A NOIVA DESOBEDIENTE

Asha Greyjoy estava sentada no salão de Galbart Glover, bebendo do vinho de Galbart Glover, quando o meistre de Galbart Glover lhe trouxe a carta.



— Senhora. — A voz do meistre soou ansiosa, como soava sempre que falava com ela. — Uma ave vinda de Vila Acidentada. — Pôs-lhe o pergaminho na frente como se não pudesse esperar para se ver livre dele. Estava bem enrolado e selado com um botão de dura cera cor-de-rosa.


Vila Acidentada. Asha tentou lembrar-se de quem governava em Vila Acidentada. Um senhor nortenho qualquer, não um amigo meu. E aquele selo... os Bolton do Forte do Pavor partiam para a batalha sob estandartes cor-de-rosa salpicados com gotinhas de sangue. Fazia sentido que também usassem cera cor-de-rosa para selos.


Isto que tenho na mão é veneno, pensou. Devia queimá-lo. Mas em vez disso, partiu o selo. Um pedaço de couro flutuou até pousar em seu colo. Quando leu as palavras secas e castanhas, a sua má disposição tornou-se ainda pior. Asas escuras, palavras escuras. Os corvos nunca traziam notícias alegres. A última mensagem enviada para Bosque Profundo fora de Stannis Baratheon, exigindo obediência. Aquilo era pior.


— Os nortenhos tomaram Fosso Cailin.


— O Bastardo de Bolton? — perguntou Qarl, a seu lado.


— Ramsay Bolton, Senhor de Winterfell, é como assina. Mas também há outros nomes. — A Senhora Dustin, a Senhora Cerwyn, e quatro Ryswell tinham acrescentado as suas assinaturas por baixo da dele. Ao lado das assinaturas estava desenhado um gigante rudimentar, o sinal de um Umber qualquer.


As assinaturas tinham sido escritas com tinta de meistre, feita de fuligem e alcatrão de hulha, mas a mensagem que tinham por cima fora rabiscada a castanho, numa letra enorme e pontiaguda. Falava da queda de Fosso Cailin, do regresso triunfante do Protetor do Norte aos seus domínios, de um casamento a ser celebrado em breve. As primeiras palavras eram "Escrevo esta carta com o sangue de homens de ferro" as últimas" Envio a cada um de vocês um bocado de príncipe. Permaneçam nas minhas terras, e partilharão o seu destino."


Asha julgara o irmão mais novo morto. Antes morto do que isto. O bocado de pele caíra-lhe no colo. Levou-o à vela e viu o fumo enrolar-se para cima, até a pele ter sido totalmente consumida e a chama lhe começar a lamber os dedos.


O meistre de Galbart Glover demorava-se, expectante, a seu lado.


— Não haverá resposta — informou-o.


— Posso partilhar essas notícias com a Senhora Sybelle?


— Se lhe agradar. — Asha não saberia dizer se Sybelle Glover encontraria alguma alegria na queda de Fosso Cailin. A Senhora Sybelle praticamente vivia no seu bosque sagrado, rezando pelo regresso em segurança dos filhos e do marido. Outra prece que é provável que fique sem resposta. A árvore coração dela é tão surda e cega como o nosso Deus Afogado. Robett Glover e o irmão Galbart tinham cavalgado para sul com o Jovem Lobo. Se metade das histórias que tinham ouvido sobre o Casamento Vermelho fossem verdadeiras, não era provável que regressassem para norte. Ao menos os filhos dela estão vivos, e isso é graças a mim. Asha deixara-os em Dez Torres ao cuidado das tias. A filha mais nova da Senhora Sybelle ainda mamava, e julgara a menina muito delicada para ser exposta aos rigores de outra travessia tempestuosa. Asha enfiou a carta nas mãos do meistre. — Tome. Ela que encontre aqui algum consolo, se puder. Tem a minha licença para ir embora.


O meistre inclinou a cabeça e partiu. Depois de o homem ter ido embora, Tris Botley virou-se para Asha.


— Se Fosso Cailin caiu, Praça de Torrhen seguirá em breve. Depois será a nossa vez.


— Ainda vai demorar algum tempo. O Boca-Fendida irá fazê-los sangrar. — Praça de Torrhen não era uma ruína como Fosso Cailin, e Dagmar era ferro até ao osso. Morreria antes de se render.


Se o meu pai ainda fosse vivo, Fosso Cailin nunca teria caído. Balon Greyjoy soubera que o Fosso era a chave para dominar o Norte. Euron também sabia; simplesmente não lhe interessava. Tal como não lhe interessava o que acontecia a Bosque Profundo ou à Praça de Torrhen.


— Euron não tem qualquer interesse nas conquistas de Balon. O meu tio partiu à caça de dragões. — O Olho de Corvo chamara todas as forças das Ilhas de Ferro a Velha Wyk e zarpara para as profundezas do mar do poente, com o irmão Victarion seguindo-o como um rafeiro chicoteado. Não restava em Pyke ninguém a quem apelar, exceto o senhor seu marido. — Estamos sozinhos.


— Dagmar vai esmagá-los — insistiu Cromm, que nunca conhecera uma mulher por quem sentisse metade do amor que nutria pela batalha. — Eles são só lobos.


— Os lobos estão todos mortos. — Asha arranhou a cera cor-de-rosa com a unha. — Estes são os esfoladores, que os mataram.


— Devíamos ir até Praça de Torrhen nos juntar à luta — instigou Quenton Greyjoy, um primo afastado e capitão da Menina Salgada.


— Verdade — disse Dagon Greyjoy, um primo ainda mais afastado. Os homens chamavam-lhe Dagon, o Bêbado, mas tanto bêbado como sóbrio adorava combater. — Porque haverá o Boca-Fendida de ficar com toda a glória para si?


Dois dos criados de Galbart Glover trouxeram o assado, mas aquele bocado de pele roubara o apetite de Asha. Os meus homens desistiram de toda a esperança de vitória, compreendeu sombriamente. Tudo o que procuram agora é uma boa morte. Não duvidava de que os lobos lhes dariam essa morte. Mais cedo ou mais tarde, virão reconquistar este castelo.


O Sol estava afundando-se por trás dos grandes pinheiros da mata dos lobos quando Asha subiu os degraus de madeira que levavam ao quarto que pertencera em tempos a Galbart Glover. Bebera muito vinho e sentia a cabeça latejando. Asha Greyjoy gostava dos seus homens, tanto dos capitães como das tripulações, mas metade deles eram idiotas. Idiotas corajosos, mas idiotas na mesma. Ir até o Boca-Fendida, pois sim, como se pudéssemos...


Entre Bosque Profundo e Dagmar estendiam-se longas léguas de montes acidentados, densas florestas, rios caudalosos e mais nortenhos do que aqueles em que gostaria de pensar. Asha tinha quatro dracares e não chegava a dispor de duzentos homens... incluindo Tristifer Botley, que não era digno de confiança. Apesar de toda a sua conversa sobre amor, não conseguia imaginar Tris correndo para Praça de Torrhen a fim de morrer com Dagmar Boca-Fendida.


Qarl seguiu-a para dentro do quarto de Galbart Glover.


— Saia — disse-lhe. — Quero estar sozinha.


— O que você quer sou eu. — E tentou beijá-la.


Asha afastou-o com um empurrão.


— Se me tocar outra vez, eu...


— O quê? — puxou pelo punhal. — Despe-se, mulher.


— Vai se foder, rapazinho sem barba.


— Preferia foder você. — Um golpe rápido desatou-lhe o justilho. Asha estendeu a mão para o machado, mas Qarl deixou cair a faca e pegou-lhe no pulso, torcendo-lhe o braço até a arma cair dos seus dedos. Empurrou-a para a cama de Glover, beijou-a com força, e arrancou-lhe a túnica para deixar que os seios se derramassem para fora. Quando Asha tentou dar-lhe uma joelhada nas virilhas, ele torceu-se, esquivando-se, e forçou-a a abrir as pernas com os joelhos. — Vou lhe possuir agora.


— Faça isso — cuspiu ela — que te mato durante o sono.


Estava ensopada quando ele a penetrou.


— Raios lhe partam — disse. — Raios lhe partam raios lhe partam raios lhe partam. — Ele chupou-lhe os mamilos até que ela gritou, meio de dor, meio de prazer. A sua rata transformou-se no mundo. Esqueceu-se de Fosso Cailin, de Ramsay Bolton e do seu bocadinho de pele, esqueceu a assembleia de homens livres, esqueceu o seu fracasso, esqueceu o exílio, os inimigos e o marido. Só as mãos dele importavam, só a sua boca, só os seus braços à sua volta, a sua pica dentro dela. Ele fodeu-a até a pôr a gritar, e depois fodeu-a de novo até a pôr a chorar, antes de finalmente despejar a sua semente no ventre dela.


— Sou uma mulher casada — lhe fez Asha lembrar, depois. — Me violou, meu rapazinho sem barba. O senhor meu marido vai cortar-lhe os tomates e enfiar-lhe num vestido.


Qarl rolou de cima dela.


— Se conseguir sair da cadeira dele.


O quarto estava frio. Asha levantou-se da cama de Galbart Glover e despiu a roupa rasgada. O justilho precisaria de ataduras novas, mas a túnica estava estragada. De qualquer maneira nunca gostei dela. Atirou-a às chamas. O resto deixou num montinho junto da cama. Tinha os seios duros, e a semente de Qarl estava escorrendo-lhe pelas coxas abaixo. Precisaria de fazer um pouco de chá de lua, senão se arriscaria a trazer ao mundo outra lula gigante. O que importa? O meu pai está morto, a minha mãe está moribunda, o meu irmão está sendo esfolado e não há nada que eu possa fazer a respeito de nada disso. E estou casada. Casei e fiz amor, embora não com o mesmo homem.


Quando voltou a enfiar-se sob as peles, Qarl estava dormindo.


— Agora a sua vida é minha. Onde pus o punhal? — Asha encostou-se às costas do homem e enfiou os braços em volta dele. Nas ilhas, era conhecido como Qarl, o Donzel, em parte para distingui-lo do Qarl Pastor, do Estranho Qarl Kenning, do Qarl Machado-Ligeiro e do Qarl, o Servo, mas mais devido à cara lisa. Quando Asha o conhecera. Qarl estava tentando arranjar uma barba. — Penugem de pêssego — chamara-lhe, rindo. Qarl confessara que nunca vira um pêssego, então ela dissera-lhe que tinha de juntar-se a ela na vez seguinte que viajasse para o sul.


Nessa altura ainda era verão; Robert ocupava o Trono de Ferro, Balon matutava na Cadeira de Pedra do Mar, e os Sete Reinos estavam em paz. Asha levara o Vento Negro pela costa abaixo, fazendo comércio. Aportaram na Ilha Bela e em Lanisporto e numa vintena de portos menores até chegarem à Árvore, onde os pêssegos eram sempre enormes e doces.


— Vê? — dissera ela, da primeira vez que encostara um à bochecha de Qarl. Quando o obrigara a experimentar dar-lhe uma dentada, o sumo escorrera-lhe pelo queixo abaixo e ela tivera de limpá-lo com beijos.


Tinham passado essa noite devorando pêssegos e devorando-se um ao outro, e quando a luz do dia regressara Asha estava saciada, peganhenta e mais feliz do que alguma vez estivera. Isso foi há seis anos ou há sete? O verão era uma recordação que se desvanecia, e tinham-se passado três anos desde a última vez que Asha desfrutara de um pêssego. Mas ainda desfrutava de Qarl. Os capitães e os reis podiam não tê-la desejado, mas ele desejava.


Asha conhecera outros amantes; alguns partilhavam a sua cama durante meio ano, outros durante meia noite. Qarl agradava-lhe mais do que todos os outros juntos. Podia não fazer a barba mais que uma vez por quinzena, mas uma barba peluda não faz um homem. Gostava de sentir a pele lisa e suave dele sob os seus dedos. Gostava do modo como o longo cabelo liso que ele tinha lhe roçava nos ombros. Gostava do modo como ele beijava. Gostava de como sorria quando ela roçava os polegares pelos mamilos dele. Os pelos entre as suas pernas eram de um tom mais escuro de areia do que o cabelo que tinha na cabeça, mas eram finos como penugem quando comparados com o expesso matagal preto que rodeava o seu sexo. Asha também gostava disso. Ele tinha um corpo de nadador, longo e esguio, sem uma cicatriz.


Um sorriso tímido, braços fortes, dedos inteligentes e duas espadas seguras. O que mais poderá querer uma mulher? Teria casado com Qarl, e de bom grado, mas era filha do Lorde Balon e ele era de nascimento plebeu, neto de um servo. Muito mal nascido para que me case com ele, mas não muito baixo para que lhe chupe a pica. Bêbada, sorridente, se arrastou para dentro das peles e tomou-o na boca. Qarl mexeu-se no sono, e passado um momento começou a endurecer. Quando o conseguiu pôr de novo duro, ele estava acordado e ela molhada. Asha enrolou as peles em volta dos seus ombros nus e montou-o, enfiando-o tão profundamente dentro de si que não conseguia distinguir quem tinha a pica e quem tinha a boceta. Daquela vez, chegaram os dois ao auge juntos.


— Minha querida senhora — murmurou ele depois, numa voz ainda empastelada pelo sono. — Minha querida rainha.


Não, pensou Asha, eu não sou rainha nenhuma nem nunca serei.


— Volte a dormir. — Beijou-lhe a cara, atravessou descalça o quarto de Galbart Glover e abriu as janelas. A Lua estava quase cheia, a noite tão límpida que conseguia ver as montanhas, os seus picos coroados de neve. Frias, ermas e inóspitas, mas belas ao luar. Os cumes reluziam, pálidos e denteados como uma fileira de dentes aguçados. Os sopés e os picos mais baixos estavam perdidos na sombra.


O mar estava mais próximo, apenas a cinco léguas para norte, mas Asha não conseguia vê-lo. Havia muitas colinas no caminho. E árvores, tantas árvores. Os nortenhos chamavam à floresta mata dos lobos.


Na maioria das noites conseguia ouvir os lobos, a chamarem-se uns aos outros na escuridão. Um oceano de folhas. Bom seria se fosse um oceano de água.


Bosque Profundo podia ficar mais perto do mar do que Winterfell, mas ainda ficava longe demais para o seu gosto. O ar cheirava a pinheiros em vez de sal. A nordeste daquelas sombrias montanhas cinzentas ficava a Muralha, onde Stannis Baratheon içara os seus estandartes. O inimigo do meu inimigo é meu amigo, diziam os homens, mas o outro lado dessa moeda era: o inimigo do meu amigo é meu inimigo. Os nascidos no ferro eram os inimigos dos senhores nortenhos de que aquele pretendente Baratheon necessitava desesperadamente. Podia oferecer-lhe o meu belo e jovem corpo, pensou, afastando uma madeixa dos olhos, mas Stannis era casado e ela também, e ele e os nascidos no ferro eram velhos inimigos. Durante a primeira rebelião do pai, Stannis esmagara a Frota de Ferro ao largo da Ilha Bela e subjugara Grande Wyk em nome do irmão.


As muralhas cobertas de musgo de Bosque Profundo cercavam uma colina larga e arredondada com um cume achatado, coroado por um cavernoso palácio com uma torre de vigia numa das pontas, erguendo-se quinze metros acima da colina. Por baixo da colina ficava o cercado exterior com os seus estábulos, cercado para cavalos, ferreiro, poço e curral, defendido por uma profunda vala, um dique inclinado de terra e uma paliçada de troncos de árvore. As defesas exteriores formavam uma oval, seguindo os contornos do terreno. Havia dois portões, cada um protegido por um par de torres quadradas de madeira, e com passadiços ao longo do perímetro. No lado sul do castelo, o musgo crescia denso em cima da paliçada e trepava até metade da altura das torres. Para leste e oeste havia campos vazios. Cevada e centeio cresciam aí quando Asha capturara o castelo, apenas para serem esmagados sob o seu ataque. Uma série de duras geadas tinha matado as colheitas que haviam plantado depois, deixando apenas lama e cinzas e caules murchos e apodrecidos.


Era um castelo antigo, mas não um castelo forte. Ela capturara-o aos Glover, e o Bastardo de Bolton o capturará dela. Mas não a esfolaria. Asha Greyjoy não tencionava ser capturada viva. Morreria como vivera, de machado na mão e com uma gargalhada nos lábios.


O senhor seu pai dera-lhe trinta dracares para capturar Bosque Profundo. Restavam quatro, contando com o seu Vento Negro, e um deles pertencia a Tris Botley, que se juntara a ela quando todos os seus outros homens estavam fugindo. Não. Isto não é justo. Eles velejaram para casa para prestar fidelidade ao seu rei. Se alguém fugiu, fui eu. A memória ainda a envergonhava.


— Vá — instigara o Leitor, enquanto os capitães carregavam com o seu tio Euron pela colina de Nagga abaixo a fim de lhe pôr na cabeça a coroa de madeira trazida pelo mar.


— Diz o corvo ao melro. Venha comigo. Preciso de você para recrutar os homens de Harlaw. — Nessa altura pretendia lutar.


— Os homens de Harlaw estão aqui. Aqueles que contam. Alguns estavam gritando o nome de Euron. Não vou pôr Harlaw contra Harlaw.


— Euron é louco. E perigoso. Aquele corno do inferno...


— Eu ouvi-o. Vai, Asha. Depois de Euron ser coroado, irá à sua procura. Não se atreva a deixar que o seu olho caia sobre você.


— Se eu resistir com os meus outros tios...


— ... Morrerão proscritos, com todas as mãos contra vocês. Quando pôs o seu nome à consideração dos capitães, submeseu-se ao seu julgamento. Não pode se revoltar agora contra esse julgamento. Só por uma vez foi derrubada a escolha de uma assembleia de homens livres. Lê Haereg.


Só Rodrik, o Leitor, falaria de um livro antigo qualquer quando as suas vidas se equilibravam no gume de uma espada.


— Se você vai ficar, eu também ficarei.


— Não seja palerma. Esta noite Euron mostra ao mundo o seu olho sorridente, mas ao chegar a manhã... Asha, você é filha de Balon, e a sua pretensão ao trono é mais forte do que a dele. Enquanto respirar, continua sendo um perigo para ele. Se ficar será morta, ou casada com o Remador Vermelho. Não sei o que seria pior. Vai. Nunca voltará a ter uma oportunidade.


Asha dera o Vento Negro à costa do outro lado da ilha, precisamente para tal eventualidade. Velha Wyk não era grande. Podia estar a bordo do seu navio antes de o Sol nascer, a caminho de Harlaw antes de Euron perceber que ela desaparecera. Mas hesitara, até que o tio dissera:


— Faça pelo amor que sente por mim, filha. Não me obrigue a lhe ver morrer.


Portanto ela partira. Primeiro para Dez Torres, para dizer adeus à mãe.


— Pode passar-se muito tempo até que eu regresse — prevenira Asha. A Senhora Alannys não compreendera.


— Onde está o Theon? — perguntara. — Onde está o meu bebezinho? — a Senhora Gwynesse só quisera saber quando regressaria o Lorde Rodrik.


— Sou sete anos mais velha do que ele. Dez Torres devia ser meu.


Asha ainda estava em Dez Torres embarcando provisões quando lhe chegaram notícias do seu casamento.


— A minha sobrinha desobediente precisa de ser domada — constava que o Olho de Corvo dissera — e eu conheço o homem capaz de domá-la. — Casara-a com Erik Ferreiro e nomeara o Quebra-Bigornas para governar as Ilhas de Ferro enquanto ele perseguia dragões. Erik foi um grande homem nos seus tempos, um destemido saqueador que podia se gabar de ter velejado com o avô do avô dela, o mesmo Dagon Greyjoy em honra do qual Dagon, o Bêbado, fora batizado. As velhas da Ilha Bela ainda assustavam os netos com histórias sobre Lorde Dagon e os seus homens. Feri o orgulho de Erik na assembleia dos homens livres, refletiu Asha. Não é provável que ele o esqueça.


Tinha de prestar ao tio a justa homenagem. De uma penada, Euron transformara um rival em apoiante e afastara Asha enquanto ameaça. E desfrutou também de uma bela gargalhada. Tris Botley dizia que o Olho de Corvo usara uma foca para representá-la no casamento.


— Espero que Erik não tenha insistido numa consumação — dissera ela.


Não posso ir para casa, pensou, mas não me atrevo a ficar aqui muito mais tempo. A quietude da floresta a enervava. Asha passara a vida em ilhas e em navios. O mar nunca estava em silêncio. O som das vagas batendo numa costa rochosa estava-lhe no sangue, mas não havia vagas em Bosque Profundo... só as árvores, as infindáveis árvores, pinheiros marciais e árvores sentinela, faias, freixos e antigos carvalhos, castanheiros e pau-ferro e abetos. O som que as árvores faziam era mais suave do que o mar, e ela só o ouvia quando o vento soprava; então, os suspiros pareciam vir de todos os lados, como se as árvores estivessem murmurando umas com as outras em alguma língua que Asha não conseguia compreender.


Naquela noite, os murmúrios pareciam mais sonoros do que antes. Uma torrente de folhas mortas e castanhas, disse Asha a si própria, ramos nus a ranger ao vento. Afastou-se da janela, afastando-se da floresta. Preciso de voltar a ter um convés debaixo dos pés. Ou, à falta disso, alguma comida na barriga.


O luar estava suficientemente brilhante para encontrar a roupa. Vestiu espessas calças pretas, uma túnica acolchoada e um justilho de couro verde coberto de placas sobrepostas de aço. Deixando Qarl com os seus sonhos, desceu a escada exterior da torre, fazendo ranger os degraus sob os pés descalços. Um dos homens que estava de sentinela nas muralhas viu-a fazer a descida e ergueu a lança na sua direção. Asha respondeu-lhe com um assobio. Enquanto atravessava o pátio interior até às cozinhas, os cães de Galbart Glover puseram-se a ladrar. Ótimo, pensou. Vão submergir o som das árvores.


Estava cortando uma cunha de queijo amarelo de uma rodela tão grande como uma roda de carroça quando Tris Botley entrou na cozinha, envolto num grosso manto de pele.


— Minha rainha.


— Não goze comigo.


— Você irá sempre governar o meu coração. Nenhuma quantidade de palermas gritando numa assembleia de homens livres pode alterar isso.


O que vou fazer com este rapaz? Asha não podia duvidar da devoção dele. Não só se apresentara como seu campeão na colina de Nagga e gritara o seu nome, como até atravessara o mar para se juntar a ela depois, abandonando rei, família e lar. Não que se tenha atrevido a desafiar Euron na sua cara. Quando o Olho de Corvo levara a frota para o mar, Tris deixara-se simplesmente ficar para trás, só mudando de rumo quando perdera de vista os outros navios. Mas mesmo isso requeria uma certa coragem; nunca mais poderia regressar às ilhas.


— Queijo? — perguntou-lhe. — Também há presunto e mostarda.


— Não é comida que eu quero, senhora. Sabe disso. — Tris deixara crescer uma espessa barba castanha em Bosque Profundo. Afirmava que o ajudava a manter a cara quente. — Vi-a da torre de vigia.


— Se está de turno, o que estás você fazendo aqui?


— Cromm está lá em cima, com Hagen, o Corno. De quantos olhos precisamos para ver folhas restolhar ao luar? Temos de conversar.


— Outra vez? — suspirou. — Conhece a filha de Hagen, a do cabelo ruivo. Conduz um navio tão bem como qualquer homem, e tem uma cara bonita. Dezessete anos, e a vi a olhar para você.


— Não quero a filha de Hagen. — Quase tocou-a, antes de pensar melhor. — Asha, é tempo de partir. Fosso Cailin era a única coisa retendo a maré. Se permanecermos aqui, os nortenhos nos matarão a todos, sabe disso.


— Quer que eu fuja?


— Quero que viva. Amo-a.


Não, pensou ela, amas uma donzela inocente que vive apenas na sua cabeça, uma criança assustada necessitada da sua proteção.


— Eu não te amo — disse, sem rodeios — e não fujo.


— O que há aqui para você agarrar com tanta força além de pinheiros, lama e inimigos? Temos os nossos navios. Parta comigo, e arranjaremos novas vidas no mar.


— Como piratas? — era quase tentador. Deixar os lobos recuperar as suas florestas sombrias e voltar a conquistar o mar aberto.


— Como mercadores — insistiu ele. — Viajaremos para leste como o Olho de Corvo fez, mas regressaremos com sedas e especiarias em vez de um chifre de dragão. Uma viagem ao Mar de Jade e ficaremos ricos como deuses. Podemos arranjar uma mansão em Vilavelha ou em alguma das Cidades Livres.


— Você, eu e Qarl? — Viu-o estremecer quando mencionou o nome de Qarl. — A filha de Hagen talvez goste de percorrer o Mar de Jade contigo. Eu continuo a ser a filha da lula gigante. O meu lugar é...


— ... Onde? Não podemos voltar às ilhas. A menos que pretenda submeter-se ao senhor seu esposo.


Asha tentou imaginar-se na cama com Erik Ferreiro, esmagada sob o seu volume, sofrendo os seus abraços. Antes ele do que o Remador Vermelho ou o Lucas Mão-Esquerda Codd. O Quebra-Bigornas tinha sido em tempos um gigante trovejante, de terrível força e feroz lealdade, e totalmente desprovido de medo. Pode não ser assim tão mal. É provável que ele morra da primeira vez que tente cumprir o seu dever de marido. Isso a transformaria na viúva de Erik em vez de mulher de Erik, o que podia ser melhor ou bastante pior, dependendo dos netos dele. E do meu tio. No fim, todos os ventos me sopram outra vez para Euron.


— Tenho reféns, em Harlaw — fez notar ao rapaz. — E ainda há a Ponta do Dragão Marinho... se não posso ficar com o reino do meu pai, porque não arranjar um meu? — a Ponta do Dragão Marinho nem sempre foi tão escassamente povoada como era agora. Ainda se encontravam velhas ruínas entre os seus montes e pauis, os restos de antigas fortalezas dos Primeiros Homens. Nos lugares elevados havia círculos de represeiros deixados pelos filhos da floresta.


— Está agarrar-se à Ponta do Dragão Marinho como um homem a afogar-se se agarra a um destroço. O que tem o Dragão Marinho que alguém queira? Não há minas, não há ouro, não há prata, nem sequer há estanho ou ferro. A terra é muito úmida para trigo ou milho.


Não planejo plantar trigo ou milho.


— O que há lá? Eu digo-lhe. Duas longas linhas de costa, uma centena de angras escondidas, lontras nos lagos, salmão nos rios, mexilhões ao longo da costa, colônias de focas ao largo, grandes pinheiros para construir navios.


— E quem construirá esses navios, minha rainha? Onde irá Vossa Graça encontrar súditos para o seu reino, se os nortenhos nos deixarem ficar com ele? Ou será que pretende governar um reino de focas e lontras?


Ela soltou uma gargalhada triste.


— Lontras talvez sejam mais fáceis de governar do que homens, admito. E as focas são mais espertas. Não, pode ser que tenha razão. A minha melhor opção talvez ainda seja regressar a Pyke. Há em Harlaw quem acolheria bem o meu regresso. Em Pyke também. E Euron não conquistou amigos em Blacktyde quando matou o Lorde Baelor. Podia encontrar o meu tio Aeron, revoltar as ilhas. — Ninguém viu o Cabelo-Molhado desde a assembleia de homens livres, mas os seus Afogados afirmavam que estava escondido em Grande Wyk e que avançaria em breve para fazer cair a ira do Deus Afogado sobre o Olho de Corvo e os seus lacaios.


— O Quebra-Bigornas também anda à procura do Cabelo-Molhado. Anda caçando os Afogados. O Beron Cego Blacktyde foi capturado e interrogado. Até à Velha Gaivota Cinzenta foram dadas grilhetas. Como irá você encontrar o sacerdote se todos os homens de Euron não conseguem?


— Ele é do meu sangue. Irmão do meu pai. — Era uma resposta débil, e Asha sabia.


— Sabe o que eu penso?


— Estou prestes a ficar sabendo, suspeito.


— Penso que Cabelo-Molhado está morto. Penso que o Olho de Corvo lhe rasgou a goela. A busca do Ferreiro é só para nos levar a crer que o sacerdote escapou. Euron tem medo de ser visto como assassino de parentes.


— Nunca deixe o meu tio lhe ouvir dizer isso. Se disser ao Olho de Corvo que tem medo de matar parentes, ele assassinará um dos seus próprios filhos só para provar que não tens razão. — Asha estava sentindo-se quase sóbria por aquela hora. Tristifer Botley tinha aquele efeito sobre ela.


— Mesmo se encontrasse o seu tio Cabelo-Molhado, ambos falhariam. Ambos fizeram parte da assembleia de homens livres, portanto, não podem dizer que foi convocada ilegalmente, como Torgon fez. Estão vinculados à sua decisão por todas as leis dos deuses e dos homens. Você...


Asha franziu o semblante.


— Espera. Torgon? Que Torgon?


— Torgon, o Atrasado.


— Ele foi um rei durante a Era dos Heróis. — Lembrava-se disso a respeito do homem, mas pouco mais. — O que tem ele?


— Torgon Greyiron era o filho mais velho do rei. Mas o rei era velho e Torgon irrequieto, então calhou que quando o pai morreu ele estava pirateando ao longo do Vago, a partir da sua base em Escudogris. Os irmãos não lhe enviaram nenhuma mensagem; em vez disso, convocaram à pressa uma assembleia de homens livres, pensando que um deles seria escolhido para usar a coroa de madeira trazida pelo mar. Mas os capitães e os reis escolheram Urragon Goodbrother para governar. A primeira coisa que o novo rei fez foi ordenar que todos os filhos do velho rei fossem executados, e foi o que aconteceu. Depois, os homens passaram a chamar-lhe Mau-Irmão, se bem que na verdade eles não fossem da sua família. Governou durante quase dois anos.


Asha já se lembrava.


— Torgon voltou para casa...


— ... E disse que a assembleia dos homens livres era ilegal, visto que ele não estivera lá para fazer a sua pretensão. O Mau-Irmão demonstrara ser tão mau como cruel e restavam-lhe poucos amigos nas ilhas. Os sacerdotes o renegaram, os senhores revoltaram-se contra ele, e os seus próprios capitães cortaram-no em pedaços. Torgon, o Atrasado, tornou-se rei e governou durante quarenta anos.


Asha agarrou em Tris pelas orelhas e deu-lhe um beijo em cheio nos lábios. Quando o largou, ele estava corado e sem fôlego.


— O que foi isso? — disse.


— Chama-se beijo. Afoga-me por ser parva, Tris, eu devia ter-me lembrado... — Interrompeu-se de súbito. Quando Tris tentou falar, ela o fez calar, à escuta. — Aquilo foi um corno de guerra. Hagen. — O seu primeiro pensamento foi sobre o marido. Poderia Erik Ferreiro ter percorrido toda esta distância para reclamar a sua esposa desobediente? — o Deus Afogado afinal me ama. Aqui estava eu me perguntando o que fazer, e ele enviou-me inimigos para combater. — Asha pôs-se em pé e voltou a enfiar a faca na bainha. — A batalha veio até nós.


Já trotava quando chegou ao cercado interno do castelo, com Tris mordendo-lhe os calcanhares, mas mesmo assim chegou tarde demais. A luta terminara. Asha descobriu dois nortenhos sangrando junto do portão oriental, não muito longe da poterna, com Lorren Longaxe, o Harl Seis-Dedos e o Linguatriste em pé por cima deles.


— Cromm e Hagen viram-os subindo a muralha — explicou o Linguatriste.


— Só estes dois? — perguntou Asha.


— Cinco. Matamos dois antes de conseguirem saltar, e Harl matou outro no passadiço. Estes dois conseguiram chegar ao pátio.


Um homem estava morto, com o sangue e os miolos cobrindo o machado de Lorren, mas o segundo ainda respirava irregularmente, embora a lança do Linguatriste o tivesse prendido ao chão no meio de uma poça de sangue que se expandia. Ambos estavam vestidos de couro fervido e mantos de retalhos castanhos, verdes e pretos, com ramos, folhas e arbustos entretecidos por cima das cabeças e dos ombros.


— Quem é você? — perguntou Asha ao ferido.


— Um Flint. Quem é você?


— Asha da Casa Greyjoy. Isto é o meu castelo.


— Bosque Profundo é a sede de Galbart Glover. Nã é casa de lulas.


— Há mais de vocês? — perguntou-lhe Asha. Quando o homem não respondeu, pegou na lança do Linguatriste e torceu-a, e o nortenho gritou de dor enquanto mais sangue jorrava do seu ferimento. — Que queria fazer aqui?


— A senhora — disse ele, estremecendo. — Deuses, para. Viemos buscar a senhora. Salvá-la. Éramos só os cinco.


Asha fitou-o nos olhos. Quando viu aí a falsidade, encostou-se à lança, torcendo-a.


— Quantos mais? — disse. — Diga-me, senão faço-te durar a morte até à alvorada.


— Muitos — soluçou por fim o homem, entre gritos. — Milhares. Três mil, quatro... aaaaaiii... por favor...


Arrancou a lança do corpo do homem e espetou-lha com as duas mãos na garganta mentirosa. O meistre de Galbart Glover afirmara que os clãs da montanha eram muito briguentos para algum dia se juntarem sem um Stark a liderá-los. Podia não ter mentido. Podia simplesmente ter-se enganado. Ficara conhecendo o que isso sabia na assembleia de homens livres do tio.


— Estes cinco foram enviados para abrir os nossos portões antes do ataque principal — disse. — Lorren, Harl, vão buscar a Senhora Glover e o seu meistre.


— Inteiros ou ensanguentados? — perguntou Lorren Longaxe.


— Inteiros e incólumes. Linguatriste, sobe àquela três vezes maldita torre e diz a Cromm e ao Hagen para manterem olhos atentos virados lá para fora. Se virem nem que seja uma lebre, eu quero saber.


O cercado de Bosque Profundo depressa se encheu de gente assustada. Os seus homens estavam lutando para se enfiarem em armaduras, ou trepar aos passadiços. A gente de Galbart Glover olhava-os com rostos medrosos, dirigindo murmúrios uns aos outros. O intendente de Glover teve de ser trazido da cave ao colo por ter perdido uma perna quando Asha tomara o castelo. O meistre protestou ruidosamente até que Lorren lhe deu um forte sopapo na cara com um punho revestido de cota de malha. A Senhora Glover saiu do bosque sagrado apoiada nos braços da sua aia.


— Avisei-lhe de que este dia chegaria, senhora — disse, quando viu os cadaveres no chão.


O meistre abriu caminho em frente, com sangue a pingando do nariz partido.


— Senhora Asha, suplico-lhe, arreie as bandeiras e deixe que eu negoceie pela sua vida. Usou-nos com justiça e com honra. Direi-lhes isso mesmo.


— Os trocaremos pelas crianças. — Os olhos de Sybelle Glover estavam vermelhos, de lágrimas e de noites sem dormir. — Gawen tem agora quatro anos. Perdi o dia do seu nome. E a minha querida menina... devolva os meus filhos, e não é preciso que nenhum mal lhe aconteça. Nem aos seus homens.


Asha sabia que a última parte era mentira. Ela podia ser trocada, talvez, enviada de volta para as Ilhas de Ferro, para os braços cheios de amor do seu marido. Os primos também seriam resgatados, bem como Tris Botley e mais alguns membros do seu grupo, aqueles cujas famílias tivessem dinheiro suficiente para comprá-los de volta. Para os outros seria o machado, o laço ou a Muralha. Ainda assim, eles têm direito a escolher.


Asha subiu para um barril para que todos pudessem vê-la.


— Os lobos vão cair sobre nós com os dentes à mostra. Estarão junto dos nossos portões antes de o Sol se erguer. Jogamos fora as lanças e machados e suplicamos-lhes que nos poupem?


— Não. — Qarl, o Donzel, puxou pela espada.


— Não — ecoou Lorren Longaxe.


— Não — trovejou Rolfe, o Anão, um autêntico urso, que era uma cabeça mais alto do que qualquer outra pessoa na sua tripulação. — Nunca. — E o corno de Hagen voltou a soar lá de cima, ressoando pelo cercado fora.


AAuuuuuuuuuuumuUy soou o chifre de guerra, longa e gravemente, um som capaz de coagular sangue. Asha começara a odiar o som dos chifres. Em Velha Wyk, o chifre infernal do tio fizera soar um dobre afinados pelos seus sonhos, e agora Hagen estava soprando aquela que podia perfeitamente vir a ser a sua última hora na terra. Se tenho de morrer, morrerei de machado na mão e com uma praga nos lábios.


— Às muralhas — disse Asha Greyjoy aos seus homens. Virou os passos para a torre de vigia, com Tris Botley logo atrás.


A torre de vigia de madeira era a coisa mais elevada daquele lado das montanhas, erguendo-se seis metros acima das maiores sentinelas e pinheiros marciais na floresta circundante.


— Ali, capitã — disse Cromm, quando ela chegou à plataforma. Asha só viu árvores e sombras, as colinas iluminadas pelo luar e os picos cobertos de neve mais atrás. Depois percebeu de que as árvores estavam se aproximando.


— O-ho — riu — aquelas cabras montesas esconderam-se com ramos de pinheiro. — A floresta estava em movimento, aproximando-se do castelo como uma lenta maré verde. Recordou-se de uma história que ouvira quando criança, sobre os filhos da floresta e as suas batalhas com os Primeiros Homens, quando os videntes verdes transformavam as árvores em guerreiros.


— Não podemos combater tantos — disse Tris Botley.


— Podemos combater tantos quantos vierem, cachorrinho — insistiu Cromm. — Quanto mais eles forem, maior será a glória. Os homens cantarão sobre nós.


Sim, mas cantarão sobre a sua coragem ou sobre a minha loucura? O mar ficava a cinco longas léguas de distância. Fariam melhor em resistir e lutar por trás das profundas valas e muralhas de madeira de Bosque Profundo? As muralhas de madeira de Bosque Profundo pouco ajudaram os Glover quando eu tomei o seu castelo, recordou. Porque haveriam de me ser mais úteis a mim?


— Ao chegar a manhã, nos banquetearemos debaixo do mar. — Cromm afagou o machado como se não conseguisse esperar.


Hagen baixou o chifre.


— Se morrermos com os pés secos, como é que encontramos o caminho até aos salões aquáticos do Deus Afogado?


— Estes bosques estão cheios de pequenos riachos — assegurou-lhe Cromm. — Todos eles levam a rios, e todos os rios ao mar.


Asha não estava pronta para morrer, não ali, ainda não.


— Um homem vivo pode encontrar o mar mais facilmente do que um morto. Os lobos que fiquem com a sua floresta sombria. Vamos nos dirigir para os navios.


Perguntou-se quem estaria no comando do inimigo. Se fosse eu, tomaria a costa e passaria os nossos dracares pelo archote antes de atacar Bosque Profundo. Mas os lobos não achariam isso fácil sem disporem de dracares seus. Asha nunca encalhava mais de metade dos seus navios. A outra metade estava em segurança no mar, com ordens para içar a vela e rumar à Ponta do Dragão Marinho se os nortenhos tomassem a costa.


— Hagen, sopra o corno e faz tremer a floresta. Tris, vista cota de malha, está na altura de por à prova essa sua linda espada. — Como viu como ele estava pálido, deu-lhe um beliscão na bochecha. — Esparrinha comigo algum sangue sobre a Lua e prometo-lhe um beijo por cada morte.


— Minha rainha — disse Tristifer — aqui temos as muralhas, mas se alcançarmos o mar e descobrirmos que os lobos conquistaram os nossos navios ou os afastaram...


— ... Morreremos — concluiu ela em tom alegre — mas pelo menos morreremos com os pés molhados. Os nascidos no ferro combatem melhor com maresia nas narinas e o som das ondas atrás de si.


Hagen soltou três curtos sopros em rápida sucessão, o sinal que enviaria os nascidos no ferro de volta para os navios. De baixo vieram gritos, o tinir de lanças e espadas, o relinchar de cavalos. Cavalos a menos e cavaleiros a menos. Asha dirigiu-se para a escada. No cercado foi encontrar Qarl, o Donzel, à espera com a sua égua cor de avelã, com o seu elmo, e com os seus machados de arremesso. Homens de ferro estavam tirando cavalos dos estábulos de Galbart Glover.


— Um aríete — gritou uma voz das muralhas. — Eles têm um aríete!


— Em que portão? — perguntou Asha enquanto montava.


— No norte! — vindo de trás das muralhas de madeira cobertas de musgo de Bosque Profundo soou o súbito som de trombetas.


Trombetas? Lobos com trombetas? Aquilo estava errado, mas Asha não tinha tempo para pensar no assunto.


— Abra o portão sul — ordenou, no instante em que o portão norte estremecia com o impacto do aríete. Puxou um machado de arremesso de cabo curto do cinturão que tinha ao ombro. — A hora da coruja fugiu, irmão. Agora chega a hora da lança, da espada, do machado. Formação. Vamos para casa.


De uma centena de gargantas saíram rugidos de "Casa/" e "Asha” Tris Botley veio a galope até junto dela num grande garanhão ruão. No cercado, os seus homens juntaram-se, erguendo escudos e lanças. Qarl, o Donzel, que nada tinha de cavaleiro, ocupou o seu lugar entre o Linguatriste e Lorren Longaxe. Estava Hagen descendo a escada da torre de vigia quando uma seta dos lobos o apanhou na barriga e o fez mergulhar de cabeça até ao chão. A filha correu para ele, chorando.


— Tragam-na — ordenou Asha. Aquele não era momento para luto. Rolfe, o Anão, puxou a menina para cima do seu cavalo, fazendo esvoaçar o seu cabelo ruivo. Asha ouviu o portão norte gemendo quando o aríete voltou a colidir com ele. Talvez vamos precisar de abrir caminho através deles, pensou quando o portão sul se escancarou na sua frente. O caminho estava livre. Por quanto tempo?


— Para fora! — Asha encostou os calcanhares aos flancos do cavalo.


Homens e montarias trotavam quando chegaram às árvores do outro lado do campo ensopado onde caules mortos de trigo de inverno apodreciam sob a Lua. Asha reteve os cavaleiros no fim da coluna, como retaguarda, a fim de manter os retardatários em movimento e se assegurar de que ninguém era deixado para trás. Grandes pinheiros marciais e velhos carvalhos nodosos fecharam-se à volta deles. Bosque Profundo tinha um nome adequado. As árvores eram enormes e escuras, de certa forma ameaçadoras. Os seus ramos entrelaçavam-se uns aos outros e rangiam a cada aragem de vento, e os ramos mais elevados arranhavam a face da Lua. Quanto mais depressa nos virmos livres disto, mais contente ficarei, pensou Asha. As árvores odeiam-nos a todos, nas profundezas dos seus corações de madeira.


Continuaram a avançar para sul-sudoeste até deixarem de ver as torres de madeira de Bosque Profundo e os sons das trombetas serem engolidos pela floresta. Os lobos têm o seu castelo de volta, pensou, talvez se contentem em deixar-nos ir.


Tris Botley aproximou-se dela a trote.


— Vamos na direção errada — disse, indicando com um gesto a Lua que espreitava através'da abóbada de ramos. — Precisamos de virar para norte, para chegarmos aos navios.


— Primeiro para oeste — insistiu Asha. — Para oeste até o Sol nascer. Depois para norte. — Virou-se para Rolfe, o Anão, e para Roggon Barba- ferrugenta, os seus melhores cavaleiros. — Batam o terreno em frente e asse- gurem-se de que o nosso caminho está livre. Não quero surpresas quando chegarmos à costa. Se encontrarem lobos, voltem para junto de mim com essa informação.


— Se tiver de ser — promeseu Roggon através da sua enorme barba ruiva.


Depois dos batedores desaparecerem entre as árvores, o resto dos nascidos no ferro reatou a marcha, mas o avanço era lento. As árvores escondiam deles a Lua e as estrelas, e o solo da floresta sob os seus pés era negro e traiçoeiro. Antes de avançarem meia milha, a égua do seu primo Quenton tropeçou numa cova e estilhaçou a pata da frente. Quenton teve de cortar a garganta ao animal para impedi-lo de gritar.


Deveríamos fazer archotes — sugeriu Tris.


— Fogo fará os nortenhos cair sobre nós. — Asha soltou uma praga na surdina, perguntando-se abandonar o castelo teria sido um erro. Não. Se tivéssemos ficado e lutado, podíamos estar todos mortos por esta hora. Mas andar aos tropeções na escuridão também não seria. Estas árvores nos matarão, se puderem. Tirou o elmo e puxou para trás o cabelo ensopado em suor. — O Sol nascerá dentro de algumas horas. Paramos aqui, e descansamos até ao romper do dia.


Parar mostrou ser fácil; o descanso chegou com dificuldade. Ninguém dormiu, nem mesmo o Dale Pendedelas, um remador que se tornara conhecido por adormecer entre remadas. Alguns dos homens partilharam um odre do vinho de maçã de Galbart Glover, passando-o de mão em mão. Aqueles que tinham trazido comida partilharam-na com os que não o haviam feito. Os cavaleiros alimentaram os cavalos e deram-lhes de beber. O seu primo Quenton Greyjoy mandou três homens subir às árvores, para procurar qualquer sinais de archotes na floresta. Cromm afiou o machado e Qarl, o Donzel, a espada. Os cavalos mastigaram erva morta e castanha e ervas daninhas. A filha ruiva de Hagen pegou na mão de Tris Botley para levá-lo para as árvores. Quando ele a recusou, foi com Harl Seis-Dedos.


Bem gostaria de poder fazer o mesmo. Seria bom perder-se nos braços de Qarl uma última vez. Asha tinha uma sensação ruim na barriga. Alguma vez voltaria a sentir o convés do Vento Negro por baixo dos seus pés? E se sentisse, para onde rumaria com ele? As ilhas me estão fechadas, a menos que queira dobrar os joelhos e abrir as pernas e aguentar os abraços de Erik Ferreiro, e não é provável que algum porto em Westeros acolha a filha da lula gigante. Podia tornar-se mercadora, como Tris parecia querer, ou então dirigir-se para os Degraus e juntar-se lá aos piratas. Ou...


— Envio a cada um de vocês um bocado de príncipe — murmurou.


Qarl fez um sorriso.


— Preferia ter um bocado de ti — sussurrou — o doce bocado que está...


Algo voou dos arbustos para ir aterrar com um ruído surdo entre eles, saltando e ressaltando. A coisa era redonda, escura e úmida, com longos cabelos que lançavam chicotadas enquanto rolava. Quando parou entre as raízes de um carvalho, o Linguatriste disse:


— Rolfe, o Anão, já não é tão alto como foi um dia. — Metade dos homens de Asha já estava de pé a essa altura, estendendo as mãos para escudos, lanças e machados. Eles também não acenderam archotes, teve Asha tempo para pensar, e conhecem esta floresta melhor do que nós algum dia poderíamos conhecer. Depois as árvores entraram em erupção a toda a volta, e os nortenhos jorraram delas aos uivos. Lobos, pensou, eles uivam como o raio dos lobos. O grito de guerra do Norte. Os seus nascidos no ferro gritaram-lhes de volta e o combate teve início.


Nunca nenhum cantor faria uma canção sobre aquela batalha. Nunca nenhum meistre escreveria um relato para um dos amados livros do Leitor. Nenhum estandarte voou, nenhum corno de guerra gemeu, nenhum grande senhor reuniu os homens à sua volta para ouvirem as suas últimas palavras ressonantes. Combateram na escuridão que antecedia a aurora, sombra contra sombra, tropeçando em raízes e pedras, com lama e folhas putrefatas debaixo dos pés. Os nascidos no ferro estavam vestidos de cota de malha e couro manchado pelo sal, os nortenhos de peles e ramos de pinheiro. A Lua e as estrelas desciam os olhos para o combate, filtrando a sua luz pálida no emaranhado de ramos nus que se retorciam por cima das cabeças dos homens.


O primeiro homem a vir ao encontro de Asha Greyjoy morreu a seus pés com o machado de arremesso dela espetado entre os olhos. Isso deu-lhe suficiente folga para enfiar o escudo no braço.


— A mim! — gritou, mas Asha não poderia ter dito com certeza se estava gritando aos seus homens ou aos inimigos. Um nortenho com um machado ergueu-se na sua frente, brandindo a arma com ambas as mãos enquanto uivava numa fúria inarticulada. Asha ergueu o escudo para bloquear o golpe, após o que se aproximou para espetá-lo com o punhal. Os uivos do homem tomaram outro tom quando ele caiu. Asha girou sobre si, descobriu outro lobo atrás de si, e golpeou-o na testa por baixo do elmo. O golpe que ele dera apanhou-a abaixo do peito, mas a cota de malha defletiu-o, de modo que ela lhe enfiou a ponta do punhal na garganta e deixou-o a afogar-se no próprio sangue. Uma mão pegou-lhe no cabelo mas, curto como este era, o homem não conseguiu agarrar suficientemente bem para a obrigar a virar a cabeça. Asha atirou-lhe o calcanhar contra o peito do pé, e soltou-se quando ele gritou de dor. Quando se virou, o homem estava caído e morrendo, ainda agarrado a uma mecha do seu cabelo. Qarl estava em cima dele, com a espada pingando e o luar brilhando-lhe nos olhos.


O Linguatriste ia contando os nortenhos à medida que os matava, gritando "Quatro" quando um caiu e "Cinco" um segundo mais tarde. Os cavalos berravam e escoiceavam e rolavam os olhos de terror, enlouquecidos pela carnificina e pelo sangue... todos menos o grande garanhão ruão de Tris Botley. Tris subira para a sela e a sua montaria estava empinando e girando enquanto ele golpeava em volta com a espada. Talvez lhe deva dois ou três beijos antes de a noite acabar, pensou Asha.


— Sete — gritou Linguatriste, mas a seu lado Lorren Longaxe es- tatelou-se com uma perna torcida debaixo de si e as sombras continuaram a vir, gritando e restolhando. Estamos combatendo arbustos, pensou Asha enquanto matava um homem que tinha em si mais folhas do que a maior parte das árvores em redor. Isso a fez rir. A gargalhada atraiu mais lobos para ela, e também os matou, perguntando-se deveria dar início a uma contagem sua. Sou uma mulher casada, e aqui está o meu bebê de peito. Enterrou o punhal no peito de um nortenho, através de pele, lã e couro fervido. A cara dele estava tão próxima da dela que sentia o fedor amargo do seu hálito, e a mão do homem subira-lhe à garganta. Asha sentiu ferro a raspar em osso quando a ponta do punhal deslizou sobre uma costela. Depois, o homem estremeceu e morreu. Quando o largou estava tão fraca que quase caiu em cima dele.


Mais tarde, viu-se costas contra costas com Qarl, escutando os gemidos e pragas a toda a sua volta, ouvindo os homens corajosos que gatinhavam pelas sombras chorando pelas mães. Um arbusto arremeseu contra ela com uma lança suficientemente longa para lhe atravessar a barriga e também as costas de Qarl, prendendo-os um ao outro enquanto morriam. Antes isso do que morrer sozinha, pensou, mas o primo Quenton matou o lanceiro antes de chegar a ela. Um segundo mais tarde, outro arbusto matou Quenton, enfiando-Ihe um machado na base do crânio, por trás.


Atrás dela, o Linguatriste gritou:


— Nove e malditos sejam todos. — A filha de Hagen saltou nua de debaixo das árvores com dois lobos em sua perseguição. Asha soltou um machado de arremesso e o fez voar, rodopiando, para apanhar um deles nas costas. Quando o homem caiu, a filha de Hagen tropeçou e caiu de joelhos e agarrou na espada dele, atravessou o segundo homem e depois voltou a erguer-se, manchada de sangue e de lama, com o longo cabelo ruivo solto, e mergulhou na luta.


Em Algum lugar, nos avanços e recuos da batalha, Asha perdeu Qarl, perdeu Tris, perdeu-os todos. O seu punhal também se fora, bem como todos os machados de arremesso; em vez deles, tinha uma espada na mão, uma espada curta com uma lâmina larga e espessa, quase como o cutelo de um magarefe. Nem para salvar a vida saberia dizer onde a arranjara. Doía-lhe o braço, a boca sabia-lhe a sangue, tinha as pernas tremendo, e colunas da luz pálida da aurora estavam caindo por entre as árvores. Passou-se assim tanto tempo? Há quanto tempo estamos lutando?


O seu último inimigo foi um nortenho com um machado, um homem grande, careca e barbudo, vestido com um Camisa de cota de malha remendada e enferrujada que só podia querer dizer que era um chefe ou um capitão. Não ficou satisfeito por descobrir-se combatendo uma mulher.


— Puta! — rugia de todas as vezes que a golpeava, umedecendo-lhe a cara com cuspe. — Puta! Puta!


Asha queria gritar-lhe de volta, mas tinha a garganta tão seca que não podia fazer mais do que grunhir. O machado dele estava-lhe fazendo tremer o escudo, fazendo estalar a madeira quando o brandia para baixo, arrancando longas lascas claras quando o puxava de volta. Em breve, Asha teria apenas um emaranhado de acendalhas no braço. Recuou e libertou-se do escudo arruinado e depois recuou um pouco mais e dançou para a esquerda e para a direita e de novo para a esquerda, a fim de evitar o machado que caía sobre ela.


E então, as suas costas colidiram com força com uma árvore, e deixou de conseguir dançar. O lobo ergueu o machado acima da cabeça para lhe abrir a cabeça em duas. Asha tentou deslizar para a esquerda, mas os pés estavam emaranhados numas raízes, encurralando-a. Torceu-se, perdeu o equilíbrio, e a cabeça do machado esmagou-se contra a sua têmpora com um grito de aço a bater em aço. O mundo ficou vermelho e negro e de novo vermelho. Dor estalou-lhe na pele como um relâmpago e muito ao longe ouviu o seu nortenho dizer:


— Sua puta de merda — enquanto erguia o machado para o golpe que acabaria com ela.


Soou uma trombeta.


Isto está errado, pensou. Não há trombetas nos salões aquáticos do Deus Afogado. Sob as vagas, os bacalhaus saúdam o seu senhor soprando em conchas.


Sonhou com corações vermelhos ardendo e com um veado negro numa floresta dourada, com chamas jorrando das suas hastes.



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