Claro que fiquei muito surpreso quando aquele casal, jovem demais, veio até a igreja para que organizássemos a cerimônia. Eu pouco conhecia Lukás Jessen-Petersen, e naquele mesmo dia aprendi que sua família, de uma obscura nobreza da Dinamarca, era frontalmente contra a união. Não apenas contra o casamento, mas também contra a Igreja.
Seu pai, baseando-se em argumentos científicos realmente incontestáveis, dizia que a Bíblia, onde toda a religião está baseada, na verdade não era um livro — mas uma colagem de 66 manuscritos diferentes, onde não se conhece nem o verdadeiro nome, nem a identidade do autor; que entre o primeiro e o último livro escrito se passaram quase mil anos, mais do que o tempo em que a América foi descoberta por Colombo. E que nenhum ser vivo em todo o planeta — dos macacos aos pássaros — precisa de dez mandamentos para saber como comportar-se. Tudo que importa é que sigam as leis da natureza, e o mundo se manterá em harmonia.
Claro que leio a Bíblia. Claro que sei um pouco de sua história. Mas os seres humanos que a escreveram foram instrumentos do Poder Divino, e Jesus forjou uma aliança muito mais forte que os dez mandamentos: o amor. Os pássaros, os macacos, seja lá de que criatura de Deus estivermos falando, obedecem aos seus instintos e seguem apenas aquilo que está programado. No caso do ser humano, as coisas ficam mais complicadas porque ele conhece o amor e as suas armadilhas.
Pronto. Já estou eu fazendo de novo um sermão quando na verdade devia estar falando do meu encontro com Athena e Lukás. Enquanto conversava com o rapaz — e eu digo conversar, porque não pertencemos à mesma fé, e portanto não estou submetido ao segredo da confissão, soube que, além do anticlericalismo que reinava em casa, havia uma imensa resistência pelo fato de Athena ser estrangeira. Tive vontade de pedir que citasse pelo menos um trecho da Bíblia, onde não está nenhuma profissão de fé, mas um alerta ao bomsenso:
“Não abominarás o edomeu, pois é teu irmão; nem abominarás o egípcio, pois estrangeiro foste na sua terra.”
Perdão. De novo começo a citar a Bíblia, e prometo que irei me controlar a partir de agora. Após a conversa com o rapaz, passei pelo menos umas duas horas com Sherine — ou Athena, como preferia ser chamada.
Athena sempre me intrigou. Desde que começou a freqüentar a igreja, me parecia ter um projeto muito claro em mente: tornar-se santa. Disse-me que, embora seu namorado não soubesse, pouco antes da guerra civil estourar em Beirute tivera uma experiência muito semelhante à de Santa Teresa de Lisieux: tinha visto sangue nas ruas. Podemos atribuir tudo isso a um trauma de infância e adolescência, mas o fato é que tal experiência, conhecida como “a possessão criativa pelo sagrado” acontece com todos os seres humanos, em maior ou menor escala. De repente, por uma fração de segundo, sentimos que toda a nossa vida está justificada, nossos pecados perdoados, o amor sempre é mais forte, e pode nos transformar definitivamente.
Mas também é neste momento que temos medo. Entregar-se por completo ao amor, seja ele divino ou humano, significa renunciar a tudo — inclusive ao seu próprio bem-estar, ou sua própria capacidade de tomar decisões. Significa amar no mais profundo sentido da palavra. Na verdade, não queremos ser salvos da maneira que Deus escolheu para nos resgatar: queremos manter o absoluto controle de todos os passos, ter plena consciência de nossas decisões, sermos capazes de escolher o objeto de nossa devoção.
Com o amor não é assim — ele chega, instala-se, e passa a dirigir tudo. Só mesmo almas muito fortes deixam-se levar, e Athena era uma alma forte.
Tão forte que passava horas em profunda contemplação. Tinha um dom especial para a música; diziam que dançava muito bem, mas como a Igreja não é um local apropriado para isso, costumava trazer seu violão todas as manhãs, e ficar pelo menos algum tempo cantando para a Virgem, antes de ir para a universidade.
Ainda me recordo de quando a escutei pela primeira vez. Já havia celebrado a missa matinal para os poucos paroquianos que se dispõem a acordar cedo no inverno, quando me lembrei que havia esquecido de recolher o dinheiro que depositaram na caixa de oferendas. Voltei, e escutei uma música que me fez ver tudo de maneira diferente, como se o ambiente tivesse sido tocado pela mão de um anjo. Em um canto, numa espécie de êxtase, uma jovem de aproximadamente 20 anos de idade tocava em seu violão alguns hinos de louvor, com os olhos fixos na imagem da Imaculada Conceição.
Fui até a caixa de oferendas. Ela notou minha presença, e interrompeu o que fazia — mas fiz um sinal afirmativo com a cabeça, incentivando-a a continuar. Depois, sentei-me em um dos bancos, fechei os olhos, e fiquei escutando.
Neste momento, a sensação do Paraíso, “a possessão criativa pelo sagrado” pareceu descer dos céus. Como se entendesse o que se passava no meu coração, ela começou a combinar o seu canto com o silêncio. Nos momentos em que parava de tocar, eu dizia uma prece. Em seguida, a música recomeçava.
Tive consciência de que estava vivendo um momento inesquecível na minha vida — estes momentos mágicos que só conseguimos entender depois que já foram embora. Estava ali por inteiro, sem passado, sem futuro, vivendo apenas aquela manhã, aquela música, aquela doçura, a prece inesperada. Entrei em uma espécie de adoração, de êxtase, de gratidão por estar neste mundo, contente por ter seguido minha vocação apesar dos confrontos com minha família. Na simplicidade daquela pequena capela, na voz da menina, na luz da manhã que tudo inundava, mais uma vez entendi que a grandeza de Deus se mostra através das coisas simples.
Depois de muitas lágrimas e do que me parece uma eternidade, ela parou. Virei-me, descobri que era uma das paroquianas. Desde então nos tornamos amigos, e sempre que podíamos participávamos desta adoração através da música.
Mas a idéia do casamento me deixou completamente surpreso. Como tínhamos uma certa intimidade, quis saber como esperava que a família do marido a recebesse.
— Mal. Muito mal.
Com todo cuidado, perguntei se estava sendo forçada a casar por alguma razão.
— Sou virgem. Não estou grávida.
Quis saber se já tinha comunicado sua própria família, e me disse que sim — a reação foi de espanto, acompanhada de lágrimas da mãe e ameaças do pai.
— Quando venho aqui louvar a Virgem com minha música, não estou pensando no que os outros vão dizer: estou apenas dividindo com ela os meus sentimentos. E, desde que me entendo por gente, sempre foi assim; sou um vaso onde a Energia Divina pode manifestar-se. E esta energia agora me pede que eu tenha uma criança, de modo que possa dar-lhe aquilo que minha mãe de sangue jamais me deu: proteção e segurança.
Ninguém está seguro nesta terra, respondi. Tinha ainda um longo futuro pela frente, havia bastante tempo para o milagre da criação se manifestar. Mas Athena estava decidida:
— Santa Teresa não se rebelou contra a doença que a atingiu; muito pelo contrário, viu naquilo um sinal da Glória. Santa Teresa era muito mais jovem que eu, tinha quinze anos, quando decidiu entrar para um convento. Foi proibida, e não aceitou: resolveu ir conversar com o Papa diretamente — o senhor pode imaginar o que é isso? Conversar com o Papa! E conseguiu atingir seus objetivos.
“Esta mesma Glória está me pedindo algo muito mais fácil e muito mais generoso que uma doença — que eu seja mãe. Se esperar muito, não poderei ser companheira de meu filho, a diferença de idade será grande, e já não teremos os mesmos interesses em comum.”
Não seria a única, eu insisti.
Mas Athena continuou, como se não estivesse me ouvindo:
— Só estou feliz quando penso que Deus existe e me escuta; isso não basta para continuar vivendo, e nada parece ter um sentido. Procuro demonstrar uma alegria que não tenho, escondo minha tristeza para não deixar preocupados aqueles que tanto me amam e tanto se preocupam por mim. Mas recentemente tenho considerado a hipótese do suicídio. À noite, antes de dormir, tenho longas conversas comigo mesma, pedindo que esta idéia vá embora, seria uma ingratidão com todos, uma fuga, uma maneira de espalhar tragédia e miséria sobre a terra. De manhã venho aqui conversar com a Santa, pedir que me livre dos demônios com quem falo durante a noite. Deu resultado até agora, mas começo a fraquejar. Sei que tenho uma missão que recusei por muito tempo, e agora preciso aceitá-la.
“Esta missão é ser mãe. Preciso cumpri-la, ou enlouqueço. Se não conseguir ver a vida crescendo dentro de mim, não conseguirei mais aceitar a vida que está do lado de fora.”