Eu e Athena tínhamos uma coisa em comum: éramos ambos exilados de guerras, chegamos à Inglaterra ainda crianças, embora minha fuga da Polônia tenha acontecido há mais de cinqüenta anos. Nós dois sabíamos que, embora sempre haja uma mudança física, as tradições permanecem no exílio — as comunidades tornam a se reunir, a língua e a religião continuam vivas, as pessoas tendem a se proteger umas às outras no ambiente que será para sempre estrangeiro.
Da mesma maneira que as tradições permanecem, o desejo de voltar vai sumindo. Ele precisa permanecer vivo em nossos corações, uma esperança com a qual gostamos de nos enganar — mas que nunca será colocada em prática; eu jamais tornarei a viver em Czestochowa, ela e sua família jamais retornariam a Beirute.
Foi este tipo de solidariedade que me fez alugar o terceiro andar de minha casa em Basset Road — caso contrário, eu teria preferido inquilinos que não tivessem crianças. Já havia cometido este erro antes, e duas coisas aconteciam: eu me queixava do barulho que eles faziam durante o dia, e eles se queixavam do barulho que eu fazia durante a noite. Ambos tinham suas raízes em elementos sagrados — o choro e a música —, mas, como pertenciam a dois mundos completamente diferentes, era difícil que um tolerasse o outro.
Avisei-a, mas ela não ligou, e disse que ficasse tranqüilo quanto ao seu filho: ele passava o dia inteiro na casa da avó. E o apartamento tinha a conveniência de ser perto de seu trabalho, um banco nas redondezas.
Apesar dos meus avisos, apesar de ter resistido bravamente no inicio, oito dias depois a campainha de minha porta tocou. Era ela, com o menino nos braços:
— Meu filho não consegue dormir. Será que apenas hoje não dá para abaixar a música…
Todos na sala a olharam.
— O que é isso?
O menino em seu colo parou imediatamente de chorar, como se estivesse tão surpreso como a mãe ao ver aquele grupo de gente, que subitamente parara de dançar.
Apertei o botão que dava uma pausa na fita cassete, acenei com uma das mãos para que entrasse, e logo destravei de novo o aparelho de som, de modo a não perturbar o ritual. Athena sentou-se em um dos cantos da sala, embalando o bebê em seus braços, vendo que ele dormia com facilidade apesar do ruído do tambor e dos metais. Assistiu a toda a cerimônia, saiu quando os outros convidados também saíram e — como eu podia imaginar — tocou a campainha de minha casa na manhã seguinte, antes de ir para o trabalho.
— Não precisa me explicar o que vi: gente dançando de olhos fechados, e sei o que isso significa, porque muitas vezes faço a mesma coisa, são os únicos momentos de paz e de serenidade na minha vida. Antes de ser mãe, freqüentava boates com meu marido e meus amigos; ali também via gente na pista de dança com os olhos fechados, algumas apenas para impressionar os outros, outras como se fossem movidas por uma força maior, mais poderosa. E, desde que me entendo por gente, encontrei na dança uma maneira de conectar-me com algo mais forte, mais poderoso que eu. Mas queria saber que música é essa.
— O que vai fazer neste domingo?
— Nada de especial. Passear com Viorel no Regent’s Park, respirar um pouco de ar puro. Terei muito tempo para minha própria agenda — neste momento de minha vida, escolhi seguir a agenda do meu filho.
— Pois irei com você.
Nos dois dias antes de nosso passeio, Athena vinha assistir ao ritual. O filho dormia depois de alguns minutos, e ela apenas olhava, sem dizer nada, o movimento ao redor. Embora permanecesse imóvel no sofá, tinha certeza que sua alma estava dançando.
Na tarde de domingo, enquanto passeávamos no parque, pedi que prestasse atenção a tudo que estava vendo e ouvindo: as folhas que balançavam ao vento, as ondas na água do lago, os pássaros cantando, os cães latindo, os gritos de crianças que corriam de um lado para o outro, como se obedecessem a uma estranha lógica, incompreensível para os adultos.
— Tudo se move. E tudo se move com um ritmo. E tudo que se move com um ritmo provoca um som; isso está acontecendo aqui e em qualquer lugar do mundo neste momento. Nossos ancestrais notaram a mesma coisa, quando procuravam fugir do frio em suas cavernas: as coisas se moviam e faziam barulho.
“Os primeiros seres humanos talvez tivessem olhado isso com espanto, e logo em seguida com devoção: entenderam que esta era a maneira de uma Entidade Superior comunicar-se com eles. Passaram a imitar os ruídos e os movimentos à sua volta, na esperança de comunicar-se também com esta Entidade: a dança e a música acabavam de nascer. Há alguns dias você me disse que, dançando, consegue comunicar-se com algo mais poderoso que você.”
— Quando danço, sou uma mulher livre. Melhor dizendo, sou um espírito livre, que pode viajar pelo universo, olhar o presente, adivinhar o futuro, transformar-se em energia pura. E isso me dá um imenso prazer, uma alegria que está sempre muito mais além das coisas que já experimentei, e que terei que experimentar ao longo de minha existência.
“Em uma época da minha vida estava determinada a transformar-me em santa — louvando Deus através da música e dos movimentos do meu corpo. Mas este caminho está definitivamente fechado para mim.”
— Que caminho está fechado?
Ela ajeitou a criança no carrinho de bebê. Vi que não tinha vontade de responder à pergunta, insisti: quando as bocas se fecham, é porque algo de importante está para ser dito.
Sem demonstrar nenhuma emoção, como se tivesse que agüentar sempre em silêncio as coisas que a vida lhe impunha, ela contou-me o episódio da Igreja, quando o padre — talvez seu único amigo — lhe havia recusado a comunhão. E a maldição que lançara naquele minuto; abandonara para sempre a Igreja Católica.
— Santo é aquele que dignifica sua vida — expliquei. — Basta entender que todos nós estamos aqui por uma razão, e basta comprometer-se com ela. Assim, podemos rir de nossos grandes ou pequenos sofrimentos, e caminhar sem medo, conscientes de que cada passo tem um sentido. Podemos deixar-nos guiar pela luz que emana do Vértice.
— O que é o Vértice? Em matemática, é o ponto superior de um triângulo.
— Na vida também é o ponto culminante, a meta de todos aqueles que erram como todo mundo, e, mesmo em seus momentos mais difíceis, não perdem de vista uma luz que emana de seu coração. Isso procuramos fazer em nosso grupo. O Vértice está escondido dentro de nós, e podemos chegar até ele se o aceitarmos, e se reconhecermos sua luz.
Expliquei que a dança que vira nos dias anteriores, realizada por pessoas de todas as idades (no momento éramos um grupo de dez pessoas, entre 19 e 65 anos), tinha sido batizada por mim de “a busca do Vértice”. Athena perguntou onde eu havia descoberto isso.
Contei-lhe que, logo depois do final da Segunda Guerra, parte de minha família tinha conseguido escapar do regime comunista que estava sendo instalado na Polônia, resolvendo mudar-se para a Inglaterra. Escutaram dizer que, entre as coisas que deviam trazer, estavam objetos de arte e livros antigos, muito valorizados nesta parte do mundo.
De fato, quadros e esculturas foram logo vendidos, mas os livros ficaram em um canto, enchendo-se de poeira. Como minha mãe queria obrigar-me a ler e falar polonês, eles serviram para minha educação. Um belo dia, dentro de uma edição do século XIX de Thomas Malthus, descobri duas folhas de anotações de meu avô, morto em um campo de concentração. Comecei a ler, acreditando tratar-se de referências sobre herança, ou cartas apaixonadas para alguma amante secreta, já que corria a lenda de que um dia se apaixonara por alguém na Rússia.
De fato, havia uma certa relação entre a lenda e a realidade. Era um relato de sua viagem à Sibéria durante a revolução comunista; ali, na remota aldeia de Diedov, apaixonou-se por uma atriz (N.R.: foi impossível localizar no mapa tal aldeia; ou o nome foi propositadamente trocado, ou o lugar desapareceu depois das imigrações forçadas de Stalin). Segundo meu avô, ela fazia parte de uma espécie de seita, que julga encontrar em determinado tipo de dança o remédio para todos os males, já que ela permite o contato com a luz do Vértice.
Estavam temerosos que toda aquela tradição pudesse desaparecer; os habitantes seriam em breve deslocados para outro lugar, e o local passaria a ser usado para testes nucleares. Tanto a atriz como seus amigos pediram que escrevesse tudo que tinham aprendido. Ele assim o fez, mas não deve ter dado muita importância ao caso, esquecendo suas anotações dentro de um livro que carregava, até que um dia eu as descobri.
Athena me interrompeu:
— Mas não se pode escrever sobre dança. É preciso dançar.
— Exato. No fundo, as anotações diziam apenas isso: dançar até a exaustão, como se fôssemos alpinistas subindo esta colina, esta montanha sagrada. Dançar até que, por causa da respiração ofegante, nosso organismo possa receber oxigênio de uma maneira que não está acostumado, e isso termina por fazer com que percamos nossa identidade, nossa relação com o espaço e o tempo. Dançar ao som de percussão apenas, repetir o processo todos os dias, entender que em determinado momento os olhos se fecham naturalmente, e passamos a enxergar uma luz que vem de dentro de nós, que responde nossas perguntas, que desenvolve nossos poderes escondidos.
— O senhor já desenvolveu algum poder?
Em vez de responder, sugeri que se juntasse ao nosso grupo, já que o menino parecia sempre estar à vontade mesmo quando o som dos pratos e instrumentos de percussão parecia muito alto. No dia seguinte, na hora que sempre começávamos a sessão, ela estava ali. Apresentei-a aos meus companheiros, explicando apenas que se tratava da vizinha do apartamento de cima; ninguém disse nada sobre sua vida, nem perguntou o que ela fazia. Quando chegou a hora marcada, liguei o som e começamos a dançar.
Ela iniciou seus passos com o menino no colo, mas ele logo dormiu, e Athena o colocou no sofá. Antes de fechar meus olhos e entrar em transe, vi que ela tinha entendido exatamente o caminho do Vértice.
Todos os dias — exceto aos domingos — ali estava ela com a criança. Trocávamos apenas umas poucas palavras de boas-vindas; eu colocava a música que um amigo meu conseguira nas estepes russas, e todos começávamos a dançar até estarmos exaustos. No final de um mês, ela me pediu uma cópia da fita.
— Gostaria de fazer isso de manhã, antes de deixar Viorel na casa de mamãe e ir para o trabalho.
Eu relutei:
— Em primeiro lugar, penso que um grupo que está conectado na mesma energia termina criando uma espécie de aura e facilitando o transe de todo mundo. Além do mais, fazer isso antes de ir ao trabalho é preparar-se para ser despedida, já que passará o dia inteiro cansada.
Athena pensou um pouco, mas logo reagiu:
— O senhor tem razão quando fala na energia coletiva. Vejo que no seu grupo existem quatro casais e sua mulher. Todos, absolutamente todos — encontraram o amor. Por isso, podem dividir uma vibração positiva comigo.
“Mas estou só. Melhor dizendo, estou com meu filho, mas seu amor ainda não pode se manifestar de maneira que possamos entender. Então prefiro aceitar minha solidão: se procurar fugir dela neste momento, jamais tornarei a encontrar um parceiro. Se aceitá-la ao invés de ficar lutando contra ela, talvez as coisas mudem. Vi que a solidão é mais forte quando tentamos nos confrontar com ela — mas torna-se fraca quando simplesmente a ignoramos.
— Você veio para o nosso grupo em busca do amor?
— Acho que seria um bom motivo, mas a resposta é não. Vim em busca de um sentido para a minha vida, cuja única razão é meu filho, e por isso temo que acabe destruindo Viorel, seja com uma proteção exagerada, seja porque terminarei projetando nele os sonhos que não consegui realizar. Em um destes dias, enquanto dançava, me senti curada. Se estivesse com algo físico, sei que poderíamos chamar um milagre; mas era algo espiritual, que me incomodava, e que de repente se afastou.
Eu sabia do que ela estava falando.
— Ninguém me ensinou a dançar ao som desta música — continuou Athena. — Mas eu pressinto que sei o que estou fazendo.
— Não é necessário aprender. Lembre-se de nosso passeio no parque, e do que vimos: a natureza criando o ritmo e adaptando-se a cada momento.
— Ninguém me ensinou a amar. Mas eu já amei a Deus, amei meu marido, amo meu filho e minha família. E mesmo assim, falta algo. Embora eu fique cansada enquanto danço, quando termino pareço estar em estado de graça, em um êxtase profundo. Quero que este êxtase se prolongue durante o dia. E que ele me ajude a encontrar o que falta: o amor de um homem.
“Posso sempre ver o coração deste homem enquanto danço, embora não consiga ver sua face. Sinto que ele está próximo, e para isso preciso estar atenta. Preciso dançar de manhã, de modo que possa passar o resto do dia prestando atenção a tudo que acontece à minha volta.
— Você sabe o que quer dizer a palavra “êxtase”? Ela vem do grego, e significa: sair de si mesmo. Passar o dia inteiro fora de si mesmo, é pedir demasiado do corpo e da alma.
— Tentarei.
Vi que não adiantava discutir, e fiz uma cópia da fita. A partir de então, todos os dias acordava com aquele som no andar de cima, podia ouvir seus passos, e me perguntava como era capaz de encarar seu trabalho em um banco depois de quase uma hora de transe. Em um de nossos encontros casuais nos corredores, sugeri que viesse tomar um café. Athena me contou que tinha feito outras cópias da fita, e que agora muita gente em seu trabalho estava procurando o Vértice.
— Agi errado? Era algo secreto?
Claro que não; pelo contrário, estava me ajudando a preservar uma tradição quase perdida. Nas anotações do meu avô, uma das mulheres dizia que um monge em visita pela região havia afirmado que todos os nossos antepassados e todas as gerações futuras estão presentes em nós. Quando nos libertávamos, estávamos fazendo a mesma coisa com a humanidade.
— Então as mulheres e homens daquela cidadezinha da Sibéria devem estar presentes, e contentes. O trabalho deles está renascendo neste mundo, graças ao seu avô. Mas eu tinha uma curiosidade: por que resolveu dançar, depois que leu o texto? Se tivesse lido algo sobre esporte, teria decidido ser jogador de futebol?
Era a pergunta que ninguém me fazia.
— Porque estava doente, na época. Tinha uma espécie de artrite rara, e os médicos diziam que eu devia me preparar para estar em uma cadeira de rodas aos 35 anos. Vi que tinha pouco tempo diante de mim, e resolvi me dedicar a tudo que não poderia fazer mais adiante. Meu avô tinha escrito, naquele pequeno pedaço de papel, que os habitantes de Diedov acreditavam nos poderes curativos do transe.
— Pelo visto, eles tinham razão.
Eu não respondi nada, mas não estava tão certo assim. Talvez os médicos tivessem se enganado. Talvez o fato de ser um imigrante junto com minha família, sem poder dar-se ao luxo de ficar doente, tenha agido com tal força no meu inconsciente que provocou uma reação natural do organismo. Ou talvez fosse mesmo um milagre, o que iria absolutamente contra o que prega minha fé católica: danças não curam.
Lembro-me que, na minha adolescência, já que não tinha a música que julgava adequada, costumava colocar um capuz preto na minha cabeça e imaginar que a realidade em torno de mim deixava de existir: meu espírito viajava para Diedov, com aquelas mulheres e homens, com meu avô e sua atriz tão amada. No silêncio do quarto eu pedia que me ensinassem a dançar, ir além dos meus limites, porque em pouco tempo estaria paralisado para sempre. Quanto mais meu corpo se movia, mais a luz do meu coração se mostrava, e mais eu aprendia — talvez comigo mesmo, talvez com os fantasmas do passado. Cheguei mesmo a imaginar que música escutavam em seus rituais, e quando um amigo visitou a Sibéria, muitos anos mais tarde, pedi que me trouxesse alguns discos; para minha surpresa, um deles era muito parecido com o que julgava ser a dança de Diedov.
Melhor não dizer nada a Athena — ela era uma pessoa facilmente influenciada, e seu temperamento me parecia instável.
— Talvez você esteja agindo corretamente — foi meu único comentário.
Tornamos a conversar mais uma vez, pouco antes de sua viagem ao Oriente Médio. Parecia contente, como se tivesse encontrado tudo que desejava: o amor.
— As pessoas no meu trabalho criaram um grupo, e chamam a si mesmas “os peregrinos do Vértice”. Tudo graças ao seu avô.
— Graças a você, que sentiu necessidade de dividir isso com os outros. Sei que está de partida, e quero lhe agradecer por ter dado outra dimensão àquilo que eu fiz durante anos, tentando difundir esta luz com alguns poucos interessados, mas sempre de maneira tímida, sempre achando que as pessoas iam achar ridícula toda esta história.
— Sabe o que eu descobri? Que embora o êxtase seja a capacidade de sair de si mesmo, a dança é uma maneira de subir ao espaço. Descobrir novas dimensões, e mesmo assim continuar em contato com seu corpo. Com a dança, o mundo espiritual e o mundo real conseguem conviver sem conflitos. Acho que os bailarinos clássicos ficam na ponta dos pés porque estão ao mesmo tempo tocando a terra e alcançando os céus.
Que eu possa me lembrar, estas foram suas últimas palavras. Durante qualquer dança à qual nos entregamos com alegria, o cérebro perde o seu poder de controle, e o coração toma as rédeas do corpo. Só neste momento o Vértice aparece.
Desde que acreditemos nele, claro.