TYRION

Durante muito tempo não se mexeu, ficou imóvel em cima da pilha de sacos velhos que lhe servia de cama, à escuta do vento nas cordas, do bater do rio contra o casco.



Uma Lua cheia flutuava sobre o mastro. Está me seguindo rio abaixo, me observando como se fosse um grande olho. Apesar do calor das peles quentes que o cobriam, um arrepio percorreu o homenzinho. Preciso de uma taça de vinho. De uma dúzia de taças de vinho. Mas a Lua pestanejaria antes daquele filho da puta do Griffome deixar matar a sede. Em vez de vinho, bebia água, e era condenado a noites sem dormir e a dias de suores e tremores.


O anão sentou-se, apoiando a cabeça nas mãos. Terei sonhado? Todas as memórias do sonho lhe tinham fugido. As noites nunca tinham sido bondosas para Tyrion Lannister. Dormia mal mesmo em suaves colchões de penas. Na Tímida Donzela fazia a cama no topo do teto da cabine com um rolo de corda de cânhamo como almofada. Gostava mais desse lugar do que do pequeno porão do barco. O ar era mais fresco, e os sons do rio eram mais suaves do que o ressonar de Pato. Havia um preço a pagar por essas alegrias, porém; o convés era duro, e ele acordava duro e dolorido, com cãibras e dores nas pernas.


Agora estavam latejando, com as barrigas duras como madeira. Mas as afagou com os dedos, tentando afastar a dor com uma esfregadela, mas quando se pôs em pé a dor ainda foi suficiente para levá-lo a fazer uma careta. Preciso tomar banho. A sua roupa de rapaz fedia, e ele também. Os outros se banhavam no rio, mas até naquele momento não se juntava a eles. Algumas das tartarugas que vira nos baixios pareciam suficientemente grandes para fazê-lo em dois com uma dentada. Pato os chamava de "quebra-ossos". Além do mais, não queria que Lemore o visse nu.


Uma escada de madeira descia do teto da cabine. Tyrion calçou as botas e desceu para a cobertura da popa, onde Griff estava sentado enrolado num manto de pele de lobo ao lado de um braseiro de ferro. O mercenário guardava para si a vigia da noite, levantando-se quando o resto do bando ia em busca das camas e recolhendo-se quando o Sol nascia.


Tyrion acocorou-se na frente dele e aqueceu as mãos por cima das brasas. Para lá da água cantavam rouxinóis.


— Depressa será dia — disse a Griff.


— Não suficientemente depressa. Precisamos nos colocar a caminho. — Se dependesse de Griff, a Tímida Donzela continuaria descendo o rio tanto de dia como de noite, mas Tandry e Ysilla recusavam-se a arriscar o seu barco de varejo no escuro. O Roine Superior estava cheio de obstáculos submarinos e troncos flutuantes, qualquer um dos quais seria capaz de rasgar o casco da Tímida Donzela. Griff não queria saber disso. O que queria era Volantis.


Os olhos do mercenário estavam sempre mexendo, investigando a noite em busca de... Quê? Piratas? Homens de pedra? Caçadores de escravos? O rio tinha perigos, o anão bem o sabia, mas o próprio Griff parecia a Tyrion mais perigoso do que qualquer um desses perigos. Ele o fazia se lembrar de Bronn, embora Bronn tivesse o humor negro de um mercenário e Griff não possuísse humor nenhum.


— Estou capaz de matar por uma taça de vinho — resmungou Tyrion.


Griff não respondeu. Vai morrer antes de beber, pareciam dizer os seus olhos claros. Tyrion embebedou-se até cair na primeira noite que passou na Tímida Donzela. No dia seguinte, acordou com dragões lutando no seu crânio. Griff deu-lhe uma olhadela a vomitar da borda do barco de varejo e disse:


— Acabou a bebida para você.


— O vinho me ajuda a dormir — protestara Tyrion. O vinho afoga os meus sonhos, poderia ter dito.


— Então fica acordado — replicou Griff, implacável.


Para leste, a primeira pálida luz do dia espalhava-se pelo céu, sobre o rio. As águas do Roine passaram lentamente de negras a azuis, para combinar com o cabelo e a barba do mercenário. Griff pôs-se em pé.


— Os outros devem acordar em breve. O convés é seu. — À medida que os rouxinóis foram silenciando, as aves do rio foram nos substituindo na canção. Garças chapinhavam entre os juncos e deixavam os seus rastos nos bancos de areia. As nuvens no céu estavam afogueadas; róseas e purpúreas, castanhas e douradas, cor de pérola e açafrão. Uma parecia um dragão. Uma vez que um homem veja um dragão em voof que fique em casa e cuide satisfeito do jardim, escrevera alguém um dia, pois este vasto mundo não possui maior maravilha. Tyrion coçou a cicatriz e tentou se recordar do nome do autor. Os dragões tinham andado muito nos seus pensamentos nos últimos tempos.


— Bom dia, Hugor. — A septã Lemore apareceu com as suas vestes brancas, cingidas à cintura por um cinto tecido de sete cores. O cabelo fluía solto em volta dos ombros. — Dormiu bem?


— Aos arrancos, minha boa senhora. Voltei a sonhar com você. — Um sonho acordado. Não conseguia dormir, portanto, enfiou uma mão entre as pernas e imaginou a septã em cima dele, de seios balançando.


— Um sonho perverso, sem dúvida. É um homem perverso. Quer rezar comigo e pedir perdão pelos seus pecados?


Só se rezarmos à moda das Ilhas do Verão.


— Não, mas dê a Donzela um longo e doce beijo da minha parte.


Rindo, a septã se dirigiu à proa do barco. Era seu costume se banhar no rio todas as manhãs.


— É evidente que este barco não foi batizado em sua honra — gritou Tyrion enquanto ela se despia.


— A Mãe e o Pai nos fizeram à sua imagem, Hugor. Devíamos nos alegrar com os nossos corpos, pois são a obra de deuses.


Os deuses deviam estar bêbados quando chegou a minha vez. O anão observou enquanto Lemore deslizava para dentro da água. A cena deixava-o sempre duro. Havia algo de maravilhosamente perverso na ideia de arrancar da septã aquelas castas vestes brancas e de lhe abrir as pernas. Inocência roubada, pensou... Embora Lemore não fosse nem por sombras tão inocente como parecia. Tinha estrias na barriga que só podiam vir de um parto.


Yandry e Ysilla tinham se levantado com o sol e estavam tratando dos seus assuntos. Yandry deitava olhares à Septã Lemore enquanto verificava as cordas. A sua pequena e escura mulher, Ysilla, não reparava. Alimentou o braseiro da pavimento de popa com algumas lascas de madeira, mexeu as brasas com uma lâmina enegrecida, e começou a trabalhar a massa para os biscoitos matinais.


Quando Lemore voltou a subir para o convés, Tyrion saboreou a visão da água escorrendo entre os seios, da sua pele suave brilhando dourada à luz da manhã. Tinha mais de quarenta anos, era mais atraente do que bonita, mas continuava a ser agradável à vista. Depois de estar bêbado, a melhor coisa é a luxúria, decidiu. Fazia-o se sentir ainda vivo.


— Viu a tartaruga, Hugor? — perguntou a septã, torcendo o cabelo para secá-lo. — A grande corcunda?


O início da manhã era a melhor hora para ver tartarugas. Durante o dia nadavam para o fundo, ou se escondiam em covas ao longo das margens, mas logo após o nascer do Sol vinham à superfície. Algumas gostavam de nadar junto do barco. Tyrion vira uma dúzia de espécies diferentes; tartarugas grandes e pequenas, chatas e de ouvido vermelho, de carapaça mole e quebra-ossos, tartarugas castanhas, tartarugas verdes, tartarugas pretas, tartarugas de garras e tartarugas de chifres, tartarugas cujas carapaças corcundas e ornamentadas estavam cobertas de volutas de ouro, jade e creme. Algumas eram tão grandes que podiam ter sustentado um homem sobre o dorso. Yandry jurava que os príncipes roinares costumavam montá-las no rio. Ele e a mulher tinham nascido no Sangueverde, um par de órfãos dorneses regressados a casa, à Mãe Roine.


— Não vi a corcunda. — Estava observando a mulher nua.


— Me sinto triste por você. — Lemore enfiou a veste pela cabeça. — Sei que só se levanta tão cedo na esperança de ver tartarugas.


— Também gosto de ver o Sol nascer. — Era como ver uma donzela sair nua do banho. Algumas podiam ser mais bonitas do que outras, mas estavam todas cheias de promessas. — As tartarugas têm os seus encantos, admito. Nada me delicia tanto como ver um belo par de bem torneadas... carapaças.


A Septã Lemore soltou uma gargalhada. Como todos os outros a bordo da Tímida Donzela, tinha os seus segredos. Que lhe fizessem bom proveito. Não quero conhecê-la, só quero fodê-la. E ela também sabia. Quando pendurou o cristal de septã ao pescoço, aninhando-o na cova entre os seios, provocou-o com um sorriso.


Yandry levantou âncora, fez deslizar uma das grandes varas para fora do teto da cabine e as empurrou para o rio. Duas das garças ergueram as cabeças para observar quando a Tímida Donzela se afastou da margem e penetrou na corrente. Lentamente, o barco começou a se mover para jusante. Yandry se dirigiu à alavanca do leme. Ysilla estava virando os biscoitos. Colocou um tacho de ferro em cima do braseiro e pois o bacon lá dentro. Havia dias em que cozinhava biscoitos e bacon, em outros bacon e biscoitos. Uma vez por quinzena talvez houvesse um peixe, mas naquele dia não.


Quando Ysilla virou as costas, Tyrion roubou um biscoito do braseiro, fugindo a tempo de evitar apanhar com a sua temível colher de pau. Os biscoitos eram melhores quando eram comidos quentes, pingando mel e manteiga. O cheiro do bacon cozinhando depressa trouxe Pato do porão. Farejou por cima do braseiro, recebeu uma pancada da colher de Ysilla, e foi dar a sua mijada matinal à popa do barco.


Tyrion se moveu para se juntar a ele.


— Ora aqui está uma cena digna de se ver — brincou enquanto esvaziavam as bexigas — um anão e um pato, tornando o poderoso Roine mais poderoso ainda.


Yandry soltou uma fungadela de zombaria.


— A Mãe Roine não precisa da sua água, Yollo. É o maior rio do mundo.


Tyrion sacudiu as últimas gotas.


— É suficientemente grande para afogar um anão, admito. Mas o Vago é igualmente largo. E o Tridente também, perto da foz. A Água Negra é mais profunda.


— Não conhece o rio. Espera e verá.


O bacon estalou, os biscoitos ficaram num tom dourado de castanho. O Jovem Griff subiu ao convés aos tropeções e a bocejar.


— Bom dia a todos. — O rapaz era mais baixo do que Pato, mas a sua constituição esguia sugeria que ainda não tinha chegado à sua altura completa. Este rapaz sem barba podia obter qualquer donzela dos Sete Reinos, com cabelo azul ou sem ele. Aqueles as derreteriam. Como o pai, o Jovem Griff tinha olhos azuis, mas enquanto os do pai eram claros, os do filho eram escuros. À luz das lâmpadas se tornavam negros, e à luz do crepúsculo pareciam purpúreos. As pestanas eram tão longas como as de qualquer mulher.


— Cheiro bacon — disse o rapaz, calçando as botas.


— Bom bacon — disse Ysilla. — Sente.


Deu a eles de comer na cobertura da popa, pressionando o Jovem GrifF a comer biscoitos com mel e batendo na mão do Pato com a colher sempre que este tentava pegar mais bacon. Tyrion partiu dois biscoitos, encheu-os com bacon e levou um a Yandry, que estava na alavanca do leme. Depois ajudou Pato a içar a grande vela triangular da Tímida Donzela. Yandry os levou para o centro do rio, onde a corrente era mais forte. A Tímida Donzela era um bom barco. Tinha um calado tão baixo que podia abrir caminho mesmo pelo menor dos afluentes do rio, navegando por entre bancos de areia que teriam encalhado embarcações maiores, mas com a vela içada e uma corrente por baixo conseguia atingir uma boa velocidade. Yandry afirmava que isso poderia significar a diferença entre a vida e a morte nos trechos superiores do Roine.


— Acima das Mágoas não há lei, e há mil anos que é assim.


— E também não há gente, que eu veja. — Vislumbrara algumas ruínas ao longo das margens, pilhas de pedras cobertas de trepadeiras, musgo e flores, mas nenhum outro sinal de habitação humana.


— Não conhece o rio, Yollo. Um barco pirata pode estar escondido em qualquer ribeiro, e escravos fugidos se escondem com frequência entre as ruínas. Os caçadores de escravos raramente vêm tão para norte.


— Caçadores de escravos seriam uma mudança bem-vinda relativamente às tartarugas. — Não sendo um escravo fugido, Tyrion não precisava temer ser apanhado. E não era provável que um pirata incomodasse um barco de varejo se deslocando para jusante. Os bens valiosos vinham rio acima desde Volantis.


Quando o bacon acabou, Pato deu um murro no ombro do Jovem Griff.


— Está na altura de ganhar umas nódoas negras. Hoje é espadas, parece-me.


— Espadas? — o Jovem Griff fez um sorriso. — Espadas será bom.


Tyrion ajudou-o a vestir-se para o combate, com calças pesadas, gibão almofadado e uma armadura amolgada de velho aço. Sor Rolly enfiou-se na sua cota de malha e couro fervido. Ambos puseram elmos na cabeça e tiraram espadas longas sem fio do fardo guardado na arca das armas. Foram combater para a coberta de popa, atacando-se energicamente um ao outro enquanto o resto do grupo matinal os observava.


Quando combatiam com maça de armas ou machado embotado, o tamanho e a força superiores de Sor Rolly depressa se sobrepunham ao seu aluno. Com espadas, os desafios eram mais equilibrados. Nenhum dos homens tinha pegado num escudo naquela manhã, de modo que foi um jogo de golpe e parada, para trás e para diante pela coberta fora. O rio ressoava com o ruído do combate. O Jovem Griff acertou mais estocadas, embora as do Pato fossem mais fortes. Passado algum tempo, o homem maior começou a cansar-se. Os seus golpes começaram a chegar um pouco mais lentos, um pouco mais baixos. O Jovem Griff afastou-os a todos e desencadeou um furioso ataque que forçou Sor Rolly a recuar. Quando chegaram à popa, o rapaz prendeu as lâminas e atirou um ombro contra Pato, e o grandalhão caiu ao rio.


Reapareceu a cuspir e a praguejar, berrando por alguém que o pescasse antes de uma quebra-ossos lhe comer as partes pudendas. Tyrion atirou-lhe uma corda.


— Os patos deviam nadar melhor do que isso — disse, enquanto ele e Yandry voltavam a içar o cavaleiro para bordo da Tímida Donzela.


Sor Rolly agarrou em Tyrion pelo colarinho.


— Vejamos como nadam os anões — disse, atirando-o de cabeça ao Roine.


O anão foi o último a rir; conseguia chapinhar razoavelmente bem, e foi o que fez até começar a sentir cãibras nas pernas. O Jovem Griff estendeu-lhe uma vara.


— Não é o primeiro a tentar afogar-me — disse ao Pato enquanto despejava água do rio da bota. — O meu pai atirou-me a um poço no dia em que nasci, mas eu era tão feio que a bruxa de água que vivia lá em baixo me cuspiu de volta. — Descalçou a outra bota, após o que fez a roda pelo convés fora, salpicando-os a todos.


O Jovem Griff riu-se.


— Onde aprendeste a fazer isso?


— Os saltimbancos ensinaram-me — mentiu. — A minha mãe gostava mais de mim do que do resto dos filhos porque eu era tão pequeno. Amamentou-me até ter sete anos. Isso deixou os meus irmãos com ciúmes, por isso enfiaram-me num saco e venderam-me a uma trupe de saltimbancos. Quando tentei fugir, o chefe dos saltimbancos cortou-me metade do nariz, portanto não tive alternativa senão seguir com eles e aprender a ser divertido.


A verdade era bastante diferente. O tio ensinara-lhe um pouco de malabarismo aos seis ou sete anos. Tyrion dedicara-se a isso com avidez. Durante meio ano, andara alegremente a fazer rodas por todo o Rochedo Casterly, trazendo sorrisos tanto às caras de septões, como às de escudeiros e criados. Até Cersei rira uma ou duas vezes ao vê-lo.


Tudo isso terminara abruptamente no dia em que o pai regressara de uma estadia em Porto Real. Nessa noite, ao jantar, Tyrion surpreendera o seu progenitor percorrendo toda a mesa elevada a fazer o pino. O Lorde Tywin não ficara contente.


— Os deuses fizeram-te anão. Terás também de ser bobo? Nasceu leão, não macaco.


E tu és um cadávery pai, portanto, farei as cabriolas que quiser.


— Tem o dom para fazer os homens sorrir — disse a Septã Lemore a Tyrion enquanto este secava os dedos dos pés. — Devia agradecer ao Pai no Céu. Ele dá dons a todos os seus filhos.


— Pois dá — concordou o anão num tom agradável. E quando eu morrer; por favor que me enterrem com uma besta para poder agradecer ao Pai no Céu pelos seus dons da mesma forma que agradeci ao pai na terra.


Ainda tinha a roupa ensopada do mergulho involuntário, colando-se-lhe desconfortavelmente aos braços e às pernas. Quando o Jovem Griff se foi embora com a Septã Lemore para ser instruído nos mistérios da Fé, Tyrion despiu a roupa molhada e vestiu outra seca. Pato soltou uma valente gargalhada quando ele voltou a aparecer no convés. Não podia censurá-lo. Vestido como estava era uma visão cômica. O gibão estava dividido ao meio; o lado esquerdo era de veludo púrpura com tachões de bronze, o direito de lã amarela bordada com padrões florais verdes. As bragas estavam divididas de forma semelhante; a perna direita era verde, a esquerda listada de vermelho e branco. Uma das arcas de Illyrio fora enchida com roupa de criança, bafienta mas bem feita. A Septã Lemore cortara ao meio cada peça de roupa e depois voltara a cosê-las, juntando metade disto com metade daquilo para arranjar retalhos improvisados. Griff insistira mesmo que Tyrion ajudasse a cortar e a coser. Não havia dúvida de que pretendera que a atividade o humilhasse, mas Tyrion gostara da costura. Lemore era sempre uma companhia agradável, apesar da queda que tinha para repreendê-lo sempre que ele dizia qualquer coisa rude sobre os deuses. Se Griff me quer pôr no papel de bobo,jogarei esse jogo. Em algum lugar, bem sabia, Lorde Tywin Lannister estava horrorizado, e isso fazia com que o fato não o picasse.


O seu outro dever era tudo menos pateta. O Pato tem a sua espada, eu a minha pena e o meu pergaminho. Griff ordenara-lhe que tomasse nota de tudo o que sabia sobre dragões. A tarefa era gigantesca, mas o anão trabalhava nela todos os dias, escrevendo o melhor que podia enquanto se mantinha sentado de pernas cruzadas no teto da cabine.


Tyrion lera muitíssimo sobre dragões ao longo dos anos. A maioria desses relatos eram histórias vãs em que não era possível confiar, e os livros que Illyrio lhes fornecera não eram aqueles que poderia ter desejado. O que realmente queria era o texto completo de Os Fogos da Cidade Franca, a história de Valíria escrita por Galendro. Mas nenhuma cópia completa era conhecida em Westeros; até à Cidadela faltavam vinte e sete rolos. Decerto que deverão ter uma biblioteca na Velha Volantis. Poderei encontrar aí uma cópia melhor; se conseguir arranjar maneira de atravessar as Muralhas Negras e entrar no coração da cidade.


Sentia menos esperança a respeito dos Dragões, Wyrms e Serpes: A Sua História Não-Natural, do Septão Barth. Barth fora um filho de ferreiro que ascendera a Mão do Rei durante o reinado de Jaehaerys, o Conciliador. Os seus inimigos sempre tinham afirmado que era mais feiticeiro do que septão. Baelor, o Abençoado, ordenara a destruição de todos os escritos de Barth quando ascendera ao Trono de Ferro. Dez anos antes, Tyrion lera um fragmento da História Não-Natural que tinha escapado ao Amado Baelor, mas duvidava de que algum do trabalho de Barth tivesse chegado ao outro lado do mar estreito. E claro que havia ainda menos hipóteses de se deparar com o tomo fragmentário, anônimo e ensopado de sangue por vezes chamado Sangue e Fogo e outras vezes A Morte de Dragões, cuja única cópia sobrevivente estava supostamente escondida numa cave trancada sob a Cidadela.


Quando o Semi-meistre surgiu no convés, bocejando, o anão estava escrevendo aquilo de que se lembrava a respeito dos hábitos de acasalamento dos dragões, assunto sobre o qual Barth, Munkun e Thomax defendiam pontos de vista marcadamente diferentes. Haldon caminhou a passos largos até à popa para mijar para o local onde o sol cintilava na água, quebrado por cada sopro de vento.


— Devemos chegar à junção com o Noine antes de cair a noite, Yollo — gritou o Semi-meistre.


Tyrion ergueu o olhar do que estava escrevendo.


— O meu nome é Hugor. O Yollo está escondido nas minhas calças. Quer que o tire para brincar?


— É melhor que não. Podia assustar as tartarugas. — O sorriso de Haldon era tão penetrante como a lâmina de um punhal. — Como era o nome da tal rua em Lannisporto onde me disse que tinha nascido, Yollo?


— Era uma viela. Não tinha nome. — Tyrion retirava um prazer mordaz de inventar os detalhes da colorida vida de Hugor Hill, também conhecido como Yollo, um bastardo originário de Lannisporto. As melhores mentiras estão temperadas com um pouco de verdade. O anão sabia que soava como um ocidental, e um ocidental bem nascido, ainda por cima, pelo que Hugor teria de ser bastardo de um fidalgote qualquer. Nascido em Lannisporto porque conhecia essa cidade melhor do que Vilavelha ou Porto Real, e porque era nas cidades que a maioria dos anões acabavam, mesmo aqueles que eram paridos pela Governanta Saloia no meio do nabal. O campo não tinha espetáculos de aberrações ou de saltimbancos... Embora tivesse fartura de poços, para engolir gatinhos indesejados, bezerros de três cabeças e bebês como ele.


— Vejo que tem andado estragando mais do bom pergaminho, Yollo. — Haldon voltou a atar as bragas.


— Nem todos podemos ser meios meistres. — Tyrion estava com cãibras na mão. Pôs a pena de parte e flexionou os dedos curtos. — Lhe agrada outro jogo de cyvasse7. — o Semi-meistre derrotava-o sempre, mas era uma maneira de passar o tempo.


— Esta noite. Não te quer se juntar a nós para a aula do Jovem Griff?


— Porque não? Alguém tem de corrigir os seus erros.


Havia quatro cabines na Tímida Donzela. Yandry e Ysilla partilhavam uma, Griff e o Jovem Griff outra. A Septã Lemore tinha uma cabine para si, e Haldon também. A cabine do Semi-meistre era a maior das quatro. Uma das paredes estava coberta de prateleiras e caixas atafulhadas de velhos rolos e pergaminhos; outra tinha estantes de unguentos, ervas e poções. Uma luz dourada entrava em diagonal pelo ondulado vidro amarelo da janela redonda. A mobília incluía um beliche, uma mesa para escrever, uma cadeira, um banco e a mesa de cyvasse do Semi-meistre, coberta de peças esculpidas de madeira.


A aula começou pelas línguas. O Jovem Griff falava o idioma comum como se fosse a sua língua natal, e era fluente em alto valiriano, nos dialetos inferiores de Pentos, Tyrosh, Myr e Lys e na língua comercial dos marinheiros. O dialeto volanteno era tão novo para ele como para Tyrion, de modo que aprendiam todos os dias mais algumas palavras enquanto Haldon lhes corrigia os erros. O meereenês era mais difícil; as suas raízes também eram valirianas, mas a árvore fora enxertada com a dura e feia língua da Velha Ghis.


— É preciso enfiar uma abelha no nariz para falar ghiscari como deve ser — queixou-se Tyrion. O Jovem Griff riu-se, mas o Semimeistre apenas disse:


— Outra vez. — O rapaz obedeceu, embora daquela vez fizesse rolar os olhos com os seus zzzs. Ele tem melhor ouvido do que eu, Tyrion foi forçado a admitir, se bem que aposto que a minha língua continua a ser mais ágil.


A geometria seguiu-se às línguas. Aí, o rapaz era menos hábil, mas Haldon era um professor paciente, e Tyrion conseguiu também tornar-se útil. Aprendera os mistérios dos quadrados, círculos e triângulos com os meistres do pai no Rochedo Casterly, e voltaram-lhe à memória mais depressa do que teria julgado possível.


Quando se viraram para a história, o Jovem Griff estava ficando irrequieto.


— Estávamos discutindo a história de Volantis — disse-lhe Haldon. — Pode explicar a Yollo qual a diferença entre um tigre e um elefante?


— Volantis é a mais antiga das Nove Cidades Livres, a primeira filha de Valíria — respondeu o rapaz com uma voz aborrecida. — Depois da Destruição, agradou aos volantenos considerarem-se os herdeiros da Cidade Franca e os legítimos governantes do mundo, mas estavam divididos quanto a como o domínio poderia ser melhor alcançado. O Sangue Antigo preferia a espada, enquanto os mercadores e os prestamistas defendiam o comércio. Enquanto competiam pelo governo da cidade, as fações tornaram-se conhecidas como tigres e elefantes, respetivamente. Os tigres imperaram durante quase um século após a Destruição de Valíria. Durante algum tempo foram bem sucedidos. Uma frota volantena conquistou Lys e um exército volanteno capturou Myr, e durante duas gerações as três cidades foram governadas do interior das Muralhas Negras. Isso acabou quando os tigres tentaram engolir Tyrosh. Pentos entrou na guerra do lado de Tyrosh, juntamente com o Rei da Tempestade de Westeros. Bravos forneceu a um exilado liseno cem navios de guerra, Aegon Targaryen voou de Pedra do Dragão montado no Terror Negro, e Myr e Lys ergueram-se em rebelião. A guerra transformou as Terras Disputadas num deserto, e libertou Lys e Myr do jugo. Os tigres sofreram também outras derrotas. A frota que enviaram para reclamar Valíria desapareceu no Mar Fumegante. Qohor e Norvos quebraram o seu poderio no Roine quando as galés de fogo combateram no Lago Adaga. Do leste vieram os dothraki, expulsando os plebeus das suas cabanas e os nobres das suas propriedades, até só restar erva e ruínas entre a floresta de Qohor e as nascentes do Selhoru. Depois de um século de guerra, Volantis deu por si quebrada, falida e despovoada. Foi então que os elefantes se ergueram. Tem imperado desde então. Há anos em que os tigres elegem um triarca, e há anos em que não elegem, mas nunca mais do que um, de modo que os elefantes governam a cidade há trezentos anos.


— É isso mesmo — disse Haldon. — E os triarcas atuais?


— Malaquo é um tigre, Nyessos e Doniphos são elefantes.


— E que lição podemos retirar da história volantena?


— Se queremos conquistar o mundo é bom que tenhamos dragões.


Tyrion não conseguiu evitar uma gargalhada.


Mais tarde, quando o Jovem Griff subiu ao convés para ajudar Yandry com as velas e as varas, Haldon preparou a mesa de cyvasse para o jogo com Tyrion. Este observou com olhos desiguais e disse:


— O rapaz é inteligente. Saiu-se bem com ele. Metade dos senhores de Westeros são menos instruídos, infelizmente. Línguas, história, canções, somas... É um guisado e peras para o filho de um mercenário qualquer.


— Um livro pode ser tão perigoso como uma espada nas mãos certas — disse Haldon. — Tente me dar melhor batalha desta vez, Yollo. Joga cyvasse tão mal como cabriolas.


— Estou tentando te levar a uma falsa sensação de confiança — disse Tyrion enquanto organizavam as peças de ambos os lados de um anteparo de madeira entalhada. — Você pensa que me ensinou a jogar, mas as coisas nem sempre são o que parecem. Talvez tenha aprendido o jogo com o queijeiro, já pensou nisso?


— Illyrio não joga cyvasse.


Pois não, pensou o anão, joga o jogo de tronos, e você, Griff e Pato não passam de peças, para serem movidas para onde ele quiser e sacrificadas conforme necessário, tal como sacrificou Viserys.


— Então a culpa tem de te caber a ti. Se eu jogo mal, é obra sua.


O Semi-meistre soltou um risinho.


— Yollo, vou sentir a sua falta quando os piratas te cortarem a goela.


— Onde estão esses famosos piratas? Estou começando a achar que você e Illyrio os inventaram todos.


— Onde há mais é no troço de rio entre Ar Noy e as Mágoas. Acima das ruínas de Ar Noy, os qohorik governam o rio, e abaixo das Mágoas as galés de Volantis imperam, mas nenhuma cidade reclama as águas intermediarias, portanto, os piratas tornaram-nas suas. O Lago Adaga está cheio de ilhas onde eles espreitam de grutas escondidas e fortes secretos. Estás pronto?


— Para você? Sem qualquer dúvida. Para os piratas? Menos.


Haldon removeu o anteparo. Cada um contemplou a formação de abertura do outro.


— Está aprendendo — disse o Semimeistre.


Tyrion quase agarrou no dragão, mas pensou melhor. No último jogo tinha-o feito avançar cedo demais e perdera-o para um trabuco.


— Se encontrarmos mesmo esses célebres piratas talvez me junte a eles. Vou dizer-lhes que me chamo Hugor Semimeistre. — Moveu a cavalaria ligeira em direção das montanhas de Haldon.


Este respondeu com um elefante.


— Hugor Semisperto condizia melhor contigo.


— Só preciso de metade da minha esperteza para me igualar a você. — Tyrion moveu a cavalaria pesada em apoio da ligeira. — Talvez queira apostar no resultado?


O Semimeistre arqueou uma sobrancelha.


— Quanto?


— Não tenho dinheiro. Jogaremos a segredos.


— Griff me cortaria a língua.


— Medinho, hã? Eu também teria, se fosse você.


— O dia em que me derrotar no cyvasse será o dia em que tartarugas saem do meu cu rastejando. — O Semimeistre moveu as lanças. — Aceito a sua aposta, homenzinho.


Tyrion estendeu uma mão para o dragão.


Foi três horas mais tarde que o homenzinho finalmente voltou para o convés a fim de esvaziar a bexiga. Pato estava ajudando Yandry a puxar a vela para baixo, enquanto Ysilla manejava o leme. O Sol pairava baixo sobre os canaviais ao longo da margem ocidental, enquanto o vento começava a soprar em rajadas. Preciso do tal odre de vinho, pensou o anão. Tinha cãibras nas pernas de estar acocorado naquele banco, e sentia a cabeça tão leve que se achava com sorte por não cair ao rio.


— Yollo — chamou o Pato. — Onde está Haldon?


— Foi para a cama, com um certo desconforto. Estão-lhe a sair tartarugas do cu. — Deixou o cavaleiro a tentar entender o que aquilo queria dizer e subiu a escada para o teto da cabine. Para leste, havia escuridão juntando por trás de uma ilha rochosa.


A Septã Lemore foi lá ter com ele.


— Consegue sentir as tempestades no ar, Hugor Hill? À nossa frente está o Lago Adaga, onde piratas vagueiam em busca de presas. E depois do lago ficam as Mágoas.


As minhas não. Eu levo as minhas próprias mágoas comigo, para onde quer que vá. Pensou em Tysha e sentiu curiosidade de saber para onde iriam as rameiras. Porque não Volantis? Talvez a encontre lá. Um homem devia agarrar-se à esperança. Perguntou-se o que lhe diria. Lamento por ter deixado que te violassem, amor. Julgava que era uma rameira. Conseguirás encontrar no coração maneira de me perdoar? Quero regressar à nossa cabana, a como as coisas eram quando fomos marido e mulher.


A ilha afastou-se atrás deles. Tyrion viu ruínas erguendo-se ao longo da margem oriental; paredes tortas e torres caídas, cúpulas quebradas e fileiras de pilares podres de madeira, ruas afogadas em lama e cobertas de musgo púrpura. Outra cidade morta, dez vezes maior do que Ghoyan Drohe. Agora viviam ali tartarugas, grandes quebra-ossos. O anão via-as se refastelando ao sol, montículos castanhos e negros com cristas denteadas ao longo do centro das carapaças. Algumas viram a Tímida Donzela e deslizaram para dentro de água, deixando ondulações na sua esteira. Aquele não seria bom lugar para um banho.


Então, através das árvores retorcidas e meio afogadas e as largas ruas úmidas, vislumbrou o reflexo prateado da luz do sol em água. Outro rio,compreendeu de imediato, correndo para o Roine. As ruínas foram ficando mais altas à medida que a terra foi se tornando mais estreita, até que a cidade terminou numa ponta de terra onde se erguiam os restos de um colossal palácio de mármore rosa e verde, com cúpulas arruinadas e coruchéus quebrados a erguerem-se bem alto sobre uma fileira de arcadas cobertas. Tyrion viu mais quebra-ossos dormindo nas rampas onde meia centena de navios podia ter atracado em tempos. Nesse momento soube onde estava. Aquele era o palácio de Nymeria, e isto é tudo o que resta de Ny Sar, a sua cidade.


— Yollo — gritou Yandry quando a Tímida Donzela passou pelo cabo — fala-me lá outra vez desses rios de Westeros tão grandes como a Mãe Roine.


— Não sabia — gritou ele em resposta. — Nenhum rio nos Sete Reinos tem metade da largura deste. — O novo rio que acabara de se juntar-lhes era praticamente gêmeo daquele ao longo do qual vinham navegando, e esse, sozinho, quase igualara o Vago ou o Tridente.


— Isto é Ny Sar, onde a Mãe reúne a si a sua Filha Selvagem, Noine — disse Yandry — mas não chegará ao seu ponto mais largo até encontrar as outras filhas. No Lago Adaga, o Qhoine junta-se a este, A Filha Escura, cheia de ouro e âmbar provenientes do Machado e de pinhas da Floresta de Qohor. A sul, a Mãe encontra-se com Lhorulu, a Filha Sorridente dos Campos Dourados. Onde se unem, erguia-se em tempos Choryane, a cidade festival, onde as ruas eram feitas de água e as casas feitas de ouro. Depois é outra vez para sul e para leste durante longas léguas, até que por fim aparece Selhoru, a Filha Tímida que esconde o seu leito em juncos e se contorce. Aí a Mãe Roine faz-se tão larga que um homem num barco no centro da corrente não consegue ver a margem de ambos os lados. Verá, meu pequeno amigo.


Verei, estava o anão pensando, quando detectou uma ondulação em frente, a menos de seis metros do barco. Aprestava-se a fazê-la notar a Lemore quando a coisa veio à superfície com uma onda de água que fez a Tímida Donzela balançar de lado.


Era outra tartaruga, uma cornuda de um tamanho enorme, com a carapaça verde-escura pintalgada de castanho e coberta de limos e moluscos fluviais duros e negros. Ergueu a cabeça e berrou, um rugido gutural a trovejante, mais forte do que qualquer corno de guerra que Tyrion tivesse ouvido.


— Fomos abençoados — estava Ysilla gritando ruidosamente, enquanto lágrimas lhe corriam pela cara. — Fomos abençoados, fomos abençoados.


Pato estava aos gritos e o Jovem Griff também. Haldon veio ao convés para saber qual fora a causa do alvoroço... Mas tarde demais. A gigantesca tartaruga voltara a desaparecer debaixo de água.


— Qual foi a causa de todo aquele barulho? — perguntou o Semimeistre.


— Uma tartaruga — disse Tyrion. — Uma tartaruga maior do que este barco.


— Era ele — gritou Yandry. — O Velho do Rio.


E porque não? Tyrion sorriu. Aparecem sempre deuses e maravilhas para assistir ao nascimento de reis.



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