— Todas as pessoas que estavam ali tinham a mesma biografi a.

— Que tal pararmos de nos provocar, e tentarmos ser mais humanos e mais amigos?

— Neste meio? Esqueça. Não existem amigos, apenas interesses.

Não existem humanos, apenas máquinas enlouquecidas que atrope-lam tudo à sua frente, até conseguirem chegar aonde desejam, ou terminarem batendo em um poste.

Apesar da resposta, Gabriela sente que acertou em cheio; a ani-mosidade de seu companheiro de limusine começa a se diluir.

— Veja mais: “Durante muitos anos recusou-se a trabalhar em cinema, preferindo o teatro como forma de expressão do seu talento.”

Isso conta muitos pontos a favor: você é uma pessoa íntegra, que só aceitou o papel porque estava realmente apaixonada por ele, embora tivesse convites para continuar trabalhando em Shakespeare, Beckett ou Genet.

O andrógino é culto. Shakespeare todo mundo conhece, mas Beckett e Genet são apenas para pessoas especiais.

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Gabriela — ou Lisa — concorda. O carro chega ao destino, e ali estão de novo os famosos guarda-costas vestidos de preto, camisa branca, gravata, e pequenos rádios nas mãos, como se fossem verdadeiros policiais (o que talvez seja o sonho coletivo daquele grupo).

Um deles pede ao motorista que siga adiante, ainda é cedo demais.

O andrógino, porém, a esta altura já pesou os riscos, e decide que chegar cedo é melhor. Salta da limusine e fala com um homem que é o dobro do seu tamanho. O homem parece não lhe dar ouvidos, faz sinal para que volte ao carro e que parem de atrapalhar o trânsito. O andrógino, um mosquito, dá as costas para o elefante, anda até o carro.

Abre a porta e pede que saia; vão entrar de qualquer maneira.

Gabriela teme o pior; escândalo. Passa com o mosquito junto do elefante, que lhes diz “Ei, vocês não podem entrar!”, mas ambos continuam andando. Outras vozes: “Por favor, respeitem as regras, ainda não abrimos a porta!”. Não tem coragem de olhar para trás e imaginar que a manada agora os persegue, prontos para massacrá-

los no próximo segundo.

Mas nada acontece, embora em momento algum o andrógino tenha acelerado o passo, talvez por respeito ao vestido comprido de sua companheira. Caminham agora pelo jardim imaculado, o horizonte tingiu-se de rosa e azul, o sol está desaparecendo.

O andróide saboreia outra vitória.

— Eles são muito machos enquanto ninguém reclama. Mas basta levantar a voz, olhar no fundo dos olhos, e seguir adiante, que não arriscam mais. Tenho os convites e é tudo que preciso apresentar; são grandes mas não são estúpidos, sabem que só gente importante é capaz de tratá-los como fi z.

Conclui, com uma surpreendente humildade:

— Eu já estou acostumado a fi ngir que sou importante.

Chegam até a porta do hotel de luxo, completamente isolado do movimento de Cannes, onde se hospedam somente aqueles que não 3 0 2

precisam estar caminhando de um lado para o outro na Croisette. O

andrógino pede que Gabriela/Lisa se dirija ao bar e peça dois copos de champagne — assim saberão que está acompanhada. Nada de conversar com estranhos. Nada de vulgaridades, por favor. Ele irá ver como está o ambiente, e distribuir os folhetos.

— Embora isso seja apenas protocolar. Ninguém irá publicar sua foto, mas sou pago para isso. Estou de volta em um minuto.

— Mas você não acabou de dizer que os fotógrafos...

A arrogância voltou. Antes que Gabriela possa revidar, ele já desapareceu.

Não há mesas vazias; o lugar está lotado, com todas as pessoas em smoking e vestidos longos. Todos falam em voz baixa — isso quando falam, porque a maioria tem os olhos fi xos no oceano que pode ser visto através das grandes vidraças. Mesmo que seja sua primeira vez em um lugar daqueles, existe um sentimento palpável, inconfundí-

vel, que paira acima de todas aquelas cabeças coroadas: um profundo tédio.

Todos já participaram de centenas, milhares de festas como essa.

Antes se preparavam para a excitação do desconhecido, de encontrar um novo amor, de fazer contatos profi ssionais importantes; mas agora já chegaram ao topo da carreira, não há mais desafi os, só resta comparar um iate com o outro, sua jóia com a da vizinha, os que estão sentados nas mesas mais perto da vidraça com aqueles que es-tão mais longe — sinal inconfundível do status superior do primeiro grupo. Sim, esse é o fi m da linha: tédio e comparação. Depois de dé-

cadas procurando chegar aonde estão agora, parece não ter sobrado absolutamente nada, nem mesmo o prazer de ter contemplado mais um pôr-do-sol em um lugar daqueles.

O que pensam aquelas mulheres, tão ricas, silenciosas, distantes dos seus maridos?

Idade.

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Precisam ir novamente a determinado cirurgião plástico e refazer o que está sendo consumido pelo tempo. Gabriela sabe que isso um dia vai também acontecer com ela, e, de repente — talvez por causa de todas as emoções daquele dia, que termina de maneira tão diferente de como começou —, nota os pensamentos negativos re-tornando.

De novo a sensação de terror misturada com alegria. Mais uma vez o sentimento de que, apesar de toda a sua luta, não merece o que lhe está acontecendo; é apenas uma moça esforçada no seu trabalho, mas despreparada para a vida. Não conhece as regras, está ousando mais do que o bom senso permite, esse mundo não lhe pertence e jamais conseguirá fazer parte dele. Sente-se desamparada, não sabe exatamente o que veio fazer na Europa — não há nada de errado em ser uma atriz no interior dos Estados Unidos, fazendo apenas aquilo que gosta, e não o que os outros lhe impõem. Quer ser feliz, e não tem certeza se está no caminho certo.

“Pare com isso. Afaste estes pensamentos!”

Não pode fazer ioga ali, mas procura concentrar-se no mar e no céu vermelho e dourado. Está diante de uma oportunidade de ouro

— precisa superar sua repulsa e conversar mais com o andrógino nos poucos momentos livres que ainda restam antes do “corredor”. Não pode cometer erros; teve sorte e precisa saber aproveitá-la. Abre a bolsa para pegar sua maquiagem e retocar os lábios, e tudo que vê lá dentro é um papel de seda amassado. Esteve pela segunda vez no Salão de Presentes com a maquiadora entediada, e de novo esqueceu de pegar sua roupa e seus documentos; mesmo que tivesse lembrado, onde iria deixá-los?

Aquela bolsa é uma excelente metáfora para o que está vivendo: linda por fora, completamente vazia por dentro.

Controle-se.

“O sol acabou de desaparecer no horizonte, e renascerá amanhã com a mesma força. Eu também preciso renascer agora. O fato de 3 0 4

ter repetido em sonhos tantas vezes este momento deve ser o sufi -

ciente para me deixar preparada, confi ante. Acredito em milagres, e estou sendo abençoada por Deus, que escutou minhas orações.

Devo lembrar-me do que o diretor sempre dizia antes de cada ensaio: mesmo que estivesse fazendo a mesma coisa, era necessário descobrir algo novo, fantástico, inacreditável, que havia passado despercebido na vez anterior.”

Um homem de aproximadamente 40 anos, bonito, cabelos grisalhos, vestido em um impecável smoking feito à mão por algum mestre de alfaiataria, entra e se dirige até ela; mas nota a segunda taça de champagne, e segue em direção ao outro extremo do bar.

Tem vontade de conversar com ele; o andrógino está demorando.

Mas lembra-se das palavras duras:

“Nada de vulgaridades.”

De fato é repreensível, inadequado, inconveniente ver uma mulher jovem, sozinha em um bar de um hotel de luxo, abordar um cliente mais velho — o que vão pensar?

Bebe o champagne e pede mais uma taça. Se o andrógino tiver desaparecido para sempre não tem como pagar a conta, mas isso não tem importância. Suas dúvidas e inseguranças estão desaparecendo com a bebida, e agora o que a assusta é não poder entrar na festa e cumprir com o compromisso assumido.

Não, já não é mais a moça do interior que lutou para subir na vida — e jamais tornará a ser a mesma pessoa. Adiante segue o caminho, mais uma taça de champagne, e o medo do desconhecido transforma-se no pavor de jamais ter a chance de descobrir o que signifi ca realmente estar ali. O que a aterroriza agora é achar que tudo pode mudar de uma hora para a outra; como fazer para que o milagre de hoje continue a manifestar-se amanhã? Como ter qualquer garantia de que todas as promessas que ouviu nas últimas horas serão realmente cumpridas? Muitas vezes, esteve diante de portas magnífi cas, 3 0 5

oportunidades fantásticas, sonhou por dias e semanas com a possibilidade de mudar sua vida para sempre, para no fi nal descobrir que o telefone não tocara, o currículo tinha sido esquecido em um canto, o diretor telefonava desculpando-se e dizendo que havia encontrado outra pessoa mais adequada para o papel, “embora você tenha muito talento, e não deve deixar-se desencorajar por isso”. A vida tem muitas maneiras de testar a vontade de uma pessoa; ou fazendo com que não aconteça nada, ou fazendo com que tudo aconteça ao mesmo tempo.

O homem que entrou sozinho mantém os olhos fi xos nela, e na segunda taça de champagne. Gostaria tanto que se aproximasse!

Desde manhã não tivera possibilidade de conversar com ninguém sobre o que estava acontecendo. Havia pensado em telefonar várias vezes para sua família — mas o telefone estava dentro da bolsa de verdade, possivelmente a esta hora entupido de mensagens das amigas do quarto, querendo saber onde estava, se tinha algum convite, se gostaria de acompanhá-las a algum evento de segunda classe, em que “tal pessoa pode aparecer”.

Não pode dividir nada com ninguém. Deu um grande passo na sua vida, está sozinha em um bar de hotel, aterrorizada com a possibilidade de o sonho acabar, e ao mesmo tempo sabendo que nunca mais poderá voltar a ser quem era. Chegou perto do topo da montanha: ou faz um esforço extra, ou é derrubada pelo vento.

O homem de cabelos grisalhos, aproximadamente 40 anos, bebendo um suco de laranja, continua ali. Em dado momento seus olhos se cruzam, e ele sorri. Ela fi nge que não viu.

Por que está com tanto medo? Porque não sabe exatamente como se comportar a cada passo novo que está dando. Ninguém a ajuda; tudo que fazem é dar ordens, esperando que sejam cumpridas com rigor. Sente-se como uma menina trancada em um quarto escuro, precisando encontrar seu próprio caminho até a porta, porque al-guém muito poderoso está chamando e espera ser obedecido.

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É interrompida pelo andrógino que acaba de entrar.

— Vamos esperar mais um pouco. Estão começando a entrar neste momento.

O homem bonito se levanta, deixa paga a conta, e dirige-se para a saída. Parece decepcionado; talvez estivesse esperando o momento certo para aproximar-se, dizer seu nome e...

— ...conversar um pouco.

— O quê?

Deixara escapar algo. Duas taças de champagne e a língua já estava mais solta do que devia.

— Nada.

— Sim, você disse que precisa conversar um pouco.

O quarto escuro e a menina que não tem ninguém para guiá-la.

Humildade. Faça o que prometeu a si mesma alguns minutos atrás.

— Sim. Gostaria de saber o que está fazendo aqui. Como veio parar neste universo que gira em torno de nós, e do qual eu não compreendo ainda quase nada. Tudo é diferente do que imaginei antes; acredite se quiser, quando você foi conversar com os fotógrafos, eu me senti abandonada e assustada. Conto com sua ajuda, e quero saber se é feliz no seu trabalho.

Algum anjo — que gosta de champagne, com certeza — está fazendo com que diga as palavras certas.

O andrógino a olha com surpresa; será que está tentando ser sua amiga? Por que faz perguntas que ninguém ousa fazer, quando o conhece há apenas algumas horas?

Ninguém confi a nele, porque não podem compará-lo com nada

— é único. Ao contrário do que pensam, não é homossexual, apenas perdeu o interesse no ser humano. Descoloriu o cabelo, veste-se como sempre sonhou, pesa exatamente o que deseja pesar, sabe que 3 0 7

causa uma impressão estranha nas pessoas mas não é obrigado a ser simpático com ninguém, desde que cumpra bem seu papel.

E agora esta mulher está querendo saber o que pensa? Como se sente? Estende a mão para o copo de champagne que estava ali esperando sua volta, e bebe todo o conteúdo de uma só vez.

Ela deve estar pensando que faz parte do grupo de Hamid Hussein, tem alguma infl uência, quer sua cooperação e sua ajuda para saber os passos que deve dar. Ele sabe os passos, mas foi contratado apenas para trabalhar durante o Festival, fazer determinadas coisas, e se limitará a cumprir com seu compromisso. Quando acabarem os dias de luxo e glamour voltará para seu apartamento em um dos subúrbios de Paris, onde é maltratado pelos vizinhos simplesmente porque sua aparência não se enquadra nos modelos estabelecidos por algum louco que um dia gritou: “Todos os seres humanos são iguais.” Não é verdade: todos os seres humanos são diferentes, e devem exercer esse direito até suas últimas conseqüências.

Ficará vendo televisão, indo ao supermercado ao lado de casa, comprando e lendo revistas, às vezes saindo para ir ao cinema.

Porque é considerado uma pessoa responsável, receberá de vez em quando um telefonema de agentes que selecionam auxiliares com

“muita experiência” na área de moda; que saibam vestir as modelos, escolher acessórios, acompanhar pessoas que ainda não aprenderam a se comportar direito, evitar erros de etiqueta, explicar o que deve ser feito e o que não pode ser tolerado de nenhuma maneira.

Sim, tem os seus sonhos. É único, repete para si mesmo. É feliz, porque não tem mais nada a esperar da vida; embora pareça muito mais jovem, já está com 40 anos. Sim, tentou seguir a carreira de estilista, não conseguiu nenhum emprego decente, brigou com as pessoas que podiam tê-lo ajudado, e hoje não espera mais nada da vida — embora tenha cultura, bom gosto, e disciplina de ferro. Já não acredita mais que alguém irá olhar a maneira como se veste e dizer “Que fantástico, gostaríamos que viesse conversar conosco”.

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Teve um ou dois convites para posar como modelo, mas isso faz muitos anos; não aceitou porque não fazia parte do seu projeto de vida, e não se arrepende.

Faz suas próprias roupas, com tecidos que são deixados como sobra nos ateliês de alta-costura. Em Cannes, está hospedado com mais duas pessoas no alto da montanha, talvez não muito longe da mulher ao seu lado. Mas ela está tendo sua chance, e por mais que ache que a vida é injusta, não deve deixar-se dominar pela frustração ou pela inveja — dará tudo de si, ou não será convidado de novo para ser

“assistente de produção”.

Claro que é feliz: uma pessoa que não deseja nada é feliz. Olha o relógio — talvez seja uma boa hora para entrarem.

— Vamos. Conversamos outra hora.

Paga as bebidas, pede a nota fi scal — para que possa prestar contas de cada centavo quando aqueles dias de luxo e glamour terminarem.

Algumas pessoas estão se levantando e fazendo a mesma coisa; devem se apressar, para que ela não seja confundida com a multidão que agora começa a chegar. Caminham pelo salão do hotel até o início do corredor; ele entrega as duas entradas, que guardara cuidadosamente no bolso: afi nal de contas, uma pessoa importante jamais se preocupa com esses detalhes, sempre tem um assistente para fazer isso.

Ele é o assistente. Ela é a mulher importante, e já começa a dar sinais de grandeza. Muito em breve, vai saber o que signifi ca este mundo: sugar o máximo de sua energia, encher sua cabeça de sonhos, manipular sua vaidade, para ser descartada quando justamente estiver achando que é capaz de tudo. Isso aconteceu com ele, e aconteceu com todos que vieram antes dele.

Descem as escadas. Param no pequeno hall antes do “corredor”; as pessoas andam devagar, porque logo depois da curva estão os fotógrafos e a possibilidade de aparecer em alguma revista, nem que seja no Uzbequistão.

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— Eu vou na sua frente para avisar alguns fotógrafos que conhe-

ço. Não se apresse; isso é diferente do tapete vermelho. Se alguém lhe chamar, vire-se e sorria. Neste caso, as chances são que todos os outros comecem também a tirar fotos, já que pelo menos um deles conhece o seu nome, e você deve ser alguém importante. Não de-more mais de dois minutos posando, porque isso é apenas a entrada de uma festa, embora pareça algo de outro mundo. Se você quer ser uma celebridade, comece a se comportar a altura.

— E por que estou entrando sozinha?

— Parece que houve algum contratempo. Ele já devia estar aqui, afi nal de contas é um profi ssional. Mas deve estar atrasado.

“Ele” é a Celebridade. Podia ter dito o que julgava ser verdade:

“Deve ter arranjado alguma menina doida para fazer amor, e pelo visto não saiu do quarto na hora marcada.” Entretanto, isso poderia ferir o coração daquela principiante — que neste momento devia estar alimentando sonhos de uma linda história de amor, mesmo que não tivesse absolutamente nenhuma razão para isso.

Não precisava ser cruel, como tampouco necessitava ser amigo; bastava cumprir seu dever e logo poderia sair dali. Além do mais, se a menina boboca não soubesse controlar direito suas emoções, as fotos no corredor seriam prejudicadas.

Coloca-se adiante dela na fi la, e pede que o siga, mas deixando alguns metros de distância entre os dois. Assim que passar pelo corredor irá direto até os fotógrafos, ver se consegue despertar o interesse de algum.

Gabriela espera alguns segundos, coloca seu melhor sorriso, segura a bolsa corretamente, ajeita a postura, e começa a caminhar com segurança, preparada para encarar os fl ashes. A curva terminava em um local fortemente iluminado, com uma parede branca coberta com os logotipos do patrocinador; do outro lado uma pequena ar-quibancada, onde diversas lentes apontavam em sua direção.

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Continuou caminhando, desta vez procurando estar consciente de cada passo — não queria repetir a frustrante experiência do tapete vermelho, que terminara antes que pudesse se dar conta do que acabara de viver. O momento agora precisa ser vivido como se o fi lme de sua vida estivesse passando em câmera lenta. Em algum momento, as objetivas começariam a disparar.

— Jasmine! — gritou alguém.

Jasmine? Mas seu nome era Gabriela!

Pára por uma fração de segundo, o sorriso congelado no rosto.

Não, seu nome não era mais Gabriela. Como era mesmo? Jasmine!

De repente, escuta os ruídos de botões sendo apertados, objetivas abrindo e fechando, só que todas as lentes apontavam para a pessoa atrás dela.

— Mova-se! — diz um fotógrafo. — Seu momento de glória já passou. Me deixa trabalhar!

Ela não acredita. Continua sorrindo, mas começa a mover-se mais rápido em direção ao túnel escuro que parece começar onde termina o corredor de luz.

— Jasmine! Olha para este lado! Aqui!

Os fotógrafos parecem tomados de uma histeria coletiva.

Chegou ao fi nal do “corredor” sem que ninguém tivesse sequer se incomodado em gritar seu nome, que por sinal havia esquecido completamente. O andrógino a esperava ali.

— Não se preocupe — disse, mostrando pela primeira vez um pouco de humanidade. — Você verá a mesma coisa acontecer com outras pessoas esta noite. Pior: você verá gente que já teve seu nome gritado, e hoje passa sorrindo, esperando por uma foto, sem que absolutamente ninguém tenha a piedade de disparar um fl ash.

Precisa mostrar sangue-frio. Controlar-se. Aquilo não era o fi m do mundo, os demônios não podem aparecer logo agora.

— Não estou preocupada. Afi nal de contas, comecei hoje. Quem é Jasmine?

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— Também começou hoje. No fi nal da tarde anunciaram um gigantesco contrato com Hamid Hussein. Mas não é para fi lmes, não se preocupe.

Não estava preocupada. Simplesmente queria que a terra se abrisse e a engolisse por completo.

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8:12 PM

Sorria.

Finja que não está sabendo por que tanta gente está interessada no seu nome.

Caminhe como se fosse um tapete vermelho, e não uma passarela.

Atenção, porque tem gente entrando, os segundos necessários para as fotos já se esgotaram, melhor ir em frente.

Mas os fotógrafos não param de gritar seu nome. Fica constran-gida, porque a próxima pessoa — na verdade, um casal — precisa esperar até que todos estejam satisfeitos, o que não vai acontecer nunca, porque sempre querem o ângulo ideal, a foto única (como se isso fosse possível!), um olhar direto para a objetiva de sua câmera.

Agora dê um adeus, sempre sorrindo. Siga adiante.

É cercada por um grupo de jornalistas quando chega ao fi nal do corredor. Querem saber tudo sobre o monumental contrato com um dos estilistas mais importantes do mundo. Gostaria de dizer: “Não é verdade.”

— Estamos estudando os detalhes — responde.

Insistem. Uma televisão se aproxima, a repórter com o microfone nas mãos. Pergunta se está contente com as novidades. Sim, acha que o desfi le foi ótimo, e que o próximo passo da estilista — faz questão de dizer o nome dela — será a Semana de Moda de Paris.

A jornalista parece não saber que apresentaram uma coleção durante a tarde. As perguntas continuam, só que desta vez estão sendo fi lmadas.

Não relaxe, responda apenas aquilo que lhe interessa, e não o que estão insistindo para arrancar. Finja que não sabe dos detalhes e fale do sucesso do desfi le, da merecida homenagem a Ann Salens, o gênio esquecido porque não teve o privilégio de nascer na França. Um rapaz metido a engraçado quer saber o que está achando da festa; neste 3 1 3

caso, ela responde com a mesma ironia: “Você ainda não me deixou entrar.” Uma antiga modelo, agora transformada em apresentadora de televisão a cabo, pergunta como se sente ao ser contratada para ser face exclusiva da próxima coleção de HH. Um profi ssional mais bem informado quer saber se é verdade que estará ganhando por ano uma quantia superior a seis dígitos:

— Deviam ter colocado sete dígitos no release de imprensa, não acha? Superior a seis dígitos soa um pouco absurdo, não acha? Ou melhor, podiam dizer que é mais de um milhão de euros, em vez de obrigar os espectadores a fi carem contando os dígitos, não acha?

Aliás, podiam chamar “zeros” em vez de “dígitos”, não acha?

Não acha nada.

— Estamos estudando — repete. — Por favor, deixem-me respirar um pouco de ar puro. Mais adiante respondo o que for possível.

Mentira. Mais adiante pegará um táxi de volta para casa.

Alguém pergunta por que não está usando um Hamid Hussein.

— Sempre trabalhei para esta estilista.

Insiste em dizer o nome dela. Alguns anotam. Outros simplesmente ignoram — estão ali para uma notícia que querem publicar, e não para descobrir a verdade por trás dos fatos.

É salva pelo ritmo em que as coisas acontecem em uma festa co-mo aquela: no “corredor” os fotógrafos estão gritando de novo.

Co mo em um movimento orquestrado por um maestro invisível, os jornalistas que a cercam se viram e descobrem que uma celebridade maior, mais importante, acaba de chegar. Jasmine aproveita o segundo de hesitação do grupo, e resolve caminhar até a amurada do lindo jardim transformado em salão onde as pessoas bebem, fumam, e andam de um lugar para o outro.

Daqui a pouco também poderá beber, fumar, olhar o céu, dar socos no parapeito, fazer meia-volta e ir embora.

Entretanto, uma mulher e uma criatura estranha — parece um andróide de fi lme de fi cção científi ca — estão com os olhos fi xos 3 1 4

nela, barrando seus passos. Sim, eles não sabem o que estão fazendo ali, melhor aproximar-se e puxar conversa. Apresenta-se. A criatura estranha tira o telefone celular do bolso, faz uma careta, pede desculpas mas precisa se afastar por algum tempo.

A moça fi ca parada, olhando-a com um ar de “você estragou minha noite”.

Está arrependida de ter aceitado o convite para a festa. Chegou pelas mãos de duas pessoas, quando ela e sua companheira se preparavam para ir a uma pequena recepção oferecida pela BCA (Belgium Clothing Association, o órgão que controla e estimula a moda no seu país). Mas nem tudo são nuvens negras no horizonte: seu vestido pode ser visto se as fotos forem publicadas, e alguém pode se interessar em saber mesmo o que está usando.

Os homens que trouxeram o convite pareciam muito bem-educados. Disseram que havia uma limusine esperando do lado de fora; tinham certeza de que uma modelo experiente como ela não demo-raria mais de quinze minutos para estar pronta.

Um deles abriu a pasta, tirou um computador e uma impressora também portátil, e disse que estavam ali para fechar o grande contrato de Cannes. Agora era tudo uma questão de detalhes. Preenche-riam as condições, e sua agente — sabiam que a mulher ao seu lado era também sua agente — se encarregaria de assiná-los.

Prometeram à sua companheira todas as facilidades possíveis para sua próxima coleção. Sim, claro que seria possível manter o nome e a etiqueta. Evidente que podiam usar o serviço de imprensa deles!

Mais do que isso: HH gostaria de comprar a marca, e com isso in-jetar o dinheiro necessário para que tivesse uma boa visibilidade na imprensa italiana, francesa e inglesa.

Mas havia duas condições. A primeira, que o assunto fosse decidido imediatamente, de modo que pudessem enviar uma nota à imprensa antes que as redações dos jornais fechassem a edição do dia seguinte.

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A segunda: que terá que transferir o contrato de Jasmine Tiger, que passaria a trabalhar exclusivamente para Hamid Hussein. Não havia falta de modelos no mercado, de modo que a estilista belga logo conseguiria alguém para substituí-la. Além do mais, como também era sua agente, terminaria ganhando bastante dinheiro.

— Aceito transferir o contrato de Jasmine — respondeu imediatamente sua companheira. — Quanto ao resto, conversamos depois.

Aceitou assim tão rápido? Uma mulher que era responsável por tudo que tinha acontecido em sua vida, e que agora parecia contente em separar-se dela? Estava sendo apunhalada pelas costas pela pessoa que mais amava neste mundo.

O homem tira um blackberry do bolso.

— Mandaremos um comunicado de imprensa agora. Já está escrito: “Estou emocionada com a oportunidade...”

— Um momento. Eu não estou emocionada. Eu não sei exatamente do que estão falando.

Sua companheira, porém, começa a fazer a revisão do texto, trocando “emocionada” por “alegre”, e “oportunidade” por “convite”. Estuda cuidadosamente cada palavra e cada frase. Exige que mencionem um preço absurdo. Eles não estavam de acordo, podiam infl acionar o mercado se fi zessem isso. Então não há negócio, é a resposta. Os dois homens pedem licença, saem, usam seus celulares, e voltam em seguida. Diriam algo vago — um contrato de mais de seis dígitos, sem informar exatamente a quantia. Apertam as mãos das duas, teceram alguns elogios à coleção e à modelo, colocam o computador e a impressora na pasta, pedem que gravem no telefone celular de um deles um acordo formal, de modo que possam ter uma prova de que as negociações sobre Jasmine tinham sido aceitas. Saem com a mesma rapidez que entraram, com os telefones celulares em ação, pedindo que não se atrase mais de quinze minutos — a festa daquela noite fazia parte do contrato que acabavam de fechar.

— Prepare-se para a festa.

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— Você não tem o poder de decidir minha vida. Você sabe que não estou de acordo, e não tive sequer a possibilidade de manifestar minha opinião. Não estou interessada em trabalhar para os outros.

A mulher vai até os vestidos que estavam desordenadamente espalhados pelo quarto, escolhe o mais belo — um modelo branco com bordados de borboleta. Fica algum tempo pensando em que sapatos e bolsa devia usar, mas decide rapidamente — não há tempo a perder.

— Eles se esqueceram de pedir que usasse um HH esta noite. Teremos oportunidade de mostrar algo de minha coleção.

Jasmine não acredita no que estava escutando.

— Foi só por isso?

— Sim. Foi só por isso.

As duas estavam frente a frente, e nenhuma desviava os olhos.

— Você está mentindo.

— Sim. Estou mentindo.

Se abraçaram.

— Desde aquele fi nal de semana na praia, quando tiramos as primeiras fotos, eu sabia que esse dia ia chegar. Demorou um pouco, mas agora você já está com 19 anos, adulta o sufi ciente para aceitar o desafi o. Outras pessoas me procuraram antes. Eu sempre dizia “não”

e me perguntava se era por ciúmes de perdê-la, ou porque ainda não estava preparada. Hoje, quando vi Hamid Hussein na platéia, sabia que não estava ali apenas para prestar seu tributo a Ann Salens — devia ter outra coisa em mente, e só podia ser você.

“Recebi o recado de que queria conversar conosco. Não sabia exatamente o que fazer, mas dei o nome de nosso hotel. Não foi nenhuma surpresa quando chegaram aqui com a proposta.”

— Mas por que aceitou?

— Porque quem ama, liberta. Seu potencial é muitíssimo maior do que aquilo que posso lhe oferecer. Abençôo seus passos. Quero que tenha tudo que merece. Continuaremos juntas, porque você tem o meu coração, o meu corpo, a minha alma.

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“Mas eu vou manter minha independência — embora saiba que neste ramo os padrinhos são importantes. Se Hamid viesse até mim e propusesse comprar minha marca, não teria nenhum problema em vendê-la e ir trabalhar para ele. Entretanto, a negociação não foi em torno do meu talento, mas do seu trabalho. Eu não seria digna de mim mesma se aceitasse esta parte da proposta.”

Ela a beijou.

— Não posso aceitar. Quando a conheci, era apenas uma menina assustada, covarde por ter prestado falso testemunho, infeliz por deixar criminosos à solta, considerando seriamente a possibilidade de suicídio. Você é responsável por tudo que aconteceu em minha vida.

A companheira pediu que sentasse diante do espelho. Antes de começar o penteado, acariciou seus cabelos.

— Quando te conheci, também havia perdido o entusiasmo pela vida. Abandonada por um homem que encontrara uma jovem mais bela e mais rica, obrigada a fazer fotografi as para sobreviver, passando os fi nais de semana em casa lendo, conectada à internet, ou vendo fi lmes antigos na televisão. O grande sonho de tornar-me estilista parecia cada vez mais distante, porque não conseguia o fi nanciamento necessário, e já não agüentava mais fi car batendo em portas que não se abriam, ou conversando com pessoas que não escutavam o que dizia.

“Foi aí que você apareceu. Naquele fi nal de semana, preciso confessar, eu estava pensando apenas em mim mesma; tinha uma jóia rara nas mãos, poderia fazer uma fortuna se assinássemos um contrato exclusivo. Propus ser sua agente, lembra-se? Mas isso não veio da necessidade de protegê-la do mundo; meus pensamentos eram tão egoístas como os de HH neste momento. Saberia como explorar meu tesouro. Ficaria rica com as fotos.”

Deu um retoque fi nal no cabelo, e limpou o excesso de maquiagem no canto esquerdo da testa.

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— E você, apesar dos seus 16 anos, mostrou-me como o amor é capaz de transformar uma pessoa. Por sua causa, descobri quem eu era. Para poder mostrar ao mundo o seu talento, passei a desenhar as roupas que usava, e que sempre estavam ali, na minha cabeça, esperando uma oportunidade para se transformarem em tecidos, bordados, acessórios. Caminhamos juntas, aprendemos juntas, embora eu já tivesse mais que o dobro da sua idade. Graças a tudo isso as pessoas passaram a prestar atenção no que eu fazia, resolviam investir, e eu podia pela primeira vez realizar tudo aquilo que desejava. Chegamos juntas até Cannes; não é um contrato desses que irá nos separar.

Mudou de tom. Foi até o banheiro, trouxe o estojo de maquiagem, e começou o trabalho.

— Precisa estar deslumbrante esta noite. Nenhuma modelo até hoje saiu do completo anonimato para a glória súbita, de modo que a imprensa vai estar muito interessada no que aconteceu. Diga que não sabe os detalhes; é o sufi ciente. Vão insistir. Pior que isso: vão sugerir respostas como “Eu sempre sonhei em trabalhar para ele” ou “Estou dando um passo importante em minha carreira”.

Acompanhou-a até embaixo; o chofer abriu a porta do carro.

— Mantenha-se fi rme: não conhece os detalhes do contrato, é a sua agente quem se ocupa disso. E aproveite a festa.

A festa.

Na verdade, o jantar — mas não vê mesas ou comida, apenas garçons andando de um lado para o outro com todo tipo de bebida possível, inclusive água mineral. Os pequenos grupos se formam, as pessoas que chegaram sozinhas parecem perdidas. Está em um gigantesco jardim com poltronas e sofás espalhados por todos os cantos, vários pilares de um metro de altura onde estão modelos se-mivestidas, corpos esculturais, dançam ao som da música que sai de alto-falantes estrategicamente escondidos.

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As celebridades continuam a chegar. Os convidados parecem felizes, estão sorrindo, tratam-se uns aos outros com a intimidade de quem se conhece há muitos anos, mas Jasmine sabe que é mentira: devem se encontrar vez ou outra em ocasiões como essa, jamais lembram o nome da pessoa com quem estão conversando, mas precisam mostrar a todos que são infl uentes, conhecidos, admirados, cheios de contatos.

A moça — que antes parecia irritada — agora demonstra que está completamente perdida. Pede um cigarro e se apresenta. Em poucos minutos, uma já sabe a vida da outra. Consegue levá-la até a amurada, fi cam olhando o oceano enquanto a festa se enche de conhecidos e desconhecidos. Descobrem que estão agora trabalhando para o mesmo homem, embora em projetos diferentes. Nenhuma das duas o conhece, e para ambas tudo aconteceu no mesmo dia.

Volta e meia algum grupo de homens passa, tenta puxar conversa, mas as duas fi ngem que não é com elas. Gabriela era a pessoa que precisava encontrar para dividir o sentimento de abandono que carrega, apesar de todas as palavras bonitas que sua companheira lhe dissera. Se tivesse que escolher entre sua carreira e o amor de sua vida, não teria dúvidas — deixaria tudo de lado, embora isso fosse um comportamento típico de adolescente. Acontece que o amor de sua vida deseja que escolha sua carreira, e aceitou a proposta de HH apenas para que se orgulhe de tudo que fez por ela, o cuidado como guiou seus passos, o carinho com que corrigiu seus erros, o entusiasmo presente em cada palavra e cada ação — mesmo as mais agressivas.

Gabriela também precisava encontrar Jasmine. Para pedir conselhos, agradecer não estar sozinha naquele momento, acreditar que coisas boas acontecem para todo mundo. Confessar que estava preocupada com a maneira como seu companheiro a havia deixado ali, quando na verdade tinha ordens de apresentá-la a pessoas que deveria conhecer.

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— Ele acha que pode disfarçar suas emoções. Mas sei que alguma coisa de errado está acontecendo.

Jasmine diz que não se preocupe, relaxe, beba um pouco de champagne, aproveite a música e a paisagem. Imprevistos sempre acontecem, e existe um exército de pessoas para lidar com eles, de modo que ninguém, absolutamente ninguém descubra o que acontece nos bastidores do luxo e do glamour. Em breve a Celebridade estará chegando.

— Mas, por favor, não me deixe sozinha; não vou demorar muito.

Gabriela garante que não a deixará sozinha. É sua única amiga no novo mundo que acaba de pisar.

Sim, é sua única amiga, mas é jovem demais, e isso a faz sentir como se já tivesse passado da idade de começar alguma coisa. A Celebridade demonstrara ser uma pessoa absolutamente superfi cial enquanto se dirigiam para o tapete vermelho, o encanto havia desaparecido por completo, precisa estar ao lado de um alguém do sexo masculino, arranjar uma companhia para aquela noite, por mais que a menina ao seu lado seja agradável e simpática. Nota que o tal homem que vira no bar também está na amurada do grande jardim, contemplando o oceano, de costas para a festa, completamente alheio ao que se passa no grande jantar de gala. É carismático, bonito, elegante, misterioso. Quando chegasse o momento certo, iria sugerir à sua nova amiga que fossem até lá e iniciassem uma conversa

— sobre qualquer assunto.

Afi nal de contas, e apesar de tudo, aquele era o seu dia de sorte, e isso incluía encontrar um novo amor.

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8:21 PM

O legista, o comissário, o detetive Savoy e uma quarta pessoa

— que não se identifi cou, mas que foi trazida pelo comissário — es-tão sentados em torno de uma mesa.

A tarefa não é exatamente discutir um novo crime, mas a declara-

ção conjunta que deve ser feita para os jornalistas que se aglomeram na frente do hospital; desta vez uma Celebridade mundial acaba de morrer, um famoso diretor se encontra na unidade de terapia intensiva, e as agências de notícias do planeta devem ter enviado uma mensagem radical aos seus jornalistas: ou conseguem alguma coisa de concreto, ou serão despedidos.

— A medicina legal é uma das ciências mais antigas do planeta.

Graças a ela, muitos traços de veneno podiam ser identifi cados, e antídotos produzidos. Mesmo assim, a realeza e os nobres preferiam ter sempre um “provador ofi cial de comida”, de modo a evitar surpresas não previstas pelos médicos.

Savoy já tinha encontrado o “sábio” durante a tarde. Desta vez, deixa que o comissário entre em cena e acabe com a conversa erudita.

— Chega de demonstrar sua cultura, doutor. Há um criminoso à solta na cidade.

O médico não se deixa impressionar.

— Como legista, não tenho autoridade para determinar a ocorrência de um assassinato. Não posso emitir opiniões, mas defi nir a causa da morte, a arma utilizada, a identidade da vítima, a hora aproximada que o crime foi cometido.

— O senhor vê alguma relação entre as duas mortes? Há algo que possa ligar o assassinato do produtor com o do ator?

— Sim. Ambos trabalhavam no cinema!

Dá uma gargalhada. Ninguém move um músculo; as pessoas ali naquela sala não têm o menor senso de humor.

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— A única relação é que nos dois casos foram usados produtos tóxicos que afetam o organismo com uma velocidade impressionan-te. Entretanto, a grande surpresa do segundo assassinato é a maneira como o cianureto foi embalado. O envelope possuía no seu interior uma fi na membrana de plástico hermeticamente selada a vácuo, mas fácil de ser rompida no momento em que se rasga o papel.

— Pode ter sido fabricado aqui? — pergunta o quarto homem, com forte sotaque estrangeiro.

— Pode. Mas seria muito difícil, porque a manipulação é comple-xa, e quem o manipulou sabia que o objetivo seria um assassinato.

— Ou seja, o assassino não o fabricou.

— Duvido. Com quase toda certeza foi encomendado a um grupo especializado. No caso do curare, o próprio criminoso poderia ter mergulhado a agulha no veneno, mas o cianureto exige métodos especiais.

Savoy pensa em Marselha, na Córsega, na Sicília, nos países do Leste Europeu, nos terroristas do Oriente Médio. Pede licença, sai da sala por um momento, e telefona para a Europol. Explica a gravidade da situação. Pede que façam um levantamento completo de laborató-

rios onde se podem produzir armas químicas daquela natureza.

É colocado em contato com alguém, que diz que o mesmo acaba de ser requisitado por uma central de inteligência dos Estados Unidos. O que está acontecendo?

— Nada. Por favor me respondam assim que tiverem uma pista. E

por favor, tenham essa pista nos próximos dez minutos.

— Impossível — diz a voz do outro lado da linha. — Daremos a resposta quando a tivermos; nem antes, nem depois. Precisamos fazer um requerimento para...

Savoy desliga ali mesmo, e torna a juntar-se ao grupo.

Papel.

Essa parece ser a obsessão de todos aqueles que trabalham com a segurança pública. Ninguém quer arriscar dar um passo sem antes 3 2 4

ter todas as garantias de que seus superiores aprovaram o que estão fazendo. Homens que tinham uma carreira brilhante pela frente, que começaram a trabalhar com criatividade e entusiasmo, fi cam agora amedrontados em um canto, sabendo que estão diante de desafi os sérios, é preciso agir com rapidez, mas a hierarquia precisa ser respeitada, a imprensa está pronta para acusar a polícia de brutalidade, os contribuintes vivem reclamando de que nada é resolvido

— por tudo isso é melhor passar sempre a responsabilidade para alguém superior.

Seu telefonema não passa de pura encenação: já sabe quem é o criminoso. Irá prendê-lo sozinho, sem que ninguém mais possa evo-car para si os louros da descoberta do maior caso policial na história de Cannes. Precisa manter o sangue-frio, mas está doido que aquela reunião termine logo.

Quando volta, o comissário lhe diz que Stanley Morris, o grande especialista da Scotland Yard, acaba de telefonar de Monte Carlo.

Diz que não se preocupem muito, duvida que o criminoso utilize de novo a mesma arma.

— Podemos estar diante de uma nova ameaça de terror — diz o estrangeiro.

— Sim, estamos — responde o comissário. — Mas, ao contrário de vocês, a última coisa que queremos é semear o medo na população. O que precisamos defi nir aqui é o comunicado de imprensa, para evitar que os jornalistas tirem sua própria conclusão e a divulguem no telejornal da noite.

“Estamos diante de um caso isolado de terror: possivelmente um assassino em série.”

— Mas…

— Não tem “mas”... — a voz do comissário é dura e autoritária.

— A sua embaixada foi contatada porque o morto é do seu país. O

senhor está aqui como convidado. No caso das duas outras pessoas mortas, também americanas, não houve o menor interesse de enviar 3 2 5

um representante, mesmo que em um desses casos também tenha sido utilizado veneno.

“Portanto, se o que está querendo insinuar é que estamos diante de uma ameaça coletiva, na qual armas biológicas estão sendo utilizadas, pode retirar-se. Não vamos transformar um problema criminal em algo político. Queremos ter mais um Festival no ano que vem com todo o brilho e glamour que merece, acreditamos no especialista da Scotland Yard, e vamos traçar um comunicado que siga essas normas.”

O estrangeiro cala-se.

O comissário chama um assistente, pede que vá até o grupo de jornalistas e diga que em dez minutos terão as conclusões que estão aguardando. O legista informa que é possível traçar a origem do cianureto, já que ele deixa uma “assinatura”, mas que isso levará mais do que dez minutos — talvez uma semana.

— Havia traços de álcool no organismo. A pele estava vermelha, a morte foi quase imediata. Não há dúvida quanto ao tipo de veneno utilizado. Se tivesse sido algum ácido, encontraríamos queimaduras em torno do nariz e da boca; no caso de beladona, as pupilas dos olhos estariam dilatadas, se...

— Doutor, sabemos que o senhor fez um curso na universidade, que está habilitado a nos dar a causa da morte, e não temos dúvida de sua competência. Então, concluímos que foi cianureto.

O doutor faz uma afi rmativa com a cabeça e morde os lábios, controlando sua irritação.

— E quanto ao outro homem que está no hospital? O diretor de cinema...

— Neste caso, usamos oxigênio puro, 600 mg de Kelocyanor por via intravenosa a cada 15 minutos, e se não der resultado, podemos acrescentar triosulfato sódico diluído em 25%...

O silêncio na sala é quase palpável.

— Desculpem. A resposta é: será salvo.

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O comissário faz anotações em uma folha de papel amarelo. Sabe que já não tem mais tempo. Agradece a todos, diz ao estrangeiro que não saia com eles, para evitar ainda mais especulações. Vai até o banheiro, ajeita a gravata, e pede que Savoy faça a mesma coisa.

— Morris disse que o assassino não tornará a usar veneno da próxima vez. Pelo que pôde pesquisar desde que você saiu, ele está seguindo um padrão, mesmo que inconsciente. Você pode imaginar qual?

Savoy havia pensado nisso, enquanto voltava de Monte Carlo.

Sim, havia uma assinatura, que talvez nem mesmo o grande inspetor da Scotland Yard tivesse reparado:

Vítima no banco da praça: o criminoso está perto.

Vítima no almoço: o criminoso está longe.

Vítima no píer: o criminoso está perto.

Vítima no hotel: o criminoso está longe.

Conseqüentemente, o próximo crime será cometido com a vítima ao lado do assassino. Melhor dizendo: esse devia ser o seu plano, porque será preso na próxima meia hora. Tudo isso, graças aos seus contatos na delegacia, que lhe passaram a informação sem dar muita importância ao caso. E Savoy, por sua vez, respondeu que era irrelevante. Não era, claro — estava agora diante do elo perdido, a pista certa, a única coisa que faltava.

Seu coração está disparado: sonhou com isso a vida inteira e aquela reunião ali parece não terminar nunca.

— Você está me escutando?

— Sim, senhor comissário.

— Pois saiba o seguinte: as pessoas lá fora não estão esperando uma declaração ofi cial, técnica, com respostas precisas às suas questões. Na verdade, eles farão o possível para que respondamos aquilo que desejam ouvir: não se pode cair nessa armadilha. Vieram até aqui não para nos escutar, mas para nos ver — e para que seu público também possa nos ver.

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Olha Savoy com um ar de superioridade, como se fosse a pessoa mais experiente do planeta. Pelo visto, tentar mostrar cultura não era privilégio de Morris ou do legista — todos sempre tinham uma maneira indireta de dizer “eu conheço meu trabalho”.

— Seja visual. Melhor dizendo: o corpo e o rosto irão dizer mais do que as palavras. Mantenha o olhar fi rme, a cabeça erguida, os ombros abaixados e ligeiramente inclinados para trás. Ombros altos denotam tensão, e todos serão capazes de notar que não temos a menor idéia do que está acontecendo.

— Sim, senhor comissário.

Saem até a entrada do Institut de Médecine Légale. As luzes se acendem, os microfones se aproximam, as pessoas começam a se em-purrar. Depois de alguns minutos, a desordem ganha um contorno de organização. O comissário tira o papel do bolso.

— O famoso ator de cinema foi assassinado com cianureto, um veneno mortal que pode ser administrado de várias formas, mas neste caso o processo utilizado foi o gás. O diretor de cinema será salvo; neste caso, ocorreu um acidente, entrar em um quarto fechado onde ainda havia restos do produto no ar. Os seguranças notaram, através dos monitores, que um homem dava uma volta no corredor, entrava em um dos apartamentos, e cinco minutos depois saía correndo e caía no corredor do hotel.

Omitiu que o quarto em questão não era visível pela câmera.

Omissão não é mentira.

— Os seguranças agiram com rapidez, enviando imediatamente um médico. Quando este se aproximou, notou o cheiro de amêndoas, àquela altura já diluído o sufi ciente para não causar dano. A polícia foi chamada, chegou ao local menos de cinco minutos depois, isolou a área, chamou a ambulância, os médicos vieram com máscaras de oxigênio e conseguiram socorrê-lo.

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Savoy começa a fi car realmente impressionado com a desenvol-tura do comissário. Será que em seu posto são obrigados a fazer um curso de relações públicas?

— O veneno veio dentro de um envelope, com uma caligrafi a que ainda não podemos determinar se é de homem ou mulher. Dentro havia um papel.

Omitiu que a tecnologia usada para fechar o envelope era a mais sofi sticada possível; havia uma chance em um milhão de que algum dos jornalistas presentes soubesse disso, embora mais tarde esse tipo de pergunta fosse inevitável. Omitiu que outro homem da indústria havia sido envenenado aquela tarde; pelo visto, todos achavam que o famoso distribuidor tinha morrido de ataque do co-ração, embora ninguém, absolutamente ninguém tivesse mentido a respeito. É bom saber que às vezes a imprensa — por preguiça ou por descaso — termina chegando às suas próprias conclusões sem incomodar a polícia.

— O que estava escrito no papel? — foi a primeira pergunta.

O comissário explica que não pode revelar isso agora, ou correrá o risco de atrapalhar as investigações. Savoy começa a entender para onde está conduzindo a entrevista, e fi ca cada vez mais admirado

— realmente aquele homem merece o posto que ocupa.

— Pode ter sido crime passional? — foi a primeira pergunta.

— Todas as possibilidades estão sobre a mesa. Com licença senhores, precisamos voltar a trabalhar.

Entra no carro de polícia, liga a sirene e sai a toda velocidade.

Savoy se encaminha para seu veículo, orgulhoso do comissário.

Que maravilha! Já podia imaginar os noticiários que iriam ao ar dali a pouco:

“Acredita-se que tenha sido vítima de um crime passional.”

Nada mais poderia substituir o interesse que isso desperta. A for-

ça da Celebridade era tão grande que os outros crimes passaram despercebidos. Quem se importa com uma pobre menina, possivelmente 3 2 9

drogada, encontrada em um banco de praça? Qual a relevância de um distribuidor de cabelos acaju que pode ter tido um ataque cardía-co durante um almoço? O que comentar sobre um crime — também passional — envolvendo duas pessoas completamente desconhecidas, que jamais freqüentaram os holofotes, em um píer afastado de todo o movimento da cidade? Isso acontecia todos os dias, apareceu no noticiário das oito horas, e só continuariam especulando sobre o assunto se não houvesse...

…a Celebridade mundial! Um envelope! Um papel dentro com algo escrito!

Liga a sirene, e dirige na direção oposta da delegacia. Para não levantar suspeitas, usa o rádio do carro. Entra na freqüência do comissário.

— Parabéns!

O comissário também está orgulhoso de si mesmo. Ganharam algumas horas, talvez alguns dias, mas ambos sabem que existe um assassino em série, com armas sofi sticadas, do sexo masculino, cabelos fi cando grisalho, bem vestido, de aproximadamente 40 anos.

Experiente na arte de matar. Que pode estar satisfeito com os crimes já cometidos, ou que pode atacar de novo, a qualquer momento.

— Envie agentes para todas as festas — ordena o comissário. —

Procurem homens sozinhos que correspondam a essa descrição. Peça que os mantenham sob vigilância. Peçam reforços, quero policiais à paisana, discretos, vestidos de acordo com o ambiente; jeans ou traje a rigor. Em todas as festas, repito. Mesmo que tenhamos que mobilizar os guardas de trânsito.

Savoy faz imediatamente o que lhe é pedido. Nesse meio tempo, recebe uma mensagem em seu telefone portátil: a Europol precisa de mais tempo para determinar os laboratórios solicitados. Três dias úteis, no mínimo.

— Por favor, me enviem isso por escrito. Não quero ser responsá-

vel se algo de errado continuar acontecendo aqui.

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Ri para si mesmo. Pede que também enviem uma cópia para o agente estrangeiro, já que para ele não tem a menor importância. Vai a toda velocidade até o hotel Martinez, deixa seu carro na entrada, atra-palhando os dos outros. O porteiro reclama, mas joga as chaves para que o estacione, mostra o distintivo de polícia e entra correndo.

Sobe até um salão privado no primeiro andar, onde um policial está ao lado da gerente do turno e de um garçom.

— Quanto tempo vamos fi car aqui? — pergunta a gerente. Ele a ignora, e se volta para o garçom:

— Tem certeza de que a mulher assassinada, que apareceu no noticiário, é a mesma que estava sentada aqui, hoje à tarde?

— Quase certeza, senhor. Na foto, ela parece mais jovem, os cabelos estão tingidos, mas estou acostumado a guardar o rosto dos meus clientes, caso algum deles resolva sair sem pagar.

— Tem certeza de que estava com o hóspede que reservara a mesa?

— Absoluta. Um homem de aproximadamente 40 anos, bem-apessoado, cabelos grisalhos.

O coração de Savoy parece saltar pela boca. Volta-se para a gerente e para o policial:

— Vamos até o seu quarto.

— O senhor tem algum mandado de busca? — pergunta a gerente.

Seus nervos não agüentam mais:

— NÃO TENHO! Não preencho papéis! Sabe qual é o problema do nosso país, minha senhora? Todos são muito obedientes! Aliás, não é apenas problema nosso, mas do mundo inteiro! A senhora não obedeceria se mandassem seu fi lho para uma guerra? Seu fi lho não obedeceria? Pois é! E já que a senhora é obediente, me acompanhe por favor, ou será presa por cumplicidade!

A mulher parece fi car assustada. Junto com o policial, vão até o elevador, que neste momento desce, parando de andar em andar, 3 3 1

sem entender que uma vida humana depende da rapidez com que puderem agir.

Decidem pelas escadas; a gerente reclama, está com saltos altos, mas ele pede que arranque os sapatos e os sigam. Sobem os degraus de mármore, passam pelas elegantes saletas de espera, as mãos segurando o corrimão de bronze. As pessoas que aguardam o elevador perguntam quem é aquela mulher sem sapatos, e o que um policial fardado está fazendo no hotel, correndo daquela maneira. Será que algo grave acaba de acontecer? E, se fosse o caso, porque não usam o elevador, que é mais rápido? Dizem para si mesmas: isso está virando um festival de quinta categoria, os hotéis já não selecionam seus hóspedes, e a polícia invade o local como se se tratasse de um bordel.

Assim que puderem vão reclamar com a gerente.

Não sabem que é ela a mulher sem sapatos, correndo escada acima.

Chegam fi nalmente perto da porta da suíte onde o assassino está hospedado. A esta altura, um membro do “departamento de vigilância de corredores” já mandou alguém para ver o que está acontecendo. Reconhece a gerente, e pergunta se pode ajudar.

Savoy pede que fale mais baixo mas sim, pode ajudar. Tem uma arma? O segurança diz que não.

— Mesmo assim, fi que por aqui.

Estão conversando em sussurros. A gerente é instruída a bater na porta, enquanto os três — Savoy, o policial, e o segurança — fi -

cam colados na parede ao lado. Savoy retira sua arma do coldre.

O policial faz o mesmo. A gerente bate várias vezes, sem qualquer resposta.

— Deve ter saído.

Savoy pede que use sua chave mestra. Ela explica que não estava preparada para isso — e mesmo que estivesse, só abriria aquela porta com autorização do diretor-geral.

Pela primeira vez ele é delicado:

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— Não tem importância. Quero agora descer e fi car na sala, junto com a equipe de segurança que vigia o local. Ele vai voltar mais cedo ou mais tarde, e gostaria de ser o primeiro a poder interrogá-lo.

— Temos uma fotocópia do seu passaporte e o número do seu cartão de crédito lá embaixo. Por que estão tão interessados nesse homem?

— Isso também não tem importância.

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9:02 PM

A meia hora de carro de Cannes, em um outro país que fala a mesma língua, usa a mesma moeda, não tem controle na fronteira, mas segue um sistema político completamente diferente da França

— o poder é ocupado por um príncipe, como nos velhos tempos —, um homem está sentado diante do computador. Um correio eletrô-

nico fora recebido quinze minutos antes, explicando que um famoso ator fora assassinado.

Morris olha a foto da vítima; não tem a menor idéia de quem seja, faz tempo que não vai ao cinema. Mas deve ser alguém importante, porque um portal de notícias está dando a informação.

Embora já estivesse aposentado, assuntos como esse eram o seu grande jogo de xadrez, em que raramente se deixava derrotar pelo adversário. Não era a sua carreira que estava em jogo, mas a sua auto-estima.

Existem algumas regras que sempre gostou de obedecer enquanto trabalhava na Scotland Yard: começar pensando em todas as possibilidades erradas, e a partir daí tudo é possível — porque não está condicionado a acertar. Nos encontros que tinha com os enfadonhos comitês de avaliação de trabalho, gostava de provocar os presentes:

“Tudo aquilo que sabem vem da experiência acumulada ao longo de anos de trabalho. Mas essas soluções antigas só servem para problemas igualmente passados. Se desejam ser criativos, esqueçam um pouco que são experientes!”

Os mais graduados fi ngiam que tomavam notas, os jovens o olhavam com espanto, e a reunião continuava como se nenhuma daquelas palavras tivesse sido dita. Mas ele sabia que o recado fora enviado, e em pouco tempo — sem lhe darem o crédito merecido, claro

— os superiores começavam a exigir mais idéias novas.

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Imprime os dossiês que a polícia de Cannes tinha enviado; detestava usar papel, porque não queria ser acusado de assassino em série de fl orestas, mas, às vezes, isso era necessário.

Começa estudando o modus operandi, ou seja, a maneira como os crimes foram cometidos. Hora do dia (tanto de manhã, como à tarde e à noite), arma (mãos, veneno, estilete), tipo de vítima (homens e mulheres de idades distintas), aproximação da vítima (duas com contato físico direto, duas com absolutamente nenhum contato), reação das vítimas contra o agressor (inexistente em todos os casos).

Quando se sente diante de um túnel sem saída, a melhor coisa é deixar seu pensamento passear um pouco, enquanto o inconsciente trabalha. Abre uma nova tela no computador, com os gráfi cos da Bolsa de Valores em Nova York. Como não tem dinheiro aplicado em ações, aquilo não podia ser mais aborrecido, mas era assim que agia: a experiência de muitos anos analisa todas as informa-

ções que conseguiu até agora, e a intuição vai formulando respostas

— novas e criativas. Vinte minutos depois, volta a olhar os dossiês

— sua cabeça já estava vazia de novo.

O processo dera resultado: sim, havia algo em comum em todos os crimes.

O assassino tem uma grande cultura. Deve ter passado dias, semanas em uma biblioteca, estudando a melhor maneira de levar a cabo sua missão. Sabe como lidar com venenos sem correr riscos

— e não deve ter manipulado diretamente o cianureto. Conhece bastante de anatomia para enfi ar um estilete no local exato, sem encontrar um osso no caminho. Aplica golpes mortais sem muito esforço. Poucas pessoas no mundo conheciam o poder destrutivo do curare. Possivelmente, lera sobre crimes em série, e sabia que uma assinatura sempre leva ao agressor, de modo que cometia seus assassinatos de maneira completamente aleatória, não respeitando um modus operandi.

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Mas isso é impossível: sem dúvida nenhuma, o inconsciente do assassino estaria deixando uma assinatura — que ainda não conseguira decifrar.

Há algo mais importante ainda: tem dinheiro. O sufi ciente para fazer um curso de Sambo, e ter absoluta certeza dos pontos do corpo que precisa tocar para paralisar a vítima. Tem contatos: não comprou tais venenos na farmácia da esquina, nem sequer no submundo do crime local. São armas biológicas altamente sofi sticadas, que re-querem cuidados na manipulação e na aplicação. Devia ter utilizado outras pessoas para conseguir aquilo.

Finalmente, trabalha com rapidez. O que faz Morris concluir que o assassino não deve fi car ali por muito tempo. Talvez uma semana, talvez alguns dias mais.

Onde poderia chegar com isso?

Se ele não está conseguindo chegar a uma conclusão agora, é porque se acostumou com as regras do jogo. Perdeu a inocência que tanto exigia de seus subordinados. É isso que o mundo termina exigindo de um homem: que vá se transformando em medíocre à medida que a vida passa, de modo a não ser visto como alguém exótico, entusiasmado. A velhice para a sociedade é um estigma, e não um sinal de sabedoria. Todos acreditam que alguém que ultrapassou a barreira dos 50 anos já não tem mais condições de acompanhar a velocidade com que as coisas se passam no mundo de hoje.

Claro, já não consegue correr como antigamente, e precisa de óculos para ler. Entretanto, sua mente está mais afi ada que nunca

— pelo menos quer acreditar nisso.

Mas e o crime? Se é tão inteligente como pensa, por que não consegue resolver o que antes parecia tão fácil?

Não pode chegar a lugar nenhum, no momento. Precisava esperar mais algumas vítimas.

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9:11 PM

Um casal passa sorrindo, e diz que ele é um homem de sorte: duas belas mulheres ao seu lado!

Igor agradece; realmente precisa distrair-se. Daqui a pouco vai acontecer o tão esperando encontro, e mesmo que seja um homem acostumado a agüentar todo tipo de pressão, lembra-se das patrulhas nas cercanias de Kabul: antes de qualquer missão mais perigosa, seus companheiros bebiam, falavam de mulheres e esporte, conversavam como se não estivessem ali, mas em suas cidades natais, em torno de uma mesa com a família e os amigos. Assim, afastavam o nervosismo, recuperavam suas verdadeiras identidades, e fi cavam mais conscientes e mais atentos para os desafi os que iriam se apresentar.

Como bom soldado, sabe que o combate nada tem a ver com a briga, mas com um objetivo a ser atingido. Como bom estrategista

— afi nal, saiu do nada e transformou sua pequena companhia em uma das mais respeitadas empresas da Rússia —, tem consciência de que esse objetivo deve sempre permanecer o mesmo, embora muitas vezes a razão que o leva até ele vá se modifi cando no decorrer do tempo. Isso aconteceu hoje: chegara a Cannes por um motivo, mas só quando começou a agir pôde entender as verdadeiras razões que o motivavam. Estivera cego durante todos esses anos, e agora podia ver a luz; a revelação acontecera fi nalmente.

E, justamente por isso, precisa ir até o fi nal. Suas decisões foram tomadas com coragem, desprendimento, e às vezes com uma certa dose de loucura — não aquela que destrói, mas a que leva o ser humano a dar passos além de seus próprios limites. Sempre fez isso na vida; venceu porque exerceu sua loucura controlada no momento de tomar decisões. Seus amigos iam do comentário “você está se arriscando demais” à conclusão “eu tinha certeza de que você estava dando o passo certo” com uma velocidade nunca vista. Era capaz de surpreender, inovar, e sobretudo correr riscos necessários.

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Mas ali em Cannes, talvez por causa do ambiente que lhe era completamente desconhecido, arriscou-se desnecessariamente. Porque estava confuso com a falta de sono, tudo podia ter acabado antes do que planejara. E se isso acontecesse, jamais teria chegado ao momento de lucidez que agora o faz ver com outros olhos a mulher por quem julgava estar apaixonado, que merecia sacrifícios e martí-

rio. Lembra-se do momento em que se aproximou do policial para confessar seus atos. Foi ali que começou a transição. Foi ali que o espírito da menina de sobrancelhas grossas o protegeu e lhe explicou que estava fazendo as coisas certas, mas por razões erradas. Acumular amor signifi ca sorte, acumular ódio signifi ca calamidade. Quem não reconhece a porta dos problemas, termina deixando-a aberta, e as tragédias conseguem entrar.

Ele aceitara o amor da menina. Tinha sido um instrumento de Deus, enviado para resgatá-la de um futuro sombrio; agora ela o ajudava a continuar adiante.

Está consciente de que, por mais precauções que tenha tomado, pode não ter pensado em tudo, e ainda pode ver sua missão interrompida antes que consiga chegar ao fi nal. Mas não há porque lamentar-se ou temer: fez o que podia, agiu de maneira impecável, e, se Deus não quiser que termine seu trabalho, deve aceitar Suas decisões.

Relaxe. Converse com as moças. Deixe que seus músculos descan-sem um pouco antes do golpe fi nal, assim eles estarão mais preparados. Gabriela — a jovem que estava sozinha no bar quando chegou à festa — parece extremamente excitada, e sempre que um garçom passa com um copo de bebida, devolve o seu, mesmo que ainda esteja pela metade, e pega um novo.

— Gelada, sempre gelada!

Sua alegria o contagia um pouco. Pelo que contou, acaba de ser contratada para um fi lme, embora não saiba o título e o papel que vai fazer, mas segundo suas palavras “será a atriz principal”. O dire-3 4 0

tor é conhecido pela capacidade que tem de selecionar bons atores e bons roteiros. O ator principal, que Igor conhece e admira, inspira respeito. Quando ela menciona o nome do produtor, ele faz um sinal com a cabeça, querendo dizer “sim, sei quem é”, mas sabendo que ela irá entender como “não sei quem é, mas não quero passar por ignorante”. Fala sem parar sobre quartos cheios de presentes, o tapete vermelho, o encontro no iate, e a seleção absolutamente rigorosa, os projetos que tem para o futuro.

— Neste momento, existem milhares de moças nesta cidade, e milhões no mundo inteiro, que gostariam de estar aqui conversando com você, e podendo contar estas histórias. Minhas preces foram ouvidas. Meu esforço foi recompensado.

A outra moça parece mais discreta e mais triste — talvez por causa de sua idade e da falta de experiência. Igor estava exatamente atrás dos fotógrafos quando ela passou, viu que gritavam seu nome, que a entrevistavam no fi nal do “corredor”. Mas, pelo visto, as outras pessoas na festa não sabiam de quem se tratava; tão assediada no início, e de repente colocada de lado.

Com toda certeza, foi a moça falante que decidiu aproximar-se, perguntando o que fazia ali. No início sentiu-se incomodado, mas sabia que se não fossem elas, outras pessoas sozinhas iriam fazer a mesma coisa para evitar a impressão de que estavam perdidas, isoladas deste mundo, sem amigos na festa. Por isso, aceitou a conversa

— melhor dizendo, aceitou a companhia, embora sua mente estivesse concentrada em outra coisa. Deu o seu nome (Gunther), explicou que era um industrial alemão especializado em maquinaria pesada (um assunto que não interessa a ninguém), tinha sido convidado por amigos para aquela noite. Iria partir no dia seguinte (o que esperava que fosse verdade, embora os desígnios de Deus sejam misteriosos).

Quando soube que não trabalhava na indústria do cinema, e que não estaria no Festival por muito tempo, a atriz quase se afasta; mas a outra a impediu, dizendo que sempre é bom conhecer pessoas 3 4 1

novas. E ali estavam os três: ele esperando o amigo que não chegava, ela esperando um assistente que tinha desaparecido, e a moça calada não esperando absolutamente nada, apenas um pouco de paz.

Tudo se passou muito rápido. A atriz deve ter notado alguma poeira no casaco do smoking, levou a mão antes que ele pudesse reagir, e fi cou surpresa:

— Você fuma charuto?

Ainda bem: charuto.

— Sim, depois do jantar.

— Se quiser, convido vocês dois para uma festa em um iate esta noite. Mas antes preciso localizar o meu assistente.

A outra moça sugere que não seja tão rápida. Em primeiro lugar, acabara de ser contratada para um fi lme e ainda faltava muito para que pudesse cercar-se de amigos (ou “entourage”, a palavra univer-salmente conhecida para os parasitas que circulam em torno de celebridades). Devia ir sozinha, seguir as normas do protocolo.

A atriz agradece o conselho. Mais um garçom passa, a taça de champagne pela metade é colocada na bandeja, e outra taça cheia é retirada.

— Acho também que deve parar de beber tão rápido — diz Igor/

Gunther, pegando delicadamente a taça de sua mão e jogando o conteúdo pela balaustrada. A atriz faz um gesto de desespero, mas depois se conforma: entende que o homem ao seu lado quer apenas o seu bem.

— Estou muito excitada — confessa. — Preciso acalmar-me um pouco. Será que eu poderia fumar um dos seus charutos?

— Lamento, tenho apenas um. E, além do mais, está provado cientifi camente que a nicotina é estimulante, e não calmante.

Charuto. Sim, a forma era parecida mas, fora isso, os dois objetos nada mais tinham em comum. No bolso superior esquerdo do seu paletó carregava um supressor de ruídos, também chamado de silen-3 4 2

ciador. Uma peça de aproximadamente dez centímetros de compri-mento que, uma vez acoplado ao cano da Beretta guardada no bolso da calça, era capaz de fazer um grande milagre: Transformar “BANG!” em “puff...”

Isso porque algumas simples leis da física entravam em ação quando a arma era disparada: a velocidade da bala diminuía um pouco porque é obrigada a atravessar uma série de anéis de borracha, enquanto os gases do disparo enchem o compartimento oco em torno do cilindro, se resfriam rapidamente, e impedem que o barulho da explosão da pólvora seja ouvido.

Péssimo para tiros a longa distância, porque interfere no curso do projétil. Mas ideal para disparos à queima-roupa.

Igor começa a fi car impaciente; será que o casal havia cancelado o convite? Ou será que — ele sente-se perdido por uma fração de segundo — a suíte onde colocara o envelope era exatamente a mesma em que eles estavam hospedados?

Não, não pode ser; seria muita falta de sorte. Pensa na família daqueles que morreram. Se tivesse ainda como único objetivo reconquistar a mulher que o abandonara por um homem que não a merecia, todo aquele trabalho teria sido inútil.

Começa a perder o sangue-frio; será que essa é a razão pela qual Ewa não tentou entrar em contato com ele, apesar de todas as mensagens que enviara? Ligara duas vezes para o amigo que tinham em comum, e foi informado de que não havia qualquer novidade.

A dúvida começa a ganhar contornos de certeza: sim, o casal estava morto naquele momento. Isso explicava a partida súbita do

“assistente” da atriz ao seu lado. E o abandono completo da menina de 19 anos que tinha sido contratada para aparecer ao lado do grande estilista.

Quem sabe Deus o estava punindo por ter amado tanto uma mulher que não merecia? Foi sua ex-esposa que usou suas mãos para 3 4 3

estrangular uma moça que tinha a vida inteira pela frente, podia descobrir a cura do câncer ou a maneira de fazer com que a humanidade tomasse consciência de que estava destruindo o planeta. Mesmo que Ewa não soubesse de nada, foi ela quem o estimulou a usar os venenos; Igor estava certo, absolutamente certo de que nada daquilo seria necessário, um simples mundo destruído e o recado chegaria ao seu destino. Carregou o pequeno arsenal consigo sabendo que tudo aquilo não passava de um jogo; ao chegar no bar onde fora beber champagne antes de sair para a festa, descobriria sua presença ali, entenderia que havia sido perdoada por toda a maldade e destruição que causara à sua volta. Sabe através de pesquisas científi cas que pessoas que passaram muito tempo juntas são capazes de pressentir a presença do outro em um mesmo ambiente, mesmo que não saibam exatamente onde está.

Isso não aconteceu. A indiferença de Ewa na noite anterior — ou talvez sua culpa pelo que fi zera com ele — não permitira que notasse o homem que fi ngia esconder-se atrás de uma pilastra, mas que tinha em sua mesa revistas de economia escritas em russo, pista sufi ciente para quem está buscando sempre aquele que perdeu. Uma pessoa apaixonada sempre acredita que está vendo na rua, nas festas, nos teatros, o grande amor da sua vida: talvez Ewa tivesse trocado seu amor pelo brilho e pelo glamour.

Começa a acalmar-se. Ewa era o veneno mais poderoso que havia sobre a face da terra, e se fora destruída por cianureto, isso não era nada. Merecia algo muito pior.

As duas moças continuavam conversando; Igor se afasta, não pode deixar-se dominar pelo pânico de ter destruído sua própria obra. Precisa de isolamento, frieza, capacidade de reagir com rapidez à súbita mudança de rumo.

Aproxima-se de outro grupo de pessoas, que conversam animadamente sobre os métodos que estão utilizando para deixar de fumar.

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Sim, esse era um dos poucos assuntos preferidos naquele mundo: mostrar aos amigos que são capazes de ter força de vontade, existe um inimigo a ser vencido, e elas conseguem dominá-lo. Para distrair-se, acende um cigarro, sabendo que isso é uma provocação.

— Faz mal à sua saúde — comenta a mulher coberta de diamantes, corpo esquelético, um copo de suco de laranja na mão.

— Faz mal à saúde estar vivo — responde. — Sempre acaba em morte, cedo ou tarde.

Os homens riem. As mulheres olham o recém-chegado com interesse. Mas neste momento, no corredor que se encontra a duas dezenas de metros de distância, os fotógrafos voltaram a gritar.

— Hamid! Hamid!

Mesmo de longe, e com a visão atrapalhada pelas pessoas que circulam no jardim, pode ver o costureiro entrando com sua companheira — aquela que no passado fi zera o mesmo percurso com ele, em outros lugares do mundo, aquela que segurava seu braço com carinho, delicadeza, elegância.

Antes mesmo que possa respirar aliviado, algo o faz olhar na di-reção oposta: um homem entra pelo outro lado do jardim, sem ser interrompido por nenhum dos seguranças, e começa a mover a ca-beça em todas as direções: estava procurando alguém, e não era um amigo perdido na festa.

Sem se despedir do grupo, volta para a amurada onde as duas moças ainda se encontram conversando, e segura a mão da atriz. Faz uma prece silenciosa à menina de sobrancelhas grossas; pede perdão por haver duvidado, mas os seres humanos ainda são impuros, incapazes de compreender as bênçãos que tão generosamente recebem.

— Não acha que está indo muito rápido? — perguntou a atriz, sem demonstrar nenhuma vontade de mover o braço.

— Acho que sim. Mas pelo que você contou, parece que hoje as coisas se aceleraram muito em sua vida.

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Ela riu. A moça triste também riu. O policial passou sem prestar atenção neles — seus olhos se detinham em homens de aproximadamente 40 anos, alguns cabelos grisalhos.

Mas que estavam sozinhos.

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9:20 PM

Médicos olham exames com resultados totalmente diferentes daquilo que acreditam ser a doença — e a partir daí devem decidir se acreditam na ciência ou no coração. Com o passar do tempo, dão mais atenção aos instintos e vêem que os resultados melhoram.

Grandes homens de negócio que estudam gráfi cos atrás de grá-

fi cos terminam comprando ou vendendo exatamente o oposto da tendência do mercado e fi cam mais ricos.

Artistas escrevem livros ou fi lmes que todo mundo diz “isso não vai dar certo, ninguém toca nestes temas” e terminam se transformando em ícones da cultura popular.

Líderes religiosos utilizam o medo e a culpa em vez do amor, que teoricamente seria a coisa mais importante do mundo; suas igrejas se enchem de fi éis.

Todos contra a tendência geral, exceto um grupo: políticos. Esses querem agradar a todos, e seguem o manual de atitudes corretas.

Acabam tendo que renunciar, desculpar-se, desmentir.


Morris abre uma tela atrás da outra em seu computador. E isso nada tinha a ver com tecnologia, mas com intuição. Já fi zera isso com o índice Dow Jones e, mesmo assim, não estava contente com os resultados. Melhor agora se concentrar um pouco nos personagens que conviveram com ele em grande parte de sua vida.

Olha mais uma vez o vídeo em que Gary Ridgway, o “Assassino de Green River”, conta com uma voz calma como matou 48 mulheres, quase todas prostitutas. Está relatando seus crimes não porque deseja a absolvição dos seus pecados, ou queira aliviar o peso de sua consciência; o promotor ofereceu trocar o risco da condenação à morte pela prisão perpétua. Ou seja, apesar de tanto tempo agindo com impunidade, não deixou provas sufi cientes para comprometê-lo.

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Mas talvez já esteja cansado ou entediado com a tarefa macabra a que se propôs realizar.

Ridgway. Trabalho estável como pintor de carrocerias de caminhão, e que só é capaz de lembrar das vítimas se conseguir relacioná-las com seus dias de trabalho. Durante vinte anos, às vezes com mais de cinqüenta detetives seguindo seus passos, sempre conseguiu cometer mais um crime sem deixar assinaturas ou pistas.

“Era uma pessoa não muito brilhante, deixava muito a desejar no seu trabalho, não tinha grande cultura, mas era um assassino perfeito”, diz um dos detetives na fi ta.

Ou seja, nasceu para isso. Tinha domicílio fi xo. Seu caso chegou a ser arquivado como insolúvel.

Já tinha assistido àquele vídeo centenas de vezes em sua vida. Normalmente, costumava inspirá-lo para resolver outros casos, mas hoje não estava surtindo efeito. Fecha a tela, abre outra, com a carta do pai de Jeffrey Dahmer, “O Açougueiro de Milwaukee”, responsável por matar e esquartejar 17 homens entre os anos de 1978 e 1991:

“Claro que eu não podia acreditar no que a polícia dizia a respeito do meu fi lho. Muitas vezes, sentei-me na mesa que foi usada como lugar de esquartejamento e altar satânico. Quando abria seu refrigerador, via apenas algumas garrafas de leite e latas de soda.

Como é possível que a criança que eu carreguei em meu colo tantas vezes e o monstro que agora tinha seu rosto em todos os jornais pudessem ser a mesma pessoa? Ah, seu estivesse no lugar dos outros pais que em julho de 1991 receberam a notícia que temiam — seus fi lhos não apenas desapareceram, mas foram assassinados. Neste caso, eu poderia visitar o túmulo onde repousavam seus restos, cuidar da sua memória. Mas, não: o meu fi lho estava vivo, e era o autor desses crimes horríveis.”

Altar satânico. Charles Manson e sua “família”. Em 1969, três jovens entram na casa de uma celebridade do cinema e matam todos que estão ali, inclusive um rapaz que estava saindo naquele momen-3 4 8

to. Mais dois assassinatos no dia seguinte — desta vez, um casal de empresários.

“Eu, sozinho, podia assassinar toda a humanidade”, diz.

Vê pela milésima vez a foto do mentor dos crimes sorrindo para a câmera, cercado de amigos hippies, inclusive um famoso músico da época. Todos absolutamente insuspeitos, sempre falando de paz e amor.

Fecha todos os arquivos abertos no seu computador. Manson é o que existe de mais próximo do que está acontecendo agora — cinema, vítimas conhecidas. Uma espécie de manifesto político contra o luxo, o consumismo, a celebridade. Apesar de ser o mentor dos crimes, jamais esteve no lugar onde foram perpetrados; usava seus adeptos para isso.

Não, a pista não está aí. E, apesar dos correios eletrônicos que mandou explicando que não pode ter respostas em tão pouco tempo, Morris começa a sentir que está tendo o mesmo sintoma que todos os detetives, em todos os tempos, tiveram a respeito de assassinos em série:

O caso passa a ser pessoal.

De um lado, um homem que provavelmente tem outra profi ssão, deve ter planejado seus crimes por causa das armas que usa, mas não conhece a capacidade da polícia local, está agindo em um terreno completamente desconhecido. Um homem vulnerável. Do outro lado, a experiência de vários órgãos de segurança acostumados a lidar com todas as aberrações da sociedade.

Mesmo assim, incapaz de interromper a trilha homicida de um simples amador.

Não devia ter atendido à chamada do comissário. Decidira morar no sul da França porque o clima era melhor, as pessoas mais diver-tidas, o mar estava sempre por perto, e esperava que ainda tivesse muitos anos pela frente para poder gozar os prazeres da vida.

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Tinha deixado sua divisão em Londres sendo considerado o melhor de todos. E agora, porque dera um passo errado, sua falha iria chegar até os ouvidos de seus colegas — e já não poderia desfrutar a merecida fama que alcançara com muito trabalho e muita dedicação.

Dirão: “Ele tentou compensar suas defi ciências quando foi a primeira pessoa que insistiu para que computadores modernos fossem instalados em nosso departamento. E apesar de toda a tecnologia ao seu alcance, está velho, incapaz de acompanhar os desafi os de um novo tempo.”

Apertou o botão certo: desligar. A tela apagou-se logo depois de mostrar o logotipo da marca do software que estava usando. Dentro da máquina, os impulsos eletrônicos desapareciam da memória fi xa, e não deixavam nenhum sentimento de culpa, remorso, impotência.

Mas seu corpo não tem botões semelhantes. Os circuitos em seu cérebro continuam funcionando, repetindo sempre as mesmas conclusões, tentando justifi car o injustifi cável, causando danos em sua auto-estima, convencendo-o de que seus colegas têm razão: talvez seu instinto e sua capacidade de análise tenham sido afetados pela idade.

Caminha até a cozinha, liga a máquina de café expresso, que está dando problemas. Anota mentalmente o que pretende fazer: como qualquer eletrodoméstico atual, é mais barato jogá-la fora e comprar uma nova na manhã seguinte.

Por sorte, resolveu desta vez funcionar, e ele bebe sem pressa o café.

Grande parte do seu dia consiste em apertar botões: computador, impressora, telefone, luz, fogão, máquina de café, aparelho de fax.

Mas agora precisa apertar o botão correto em sua mente: não vale a pena reler os documentos enviados pela polícia. Pense diferente.

Faça uma lista, mesmo que ela seja repetitiva:

a) o criminoso tem cultura e sofi sticação sufi cientes — pelo menos no que se refere a armas. E sabe como utilizá-las.

b) não é da região, ou teria escolhido uma época melhor, e um local menos policiado.

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c) não deixa assinatura clara. Ou seja, não quer ser identifi cado.

Embora isso pareça óbvio, as assinaturas nos crimes são uma maneira desesperada de o Médico tentar evitar os males causados pelo Monstro, de Dr. Jekyll dizer a Mr. Hyde: “Por favor, me detenha. Eu sou um mal para a sociedade, e não consigo me controlar.”

d) como foi capaz de aproximar-se de pelo menos duas vítimas, olhar em seus olhos, conhecer um pouco de sua história, está acostumado a matar sem remorso. Portanto, já deve ter participado de alguma guerra.

e) deve ter dinheiro, bastante dinheiro — não porque Cannes seja caríssima durante os dias do Festival; mas pelo custo da produção do envelope de cianureto. Morris estima que deve ter pago em torno de 5 mil dólares — 40 pelo veneno, e 4.460

pela maneira de acondicioná-lo.

f) não faz parte de máfi as de drogas, tráfi co de armas, coisas do tipo, ou já estaria sendo seguido pela Europol. Ao contrário do que a maioria desses criminosos pensa, só permanecem em liberdade porque ainda não chegou a hora certa de serem colocados atrás das grades de uma prisão. Seus grupos estão infi ltrados por agentes que são pagos a peso de ouro.

g) como não deseja ser preso, toma todas as precauções. Mas não pode controlar seu inconsciente, e está — sem querer — obe-decendo a um padrão determinado.

h) é uma pessoa absolutamente normal, incapaz de levantar suspeitas, possivelmente doce e afável, capaz de ganhar confi ança dos que atrai para a morte. Passa algum tempo com suas vítimas, duas delas do sexo feminino, muito mais desconfi ado do que os homens.

i) Não escolhe suas vítimas. Elas podem ser homens, mulheres, qualquer idade, qualquer posição social.

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Morris pára um momento. Algo que escreveu não está combinando direito com o resto.

Relê tudo duas ou três vezes. Na quarta leitura, consegue identifi car:

c) não deixa assinatura clara. Ou seja, não quer ser identifi cado.

Ora, o assassino não está tentando limpar o mundo como Manson, não pretende purifi car sua cidade como Ridgway, não quer satisfazer o apetite dos deuses, como Dahmer. Grande parte dos criminosos não deseja ser preso, mas quer ser identifi cado. Alguns para ganhar a manchete de jornais, a fama, a glória, como Zodíaco ou Jack, o Estripador — talvez achem que seus netos terão orgulho do que fi zeram, quando descobrirem um diário empoeirado no sótão da casa. Outros têm uma missão a cumprir; instalar o terror e afastar as prostitutas, por exemplo. Psicanalistas ouvidos a respeito concluíram que assassinos em série que pararam de matar de uma hora para a outra agiram assim porque o recado que pretendiam enviar tinha sido recebido.

Sim. Essa é a resposta. Como não havia pensado nisso antes?

Por uma simples razão: porque lançaria a busca policial em duas direções opostas. A do assassino e a da pessoa a quem deseja mandar o recado. E no caso de Cannes, ele está matando com muita rapidez: Morris tem quase certeza de que deve desaparecer em breve, assim que a mensagem for entregue.

No máximo em dois, três dias. E, como alguns dos assassinos em série que as vítimas não têm uma característica em comum, a mensagem deve estar sendo destinada a uma pessoa.

Apenas uma pessoa.

Volta ao computador, torna a ligá-lo, e envia uma mensagem tranqüilizadora ao comissário:

“Não se preocupe, os crimes devem cessar abruptamente, antes que o Festival termine.”

Apenas pelo prazer de correr riscos, envia uma cópia para um amigo na Scotland Yard — de modo que saibam que a França o 3 5 2

respeita como profi ssional, pediu sua ajuda, e obteve. Ainda é capaz de chegar a conclusões profi ssionais que mais adiante vão se mostrar acertadas. Não está velho como querem fazer pensar.

Sua reputação está em jogo; mas tem certeza do que acaba de escrever.

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10:19 PM

Hamid desliga o celular — não está nem um pouco interessado no que ocorre no resto do mundo. Na última meia hora seu telefone foi inundado com mensagens negativas.

Tudo isso é um sinal para que termine de uma vez com essa idéia absurda de fazer um fi lme. Deixou-se levar pela vaidade, em vez de escutar os conselhos do sheik e de sua mulher. Pelo visto, está começando a perder contato consigo mesmo: o mundo do luxo e do glamour começa a envenená-lo — logo ele, que sempre se julgou imune a isso!

Basta. Amanhã, quando tudo estiver mais calmo, irá convocar a imprensa mundial ali presente e dizer que, apesar de já ter investido uma quantia razoável na produção do projeto, irá interrompê-lo porque “era um sonho comum de todos os envolvidos, e um deles já não está mais entre nós”. Um jornalista, com certeza, procurará saber se tem outros projetos em mente. Ele responderá que ainda é cedo para falar disso, “precisamos respeitar a memória daquele que partiu”.

É evidente que lamentava, como qualquer ser humano com um mínimo de decência, o fato de que o ator que estava para contratar tinha acabado de morrer envenenado, e que o diretor escolhido para o projeto estava em um hospital — felizmente sem risco de vida. Mas ambas as coisas continham uma mensagem bem clara: nada de cinema. Não é o seu ramo, iria perder dinheiro e nada ganhar em troca.

Cinema para os cineastas, música para os músicos, literatura para os escritores. Desde que embarcara naquela aventura, dois meses atrás, só tinha conseguido aumentar seus problemas: lidar com egos gigantescos, rejeitar orçamentos irreais, corrigir um roteiro que parecia pior a cada vez que lhe entregavam a nova versão, aturar produtores com ar afetado que o tratavam com certa complacência, como se fosse um total ignorante no assunto.

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Sua intenção fora a melhor possível: mostrar a cultura do lugar de onde veio, a beleza do deserto, a sabedoria milenar e os códigos de honra dos beduínos. Tinha esse débito com a sua tribo, embora o sheik tivesse insistido que não devia se desviar do caminho originalmente traçado.

“As pessoas se perdem no deserto porque se deixam levar por miragens. Você está cumprindo bem o seu trabalho, concentre nele todas as suas energias.”

Mas Hamid queria ir mais longe: mostrar que era capaz de surpreender ainda mais, subir mais alto, demonstrar coragem. Pecou por orgulho, e isso não tornaria a acontecer.

Os jornalistas o cobrem de perguntas — pelo visto, a notícia viajara com mais velocidade que nunca. Diz que ainda não conhece os detalhes do caso, mas que irá fazer um pronunciamento no dia seguinte. Repete dezenas de vezes a mesma resposta, até que um de seus seguranças se aproxima e pede que deixem o casal em paz.

Chama um assistente. Pede que encontre Jasmine na multidão que circula pelos jardins, e a traga até ele. Sim, precisam de algumas fotos juntos, um novo press release confi rmando a negociação, uma boa assessoria de imprensa que seja capaz de manter o assunto vivo até outubro, data da Semana de Moda de Paris. Mais adiante, irá convencer pessoalmente a estilista belga; gostou muito do seu trabalho, está certo de que poderá render dinheiro e prestígio para o seu grupo — o que é absolutamente verdade. Mas, no momento, sabe o que ela está pensando: que tentou comprá-la para que liberasse o contrato de sua principal modelo. Aproximar-se agora não apenas aumentaria o preço, como seria deselegante. Tudo tem seu tempo, melhor aguardar o momento certo.

— Acho que devemos ir embora daqui.

Pelo visto, Ewa está incomodada com as perguntas dos jornalistas.

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— Esqueça isso. Não tenho o coração de pedra, como sabe, mas tampouco posso começar a sofrer por algo que na verdade só fez confi rmar aquilo que você me dissera antes: afaste-se do cinema.

Estamos em uma festa, e vamos fi car aqui até que termine.

Sua voz saiu mais dura do que imaginava, mas Ewa pareceu não se incomodar — como se seu amor ou seu ódio lhe fossem absolutamente indiferentes. Continua, já desta vez usando um tom mais apropriado:

— Veja a perfeição de festas como essa. Nosso anfi trião deve estar gastando uma quantia altíssima pela sua presença em Cannes, as despesas de passagens e hospedagem de celebridades escolhidas para participar com exclusividade deste caríssimo jantar de gala. Pode ter certeza de que terá dez a doze vezes mais lucro com a visibilidade gratuita que isso proporcionará: páginas inteiras de revistas, jornais, espaços em canais de televisão, horas nas TVs a cabo que não têm nada para mostrar além de grandes acontecimentos sociais. Mulheres vão associar suas jóias ao glamour e ao brilho, homens usarão seus relógios como demonstração de poder e dinheiro. Jovens irão abrir as páginas de moda e pensar: “Um dia quero estar ali, usando exatamente a mesma coisa.”

— Vamos embora. Tenho um pressentimento.

Aquilo era a gota d’água. Passara o dia inteiro aturando o mau humor da mulher, sem reclamar um segundo. A toda hora ela abria seu telefone para ver se havia chegado outra mensagem, e agora co-meçava a desconfi ar seriamente que algo muito estranho se passava. Outro homem? Seu ex-marido, que vira no bar do hotel, e que queria marcar de qualquer maneira um encontro? Se fosse assim, por que não falava diretamente o que estava sentindo, em vez de se trancar em si mesma?

— Não me venha com pressentimentos. Estou tentando carinho-samente explicar por que fazem uma festa como essa. Se deseja voltar a ser a mulher de negócios que sempre sonhou, se deseja voltar 3 5 7

a trabalhar com venda de alta-costura, procure prestar atenção no que digo. Por sinal, eu comentei que vi seu ex-marido no bar ontem à noite, e você me disse que era impossível. É por causa dele que está com seu celular ligado?

— Ele não tem o que fazer aqui.

Sentia vontade de dizer: “Eu sei quem tentou e conseguiu destruir seu projeto de cinema. E sei que é capaz de ir muito mais além disso.

Entenda que estamos correndo perigo, vamos embora.”

— Você não respondeu minha pergunta.

— A resposta é: sim. É por isso que estou com meu celular ligado.

Porque eu o conheço, sei que ele está por perto, e estou com medo.

Hamid ri.

— Eu também estou por perto.

Ewa pega uma taça de champagne e bebe de uma só vez. Ele não faz qualquer comentário: aquilo era apenas mais uma provocação.

Olha à sua volta, procurando esquecer as notícias que tinham surgi-do na tela do seu telefone, e aguardando a possibilidade de tirar fotos com Jasmine antes que todos fossem chamados para o salão onde o jantar seria servido, e onde os fotógrafos estavam proibidos de entrar.

O envenenamento do ator famoso não podia ter acontecido em pior momento: ninguém havia perguntado sobre o grande contrato que assinara com a modelo desconhecida. Meia hora atrás, era a única coisa que queriam saber; agora isso não interessava mais à imprensa.

Apesar de tantos anos trabalhando com luxo e glamour, ainda tem muito o que aprender: enquanto o contrato milionário tinha sido esquecido rapidamente, seu anfi trião conseguira manter o interesse na festa perfeita. Nenhum dos fotógrafos e jornalistas presentes havia deixado o local para ir até a delegacia ou ao hospital, apurar direito o que havia acontecido. Claro, eram todos especializados em moda, mas mesmo assim seus editores não ousaram deslocá-los dali por uma simples razão: crimes não freqüentam as mesmas páginas de eventos sociais.

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Especialistas em jóias de luxo não se metem em aventuras cinematográfi cas. Grandes promotores de eventos sabem que, indepen dente de todo o sangue que estiver correndo no mundo naquele exato momento, as pessoas sempre vão procurar as fotos que representam um mundo perfeito, inatingível, exuberante.

Assassinatos podem acontecer na casa ao lado, ou na rua adiante.

Festas como aquela, só no topo do mundo. O que é mais interessante para os mortais?

A festa perfeita.

Cuja promoção começara meses antes, com notas na imprensa, afi rmando que mais uma vez a joalheria iria realizar o seu evento anual em Cannes, mas que os convites já estavam todos distribuídos.

Não era bem assim; àquela altura, metade dos convidados estava recebendo uma espécie de memorando, pedindo gentilmente que reservassem a data.

Como tinham lido as notícias, claro que respondiam de ime-diato. Reservavam a data. Compravam seus bilhetes de avião e pagavam os hotéis por 12 dias, mesmo que fossem fi car apenas por 48 horas. Precisavam mostrar a todos que ainda continuavam na Superclasse, e isso terminaria por facilitar negócios, abrir portas, alimentar o ego.

Dois meses depois, chegava o luxuoso convite. As mulheres co-meçavam a fi car nervosas porque não conseguiam decidir qual o melhor vestido para a ocasião, e os homens mandavam suas secretárias ligarem para alguns conhecidos, perguntando se havia possibilidade de tomarem um champagne do bar e discutirem determinado assunto profi ssional antes que o jantar começasse. Era a maneira masculina de dizer: “Fui convidado para a festa. Você também foi?” Mesmo que o outro alegasse que estava ocupado e que difi cilmente poderia viajar para Cannes naquela época, o recado estava dado: a tal “agenda completa” era uma desculpa para o fato de ainda não ter recebido nenhuma comunicação a respeito.

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Minutos depois, o “homem ocupado” começava a mobilizar amigos, assessores, sócios, até conseguir o convite. Desta maneira, o an-fi trião podia selecionar qual seria a outra metade a ser convidada, baseando-se em três coisas: poder, dinheiro, contatos.

A festa perfeita.

Uma equipe profi ssional é contratada. Quando chega o dia, a ordem é servir o máximo de bebida alcoólica, de preferência a mítica e insuperável champagne francesa. Convidados de outros países não se davam conta de que nesse caso estavam servindo uma bebida produzida no próprio país, e portanto bem mais barata do que imaginavam. As mulheres — como Ewa fazia naquele momento

— achavam que a taça com o líquido dourado era o melhor com-plemento para o vestido, os sapatos e a bolsa. Os homens também tinham uma taça nas mãos, mas bebiam muito menos; estavam ali para encontrar o concorrente com quem deviam fazer as pazes, o fornecedor com quem precisavam melhorar as relações, o potencial cliente que seria capaz de distribuir seus produtos. Centenas de cartões de visitas eram trocados em uma noite como essa — a grande parte entre profi ssionais. Alguns poucos, claro, eram dirigidos a mulheres bonitas, mas todos sabiam que era um desperdício de papel: ninguém estava ali para encontrar o homem ou a mulher da sua vida.

E sim para fazer negócios, brilhar, e eventualmente, divertir-se um pouco. A diversão era opcional, e a coisa menos importante.

As pessoas que estão ali naquela noite vêm de três pontas de um triângulo imaginário. De um lado, estão os que já conseguiram tudo, passam seus dias nos campos de golfe, nos intermináveis almoços, nos clubes exclusivos — e quando entram em uma loja têm bastante dinheiro para comprar sem perguntar o preço. Chegaram ao topo e se dão conta de algo em que nunca tinham pensado antes: não podem viver sozinhos. Não suportam a companhia do marido ou da esposa, precisam estar em movimento, acreditando que ainda fazem 3 6 0

uma grande diferença para a humanidade — embora tenham descoberto que no momento em que se retiram de suas carreiras, passam a enfrentar um cotidiano tão aborrecido como o de qualquer classe média: café-da-manhã, leitura de jornais, almoço, um cochilo em seguida, jantar, televisão. Aceitam a maioria dos convites para jantar.

Vão a eventos sociais e esportivos nos fi nais de semana. Passam as férias em lugares da moda (embora já tenham se aposentado, ainda acreditam que existe algo chamado “férias”).

Na segunda ponta do triângulo, aqueles que ainda não conseguiram nada, tentando remar em águas turbulentas, quebrar a resistência dos vencedores, mostrar alegria mesmo se estão com o pai ou a mãe no hospital, vendendo o que ainda não possuem.

Finalmente, no vértice superior, está a Superclasse.

Essa é a mistura ideal de uma festa: os que chegaram lá e seguiram o caminho normal da vida; seu tempo de infl uência terminou embora ainda tenham dinheiro para muitas gerações, e agora descobrem que o poder é mais importante que a riqueza, mas já é tarde. Os que ainda não chegaram, e lutam com toda a energia e entusiasmo para animar a festa, achando que realmente conseguiram causar uma boa impressão, e descobrindo que ninguém os telefonou nas semanas seguintes, apesar dos muitos cartões distribuídos. Finalmente, aqueles que se equilibram no topo, sabendo que ali venta muito, e qualquer coisa poderá desequilibrá-los, fazendo cair no abismo.

As pessoas continuam se aproximando para conversar com ele; ninguém toca no assunto do assassinato — seja por ignorância completa, já que vivem em um mundo onde essas coisas não acontecem, seja por delicadeza, o que duvida muito. Olha à sua volta, e vê exatamente aquilo que mais detesta em matéria de moda: mulheres de meia-idade vestidas como se tivessem 20 anos. Será que não percebem que já está na hora de mudar de estilo? Conversa com um, sorri para outro, agradece elogios, apresenta Ewa aos poucos que ainda 3 6 1

não a conhecem. Tem apenas um pensamento fi xo: encontrar-se com Jasmine e posar para os fotógrafos nos próximos cinco minutos.

Um industrial e sua esposa relatam em detalhes a última vez que se viram — algo de que Hamid não consegue se lembrar, mas concorda com a cabeça. Falam de viagens, encontros, projetos que estão sendo desenvolvidos. Ninguém toca em assuntos interessantes, como

“você está mesmo feliz?” ou “depois de tudo que vivemos, qual é realmente o sentido da vitória?” Se fazem parte da Superclasse, claro que devem se comportar como se estivessem contentes e realizados, mesmo que estejam perguntando a si mesmos: o que realmente fazer do meu futuro, agora que tenho tudo que sonhei?

Uma criatura sórdida, saída de uma história em quadrinhos e usando calças justas por debaixo de um traje indiano, se aproxima:

— Senhor Hamid, lamento muito...

— Quem é você?

— Estou neste momento trabalhando para o senhor.

Que absurdo.

— Estou ocupado. E já sei tudo que precisava saber a respeito do lamentável incidente desta noite, de modo que não se preocupe.

Mas a criatura não se afasta. Hamid começa a sentir-se constrangido por sua presença, principalmente porque outros amigos que estavam por perto escutaram a terrível frase: “Estou trabalhando para o senhor.” O que vão pensar?

— Senhor Hamid, vou trazer a atriz do fi lme para que o senhor a conheça. Tive que me afastar dela assim que recebi um recado pelo telefone, mas...

— Mais tarde. Neste momento estou aguardando Jasmine Tiger.

O ser estranho afastou-se. Atriz do fi lme! Pobre moça, contratada e despedida no mesmo dia.

Ewa tem um copo de champagne em uma das mãos, um celular na outra, e um cigarro apagado entre os dedos. O industrial tira um isqueiro de ouro do bolso e faz menção de acendê-lo.

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— Não se preocupe, eu mesma podia fazer isso — responde. —

Mas tenho justamente a outra mão ocupada porque estou tentando fumar menos.

Gostaria de dizer: “Estou com o celular nas mãos para proteger esse idiota que está ao meu lado. Que não acredita em mim. Que jamais se interessou por minha vida e pelas coisas por que passei.

Se eu tornar a receber uma mensagem, faço um escândalo e ele será obrigado a sair daqui comigo, mesmo que não queira. Mesmo que depois me insulte, pelo menos estarei consciente de que salvei sua vida. Conheço o criminoso. Sinto que a Maldade Absoluta está por perto.”

Uma recepcionista começa a pedir que os convidados se dirijam ao salão superior. Hamid Hussein está pronto para aceitar o seu destino sem grandes reclamações; a foto fi ca para amanhã, irá subir os degraus com ela. Neste momento, um de seus assistentes aparece.

— Jasmine Tiger não está na festa. Deve ter ido embora.

— Não tem importância. Talvez tenham esquecido de avisá-la que deveríamos nos encontrar aqui.

Tem o ar calmo, de quem está acostumado a lidar com situações semelhantes. Mas seu sangue está fervendo: foi embora da festa?

Quem está pensando que é?

Tão fácil morrer. Embora o organismo humano seja um dos mecanismos mais bem concebidos da criação, basta um pequeno projétil de chumbo entrar com certa velocidade, cortar aqui e ali sem qualquer critério, e pronto.

Morte: segundo o dicionário, o fi nal de uma vida (embora vida também seja algo que necessite de defi nição correta). A paralisação permanente das funções vitais do corpo, como o cérebro, a respira-

ção, a corrente sanguínea e o coração. Duas coisas resistem a esse processo por mais alguns dias ou semanas: tanto os cabelos como as unhas continuam a crescer.

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A defi nição muda quando se pensa nas religiões: para algumas se trata de uma passagem para um estado superior, enquanto outras garantem que é um estado provisório, e a alma que antes habitava aquele corpo deverá retornar mais adiante, para pagar seus pecados ou desfrutar em uma próxima vida as bênçãos que lhe foram recusadas durante a encarnação anterior.

A moça está quieta ao seu lado. Ou o efeito do champagne chegou ao máximo, ou já passou — e agora ela se dá conta de que não conhece ninguém, que pode ser seu primeiro e último convite, que, às vezes, os sonhos se transformam em pesadelos. Alguns homens se aproximaram quando ele se afastou com a menina triste, mas pelo visto nenhum conseguiu deixá-la confortável. Quando o viu de novo, pediu que a acompanhasse durante o resto da festa. Perguntou se tinha transporte para a volta, porque está sem dinheiro, e seu companheiro pelo visto não irá mais voltar.

— Sim, posso deixá-la em casa. Com todo prazer.

Não estava nos seus planos, mas desde que notou o policial vigiando a multidão, é preciso mostrar que está acompanhado; é mais uma das muitas pessoas importantes e desconhecidas que estão presentes, orgulhoso de ter ao seu lado uma mulher bonita, bem mais jovem, o que se encaixa perfeitamente nos padrões do local.

— Não acha que devemos entrar?

— Sim. Mas conheço este tipo de evento, e o mais inteligente é esperar que antes todos estejam sentados. Pelo menos três ou quatro mesas têm lugares reservados, e não podemos correr o risco de passar por uma situação constrangedora.

Nota que a moça fi cou um pouco decepcionada por ele não ter um lugar reservado, mas conformou-se.

Os garçons estão recolhendo os copos vazios espalhados por todo o jardim. As modelos já desceram dos ridículos pedestais, onde dan-

çavam para mostrar aos homens que ainda há vida interessante na face da Terra, e relembrar às mulheres que estão urgentemente pre-3 6 4

cisando de uma lipoaspiração, um pouco de botox, uma aplicação de silicone, uma cirurgia estética.

— Por favor, vamos. Preciso comer. Vou passar mal.

Ela o pega pelo braço e começam a caminhar para o salão no andar superior. Pelo visto, o recado para Ewa foi recebido e descartado; mas agora sabe o que deve esperar de uma pessoa tão corrompida como a sua ex-mulher. A presença do anjo de sobrancelhas grossas continua ao seu lado, foi ela que o fez virar-se na hora certa, notar o policial à paisana, quando teoricamente sua atenção devia estar concentrada no famoso costureiro que acabara de chegar.

— Está bem, vamos entrar.

Sobem as escadas, e caminham até o salão. Na hora de entrarem, pede delicadamente que ela solte seu braço, já que seus amigos ali poderiam entender errado o que viam.

— Você é casado?

— Divorciado.

Sim, Hamid está certo, sua intuição estava correta, os problemas daquela noite já não signifi cam nada diante do que acaba de ver. Já que não tem absolutamente nenhum interesse profi ssional para participar de um festival de fi lmes, só há uma razão para a sua presença.

— Igor!

O homem a distância, acompanhado de uma mulher mais jovem, olha em sua direção. O coração de Ewa dispara.

— O que você está fazendo?

Mas Hamid já se levantou sem pedir licença. Não, ele não sabe o que está fazendo. Está caminhando em direção à Maldade Absoluta, sem limites, capaz de fazer qualquer coisa — absolutamente qualquer coisa. Pensa que está diante de um adulto e pode enfrentá-lo, seja com a força física ou com argumentos lógicos. O que não sabe é que a Maldade Absoluta tem um coração de criança, sem absolutamente nenhuma responsabilidade por seus atos, sempre convencido 3 6 5

de que está certo. E quando não consegue o que quer, não teme usar todos os artifícios possíveis para satisfazer seu desejo. Agora entende como o Anjo se transformou em demônio com tanta rapidez: porque sempre guardou vingança e rancor em seu coração, apesar de afi rmar que havia crescido e superado todos os seus traumas. Porque foi o melhor entre os melhores quando precisou demonstrar sua capacidade de vencer na vida, e isso lhe confi rmou a condição de onipotência. Porque não sabe desistir — já que conseguiu sobreviver aos piores tormentos pelos quais era capaz de caminhar sem jamais olhar para trás, carregando certas palavras em seu coração: “Um dia eu volto. E vocês verão do que sou capaz.”

— Pelo visto, encontrou alguém mais importante que nós — al-fi neta a ex-miss Europa, também sentada na mesa principal, junto com outras duas celebridades e o anfi trião da festa.

Ewa procura disfarçar o mal-estar que se instalou. Mas não sabe o que fazer. O anfi trião parece divertir-se com aquilo; aguarda sua reação.

— Desculpem. É um antigo amigo meu.

Hamid se encaminha para o homem, que parece vacilar. A moça que está com ele grita:

— Sim, estou aqui, senhor Hamid Hussein! Sou sua nova atriz!

Pessoas nas outras mesas se viram para ver o que está acontecendo. O anfi trião sorri — sempre é bom que aconteça alguma coisa fora do comum, assim os seus convidados terão muito o que conversar depois. A esta altura Hamid parou diante do homem; o anfi trião percebe que alguma coisa está errada, e se dirige para Ewa.

— Acho melhor trazê-lo de volta. Ou, se quiser, podemos colocar uma cadeira extra para o seu amigo, mas sua companheira terá que sentar-se longe daqui.

Os convidados já desviaram a atenção para os seus pratos, suas conversas sobre iates, aviões privados, cotação na bolsa de valores.

Apenas o anfi trião está atento ao que se passa.

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— Vá até lá — insiste.

Ewa não está ali, como ele pensa. Seu pensamento está a milhares de quilômetros de distância, em um restaurante em Irkutsk, perto do lago Baikal. A cena era diferente; Igor conduzia outro homem para o lado de fora.

Com muito esforço, levanta-se e se aproxima.

— Volte para sua mesa — ordena Hamid em voz baixa. — Nós dois vamos sair para conversar.

Isso era exatamente o passo mais absurdo que poderia ser dado naquele momento. Ela o agarra pelo braço, fi nge que está rindo e animada por reencontrar alguém que não via há tanto tempo, e diz com a voz mais calma do mundo:

— Mas o jantar está começando!

Evitou dizer “meu amor”. Não quer abrir as portas do inferno.

— Ela tem razão. Melhor conversarmos aqui mesmo.

Ele disse isso? Será que então está imaginando coisas, e não é nada do que pensa, a criança fi nalmente cresceu e se transformou em um adulto responsável? O demônio foi perdoado pela sua arrogância, e agora volta aos reinos dos céus?

Quer estar errada, mas os dois homens mantêm o olhar fi xo um no outro. Hamid pode ler algo perverso por detrás das pupilas azuis, e por um momento sente um arrepio. A moça lhe estende a mão.

— Muito prazer. Meu nome é Gabriela...

Ele não retribui o cumprimento. Os olhos do outro homem brilham.

— Há uma mesa no canto. Vamos nos sentar juntos — diz Ewa.

Uma mesa no canto? Sua mulher irá sair do lugar de honra, e sentar-se em uma mesa no canto da festa? Mas a esta altura Ewa já segurou os dois homens pelos braços e os conduz para a única mesa disponível, perto do local onde saem os garçons. A “atriz” segue o grupo. Hamid solta-se por um minuto, volta até o anfi trião e pede desculpas.

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— Acabei de encontrar um amigo de infância, que irá viajar amanhã, e não quero perder de maneira nenhuma esta oportunidade de conversar um pouco. Por favor, não esperem por nós, não sei quanto tempo vamos demorar ali.

— Ninguém ocupará os seus lugares — responde sorrindo o anfi -

trião, já sabendo que as duas cadeiras fi carão desocupadas.

— Achei que era um amigo de infância da sua mulher — alfi neta de novo a ex-miss Europa.

Mas Hamid já se dirigia à pior mesa do salão — reservada para os assessores das celebridades, que sempre conseguiam uma maneira de esgueirar-se para lugares onde não devem estar presentes, apesar de todas as precauções.

“Hamid é um bom homem”, pensa o anfi trião, enquanto vê o famoso estilista se afastando de cabeça erguida. “E este início de noite deve estar sendo muito difícil para ele.”

Sentam-se na mesa do canto. Gabriela entende que esta é uma chance única — mais uma das chances únicas que aconteceram naquele dia. Diz o quanto está contente com o convite, que fará o possível e o impossível para atender ao que estão esperando dela.

— Confi o no senhor. Assinei o contrato sem ler.

As outras três pessoas não dizem uma palavra, apenas se olham.

Será que há algo errado? Ou será que é o efeito do champagne? Melhor continuar a conversa.

— E fi co ainda mais contente porque, ao contrário do que dizem aí, o seu processo de seleção foi justo. Nada de pedidos, nada de favores. Fiz um teste de manhã, e antes mesmo que terminasse de ler o meu texto, me interromperam. E me pediram para ir até um iate conversar com o diretor. Isso é um bom exemplo para todo o mundo artístico, senhor Hussein. Dignidade com a profi ssão. Honestidade no momento de escolher com quem irá trabalhar. As pessoas ima-3 6 8

ginam que o mundo do cinema é completamente diferente, que a única coisa que realmente conta...

Ia dizer “dormir com o produtor”, mas ele está ao lado da mulher.

— ...é a aparência da pessoa.

O garçom traz a entrada e começa a recitar o monólogo que esperam dele:

— Como entrada, temos corações de alcachofra em molho de mostarda Dijon, temperado com óleo de oliva, ervas fi nas, e acompanhado de pequenas fatias de queijo de cabra dos Pirineus...

Só a moça mais jovem, com um sorriso no rosto, presta atenção ao que está dizendo. Ele percebe que não é bem-vindo e se afasta.

— Deve estar uma delícia!

Olha em torno. Ninguém levou seus talheres ao prato. Algo está muito errado ali.

— Vocês estão precisando conversar, não é verdade? Talvez seja melhor eu sentar em outra mesa.

— Sim — diz Hamid.

— Não, fi que aqui — diz a mulher.

E agora, o que fazer?

— Está contente com a sua companhia? — pergunta a mulher.

— Acabei de conhecer Gunther.

Gunther. Hamid e Ewa olham para o impassível Igor ao seu lado.

— E o que ele faz?

— Mas vocês são amigos dele!

— Sim. E sabemos o que ele faz. O que não sabemos é o quanto conhece de sua vida.

Gabriela se vira para Igor. Por que ele não a ajuda?

Alguém chega perguntando que tipo de vinho desejam tomar:

— Branco ou tinto?

Acaba de ser salva por um estranho.

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— Tinto para todos — responde Hamid.

— Voltando ao assunto, o que Gunther faz?

Não foi salva.

— Maquinaria pesada, pelo que pude entender. Não temos nenhuma outra relação, e a única coisa em comum entre nós é que ambos estávamos esperando amigos que não chegaram.

Boa resposta, pensa Gabriela. Quem sabe aquela mulher tivesse um caso secreto com o seu recém-parceiro. Ou um caso aberto, que o marido tinha acabado de descobrir naquela noite — e por isso a tensão no ar.

— Seu nome é Igor. Tem uma das maiores operadoras de telefonia celular da Rússia. Isso é muitíssimo mais importante que vender maquinaria pesada.

E se é assim, por que mentiu? Resolve fi car quieta.

— Esperava encontrá-lo aqui, Igor — agora ela se dirige ao homem.

— Vim para buscá-la. Mas mudei de idéia — é a resposta direta.

Gabriela toca na bolsa cheia de papel, e faz um ar de surpresa.

— Meu celular está tocando. Acho que minha companhia acaba de chegar, e preciso ir encontrá-lo. Peço desculpas, mas veio de longe apenas para acompanhar-me, não conhece ninguém aqui, e me sinto responsável por sua presença.

Levanta-se. A etiqueta ensina que não se deve apertar a mão de quem está comendo — embora até o momento nenhum deles tenha sequer tocado nos talheres. Mas os copos de vinho tinto já estão vazios.

E o homem que se chamava Gunther até dois minutos atrás acaba de pedir que tragam uma garrafa inteira para a mesa.

— Espero que tenha recebido os meus recados — diz Igor.

— Recebi três. Talvez a telefonia aqui seja pior do que a que você desenvolveu.

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— Não estou falando de telefone.

— Então não sei do que está falando.

Tem vontade de dizer: “Claro que sei.”

Como Igor deve saber que, durante o primeiro ano de sua rela-

ção com Hamid, esperou um telefonema, uma mensagem, algum amigo em comum dizendo que ele sentia sua falta. Não queria tê-lo por perto, mas sabia que magoá-lo seria a pior coisa que podia fazer — precisava pelo menos acalmar a Fúria, fi ngir que terminariam sendo bons amigos no futuro. Certa tarde, quando bebeu um pouco e resolveu chamá-lo, havia trocado o número de celular. Quando ligou para o escritório, soube que “estava em reunião”. Nos telefonemas seguintes — sempre quando bebia um pouco, e sua coragem aumentava — descobria que Igor “viajou” ou “ia telefonar logo em seguida”. O que nunca acontecia, claro.

E ela começou a ver fantasmas em todos os cantos, sentir que estava sendo vigiada, que em breve teria o mesmo destino do mendigo e das outras pessoas que ele insinuara “ter permitido passar para uma situação melhor”. Enquanto isso, Hamid não lhe perguntava nunca sobre o passado, sempre alegando que é um direito de todos guardar sua vida privada nos subterrâneos da memória. Fazia tudo para que ela se sentisse feliz, dizia que a vida tinha passado a ter sentido a partir do momento em que a encontrara, e lhe dava mostras de que podia sentir-se segura, protegida.

Um dia a Maldade Absoluta tocou a campainha de sua casa em Londres. Hamid estava em casa e o expulsou. Nada aconteceu nos meses que se seguiram.

Pouco a pouco, foi conseguindo enganar a si mesma. Sim, fi zera a escolha certa: a partir do momento em que elegemos um caminho, os outros desaparecem. Era infantil pensar que podia estar casada com um, e ser amiga do outro — aquilo só acontece quando as pessoas são equilibradas, o que não era o caso de seu ex-marido. Melhor acreditar que alguma mão invisível a salvou da Maldade Absoluta.

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É mulher o sufi ciente para fazer com que o homem que passou a ter a seu lado se torne dependente dela, e tenta ajudá-lo em tudo que pode: amante, conselheira, esposa, irmã.

Dedica toda a sua energia para ajudar o novo companheiro. Durante todo esse tempo tivera apenas uma única e verdadeira amiga

— que assim como surgiu, desapareceu. Também era russa, mas ao contrário dela, tinha sido abandonada por seu marido, e estava na Inglaterra sem saber exatamente o que fazer. Conversava com ela quase todos os dias.

“Deixei tudo para trás”, dizia. “E não me arrependo de minha decisão. Teria feito a mesma coisa mesmo que Hamid — contra a minha vontade — não tivesse comprado a linda fazenda na Espanha e a colocado em meu nome. Tomaria a mesma decisão se Igor, meu ex-marido, tivesse me oferecido metade de sua fortuna. Tomaria a mesma decisão porque sei que não preciso mais ter medo. Se um dos homens mais desejados do mundo quer estar ao meu lado, sou melhor do que eu mesma penso.”

Tudo mentira. Não estava tentando convencer a sua única confi dente, mas a si mesma. Era uma farsa. Por detrás da mulher forte, neste momento sentada naquela mesa com dois homens importantes e poderosos, estava uma menina que tinha medo de perder, de fi car sozinha, pobre, sem jamais ter experimentado a sensação de ser mãe.

Estava acostumada com o luxo e o glamour? Não. Procurava estar preparada para perder tudo no dia seguinte, quando descobrissem que era muito pior do que pensava, incapaz de corresponder às ex-pectativas dos outros.

Sabia manipular os homens? Sim. Todos pensavam que era forte, segura de si, dona de seu próprio destino; que podia de uma hora para a outra abandonar qualquer homem, por mais importante e desejado que fosse. E o que era pior: os homens acreditavam. Como Igor. Como Hamid.

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Porque sabia representar. Porque nunca dizia exatamente o que pensava. Porque era a melhor atriz do mundo, sabia esconder melhor que ninguém o seu lado patético.

— O que você quer? — ele pergunta em russo.

— Mais vinho.

Sua voz soava como se não estivesse se importando muito com a resposta: ele já tinha dito o que desejava.

— Antes de você partir, eu lhe disse algo. Acho que se esqueceu.

Havia dito muitas coisas, como “por favor, eu prometo que vou mudar e trabalharei menos”, ou “você é a mulher da minha vida”,

“se você for embora, está me destruindo”, frases que todo mundo escuta, e sabe que são absolutamente vazias de sentido.

— Eu lhe disse: se você for embora, vou destruir o mundo.

Não conseguia se lembrar, mas era possível. Igor sempre foi um péssimo perdedor.

— E o que isso quer dizer? — perguntou em russo.

— Tenham pelo menos a boa educação de falar em inglês — in-terrompeu Hamid.

Igor o encarou.

— Vou falar inglês não por causa da boa educação. Mas porque quero que entenda.

E voltando-se de novo para Ewa:

— Eu disse que ia destruir o mundo para tê-la de volta. Comecei a fazer isso, mas fui salvo por um anjo; você não merece. É uma mulher egoísta, implacável, interessada apenas em conseguir mais fama, mais dinheiro. Recusou tudo de bom que eu tinha para oferecer, porque acha que uma casa no interior da Rússia não condiz com o mundo em que sonha viver — ao qual não pertence, e jamais pertencerá.

“Sacrifi quei a mim e a outros por sua causa, e isso não pode fi car assim. Preciso ir até o fi nal, de modo que possa voltar ao mundo dos 3 7 3

vivos com a sensação do dever cumprido e da missão completa. Neste momento em que conversamos, estou no mundo dos mortos.”

Os olhos daquele homem inspiravam a Maldade Absoluta, pensa Hamid, enquanto assiste àquela conversa absurda, entremeada de longos períodos de silêncio. Ótimo: deixará que as coisas cheguem até o fi m como ele está sugerindo, desde que esse fi m não implique na perda da mulher amada. Melhor ainda: o ex-marido apareceu acompanhado daquela mulher vulgar, e a insulta em sua frente. Deixará que vá um pouco mais longe, e saberá interromper a conversa no momento desejado — quando ele já não puder mais pedir desculpas e disser que está arrependido.

Ewa deve estar enxergando a mesma coisa: um ódio cego contra tudo e contra todos, simplesmente porque determinada pessoa não conseguiu satisfazer a sua vontade. Pergunta o que teria feito se estivesse no lugar do homem que agora parecia lutar pela mulher amada.

Seria capaz de matar por ela.

O garçom aparece e repara que os pratos não tinham sido tocados.

— Há algo de errado com a comida?

Ninguém responde. O garçom entende tudo: a mulher estava com um amante em Cannes, o marido descobriu, e agora estavam se enfrentando. Tinha visto aquela cena muitas vezes, e geralmente terminava em briga ou escândalo.

— Mais uma garrafa de vinho — disse um dos homens.

— Você não merece absolutamente nada — diz o outro, com os olhos fi xos na mulher. — Você me usou como está usando este idiota ao seu lado. Foi o maior erro de minha vida.

O garçom resolve consultar o dono da festa antes de atender ao pedido sobre a outra garrafa, mas o outro homem já havia se levan-tado, dizendo para a mulher:

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— Basta. Vamos sair daqui.

— Sim, vamos sair, mas vamos lá fora — diz o outro. — Quero ver até onde pode ir para defender uma pessoa que não sabe o que signifi ca as palavras “honra” e “dignidade.”

Os machos se enfrentam por causa da fêmea. A mulher pede para que não façam isso, que voltem para a mesa, mas o seu marido parece estar realmente disposto a revidar o insulto. Pensa em avisar os seguranças que é possível acontecer uma briga lá fora, mas o maître diz que o serviço está lento, o que ele está fazendo parado ali? Precisa servir outras mesas.

Tem toda razão: o que acontece lá fora não é problema seu. Se disser que estava escutando a conversa, será repreendido.

Está sendo pago para servir mesas, e não para salvar o mundo.

Os três atravessam o jardim onde tinha sido servido o coquetel, e que está sendo rapidamente transformado; quando os convidados descerem vão encontrar uma pista de dança com luzes especiais, um tablado de material sintético, algumas poucas poltronas, e muitos bares com bebida gratuita espalhados pelos cantos.

Igor caminha na frente sem dizer nada. Ewa o segue em silêncio, e Hamid completa a fi la. A escada até a praia está fechada por uma pequena porta de metal, que é facilmente aberta. Igor pede que passem à sua frente, Ewa recusa. Ele parece não se incomodar e continua adiante, descendo os muitos lances de degraus que levam até o mar bem lá embaixo. Sabe que Hamid não irá demonstrar covardia. Até o momento em que o encontrara na festa, não passava de um costureiro sem escrúpulos, capaz de seduzir uma mulher casada, e manipular a vaidade dos outros. Agora, porém, o admira secretamente. É um verdadeiro homem, capaz de lutar até o fi m por alguém que julga importante, embora Igor saiba que Ewa não merece sequer as mi-galhas do trabalho da atriz que encontrara naquela noite. Não sabe 3 7 5

representar: pode sentir o seu medo, sabe que está suando, pensando quem deve chamar, como pedir socorro.

Chegam na areia, Igor vai até o fi nal da praia e senta-se perto de alguns rochedos. Pede que os dois façam a mesma coisa. Sabe que além de todo o pavor que está sentindo, Ewa também pensa: “Vou amarrotar meu vestido. Vou sujar meus sapatos.” Mas ela senta-se ao seu lado. O homem pede que se afaste um pouco, ele deseja sentar-se ali. Ewa não se move.

Ele não insiste. Agora ali estão os três, como se fossem velhos conhecidos, em busca de um momento de paz para contemplar a lua cheia que nasce, antes que sejam obrigados a subir de novo e escutar o barulho infernal da discoteca lá em cima.


Hamid promete para si mesmo: dez minutos, tempo sufi ciente para que o outro diga tudo que pensa, desafogue sua raiva, e volte para o lugar de onde veio. Se tentar alguma violência, estará perdido: é fi sicamente mais forte, e foi educado pelos beduínos para reagir com velocidade e precisão a qualquer ataque. Não queria um escândalo no jantar, mas que o tal russo não se engane: está preparado para tudo.

Quando subirem de novo irá pedir desculpas ao anfi trião, e explicar que o incidente já foi resolvido: sabe que pode falar abertamente com ele, dizer que o ex-marido de sua mulher aparecera sem avisar, e fora obrigado a retirá-lo da festa antes que causasse algum problema. Por sinal, se o homem não sair no momento em que voltarem lá para cima, chamará um dos seus seguranças para expulsá-lo. Tanto faz que seja rico, que tenha uma das maiores empresas de telefonia celular da Rússia; ele está sendo inconveniente.

— Você me traiu. Não apenas os dois anos que está com este homem, mas todo o tempo de nossas vidas que passamos juntos.

Ewa não responde nada.

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— O que você seria capaz de fazer para continuar com ela?

Hamid cogita se deve responder ou não. Ewa não é uma mercadoria, que pode ser negociada.

— Pergunte de outra maneira.

— Perfeito. Você daria sua vida pela mulher que está ao seu lado?

Maldade pura nos olhos daquele homem. Mesmo que ele tenha conseguido retirar uma faca do restaurante (não prestou atenção a este detalhe, mas deve pensar em todas as possibilidades), conseguirá facilmente desarmá-lo. Não, não seria capaz de dar a vida por ninguém, exceto por Deus ou pelo chefe de sua tribo. Mas precisava dizer algo.

— Seria capaz de lutar por ela. Penso que, em um momento extremo, seria capaz de matar por ela.

Ewa não agüenta mais a pressão; gostaria de dizer tudo o que sabe a respeito do homem ao seu lado direito. Tem certeza de que cometeu o crime, acabou com o sonho de produtor que seu novo companheiro acalentava há tantos anos.

— Vamos subir.

Na verdade quer dizer: “Por favor, vamos sair daqui imediatamente. Você está conversando com um psicopata.”

Igor parece que não a escuta.

— Seria capaz de matar por ela. Portanto, seria capaz de morrer por ela.

— Se eu lutasse e perdesse, acho que sim. Mas não vamos come-

çar uma cena aqui na praia.

— Quero subir — repete Ewa.

Mas Hamid agora está sendo tocado em seu amor-próprio. Não pode sair dali como um covarde. A ancestral dança dos homens e animais para impressionar a fêmea está começando.

— Desde que você partiu, nunca mais pude ser eu mesmo — diz Igor, como se estivesse sozinho naquela praia. — Meus negócios 3 7 7

prosperaram. Consegui manter o sangue-frio durante o dia, enquanto passava as noites em depressão completa. Perdi algo de mim que nunca mais poderei recuperar. Achei que podia, quando vim até Cannes. Mas agora que cheguei aqui, vejo que a parte que morreu em mim não pode e não deve ser ressuscitada. Jamais voltaria para você, mesmo que se arrastasse aos meus pés, implorasse perdão, ameaçasse suicídio.

Ewa respira. Pelo menos não haverá brigas.

— Você não entendeu meus recados. Eu disse que seria capaz de destruir o mundo, e você não viu. E se viu, não acreditou. O que é destruir o mundo?

Coloca a mão no bolso da calça, e tira uma pequena arma. Mas não a está apontando para ninguém; continua com os olhos fi xos no mar, na lua. O sangue começa a correr mais rápido nas veias de Hamid: ou o outro está querendo apenas assustá-los e humilhá-los, ou está diante de um combate mortal. Mas ali naquela festa? Sabendo que poderá ser preso assim que subir de novo as escadas? Não pode ser tão louco assim — ou não teria conseguido tudo o que conseguiu na vida.

Basta de distrações. É um guerreiro treinado para se defender e para atacar. Deve fi car absolutamente imóvel, porque embora o outro não o esteja olhando diretamente, sabe que seus sentidos estão atentos a qualquer gesto.

Tudo que pode mover sem ser percebido são seus olhos; não há ninguém na praia. Lá em cima começam os primeiros acordes da banda, afi nando os instrumentos, preparando-se para a grande alegria da noite. Hamid não está pensando — seus instintos agora estão treinados para agir sem a interferência do cérebro.

Entre ele e o homem está Ewa, hipnotizada pela visão da arma.

Se tentar qualquer coisa, ele irá virar-se para disparar, ela pode ser atingida.

Sim, talvez sua primeira hipótese seja correta. Está apenas querendo assustá-los um pouco. Obrigá-lo a ser covarde, a perder sua 3 7 8

honra. Se realmente estivesse interessado em atirar, não estaria segurando a arma de maneira não displicente. Melhor conversar, relaxá-

lo, enquanto busca uma saída.

— O que é destruir o mundo? — pergunta.

— É destruir uma simples vida. O universo acaba ali. Tudo aquilo que a pessoa viu, experimentou, todas as coisas más e boas que cru-zaram o seu caminho, todos os sonhos, esperanças, derrotas e vitó-

rias, tudo deixa de existir. Quando éramos crianças, aprendíamos na escola um trecho, que só mais tarde iria descobrir que vinha de um religioso protestante. Ele dizia algo como: “Quando este mar diante de nós leva um grão de areia para suas profundezas, a Europa inteira fi ca menor. Claro que não percebemos, porque é apenas um grão de areia. Mas naquele momento, o continente foi diminuído.”

Igor faz uma pausa. Começa a fi car irritado com o barulho lá em cima, as ondas o estavam deixando relaxado e tranqüilo, pronto para saborear este momento com o respeito que merecia. O anjo de sobrancelhas grossas está assistindo a tudo, e está contente com o que vê.

— Aprendíamos isso para entender também que éramos responsáveis pela sociedade perfeita, o comunismo — continua. — Um era irmão do outro. Na verdade, um era vigia, delator do outro.

Voltou a estar calmo, refl exivo.

— Não estou lhe escutando direito.

Assim tem um motivo para se mover.

— Claro que está. Claro que sabe que estou com uma arma na mão, e quer se aproximar para ver se consegue tomá-la de mim. Procura conversar para distrair-me enquanto pensa no que deve fazer.

Por favor, não se mexa. O momento ainda não chegou.

— Igor, vamos deixar isso tudo para lá — diz Ewa em russo.

— Eu te amo. Vamos embora juntos.

— Fale em inglês. Seu companheiro precisa entender tudo.

Sim, ele entenderia. E mais tarde iria agradecê-la por isso.

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— Eu te amo — repete em inglês. — Jamais recebi seus recados, ou teria voltado correndo. Tentei ligar para você várias vezes, e não consegui. Deixei muitas mensagens com a sua secretária que nunca foram retornadas.

— É verdade.

— Desde que recebi suas mensagens hoje, não podia esperar a hora de encontrá-lo. Não tinha idéia de onde estava, mas sabia que ia me buscar. Sei que não quer me perdoar, mas pelo menos me permita que volte a viver ao seu lado. Serei sua empregada, sua faxineira, cuidarei de você e de sua amante, se resolver arranjar uma. Mas tudo que desejo é fi car ao seu lado.

Depois explicaria tudo isso a Hamid. Agora era o momento de dizer qualquer coisa, desde que pudessem sair dali e voltar lá para cima, para o mundo real, onde existiam policiais capazes de impedir que a Maldade Absoluta continuasse a mostrar seu ódio.

— Ótimo. Eu gostaria de acreditar nisso. Melhor dizendo, eu gostaria de acreditar que a amo também, e que a quero ter de volta.

Mas não é verdade. E acho que você está mentindo, como sempre mentiu.

Hamid já não escuta o que nenhum dos dois está dizendo — sua mente está longe dali, junto com os guerreiros antepassados, pedindo inspiração para o golpe certo.

— Você podia ter me dito que nosso casamento não estava andando do jeito que ambos esperávamos. Nós construímos tanta coisa juntos; será que era impossível encontrar uma solução? Sempre existe uma maneira de permitir que a felicidade entre em nossas casas, mas para isso é preciso que ambos se dêem conta dos problemas. Eu escutaria tudo que você teria para me dizer, o casamento ganharia de novo a excitação e a alegria de quando nos encontramos. Mas você não quis fazer isso. Preferiu a saída mais fácil.

— Sempre tive medo de você. E agora, com essa arma em suas mãos, continuo com mais medo ainda.

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Hamid é puxado de volta a terra pelo comentário de Ewa — já não está mais com a alma solta no espaço, pedindo conselho aos guerreiros do deserto, procurando saber como agir.

Ela não podia ter dito isso. Está dando poder ao inimigo; ele agora sabe que é capaz de aterrorizá-la.

— Eu gostaria de ter lhe convidado para jantar um dia, dizer que me sentia solitária apesar de todos os banquetes, as jóias, as viagens, os encontros com reis e presidentes — continua Ewa. — Sabe mais o quê? Você sempre me trazia presentes caros, mas jamais me mandou a coisa mais simples do mundo: fl ores.

Virou uma discussão de casal.

— Vou deixar vocês dois conversando.

Igor não diz nada. Continua com os olhos fi xos no mar, mas lhe aponta a arma, sugerindo que não se mova. É louco; aquela aparente calma é mais perigosa que gritos de raiva ou ameaças de violência.

— Enfi m — continua, como se não tivesse se distraído com os comentários dela nem com o movimento dele —, você escolheu a saída mais fácil. Abandonar-me. Não me deu nenhuma chance, não entendeu que tudo que eu fazia era por você, para você, em sua honra.

“Mesmo assim, apesar de todas as injustiças, de todas as humilha-

ções, eu aceitaria qualquer coisa para tê-la de volta. Até hoje. Até o momento em que lhe mandei os recados, e você fi ngiu que não recebeu. Ou seja, até o sacrifício de pessoas não foi capaz de movê-la, de matar sua sede de poder e de luxo.”

A Celebridade envenenada e o diretor que está entre a vida e a morte: será que Hamid está imaginando o inimaginável? E compreende algo mais grave: o homem ao seu lado acaba de assinar uma sentença de morte com a sua confi ssão. Ou se suicida, ou acaba com a vida dos dois que sabem demais.

Pode estar delirando. Pode estar entendendo errado, mas sabe que o tempo se esgota.

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Olha a arma na mão do homem. Pequeno calibre. Se não acertar em pontos críticos do corpo, não causará muito dano. Não deve ter experiência com isso, ou teria escolhido algo mais poderoso. Ele não sabe o que está fazendo, deve ter comprado a primeira coisa que lhe ofereceram, dizendo que disparava balas e podia matar.

Por outro lado, por que começaram a ensaiar lá em cima? Não entendem que o barulho da música não deixará que se ouça um tiro?

Saberiam a diferença entre um tiro e um dos muitos ruídos artifi ciais que neste momento infestam — o termo é esse mesmo, infestam, empesteiam, poluem — o ambiente?

O homem voltou a fi car quieto, e isso é muito mais perigoso do que se continuasse falando, esvaziando um pouco o coração de sua amargura e de seu ódio. Pesa de novo as possibilidades, precisa agir nos próximos segundos. Atirar-se por cima de Ewa e agarrar a arma enquanto ainda está displicentemente colocada no seu colo, embora o dedo esteja no gatilho. Estender os braços para a frente. Ele irá recuar de susto, e neste momento Ewa sairá da linha de tiro. Ele irá levantar o braço em sua direção, apontando a arma, mas já estará perto o sufi ciente para poder segurar o seu punho. Tudo acontecerá em um segundo.

Agora.

Pode ser que este silêncio signifi que algo positivo; ele perdeu a concentração. Ou pode ser o início do fi m; já disse tudo que tinha para dizer.

Agora.

Na primeira fração de segundo, seu músculo da coxa esquerda tensiona-se ao máximo, empurrando-o com toda rapidez e a violência em direção à Maldade Absoluta; a área do seu corpo diminui à medida que se deita sobre o colo da mulher, com as mãos estendidas para frente. O primeiro segundo continua, e ele vê a arma sendo 3 8 2

apontada diretamente para a sua testa — o movimento do homem foi mais rápido do que pensava.

Seu corpo continua voando em direção à arma. Deviam ter conversado antes — Ewa jamais lhe falara muito do ex-marido, como se ele pertencesse a um passado que não gostaria de lembrar em nenhuma circunstância. Embora tudo esteja acontecendo em câmera lenta, ele recuou com a rapidez de um gato. A pistola não está tremendo.

O primeiro segundo está chegando ao fi nal. Ele viu um movimento no dedo, mas não há som, exceto a pressão de alguma coisa que-brando os ossos no centro de sua testa. A partir daí, o seu universo se apaga, e junto com ele, vão as lembranças do jovem que sonhou ser alguém, a vinda para Paris, o seu pai com a loja de tecidos, o sheik, as lutas para conseguir um lugar ao sol, os desfi les, as viagens, o encontro com a mulher amada, os dias de vinho e rosas, os sorrisos e prantos, o último nascer da lua, os olhos da Maldade Absoluta, os olhos assustados de sua mulher, tudo desaparece.

— Não grite. Não diga uma palavra. Acalme-se.

Claro que ela não vai gritar, e tampouco precisa pedir que se acalme. Está em estado de choque como animal que é, apesar das jóias e do vestido caro. O sangue já não circula com a mesma velocidade, o rosto fi ca pálido, a voz desaparece, a pressão arterial começou a despencar. Sabe exatamente o que está sentindo — ele já experimen-tara isso quando viu o rifl e do guerreiro afegão apontado para o seu peito. Imobilidade total, incapacidade de reagir. Fora salvo porque um companheiro disparou primeiro. Até hoje era grato ao homem que salvara sua vida; todos imaginavam que era seu motorista, quando na verdade tinha muitas ações da companhia, conversavam sempre, haviam se falado naquela tarde — ele telefonara perguntando se Ewa dera algum sinal de ter recebido as mensagens.

Ewa, pobre Ewa. Com um homem morrendo em seu colo. Os seres humanos são imprevisíveis, reagem como aquele tolo reagiu, 3 8 3

sabendo que em momento algum tinha condições de vencê-lo. As armas também são imprevisíveis: achou que a bala iria sair do outro lado da cabeça, arrancando uma tampa do cérebro, mas pelo ângulo do tiro, ela deve ter atravessado o cérebro, desviado em algum osso, e penetrado no tórax. Que treme descontroladamente, sem sangramento visível.

Deve ser o tremor, e não o tiro, que colocou Ewa neste estado.

Empurra o corpo com os pés, e dá um tiro em sua nuca. Os tremores cessam. O homem merece ter uma morte digna — foi valente até o fi nal.

Estão os dois a sós na praia. Ele ajoelha-se diante dela e coloca a pistola em seu seio. Ewa não faz nenhum movimento.

Tinha sempre imaginado um fi nal diferente para esta história: ela entendendo os recados. Dando uma nova chance à felicidade. Tinha pensado em tudo que diria quando fi nalmente estivessem como estavam agora, sem ninguém por perto, olhando o mar calmo do Mediterrâneo, sorrindo e conversando.

Não fi cará com essas palavras na garganta, mesmo que agora sejam absolutamente inúteis.

— Sempre imaginei que tornaríamos a caminhar de mãos dadas em um parque, ou na beira do mar, dizendo fi nalmente um para o outro as palavras de amor que viviam sendo adiadas. Jantaríamos fora uma vez por semana, viajaríamos juntos para lugares que nunca estivemos apenas pelo prazer de descobrir coisas novas na companhia um do outro.

“Enquanto você esteve fora, eu copiei poemas em um caderno, para que pudesse sussurrá-los em seu ouvido enquanto adorme-cesse. Escrevi cartas dizendo tudo que sentia, que deixaria em um lugar onde você terminaria descobrindo, e entendendo que não a esqueci um só dia, um minuto sequer. Iríamos discutir juntos os projetos para a casa que pretendia construir só para nós na mar-3 8 4

gem do lago Baikal; sei que tinha várias idéias a respeito. Planejei um aeroporto privado, deixaria que você usasse o seu bom gosto para cuidar da decoração. Você, a mulher que justifi cou e deu um sentido à minha vida.”

Ewa não diz nada. Apenas olha o mar à sua frente.

— Vim até aqui por sua causa. E entendi, fi nalmente, que tudo isso era absolutamente inútil.

Apertou o gatilho.

Quase não se ouviu nenhum som, já que o cano da arma estava colado no corpo. A bala penetrou no ponto certo, e o coração deixou de bater imediatamente. Apesar de toda a dor que lhe causara, não queria que sofresse.

Se existia uma vida após a morte, ambos — a mulher que o traiu, e o homem que permitiu que isso acontecesse — agora estavam de mãos dadas, caminhando pelo luar que chegava até a beira da praia. Encontravam o anjo de sobrancelhas grossas, que explicaria direito tudo que aconteceu, e não permitiria sentimentos de rancor ou ódio; todo mundo um dia precisa partir do planeta conhecido como Terra. E que o amor justifi ca certos atos que os seres humanos são incapazes de compreender — a não ser que estejam vivendo o que ele vivera.

Ewa mantinha os olhos abertos, mas seu corpo perde a rigidez, e cai na areia. Deixa os dois ali, vai até os rochedos, limpa cuidadosamente as impressões digitais da arma e a atira no mar, o mais longe possível do local onde contemplavam a lua. Volta a subir as escadas, encontra uma lixeira no caminho e deixa ali o silenciador

— não houvera necessidade, a música tinha aumentado no momento certo.

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10:55 PM

Gabriela vai até a única pessoa que conhece.

Os convidados estão neste momento saindo do jantar; o conjunto está tocando músicas dos anos 60, a festa começa, as pessoas sorriem e conversam uma com as outras, apesar do barulho ensurdecedor.

— Estive procurando por você! Onde estão seus amigos?

— Onde está seu amigo?

— Acaba de sair, dizendo que houve um grande problema com o ator e o diretor! Me deixou aqui, sem me dar qualquer explicação maior! Não haverá festa no barco, foi tudo que me disse.

Igor imagina o problema. Não tinha a menor intenção de matar alguém que admirava tanto, procurava assistir a seus fi lmes sempre que tinha um pouco de tempo. Mas, enfi m, é o destino que escolhe

— o homem é apenas um instrumento.

— Estou indo embora. Se quiser, posso deixá-la em seu hotel.

— Mas a festa está começando agora!

— Aproveite, então. Preciso viajar amanhã cedo.

Gabriela precisa tomar uma decisão rapidamente. Ou fi ca ali com a bolsa cheia de papel, em um lugar que não conhece ninguém, esperando que uma alma caridosa resolva levá-la pelo menos até a Croisette — onde tirará os sapatos, antes de subir a interminável ladeira até o quarto que divide com mais quatro amigas.

Ou aceita o convite daquele homem gentil, que deve ter excelentes contatos, é amigo da mulher de Hamid Hussein. Presenciara o começo de uma discussão, mas acredita que coisas como essa aconteçam todos os dias, e em breve fariam as pazes.

Já tem um papel garantido. Está exausta de todas as emoções daquele dia. Tem medo de terminar bebendo demais e estragar tudo.

Homens solitários vão se aproximar perguntando se está sozinha, o que irá fazer depois, se gostaria de visitar no dia seguinte uma joalheria com algum deles. Terá que passar o resto da noite esqui-3 8 7

vando-se gentilmente, sem ferir nenhuma suscetibilidade, porque nunca sabe com quem está falando. Aquele jantar é um dos mais exclusivos do Festival.

— Vamos.

Uma estrela se comporta assim; sai quando ninguém espera.

Caminham até a portaria do hotel, Gunther (não consegue se lembrar do outro nome) pede um táxi, o recepcionista diz que eles têm sorte — se tivessem esperado um pouco mais, seriam obrigados a entrar em uma fi la gigantesca.

No caminho de volta, ela pergunta por que mentiu a respeito do que fazia. Ele diz que não mentiu — já teve realmente uma companhia telefônica, mas resolveu vendê-la porque achava que o futuro estava em maquinaria pesada.

E o nome?

— Igor é um apelido carinhoso, o diminutivo de Gunther em russo.

Gabriela aguarda a cada minuto o famoso convite “Vamos tomar um drinque no meu hotel antes de dormir?”. Mas nada acontece: ele a deixa na porta da sua casa, despede-se com um aperto de mão, e continua adiante.

Isso é que é elegância!

Sim, foi o seu primeiro dia de sorte. O primeiro de muitos. Amanhã, quando recuperar o seu telefone, irá fazer uma ligação a cobrar para uma cidade perto de Chicago contando as grandes novidades, pedindo que comprem as revistas, porque ela foi fotografada subindo os degraus com a Celebridade. Dirá também que foi obrigada a mudar de nome. Mas se perguntarem, excitados, o que vai acontecer, mudará de assunto: tem uma certa superstição em comentar projetos antes que eles se realizem. Irão saber das coisas, à medida que as notícias começarem a pipocar: atriz desconhecida eleita para papel principal. Lisa Winner foi a convidada principal de uma festa 3 8 8

em Nova York. Moça de Chicago, até então desconhecida, é a grande revelação do fi lme de Gibson. Agente negocia contrato milionário com uma das grandes produtoras de Hollywood.

O céu é o limite.

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11:11 PM

— Mas você já está de volta?

— E teria chegado muito antes, se não fosse o trânsito.

Jasmine atira os sapatos de um lado, a bolsa de outro, e joga-se na cama, exausta, sem tirar o vestido.

— As palavras mais importantes em todas as línguas são palavras pequenas. “Sim”, por exemplo. Ou “Amor”. Ou “Deus”. São palavras que saem com facilidade e preenchem espaços vazios em nosso mundo. Entretanto, existe uma palavra — também muito pequena — que eu tenho uma imensa difi culdade em dizer. Mas farei isso agora.

Olhou para a sua companheira:

— Não.

Bateu na cama, pedindo para que sentasse ao seu lado. Acariciou seus cabelos.

— O “não”’ tem fama de maldito, egoísta, pouco espiritual.

Quando dizemos um “sim”, nos achamos generosos, compreensi-vos, educados. Mas é isso que estou lhe dizendo agora: “não”. Não farei o que me pede, o que me obriga, achando que é o melhor para mim. Claro que você vai dizer que tenho apenas 19 anos e ainda não entendo direito o que é a vida. Mas basta uma festa como a de hoje para saber o que desejo e o que não quero de jeito nenhum.

“Nunca pensei em ser modelo. Mais que isso, nunca pensei que era capaz de me apaixonar. Sei que o amor só é capaz de viver em liberdade, mas quem lhe disse que sou escrava de alguém? Sou escrava apenas do meu coração, e neste caso o fardo é suave, e o peso é inexistente. Escolhi você antes mesmo que tivesse me escolhido. Me entreguei a uma aventura que parecia impossível, agüentando sem reclamar todas as conseqüências — desde os preconceitos da sociedade até os problemas com a minha família. Superei tudo para estar aqui com você esta noite, em Cannes, saboreando a vitória de um 3 9 1

excelente desfi le, sabendo que teria outras oportunidades na vida.

Sei que as tenho, junto de você.”

A companheira estendeu-se na cama ao lado dela, e colocou sua cabeça no colo.

— Quem me chamou a atenção para isso foi um estrangeiro que conheci esta noite, enquanto estava ali, perdida no meio da multidão, sem saber exatamente o que dizer. Perguntei o que fazia na festa: respondeu que perdera seu amor, viera até aqui para buscá-la, e agora já não tinha mais certeza de que desejava exatamente aquilo.

Pediu que olhasse ao redor: estávamos cercados de pessoas cheias de certezas, de glórias, de conquistas. Comentou: “Não estão se divertindo. Acham que chegaram ao topo de suas carreiras, e a inevitável descida os assusta. Esqueceram que ainda existe um mundo inteiro para conquistar, porque...”

— ...porque se acostumaram.

— Exatamente. Passaram a ter muitas coisas, e poucas aspirações.

Estão cheios de problemas resolvidos, projetos aprovados, empresas que prosperam sem que seja necessária qualquer interferência. Agora, só lhes resta ter medo da mudança, e por isso vão de festa em festa, de encontro em encontro — para não terem tempo de pensar.

Para encontrarem as mesmas pessoas, e acharem que tudo continua igual. As certezas substituíram as paixões.

— Tire a roupa — disse a companheira, tentando evitar qualquer comentário.

Jasmine levanta-se, tira a roupa, e entra debaixo das cobertas.

— Dispa-se você também. E me abrace. Preciso muito do seu abraço, porque hoje achei que ia me deixar ir embora.

A companheira também tira a roupa, apaga a luz. Jasmine dorme logo em seguida em seus braços. Fica acordada algum tempo, olhando o teto, pensando que, às vezes, uma menina de 19 anos, na sua inocência, consegue ser mais sábia que uma mulher de 38.

Sim, por mais que temesse, por mais insegura que se sentisse neste 3 9 2

momento, seria forçada a crescer. Terá um poderoso inimigo pela frente, HH com certeza vai criar todas as difi culdades possíveis para impedi-la de participar da Semana de Moda, em outubro. Primeiro, insistirá em comprar sua marca. Como isso será impossível, tentará desacreditá-la junto à Federação, dizendo que não cumpri-ra sua palavra.

Os próximos meses seriam muito difíceis.

Mas o que HH e ninguém mais sabe é que ela tem uma força absoluta, total, que a ajudará a superar todas as difi culdades: o amor da mulher que agora se aconchegava entre seus braços. Por ela, faria absolutamente tudo, exceto matar.

Com ela, seria capaz de tudo — inclusive vencer.

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1:55 AM

O jato de sua companhia já está com os motores ligados. Igor toma seu assento preferido — segunda fi leira, lado esquerdo — espera a decolagem. Quando os sinais de apertar o cinto se apagam, vai até o bar, serve uma generosa dose de vodka, e bebe de um gole só.

Por um instante, pensa se realmente tinha enviado direito os recados para Ewa, enquanto ia destruindo mundos à sua volta. Será que devia ter sido mais claro, colocando algo como um bilhete, um nome, coisas assim? Arriscadíssimo — podiam pensar que era um assassino em série.

Não era: tinha um objetivo que felizmente foi corrigido a tempo.

A lembrança de Ewa já não pesava tanto quanto antes. Não a ama como a amava, e não a odeia como passou a odiá-la. Com o passar do tempo, irá desaparecer por completo de sua vida. Que pena; apesar de todos os seus defeitos, difi cilmente tornaria a encontrar outra mulher como ela.

Vai até o bar de novo, abre outra garrafi nha de vodka, e torna a beber. Será que vão se dar conta de que a pessoa que apagava os mundos dos outros era sempre a mesma? Isso já não lhe diz respeito; se tem um único arrependimento, foi o momento em que desejou entregar-se à polícia, durante a tarde. Mas o destino estava do seu lado, e conseguiu terminar sua missão.

Sim, venceu. Mas o vencedor não está só. Seus pesadelos acabaram, um anjo de sobrancelhas grossas vela sobre ele, e irá lhe ensinar o caminho a ser percorrido a partir de agora.

Dia de São José, 19 de março de 2008

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