Athena pediu que ligasse meu gravador. Ela trazia outro com ela, um modelo que nunca tinha visto, bastante sofisticado e de dimensões mínimas.
— Em primeiro lugar, quero dizer que estou sendo ameaçada de morte. Em segundo lugar, prometa que, mesmo que eu morra, você esperará cinco anos para deixar que alguém escute esta fita. No futuro, poderão distinguir o que é falso do que é verdadeiro.
“Diga que concorda — pois desta maneira estará assumindo um compromisso legal.”
— Concordo. Mas acho que…
— Não ache nada. Caso eu apareça morta, isso será meu testamento, com a condição de nada ser dito agora.
Desliguei o gravador.
— Não há o que temer. Tenho amigos em todas as posições e cargos do governo, gente que me deve favores, que precisa ou precisará de mim. Nós podemos…
— Eu já não lhe disse que tinha um namorado que trabalha na Scotland Yard?
De novo esta conversa? Se era assim, por que não estava lá quando todos nós precisávamos de sua ajuda, quando tanto Athena como Viorel podiam ter sido atacados pela multidão?
As perguntas surgiam uma atrás da outra: ela queria me testar? O que passava na cabeça desta mulher — seria desequilibrada, inconstante, uma hora desejando estar ao meu lado, outra hora voltando com o tema de um homem que não existia?
— Ligue o gravador de novo — ela pediu.
Eu me sentia péssimo: comecei a pensar que sempre havia sido usado por ela. Gostaria de poder dizer naquele momento: “vá embora, não apareça nunca mais na minha vida, desde que a conheci tudo se transformou em um inferno, vivo esperando o dia em que chega aqui, me dá um abraço, me beija, e pede para ficar ao meu lado. Isso não acontece nunca”.
— Alguma coisa errada?
Ela sabia que tinha alguma coisa errada. Melhor dizendo, era impossível que não reconhecesse o que sentia, porque não tinha feito outra coisa durante todo este tempo além de demonstrar meus sentimentos, embora só tenha falado deles uma única vez. Mas desmarcava qualquer compromisso para encontrá-la, estava ao seu lado sempre que pedia, tentava criar algum tipo de cumplicidade com seu filho, achando que um dia ele poderia chamar-me de pai. Nunca pedi que deixasse o que fazia, aceitava sua vida, suas decisões, sofria em silêncio com sua dor, me alegrava com suas vitórias, orgulhava-me da sua determinação.
— Por que desligou o gravador?
Fiquei aquele segundo entre o céu e o inferno, entre a explosão e a submissão, entre o raciocínio frio e a emoção destruidora. No final, usando todas as forças que tinha, consegui manter o controle.
Apertei o botão.
— Continuemos.
— Estava dizendo que estou sendo ameaçada de morte. Pessoas telefonam, sem dizer nomes; me insultam, afirmam que sou uma ameaça ao mundo, estou querendo trazer de volta o reino de Satanás, e que não podem permitir isso.
— Você falou com a polícia?
Omiti propositadamente a referência ao namorado, mostrando desta maneira que jamais acreditei na história.
— Falei. Eles gravaram os telefonemas. Vêm de cabines telefônicas, mas disseram que não me preocupasse, estão vigiando minha casa. Conseguiram prender uma destas pessoas: tem um desequilíbrio mental, acha que é a reencarnação de um apóstolo, e que “desta vez é preciso lutar para que Cristo não seja expulso de novo”. Neste momento, está em um hospital psiquiátrico; a polícia explicou que já foi internado antes, depois de ameaçar outros pelo mesmo motivo.
— Se estão atentos, nossa polícia é a melhor do mundo. Realmente não há por que se preocupar.
— Não tenho medo da morte; se meus dias terminassem hoje, levaria comigo momentos que pouca gente com minha idade teve a chance de viver. O que tenho medo, e por isso pedi que gravasse nossa conversa hoje, é de matar.
— Matar?
— Você sabe que estão na justiça alguns processos que pretendem tirar Viorel de minha guarda. Tentei com amigos, mas ninguém pode fazer nada; é preciso esperar o resultado. Segundo eles, dependendo do juiz, estes fanáticos irão conseguir o que desejam. Por causa disso, comprei uma arma.
“Sei o que significa um filho ser afastado da sua mãe, porque vivi a experiência em minha carne. De modo que, no momento em que o primeiro oficial de justiça se aproximar, eu atiro. E continuarei atirando, até que as balas acabem. Se não me atingirem antes, lutarei com as facas de minha casa. Se tirarem as facas, usarei minhas unhas e meus dentes. Mas ninguém conseguirá afastar Viorel do meu lado, a não ser que passem por cima do meu cadáver. Está gravando?”
— Está. Mas existem meios…
— Não existem. Meu pai está acompanhando os processos. Disse que no caso de direito de família, pouco se há que fazer.
“Agora desligue o gravador.”
— Era esse seu testamento?
Não respondeu. Como eu não fazia nada, tomou ela própria a iniciativa. Em seguida, foi até o aparelho de som, e colocou a famosa música das estepes, que agora eu quase conhecia de cor. Dançou da maneira que fazia nos rituais, completamente fora de compasso, e eu sabia onde estava pretendendo chegar. Seu gravador continuava ligado, como testemunha silenciosa de tudo que estava se passando ali. Enquanto a luz de uma tarde ensolarada entrava pelas vidraças, Athena mergulhava em busca de outra luz, que estava ali desde que o mundo havia sido criado.
A centelha da Mãe parou de dançar, interrompeu a música, colocou a cabeça entre as mãos, e ficou quieta por algum tempo. Logo levantou os olhos e encarou-me.
— Você sabe quem está aqui, não sabe?
— Sim. Athena e sua parte divina, Hagia Sofia.
— Eu me habituei a fazer isso. Não penso que seja necessário, mas foi o método que descobri para encontrá-la, e agora se tornou uma tradição em minha vida. Você sabe com quem está falando: com Athena. Hagia Sofia sou eu.
— Sei disso. Quando dancei pela segunda vez em sua casa, descobri também um espírito que me guia: Philemon. Mas não converso muito com ele, não escuto o que ele me diz. Sei que, quando está presente, é como se nossas duas almas finalmente se encontrassem.
— Isso mesmo. E Philemon e Hagia Sofia vão hoje conversar sobre amor.
— Eu teria que dançar.
— Não precisa. Philemon me entenderá, pois vejo que foi tocado pela minha dança. O homem que está diante de mim sofre por algo que julga jamais ter conseguido atingir: o meu amor.
“Mas o homem que está além de você mesmo, esse compreende que a dor, a ansiedade, o sentimento de abandono são desnecessários e infantis: eu te amo. Não da maneira que sua parte humana deseja, mas da maneira que a centelha divina assim desejou. Habitamos uma mesma tenda, que foi colocada em nosso caminho por Ela. Ali entendemos que não somos escravos de nossos sentimentos, mas seus mestres.
“Servimos e somos servidos, abrimos as portas de nossos quartos, e nos abraçamos. Talvez nos beijemos também — porque tudo que acontece com intensidade na terra terá seu correspondente no plano invisível. E você sabe que não estou a provocá-lo, nem estou brincando com seus sentimentos ao dizer isso.”
— O que é o amor, então?
— A alma, o sangue, e o corpo da Grande Mãe. Eu te amo com a mesma força que almas exiladas se amam, quando se encontram no meio do deserto. Nunca se passará nada de físico entre nós, mas nenhuma paixão é inútil, nenhum amor é jogado fora. Se a Mãe despertou isso em seu coração, também despertou no meu, embora você talvez o aceite melhor. É impossível que a energia do amor se perca — ela é mais poderosa que qualquer coisa, e se manifesta de muitas maneiras.
— Não sou suficientemente forte para isso. Essa visão abstrata me deixa deprimido e mais solitário que nunca.
— Nem eu: preciso de alguém ao meu lado. Mas um dia nossos olhos vão se abrir, as diversas formas de Amor poderão se manifestar, e o sofrimento desaparecerá da face da Terra.
“Penso que não deve demorar muito; muitos de nós estão retornando de uma longa viagem, onde fomos induzidos a procurar coisas que não nos interessavam. Agora nos damos conta que eram falsas. Mas esta volta não se faz sem dor — porque passamos muito tempo fora, achamos que somos estrangeiros em nossa própria terra.
“Levaremos algum tempo para encontrar os amigos que também partiram, os lugares onde estavam nossas raízes e nossos tesouros. Mas isso terminará acontecendo.”
Não sei por que razão, comecei a ficar comovido. E isso me empurrou adiante.
— Quero continuar falando de amor.
— Estamos falando. Este foi sempre o objetivo de tudo que busquei em minha vida; deixar que o amor se manifestasse em mim sem barreiras, que preenchesse meus espaços em branco, que me fizesse dançar, sorrir, justificar minha vida, proteger meu filho, entrar em contato com os céus, com homens e mulheres, com todos aqueles que foram colocados no meu caminho.
“Tentei controlar meus sentimentos dizendo ‘esse merece meu carinho’, ou ‘esse não merece’, coisas deste tipo. Até que entendi meu destino, quando vi que podia perder a coisa mais importante de minha vida.“
— O seu filho.
— Exato. A manifestação mais completa de amor. Foi no momento em surgiu a possibilidade de o afastarem de mim, que me encontrei comigo mesmo, entendendo que jamais poderia ter nada, perder nada. Compreendi isso depois de chorar compulsivamente por horas. Foi só depois de sofrer muito, intensamente, que a parte de mim que chamo Hagia Sofia me disse: “Que bobagem é essa? O amor sempre permanece! E seu filho sempre partirá, mais cedo ou mais tarde!”.
Eu começava a compreender.
— O amor não é um hábito, um compromisso, ou uma dívida. Não é aquilo que nos ensinam as músicas românticas — o amor é. É esse o testamento de Athena, ou Sherine, ou Hagia Sofia: o amor é. Sem definições. Ame e não pergunte muito. Apenas ame.
— É difícil.
— Está gravando?
— Você pediu que desligasse.
— Pois torne a gravar.
Fiz o que ela mandava. Athena continuou:
— É difícil para mim também. Por isso, a partir de hoje não volto mais para casa. Vou esconder-me; a polícia me protegerá dos loucos, mas não me protegerá da Justiça humana. Eu tinha uma missão a cumprir, e isso me fez ir tão longe que arrisquei até mesmo a guarda de meu filho. Mesmo assim, não me arrependo: cumpri meu destino.
— Qual era sua missão?
— Você sabe, porque participou desde o início: preparar o caminho da Mãe. Continuar uma tradição que foi suprimida por séculos, mas que agora começa a ressurgir.
— Talvez…
Eu parei. Mas ela não disse uma palavra até que eu terminasse minha frase.
— … talvez tenha sido um pouco cedo demais. As pessoas não estavam prontas para isso.
Athena riu.
— Claro que estavam. Por isso os confrontos, as agressões, o obscurantismo. Porque as forças das trevas estão agonizando, e é neste momento que elas usam seus últimos recursos. Parecem ser mais fortes, como os animais antes de morrer; mas, depois disso, já não conseguem mais se levantar do chão — estarão exaustas.
“Semeei em muitos corações, e cada um manifestará este Renascimento à sua maneira. Mas existe um destes corações que irá seguir a tradição completa: Andrea.”
Andrea.
Que a detestava, que a culpava pelo fim de nosso relacionamento, que dizia para quem desejasse ouvir que Athena deixara-se dominar pelo egoísmo, pela vaidade, e terminara destruindo um trabalho que fora tão difícil de ser colocado em pé.
Ela levantou-se e pegou sua bolsa — Hagia Sofia continuava com ela.
— Vejo sua aura. Ela está sendo curada de um sofrimento inútil.
— Evidente que você sabe que Andrea não gosta de você.
— Claro que sei. Falamos quase meia hora sobre amor, não é verdade? Gostar não tem nada a ver com isso.
“Andrea é uma pessoa absolutamente capaz de levar a missão adiante. Tem mais experiência e mais carisma que eu. Aprendeu com meus erros; sabe que deve manter certa prudência, porque os tempos em que a fera do obscurantismo está agonizando serão tempos de confronto. Andrea pode me odiar como pessoa, e talvez por isso tenha conseguido desenvolver seus dons com tanta velocidade; para provar que era mais capaz que eu.
“Quando o ódio faz uma pessoa crescer, ele se transforma em uma das muitas maneiras de amar.”
Pegou seu gravador, colocou-o dentro da bolsa, e partiu.
No final daquela mesma semana o tribunal se pronunciava: diversas testemunhas foram ouvidas, e Sherine Khalil, conhecida como Athena, tinha direito de manter a guarda de seu filho.
Além disso, o diretor da escola onde o menino estudava ficava oficialmente alertado de que qualquer tipo de discriminação contra o menino seria punível por lei.
Sabia que não adiantava ligar para a casa onde morava; tinha deixado a chave com Andrea, levado seu aparelho de som, algumas roupas, dizendo que não pretendia retornar tão cedo.
Fiquei aguardando o telefonema para comemorarmos juntos a vitória. A cada dia que passava, o meu amor por Athena deixava de ser uma fonte de sofrimento, e se transformava em um lago de alegria e serenidade. Eu já não me sentia tão sozinho, em algum lugar no espaço nossas almas — as almas de todos os exilados que estavam voltando — tornavam a celebrar com alegria o reencontro.
Passou-se a primeira semana, e imaginei que talvez estivesse procurando recuperar-se da tensão dos últimos tempos. Um mês depois, imaginei que teria voltado a Dubai e retornado ao seu emprego; telefonei e me disseram que não tinham mais ouvido falar dela. Mas se soubesse onde estava, por favor lhe transmitisse um recado: as portas estavam abertas, ela fazia muita falta.
Resolvi fazer uma série de artigos sobre o despertar da Mãe, que provocou algumas cartas ofensivas de leitores me acusando de “divulgar o paganismo”, mas que fez um imenso sucesso junto ao público.
Dois meses depois, quando me preparava para almoçar, um colega de redação me chamou: o corpo de Sherine Khalil, a Bruxa de Portobello, havia sido encontrado.
Fora brutalmente assassinada em Hampstead.
Agora que terminei de transcrever todas as gravações, vou entregá-las a ela. Deve estar neste momento passeando pelo Snowdonian National Park, como costuma fazer todas as tardes. É seu aniversário — melhor dizendo, a data que seus pais escolheram para seu aniversário quando a adotaram — e pretendo entregar-lhe este manuscrito.
Viorel, que chegará com os avós para a celebração, também preparou uma surpresa; gravou sua primeira música em um estúdio de amigos comuns, e irá tocá-la durante o jantar.
Ela irá me perguntar, depois: “por que fez isso?”
E eu lhe responderei: “porque precisava compreendê-la”. Durante todos estes anos que estivemos juntos, escutava apenas aquilo que julgava serem lendas a seu respeito, e agora sei que estas lendas são realidade.
Sempre que pensava em acompanhá-la, fosse às celebrações das segundas-feiras em seu apartamento, fosse à Romênia, fosse aos encontros com amigos, ela pedia que não o fizesse. Queria estar livre — um policial sempre intimida as pessoas, dizia. Diante de alguém como eu, até mesmo os inocentes se sentem culpados.
Estive duas vezes no armazém de Portobello sem que ela soubesse. Também sem que ela soubesse, destaquei homens para protegê-la em suas chegadas e saídas do local — e pelo menos uma pessoa, mais tarde identificada como militante de uma seita, foi detida com um punhal. Dizia que tinha sido instruído por espíritos para conseguir um pouco de sangue da Bruxa de Portobello, que manifestava a Mãe, precisavam usá-lo para consagrar certas oferendas. Não pretendia matá-la, apenas recolher o sangue em um lenço. A investigação mostrou que não havia realmente tentativa de homicídio; mesmo assim foi indiciado, e pegou seis meses de prisão.
Não foi minha a idéia de “assassiná-la” para o mundo — Athena queria desaparecer, e me perguntou se isso seria possível. Expliquei que, se a Justiça tivesse decidido que o Estado deveria manter a guarda de seu filho, eu não poderia contrariar a lei. Mas a partir do momento em que o juiz manifestou-se a seu favor, estávamos livres para cumprir o seu plano.
Athena tinha plena consciência que, quando os encontros no armazém ganharam publicidade local, a sua missão estava desencaminhada para sempre. De nada adiantava ir diante da multidão e negar que não era uma rainha, uma bruxa, uma manifestação divina — já que o povo escolheu seguir os poderosos e dar poder a quem deseja. E isso iria contra tudo que ela pregava — a liberdade de escolher, de consagrar o próprio pão, de despertar os dons individuais, sem guias ou pastores.
Tampouco adiantava desaparecer: as pessoas entenderiam tal gesto como um retiro ao deserto, uma ascensão aos céus, uma viagem ao encontro de mestres secretos que vivem no Himalaia, e ficariam sempre esperando sua volta. As lendas cresceriam ao seu redor, e possivelmente seria formado um culto em torno de sua pessoa. Começamos a notar isso quando ela deixou de freqüentar Portobello; meus informantes diziam que, ao contrário do que todo mundo pensava, seu culto estava aumentando de maneira assustadora: outros grupos semelhantes começaram a ser criados, pessoas apareciam como “herdeiras” de Hagia Sofia, sua foto publicada no jornal, com o menino nos braços, era vendida de maneira secreta, mostrando-a como uma vítima, uma mártir da intolerância. Ocultistas começaram a falar de uma “Ordem de Athena”, onde se conseguia — depois de algum pagamento — um contato com a fundadora.
Portanto, só restava a “morte”. Mas em circunstâncias absolutamente normais, como qualquer pessoa que termina encontrando o fim dos seus dias nas mãos de um assassino em uma grande cidade. Isso nos obrigava a uma série de precauções:
A] o crime não poderia estar associado ao martírio por razões religiosas, porque a situação que estávamos tentando evitar seria agravada;
B] a vítima deveria estar em condições que não pudesse ser reconhecida;
C] o assassino não poderia ser preso;
D] precisaríamos de um cadáver.
Em uma cidade como Londres, todos os dias temos gente morta, desfigurada, queimada — mas normalmente terminamos por prender o criminoso. De modo que foi preciso esperar quase dois meses até o ocorrido em Hampstead. Também neste caso terminamos por encontrar o assassino, mas ele estava morto — viajara para Portugal e se suicidara com um tiro na boca. A justiça estava feita, e tudo que eu precisava era um pouco de cooperação de amigos mais próximos. Uma mão lava a outra, eles às vezes me pedem coisas que também não são muito ortodoxas, e desde que nenhuma lei importante seja quebrada, existe — digamos — uma certa flexibilidade de interpretação.
Foi o que ocorreu. Assim que o cadáver foi descoberto, fui designado junto com um companheiro de muitos anos para acompanhar o caso, e tivemos a notícia — quase simultânea — de que a polícia portuguesa havia descoberto o corpo de um suicida em Guimarães, junto com um bilhete onde confessava um assassinato com os detalhes que correspondiam ao caso que tínhamos em mãos, e dava instruções para a distribuição de sua herança a instituições de caridade. Havia sido um crime passional — enfim, o amor com muita freqüência termina acabando nisso.
No bilhete que havia deixado, o morto dizia ainda que ele trouxera a mulher de uma ex-república da União Soviética, fizera tudo que fora possível para ajudá-la. Estava pronto a casar-se com ela de modo que tivesse todos os direitos de um cidadão inglês, e terminara descobrindo uma carta que estava prestes a enviar a um alemão que a convidara para passar alguns dias em seu castelo.
Nesta carta, dizia que estava louca para partir, e que ele enviasse logo a passagem de avião, de modo que pudessem se encontrar o mais breve possível. Tinham se encontrado em um café londrino, e haviam trocado apenas duas correspondências, nada mais que isso.
Estava diante do quadro perfeito.
Meu amigo vacilou um pouco — ninguém gosta de ter um crime não resolvido em sua ficha —, mas eu terminei dizendo que assumiria a culpa, e ele concordou.
Fui até onde Athena se encontrava — uma simpática casa em Oxford. Com uma seringa, colhi um pouco de seu sangue. Cortei pedaços de seus cabelos, queimei-os um pouco, mas não completamente. De volta à cena do crime, espalhei as “provas”. Como sabia que o exame de DNA seria impossível, já que ninguém sabia quem era sua mãe ou seu pai verdadeiros, tudo que precisava agora era cruzar os dedos, e esperar que a notícia não tivesse muita repercussão na imprensa.
Alguns jornalistas apareceram. Contei a história do suicídio do assassino, mencionando apenas o país, sem precisar a cidade. Disse que não fora encontrada nenhuma razão para o crime, mas que estava descartada completamente a hipótese de vingança ou de motivos religiosos; no meu entender (afinal, os policiais têm o direito de errar), a vítima havia sido violentada. Como deve ter reconhecido seu agressor, terminou sendo morta e desfigurada.
Se o alemão voltou a escrever, suas cartas devem ter retornado com o sinal de “destinatário ausente”. A foto de Athena aparecera apenas uma vez no jornal, durante o primeiro confronto em Portobello, de modo que as chances de ser reconhecida eram mínimas. Além de mim, apenas três pessoas sabem da história: seus pais e seu filho. Todos nós comparecemos ao “enterro” de seus restos, e a sepultura tem uma lápide com seu nome.
O menino vem visitá-la todos os finais de semana, e está com uma brilhante carreira na escola.
Claro, um dia Athena pode cansar-se desta vida isolada, e decidir voltar a Londres. Mesmo assim, a memória das pessoas é curta, e exceto pelos seus amigos mais íntimos, ninguém se lembrará dela. A esta altura, Andrea será o elemento catalisador e — justiça seja feita — tem muito mais capacidade que Athena para continuar a tal missão. Além de possuir os dons necessários, é uma atriz — sabe como lidar com o público.
Ouvi dizer que seu trabalho tem crescido significativamente, sem chamar atenção desnecessária. Escuto histórias de gente em posições-chave na sociedade que estão em contato com ela, e quando for necessário, quando atingirem uma massa crítica suficiente, terminarão por acabar com toda a hipocrisia dos reverendos Ian Buck da vida.
E é isso que Athena deseja; não sua projeção pessoal, como muitos pensavam (inclusive Andrea), mas que a missão seja cumprida.
No início de minhas investigações que resultaram neste manuscrito, pensava que estava levantando sua vida para que soubesse o quanto foi corajosa e importante. Mas, à medida que as conversas prosseguiam, eu ia descobrindo também a minha parte oculta — embora não acredite muito nestas coisas. E chegava à conclusão de que a razão principal de todo este trabalhão era responder a uma pergunta que nunca soube explicar: por que Athena me amava, se somos tão diferentes, e não dividimos a mesma visão de mundo?
Lembro-me de quando lhe dei o primeiro beijo, em um bar ao lado de Victoria Station. Ela trabalhava em um banco, eu já era um detetive da Scotland Yard. Depois de alguns dias saindo juntos, convidou-me para dançar na casa do proprietário do seu apartamento, coisa que jamais aceitei — não condiz com meu estilo.
E em vez de irritar-se, respondeu apenas que respeitava minha decisão. Relendo os depoimentos que me deram seus amigos, fico realmente orgulhoso; Athena parecia não respeitar a decisão de mais ninguém.
Meses depois, antes de partir para Dubai, eu disse que a amava. Ela respondeu que sentia a mesma coisa — embora, acrescentou, devêssemos nos educar para longos momentos de separação. Cada um trabalharia em um país diferente, mas o verdadeiro amor pode resistir à distância.
Foi a única vez que ousei perguntar-lhe: “por que me ama?”.
Ela respondeu:”não sei e não tenho o menor interesse em saber”.
Agora, ao concluir todas estas páginas, acho que encontrei a resposta na sua conversa com o tal jornalista.
O amor é.
25/2/2006 19:47:00
Terminada a revisão no dia de Santo Expedito, 2006