavam nunca, encontros com pes soas que detestava, sorrisos quando estava com vontade de dizer algum insulto, insultos quando na verdade tinha pena dos pobres coitados 1 8 2
que “serviam de exemplo”. Trabalhara dia e noite, fi nais de semana, enterrado em encontros com seus advogados, administradores, funcionários, assessores de imprensa. Partira do zero logo após a queda do regime comunista e conseguira chegar ao topo. Mais do que isso, conseguira sobreviver a todas as tempestades políticas e econômicas que assolaram seu país nas duas primeiras décadas do novo regime.
Tudo isso por que razão? Porque temia a Deus e sabia que o caminho que percorrera em sua vida era uma bênção que precisava ser respeitada, ou perderia tudo.
Claro, em alguns momentos algo lhe dizia que estava deixando de lado a parte mais importante dessa bênção: Ewa. Mas por muitos anos teve certeza de que ela o compreendia, aceitava que aquilo era apenas uma fase, em breve poderiam desfrutar de todo o tempo que precisavam juntos. Faziam grandes planos — viagens, passeios de barco, uma casa isolada no meio de uma montanha, com a lareira acesa, e a certeza de que podiam fi car ali o tempo que fosse necessário, sem que precisassem pensar em dinheiro, dívidas, obrigações. Encontrariam uma escola para as muitas crianças que planejavam ter juntos, passariam tardes inteiras caminhando pelas fl orestas ao redor, iriam jantar em pequenos mas acolhedores restaurantes locais.
Teriam tempo de cuidar do jardim, ler, ir ao cinema, fazer as coisas simples com que todo mundo sonha, as únicas coisas capazes de preencher a vida de qualquer indivíduo sobre a face da terra. Quando chegava em casa, cheio de papéis que espalhava sobre a cama, ele pedia um pouco mais de paciência. Quando o telefone celular tocava justamente no dia em que tinham escolhido jantar juntos, e era obrigado a interromper a conversa e passar um longo tempo discutindo com a pessoa no outro lado da linha, pedia de novo mais um pouco de paciência. Sabia que Ewa fazia o possível e o impossí-
vel para que ele se sentisse confortável, embora de vez em quando se queixasse, com muito carinho, que precisavam aproveitar a vida 1 8 3
enquanto eram ainda jovens, que tinham dinheiro sufi ciente para as próximas cinco gerações.
Igor confi rmava: podia parar naquele mesmo dia. Ewa sorria, acariciava seu rosto — e neste momento ele se lembrava de que tinha esquecido alguma coisa importante, ia até o telefone ou o computador, conversava ou enviava uma mensagem.
Um homem de aproximadamente 40 anos levanta-se, olha o bar em torno de si, e brande um jornal acima de sua cabeça gritando:
— “Violência e horror em Tóquio”, diz a manchete. “Sete pessoas assassinadas em uma loja de jogos eletrônicos.”
Todos olham em sua direção.
— Violência! Eles não sabem do que estão falando! A violência está aqui!
Igor sente um arrepio na espinha.
— Se um desequilibrado mata a facadas alguns inocentes, o mundo inteiro se horroriza. Mas quem dá atenção à violência intelectual que está acontecendo em Cannes? Nosso festival está sendo assassinado em nome de uma ditadura. Já não se trata de escolher o melhor fi lme, mas de cometer crimes contra a humanidade, obrigando as pessoas a comprar produtos que não desejam, esquecer a arte para pensar na moda, deixar de ir a projeções de fi lmes para participar de almoços e jantares. Isso é uma brutalidade! Eu estou aqui...
— Cala a boca — diz alguém. — Ninguém está interessado em saber por que você está aqui.
— ...Eu estou aqui para denunciar a escravidão dos desejos do homem! Que passou a fazer suas escolhas não por causa da inteligência, mas por causa da propaganda, da mentira! Por que se preocupam com as facadas em Tóquio, e não dão importância às facadas que toda uma geração de cineastas está sendo obrigada a suportar?
O homem faz uma pausa, esperando a ovação consagradora, mas nem sequer escuta o silêncio da refl exão; todos já voltaram a conver-1 8 4
sar em suas mesas, indiferentes ao que terminara de ser dito. Torna a sentar-se, aparentando um ar de suprema dignidade, mas com o coração aos pedaços por causa do ridículo que acabou de passar.
“Vi-si-bi-li-da-de”, pensa Igor. “O problema é que ninguém prestou atenção.”
É sua vez de olhar em torno. Ewa está no mesmo hotel, e depois de muitos anos de casamento, é capaz de jurar que está tomando um café ou um chá não muito longe do lugar onde está sentado. Recebeu seus recados, e com toda certeza o procura agora, sabendo que ele também deve estar próximo.
Não consegue vê-la. E não consegue parar de pensar nela, sua obsessão. Lembra-se de certa noite, voltando tarde para casa em sua limusine importada, com seu chofer que ao mesmo tempo servia de segurança — tinham lutado juntos na guerra do Afeganistão, mas a sorte sorrira de maneira diferente para ambos —, ele pediu que parasse no Hotel Kempinski. Deixou o celular e os papéis no carro, subiu até o bar que se encontrava no terraço do edifício. Ao contrário daquele terraço de Cannes, o lugar estava quase vazio, pronto para fechar. Distribuiu uma generosa gorjeta entre os empregados, fez com que continuassem trabalhando para ele apenas uma hora a mais.
E foi aí que entendeu tudo. Não, não era verdade que iria parar no próximo mês, nem no próximo ano, nem na próxima década.
Jamais teriam a tal casa de campo e a família que sonhavam. Perguntava a si mesmo, naquela noite, por que isso era impossível, e tinha apenas uma resposta.
O caminho do poder não tem volta. Seria eternamente escravo daquilo que escolheu, e se fosse realmente realizar o seu sonho de largar tudo, entraria em uma depressão profunda.
Por que agia assim? Por causa dos pesadelos de noite, quando se lembrava das trincheiras, do rapaz jovem, assustado, cumprindo um dever que não tinha escolhido, sendo obrigado a matar? Porque 1 8 5
não conseguia esquecer sua primeira vítima, um camponês que entrara na linha de tiro quando o Exército Vermelho lutava contra os guerrilheiros afegãos? Por causa das muitas pessoas que primeiro o olharam com descrédito, e depois o humilharam, quando decidira que o futuro do mundo estava na telefonia celular, e começara a buscar investidores para o seu negócio? Porque no início teve que se associar com as sombras, os mafi osos russos que desejavam lavar o dinheiro ganho com prostituição?
Havia conseguido devolver os empréstimos sem ter que corromper a si mesmo e sem fi car devendo favores. Havia conseguido negociar com as sombras, e mesmo assim manter sua luz. Entendia que a guerra era coisa de um passado remoto, e jamais retornaria a um campo de batalha. Conseguira encontrar a mulher da sua vida. Trabalhava naquilo que sempre quis. Era rico — era riquíssimo, e mesmo que amanhã o sistema comunista voltasse, a maior parte de sua fortuna pessoal estava fora do país. Tinha boas ligações com todos os partidos políticos. Conhecera as grandes personalidades mundiais.
Terminara por organizar uma Fundação que se ocupava de órfãos de soldados mortos durante a invasão soviética no Afeganistão.
Mas ali, naquele café perto da Praça Vermelha, sendo o único cliente, e sabendo que tinha poder bastante para pagar os garçons de modo a passar a noite inteira ali, entendeu.
Entendeu porque estava vendo o mesmo se passar com sua mulher, agora sempre viajando, também chegando tarde quando se encontrava em Moscou, indo direto para a tela do computador assim que entrava. Entendeu que, ao contrário do que todos pensavam, o poder total signifi ca a escravidão mais absoluta. Quando se chega ali, não se quer mais sair. Sempre existe uma nova montanha a conquistar. Sempre existe um concorrente a ser convencido ou superado.
Junto com mais 2.000 pessoas, fazia parte do clube mais exclusivo do mundo, que se reúne apenas uma vez por ano em Davos, na Suíça, no Fórum Econômico Mundial; todas elas eram mais do que 1 8 6
ricas, milionárias, poderosas. E todas elas trabalhavam de manhã até a noite, sempre querendo ir mais longe, jamais mudando de assunto — aquisições, bolsas de valores, tendências de mercado, dinheiro, dinheiro. Trabalhar não porque se está precisando de algo, mas porque se julgavam necessários — precisavam alimentar milhares de famílias, acreditavam ter uma gigantesca responsabilidade com seus governos e com seus associados. Trabalhavam pensando honesta-mente que estavam ajudando o mundo — o que podia ser verdade, mas que exigia como pagamento suas próprias vidas.
No dia seguinte, fez algo que sempre detestou na vida: procurou um psiquiatra — alguma coisa devia estar errada. Descobriu então que sofria de uma doença bastante comum entre aqueles que atingiram algo que parecia além dos limites de uma pessoa comum. Era um trabalhador compulsivo, ou um workaholic, expressão mundialmente conhecida para designar este tipo de desordem. Trabalhadores compulsivos, disse o psiquiatra, quando não estão envolvidos com os desafi os e problemas de sua companhia, correm o risco de entrar em depressão profunda.
— Uma desordem cujo motivo ainda não conhecemos, mas que está associada à insegurança, a certos medos infantis, a uma realidade que se quer negar. É algo tão sério como a escravidão às drogas, por exemplo.
“Mas ao contrário destas, que diminuem a produtividade, o trabalhador compulsivo termina dando uma grande contribuição à riqueza do seu país. Portanto, não interessa a ninguém fazer com que seja curado.”
— E quais são as conseqüências?
— Você deve saber, porque foi por isso que me procurou. A mais grave é a destruição da vida familiar. No Japão, um dos países onde a doença se manifesta com mais freqüência e às vezes com conseqüências fatais, existem vários processos para controlar a obsessão.
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Nos dois anos mais recentes de sua vida, não se lembrava de escutar alguém com o mesmo respeito que dedicava ao homem de óculos e bigode na sua frente.
— Então, posso acreditar que existe uma saída para esse distúrbio.
— Quando um trabalhador compulsivo chega a procurar ajuda de um psiquiatra, é porque ele está preparado para a cura. De cada mil casos, apenas um se dá conta de que está precisando de ajuda.
— Estou precisando de ajuda. Tenho dinheiro sufi ciente...
— Essas são palavras típicas de um trabalhador compulsivo. Sim, sei que tem dinheiro sufi ciente, como todos eles. Sei quem é você; já vi suas fotos em festas de caridade, em congressos, e em uma audiência privada com o nosso presidente — ele também com os mesmos sintomas dessa desordem, diga-se de passagem.
“Dinheiro não basta. Quero saber se tem vontade sufi ciente.”
Igor pensou em Ewa, na casa nas montanhas, na família que gostaria de constituir, nas centenas de milhões de dólares que tinha no banco. Pensou em seu prestígio e em seu poder naquele momento, e como seria difícil abandonar tudo isso.
— Não estou sugerindo que abandone o que está fazendo — comentou o psiquiatra, como se pudesse ler seu pensamento. — Estou sugerindo que use o trabalho como uma fonte de alegria, e não como uma obsessão compulsiva.
— Sim, estou preparado.
— E qual o seu grande motivo para isso? Afi nal de contas, todos os trabalhadores compulsivos acham que estão satisfeitos com o que fazem; nenhum de seus amigos que se encontram na mesma posição reconhecerá que precisa de ajuda.
Igor abaixou os olhos.
— Qual seu grande motivo? Quer que eu responda para você?
Pois farei isso. Como disse antes, sua família está sendo destruída.
— Pior que isso. Minha mulher apresenta os mesmos sintomas.
Começou a distanciar-se de mim desde uma viagem que fi zemos ao 1 8 8
lago Baikal. E se existe alguém no mundo por quem eu seria capaz de matar de novo...
Igor se deu conta que havia falado além do necessário. Mas o psiquiatra parecia impassível do outro lado da mesa.
— Se existe alguém no mundo por quem eu seria capaz de fazer tudo, absolutamente tudo, é minha mulher.
O psiquiatra chamou sua assistente e pediu que marcasse uma série de consultas. Não perguntou se seu cliente estaria disponível naquelas datas: fazia parte do tratamento deixar claro que todo e qualquer compromisso, por mais importante que fosse, podia ser adiado.
— Posso lhe fazer mais uma pergunta?
O médico assentiu com a cabeça.
— O fato de eu ser levado a trabalhar mais do que devo não pode ser também considerado como algo nobre? Um respeito profundo às oportunidades que Deus me concedeu nesta vida? Uma maneira de corrigir a sociedade, mesmo que às vezes eu seja obrigado a usar métodos um pouco...
Silêncio.
— ...um pouco o quê?
— Nada.
Igor saiu do consultório confuso e aliviado ao mesmo tempo. Talvez o médico não compreendesse a essência de tudo que fazia: a vida tem sempre uma razão, todas as pessoas estão unidas, e muitas vezes é necessário extirpar os tumores malignos para que o corpo continue sadio. As pessoas se trancam em seus mundos egoístas, fazem planos que não incluem o próximo, acreditam que o planeta é apenas mais um terreno a ser explorado, seguem seus instintos e desejos sem dedicar absolutamente nada ao bem-estar coletivo.
Não estava destruindo sua família, estava simplesmente querendo deixar um mundo melhor para os fi lhos que sonhava ter. Um mundo sem drogas, sem guerras, sem o escandaloso mercado de sexo, onde 1 8 9
o amor fosse a grande força que unisse todos os casais, povos, nações e religiões. Ewa entenderia — mesmo que no momento o casamento estivesse passando por uma crise, com toda certeza enviada pelo espírito Maligno.
No dia seguinte, pediu à sua secretária que desmarcasse as consultas — tinha outras coisas importantes para fazer. Estava organizando um grande plano para purifi car o mundo, precisava de ajuda, e já havia entrado em contato com um grupo que se dispunha a trabalhar para ele.
Dois meses depois, era abandonado pela mulher que amava. Por causa do Mal que a havia possuído. Porque não pudera explicar exatamente as razões de certas atitudes suas.
Voltou à realidade de Cannes com o ruído bruto do arrastar de uma cadeira. Diante dele está uma mulher com um copo de uísque em uma das mãos, e um cigarro na outra. Bem vestida, mas visivelmente embriagada.
— Posso sentar aqui? Todas as mesas estão ocupadas.
— A senhora acaba de sentar-se.
— Não é possível — disse a mulher, como se o conhecesse de longa data. — Simplesmente não é possível. A polícia me expulsou do hospital. E o homem que me fez viajar quase um dia inteiro, alugar um quarto de hotel pagando o dobro do preço, está agora entre a vida e a morte. Droga!
Alguém da polícia?
Ou será que nada do que ela dizia tinha relação com o que estava pensando?
— O que o senhor — ou melhor, você está fazendo aqui? Não está com calor? Não acha melhor tirar o paletó, ou quer impressionar os outros com sua elegância?
Como sempre, as pessoas escolhiam seu próprio destino. Aquela mulher estava fazendo isso.
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— Sempre uso paletó, independente da temperatura. A senhora é atriz?
A mulher deu uma risada, próxima da histeria.
— Digamos que eu seja uma atriz. Sim, sou uma atriz. Estou representando o papel de alguém que tem um sonho ainda adolescente, cresce com ele, luta sete miseráveis anos de sua vida para transformá-lo em realidade, hipoteca sua casa, trabalha sem parar...
— Sei o que é isso.
— Não, não sabe. É pensar dia e noite em uma única coisa. Ir a lugares onde não foi convidada. Apertar mãos de gente que despreza. Telefonar uma, duas, dez vezes até conseguir alguma atenção de gente que não tem nem a metade do seu valor ou da sua coragem, mas está em uma determinada posição e resolve vingar-se de todas as frustrações em sua vida familiar, tornando impossível a vida dos outros.
— ...e não encontrar outro prazer em sua vida a não ser perseguir aquilo que se deseja. Não ter diversões. Achar tudo o mais aborrecido. Terminar por destruir sua família.
A mulher olhou espantada para ele. Sua bebedeira parecia ter desaparecido.
— Quem é o senhor? Como é capaz de ler o que estou pensando?
— Estava pensando justamente nisso quando a senhora entrou. E
pode continuar me chamando de você. Penso que posso ajudá-la.
— Ninguém pode me ajudar. A única pessoa que podia está neste momento na unidade de terapia intensiva do hospital. E pelo pouco que pude saber antes que a polícia chegasse, não deve sair com vida.
MEU DEUS!
Ela termina de beber o que resta no copo. Igor faz um sinal para o garçom. Ele o ignora, e vai servir outra mesa.
— Sempre em minha vida preferi um elogio cínico a uma crítica construtiva. Por favor, diga que sou bela, que sou capaz.
Igor ri.
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— Como sabe que não posso ajudá-la?
— O senhor por acaso é distribuidor de fi lmes? Tem contatos no mundo inteiro, salas de cinema espalhadas pelo planeta?
Talvez ambos estivessem pensando na mesma pessoa. Se fosse o caso, e se aquilo fosse uma armadilha, era tarde demais para fugir
— devia estar sendo vigiado, e assim que se levantasse seria preso.
Sente o estômago contrair-se, mas por que está com medo? Horas antes tentara, sem êxito, entregar-se à polícia. Havia escolhido o martírio, oferecera sua liberdade como sacrifício, mas tal oferta fora rejeitada por Deus.
E agora, os Céus haviam reconsiderado sua decisão.
Precisa imaginar como se defender da cena que virá a seguir: o suspeito é identifi cado, uma mulher fi ngindo-se de bêbada vai na frente, confi rma os dados. Depois, com toda discrição, um homem entra e pede que o acompanhe apenas para uma pequena conversa.
Tal homem é um policial. Igor tem neste momento uma espécie de caneta no paletó, que não desperta nenhuma suspeita — mas a Beretta o denunciará. Vê sua vida inteira desfi lar diante dos olhos.
Pode usar a pistola e reagir? O policial que deve aparecer assim que a identifi cação for confi rmada deve ter outros amigos observan-do a cena, e será morto antes que possa fazer alguma coisa. Por outro lado, não veio aqui para matar inocentes de maneira bárbara e indis-criminada; tem uma missão, e suas vítimas — ou mártires do amor, como prefere chamar — estão servindo a um propósito maior.
— Não sou distribuidor — responde. — Não tenho absolutamente nada que ver com o mundo do cinema, da moda, do glamour.
Trabalho em telecomunicações.
— Ótimo — disse a mulher. — Deve ter dinheiro. Deve ter tido alguns sonhos na vida, e sabe do que estou falando.
Estava perdendo o rumo da conversa. Torna a fazer um sinal para outro garçom. Desta vez foi atendido, e pede duas xícaras de chá.
— O senhor não vê que estou tomando uísque?
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— Sim. Mas como disse antes, acho que posso ajudá-la. E para isso precisa estar sóbria, consciente de cada passo.
Maureen mudou de tom. Desde que aquele estranho conseguira adivinhar o que estava pensando, parecia que estava sendo devolvida à realidade. Sim, quem sabe poderia mesmo ajudá-la? Há muitos anos ninguém tentava seduzi-la dizendo uma das mais famosas frases do meio: “Conheço gente infl uente.” Não há nada melhor para mudar o estado de espírito de uma mulher do que saber que é desejada por al-guém do sexo oposto. Teve um impulso de levantar-se e ir ao banheiro, olhar-se no espelho, retocar sua maquiagem. Mas isso podia esperar; antes precisava enviar claros sinais de que estava interessada.
Sim, precisava de companhia, estava aberta às surpresas do destino — quando Deus fecha uma porta, abre uma janela. Por que, de todas as mesas naquele terraço, esta era a única ocupada por uma pessoa? Havia um sentido, um sinal oculto: os dois precisavam se encontrar.
Riu de si mesma. No seu atual estado de desespero qualquer coisa era um sinal, uma saída, uma boa notícia.
— Em primeiro lugar, preciso saber do que está precisando — diz o homem.
— Ajuda. Tenho um fi lme pronto, com um elenco de primeira linha, que deveria ser distribuído por uma das poucas pessoas que ainda acreditam no talento de alguém que não pertence ao sistema.
Ia encontrar-me com um distribuidor amanhã. Eu estava no mesmo almoço com ele, e de repente notei que passou mal.
Igor começa a relaxar. Talvez fosse verdade, já que no mundo real as coisas são mais absurdas que nos livros de fi cção.
— Saí, descobri o hospital para onde tinha sido levado, e fui até lá. No caminho, imaginei o que iria dizer: que era sua amiga, e está-
vamos prontos para trabalhar juntos. Jamais havia conversado com ele, mas tenho certeza de que alguém em uma situação crítica sente-se confortável quando uma pessoa, qualquer pessoa está por perto.
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“Ou seja, ia aproveitar a tragédia alheia em benefício próprio”, pensou Igor.
São todos iguais. Absolutamente iguais.
— E o que é exatamente um elenco de primeira linha?
— Gostaria de ir ao banheiro, se me der licença.
Igor levanta-se educadamente, coloca os óculos escuros, e enquanto ela se afasta procura aparentar toda a calma possível. Toma seu chá, enquanto os olhos percorrem incessantemente o terraço.
Em princípio não há nenhuma ameaça à vista, mas de qualquer maneira é melhor abandonar o local assim que a mulher voltar.
Maureen fi ca impressionada com o cavalheirismo do seu novo amigo. Há anos não via alguém comportar-se segundo as normas de etiqueta que seus pais e mães haviam ensinado. Ao sair do terraço, notou que moças jovens, bonitas, que estavam na mesa ao lado e com toda certeza tinham escutado parte da conversa, olhavam para ele e sorriam. Viu que ele colocara seus óculos escuros — talvez para poder observar as mulheres sem que elas se dessem conta. Talvez, quando voltasse, estariam tomando chá juntos.
Mas a vida é assim: não há nada do que se queixar, e nada que esperar.
Olha seu rosto no espelho; como é que um homem poderia se interessar por ela? Devia voltar realmente à realidade, como ele sugerira. Tem os olhos cansados, vazios, estava exausta como todos aqueles que participavam de um festival de cinema, e mesmo assim sabia que precisava continuar lutando. Cannes ainda não havia terminado, Javits poderia recuperar-se ou outra pessoa apareceria representando sua distribuidora. Tinha entradas para assistir aos fi lmes dos outros, convite para a festa da revista Gala — uma das mais importantes da França —, e podia aproveitar o tempo disponível para ver o que os produtores e diretores independentes na Europa fazem para mostrar seu trabalho. Precisava se recompor rapidamente.
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Quanto ao homem bonito, melhor deixar suas ilusões de lado.
Volta para a mesa convencida de que irá encontrar as duas moças sentadas ali, mas o homem está só. De novo levanta-se educadamente, e puxa sua cadeira para que possa sentar-se.
— Não me apresentei. Meu nome é Maureen.
— Igor. Muito prazer. Mas interrompemos a conversa quando você dizia que tinha o elenco ideal.
Agora podia aproveitar para dar uma alfi netada nas moças da mesa ao lado. Falou um pouco mais alto do que de costume.
— Aqui em Cannes, ou em qualquer outro festival, todos os anos atrizes são descobertas, e todos os anos grandes atrizes perdem um grande papel — porque a indústria acha que se tornaram velhas demais, embora ainda sejam jovens e cheias de entusiasmo. Entre aquelas que são descobertas (“tomara que as meninas ao lado estejam escutando”), algumas tomam o caminho do puro glamour. Embora ganhem pouco nos fi lmes que fazem — todos os diretores sabem disso, e se aproveitam ao máximo — investem na coisa mais errada do mundo.
— Ou seja...
— A própria beleza. Tornam-se celebridades, começam a cobrar para aparecer em festas, são chamadas para anúncios, para recomendar produtos. Terminam conhecendo os homens mais poderosos e os atores mais desejados do planeta. Ganham uma quantidade imensa de dinheiro — porque são jovens, bonitas, e seus agentes conseguem uma quantidade enorme de contratos.
“Na verdade, se deixam guiar por seus agentes, que estimulam a vaidade a todo momento. Elas são o sonho das donas de casa, das adolescentes, dos jovens artistas que não têm dinheiro sequer para viajar até a cidade vizinha, mas que a consideram uma amiga, alguém que está vivendo o que eles gostariam de experimentar. Continuam fazendo fi lmes, ganham um pouco melhor, mesmo que os assessores de imprensa divulguem salários altíssimos; tudo uma mentira, que 1 9 5
nem mesmo os jornalistas acreditam, mas que publicam porque sabem que o público gosta de notícia, não de informação.”
— E qual é a diferença? — pergunta um Igor cada vez mais relaxado, mas sem deixar de prestar atenção à sua volta.
— Vamos dizer que você comprou um computador folheado a ouro em um leilão em Dubai, e resolveu escrever um novo livro usando essa maravilha tecnológica. O jornalista, quando souber disso, vai telefonar perguntando: “E como é seu computador de ouro?”
Isso é notícia. A verdadeira informação, que é o que está escrevendo, não tem a menor importância.
“Será que Ewa está recebendo notícias em vez de informação?”
Jamais havia pensado nisso.
— Continue.
— O tempo passa. Melhor dizendo, sete ou oito anos passam. De repente, já não há mais convites para fi lmes. Os eventos e o dinheiro de anúncios começam a escassear. O agente parece mais ocupado que antes — não atende com a mesma freqüência seus telefonemas.
A grande estrela se revolta: como é que podem fazer isso com ela, o grande símbolo sexual, o maior ícone do glamour? Primeiro culpa o agente, decide mudar a pessoa que a representa, e — para sua surpresa — nota que ele não se incomoda. Pelo contrário, pede para que assine um papel dizendo que tudo correu bem durante o tempo que es tiveram juntos, deseja-lhe boa sorte, e ponto fi nal da relação.
Maureen correu os olhos pelo local, para ver se encontrava algum exemplo do que estava dizendo. Gente que ainda é famosa, mas que desapareceu por completo do cenário, e hoje em dia procura desesperadamente uma nova oportunidade. Ainda se comportam como grandes divas, ainda têm o mesmo ar distante de antes, mas o coração está cheio de amargura, a pele repleta de botox e de cicatrizes invisíveis de operações plásticas. Viu botox, viu operações plásticas, mas nenhuma das celebridades da década passada estava ali. Talvez já não tivessem nem mais dinheiro para vir a um festival como aquele; neste momen-1 9 6
to animavam bailes do interior, festas de produtos como chocolate e cerveja, sempre se comportando como se ainda fossem quem tinham sido certa vez, mas sabendo que já não eram mais.
— Você falou de dois tipos de pessoas.
— Sim. O segundo grupo de atrizes encontra exatamente o mesmo problema. Com uma única diferença — de novo sua voz aumentou de tom, porque agora as moças da mesa ao lado estavam visivelmente interessadas nela, alguém que conhecia o meio. — Elas sabem que a beleza é passageira. Não são tão vistas em anúncios ou capas de revista, porque estão ocupadas em aprimorar sua arte.
Continuam estudando, fazendo contatos que serão importantes para o futuro, emprestando seu nome e sua aparência a determinados produtos — não na condição de modelo, mas de sócias. Ganham menos, claro. Mas ganham pelo resto da vida.
“E aí aparece alguém como eu. Que tenho um roteiro bom, dinheiro sufi ciente, e gostaria que estivessem em meu fi lme. Elas aceitam; têm talento o bastante para desempenhar os papéis que lhes são confi ados, e inteligência sufi ciente para saber que mesmo que o fi lme termine não sendo um grande sucesso, pelo menos continuam nas telas, podem ser vistas trabalhando em suas idades maduras, e quem sabe um novo produtor se interesse de novo pelo que fazem.”
Igor também nota que as moças estão escutando a conversa.
— Talvez fosse bom caminharmos um pouco — diz em voz baixa.
— Aqui neste bar não temos privacidade. Conheço um lugar mais isolado, onde podemos assistir ao pôr-do-sol, é um lindo espetáculo.
Aquilo era tudo que precisava ouvir no momento; um convite para passear! Para ver o pôr-do-sol, embora ainda faltasse muito tempo para que o sol se escondesse! Nada de vulgaridades como “vamos subir para o meu quarto porque preciso trocar de sapatos”, e “não vai acontecer nada, prometo”, mas lá em cima começa com a mesma conversa de que “eu tenho meus contatos, e sei exatamente de quem precisa”, enquanto tenta agarrá-la para dar o primeiro beijo.
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Honestamente, não se incomodaria de ser beijada por aquela pessoa que parecia encantadora, e sobre a qual não sabia absolutamente nada. Mas a elegância com que a seduzia era algo que não esqueceria tão cedo.
Levantam-se, na saída ele pede que debitem a conta no seu quarto (então, estava hospedado no Martinez!). Ao chegar na Croisette, ele sugere que virem à esquerda.
— É mais isolado. Além do mais, imagino que a vista seja mais bonita, porque o sol desce sobre as colinas que fi carão diante dos nossos olhos.
— Igor, quem é você?
— Boa pergunta — respondeu. — Gostaria também de ter a resposta.
Mais um ponto positivo. Nada de começar a dizer como era rico, inteligente, capaz disso e daquilo. Estava apenas interessado em ver o entardecer com ela, e isso bastava. Caminharam em silêncio até o fi nal da praia, cruzando com todo tipo de gente — de casais mais velhos que pareciam viver em um mundo diferente, completamente alheios ao festival, a jovens que passavam de patins, as roupas justas, os iPods nos ouvidos. De vendedores ambulantes com suas mercadorias expostas em um tapete cujas pontas estavam atadas a cordas, de modo que ao primeiro sinal de fi scais podiam transformar as “vitrines” em bolsas, até um local que parecia ter sido isolado pela polícia, por alguma razão desconhecida — afi nal era simplesmente um banco de praça. Nota que seu companheiro olha duas ou três vezes para trás, como se estivesse esperando alguém. Mas não se trata disso — talvez tenha visto um conhecido.
Entram por um píer onde barcos cobrem um pouco a vista da praia, mas terminam encontrando um lugar isolado. Sentam-se em um banco confortável, com apoio para as costas. Estão completamente sozinhos — ninguém vinha até aquele lugar, porque ali não acontece absolutamente nada. Está de ótimo humor.
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— Que paisagem! Você sabe por que Deus resolveu descansar no sétimo dia?
Igor não entende a pergunta, mas ela continua:
— Porque no sexto dia, antes que acabasse o trabalho e deixasse um mundo perfeito para o ser humano, um grupo de produtores de Hollywood se aproximou Dele: “Não se preocupe com o resto! Nós nos encarregaremos do pôr-do-sol em tecnicolor, efeitos especiais para as tempestades, iluminação perfeita, equipamento sonoro que sempre que o homem escutar as ondas vai achar que é o mar de verdade!”
Ri sozinha. O homem ao seu lado adotara um ar mais grave.
— Você me perguntou quem sou eu — disse o homem.
— Não sei quem é, mas sei que conhece bem a cidade. E posso acrescentar; foi uma bênção encontrá-lo. Em um único dia vivi a esperança, o desespero, a solidão e o prazer de ter uma companhia.
Muitas emoções juntas.
Ele retira um objeto do bolso — parece um tubo de madeira de menos de quinze centímetros.
— O mundo é perigoso — diz. — Não importa onde você esteja, sempre está arriscado a ser abordado por pessoas que não têm o menor escrúpulo em assaltar, destruir, matar. E ninguém, absolutamente ninguém, aprende a se defender. Estamos todos nas mãos dos mais poderosos.
— Tem razão. Portanto, imagino que este tubo de madeira seja uma maneira de não deixar que façam mal a você.
Ele torce a parte superior do objeto. Com a delicadeza de um mestre que retoca sua obra-prima, retira a tampa: na verdade, não era exatamente uma tampa, mas uma espécie de cabeça no que parecia ser um imenso prego. Os raios do sol refl etem na parte metálica.
— Não deixariam você passar em um aeroporto carregando isso na valise — ela riu.
— Claro que não.
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Maureen entendeu que estava com um homem cortês, bonito, provavelmente rico, mas também capaz de protegê-la de todos os perigos. Embora não soubesse as estatísticas sobre crimes na cidade, era bom sempre pensar em tudo.
Para isso os homens foram feitos: para pensar em tudo.
— Evidente que, para poder usar isso, tenho que saber exatamente onde é necessário aplicar o golpe. Mesmo sendo feita de aço, é frágil por causa do seu diâmetro, e pequena demais para causar grandes danos. Se não houver precisão, não haverá resultado.
Ele levantou a lâmina e colocou-a na altura da orelha de Maureen.
Sua primeira reação foi de medo, logo substituído por excitação.
— Aqui seria um dos lugares ideais, por exemplo. Um pouco acima, e os ossos do crânio protegem o golpe. Um pouco abaixo, a veia do pescoço é atingida, a pessoa pode morrer, mas terá condições de reagir. Se estiver armada, atiraria de volta, já que estou muito perto.
A lâmina desceu lentamente pelo seu corpo. Passou sobre o seu seio, e Maureen entendeu: estava querendo impressioná-la e excitá-
la ao mesmo tempo.
— Não pensei que alguém que trabalha em telecomunicações soubesse tanto a respeito. Mas pelo que me diz, matar com isso é bastante complicado.
Foi a maneira de dizer: “Estou interessada no que está me contando. Você me interessa. Daqui a pouco, por favor, segure minha mão, para que possamos ver o pôr-do-sol juntos.”
A lâmina deslizou pelo seio, mas não parou ali. Mesmo assim, aquilo foi sufi ciente para deixá-la excitada. Finalmente, parou um pouco debaixo do seu braço.
— Aqui eu estou na altura do seu coração. Em torno dele, existem costelas, uma proteção natural. Se estivéssemos brigando, seria impossível causar qualquer dano com esta pequena arma. Ela com certeza se chocaria com uma das costelas, e mesmo que penetrasse no corpo, o sangramento provocado pela ferida não seria sufi ciente 2 0 0
para diminuir a força do inimigo. Talvez nem mesmo sentisse o golpe. Mas neste lugar aqui, ela é mortal.
O que estava ela fazendo ali, em um lugar isolado, com um completo estranho, que conversava sobre um assunto tão macabro? Neste momento sentiu uma espécie de choque elétrico que a deixou paralisada — a mão havia empurrado a lâmina para dentro do seu corpo. Pensou que estava sendo asfi xiada, queria respirar, mas logo perdeu a consciência.
Igor a abraçou — como fi zera com a primeira vítima. Mas desta vez ajeitou seu corpo para que permanecesse sentada. Seu único gesto foi colocar luvas, pegar sua cabeça, e fazer com que pendesse para a frente.
Se alguém resolvesse se aventurar naquele canto da praia, tudo o que veria era uma mulher dormindo — exausta de tanto procurar produtores e distribuidores no festival de cinema.
O rapaz atrás de um velho armazém, que adorava ir ali e fi car escondido, esperando que os casais se aproximassem e trocassem carí-
cias para masturbar-se, agora telefonava como um louco para a polí-
cia. Tinha assistido a tudo. No início achou que era uma brincadeira, mas o homem havia enfi ado realmente o estilete na mulher! Devia esperar que os guardas chegassem, antes de sair do seu esconderijo; aquele louco podia voltar a qualquer momento e estaria perdido.
Igor joga a lâmina no mar, e toma o caminho rumo ao hotel.
Desta vez, sua própria vítima escolhera a morte. Estava sozinho no terraço do hotel, pensando no que fazer, voltando ao passado, quando ela se aproximara. Não imaginou que aceitaria caminhar com um desconhecido até um canto isolado — mas ela seguira adiante. Teve todas as possibilidades de fugir quando começou a mostrar-lhe os diferentes locais onde um pequeno objeto pode causar um ferimento mortal, e ela continuou ali.
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Um carro de polícia passa por ele, usando a pista interditada para o público. Resolve acompanhá-lo com os olhos e, para sua surpresa, nota que entra justamente no píer que ninguém, absolutamente ninguém parece freqüentar durante o período do festival. Estivera ali de manhã, e permanecia tão deserto como o havia encontrado na parte da tarde, embora fosse o melhor lugar para assistir a um pôr-do-sol.
Poucos segundos depois, uma ambulância passa com sua sirene ensurdecedora e suas luzes acesas. Toma o mesmo rumo.
Continua a andar, certo de uma coisa: alguém assistira ao crime.
Como iria descrevê-lo? Um homem de cabelos grisalhos, com calça jeans, camisa branca, e paletó negro. A possível testemunha faria um retrato falado, e isso iria não apenas demorar algum tempo, como acabaria levando à conclusão que existiam dezenas, talvez milhares de pessoas parecidas com ele.
Desde que se apresentara ao guarda e fora mandado de volta ao hotel, estava certo de que ninguém seria mais capaz de interromper sua missão. As dúvidas eram outras: será que Ewa merecia os sacrifícios que estava oferecendo ao universo? Chegara à cidade convencido que sim. Agora, algo diferente começava a cruzar sua alma: o espírito da pequena vendedora de artesanato, com suas sobrancelhas grossas e seu sorriso inocente.
“Somos todos parte da centelha divina”, ela parecia dizer. “Temos todos um propósito na criação, chamado Amor. Mas isso não deve ser concentrado em apenas uma pessoa — ele está espalhado pelo mundo, esperando ser descoberto. Acorde, desperte para esse amor. O que passou não deve voltar. O que chegar precisa ser reconhecido.”
Luta contra esta idéia; só descobrimos que um plano está errado quando vamos até as últimas conseqüências. Ou quando Deus mise-ricordioso nos guia em outra direção.