O Sol ainda não nascera. Era quase impossível distinguir o céu do mar, mas este apresentava algumas rugas, como se de um pedaço de tecido se tratasse. Aos poucos, à medida que o céu clareava, uma linha escura estendeu-se no horizonte, dividindo o céu e o mar. Então, o tecido cinzento coloriu-se de manchas em movimento, umas sucedendo-se às outras, junto à superfície, perseguindo-se mutuamente, sem parar.

Quando se aproximavam da praia, as barras erguiam-se, empilhavam-se e quebravam-se, espalhando na areia um fino véu de água esbranquiçada. As ondas paravam e depois voltavam a erguer-se, suspirando como uma criatura adormecida, cuja respiração vai e vem sem que disso se aperceba. Gradualmente, a barra escura do horizonte acabou por clarear, tal como acontece com os sedimentos de uma velha garrafa de vinho que acabam por afundar e restituir à garrafa a sua cor verde. Atrás dela, o céu clareou também, como se os sedimentos brancos que ali se encontravam tivessem afundado, ou se um braço de mulher oculto por detrás da linha do horizonte tivesse erguido um lampião e este espalhasse raios de várias cores, branco, verde e amarelo (mais ou menos como as lâminas de um leque), por todo o céu. Então, ela levantou ainda mais o lampião, e o ar pareceu tornar-se fibroso e arrancar, daquela superfície verde, chispas vermelhas e amarelas, idênticas às que se elevam de uma fogueira. Aos poucos, as fibras da fogueira foram-se fundindo numa bruma, uma incandescência que levantou o peso do céu cor de chumbo que se encontrava por cima, transformando-o num milhão de átomos de um azul suave. O mar foi, aos poucos, tornando-se transparente, e as ondas ali se deixavam ficar, murmurando e brilhando, até as faixas escuras quase desaparecerem. Devagar, o braço que segurava a lanterna elevou-se ainda mais, até uma chama brilhante se tornar visível; um arco de fogo ardendo na margem do horizonte, cobrindo o mar com um brilho dourado.

A luz atingiu as árvores do jardim, tornando, primeiro, esta folha transparente, e só depois aquela. Lá no alto, uma ave chilreou; seguiu-se uma pausa; mais abaixo, escutou-se outro chilreio. O sol definiu os contornos das paredes da casa, e, semelhante à ponta de um leque, um raio de luz incidiu numa persiana branca, colocando uma impressão digital azulada por baixo da folha da janela do quarto. A persiana estremeceu ligeiramente, mas lá dentro tudo se mostrava fosco e inconsistente. Cá fora, os pássaros cantavam uma melodia sem sentido.

– Vejo um anel – disse Bernard – suspenso por sobre mim. – Está suspenso num laço de luz e estremece.

– Vejo uma lâmina de um amarelo pálido – disse Susan –, espalhando-se até encontrar uma risca púrpura.

– Ouço um som – disse Rhoda –, piu, piu, piu, piu, a subir e a descer.

– Vejo um globo – disse Neville – suspenso numa gota que cai de encontro à encosta de uma enorme montanha.

– Vejo uma borboleta escarlate – disse Jinny –, tecida com fios de ouro.

– Ouço cascos a bater – disse Louis. – Está preso um animal bastante grande. Bate os cascos, bate e bate.

– Reparem na teia de aranha ao canto da varanda – disse Bernard. – Está cheia de contas de água, de gotas de luz.

– As folhas juntaram-se em torno da janela como se fossem orelhas pontiagudas – disse Susan.

– Há uma sombra no caminho -– disse Louis. – Parece um cotovelo dobrado.

– A erva está cheia de linhas luminosas – disse Rhoda. – De certeza que caíram das árvores.

– Nos túneis existentes entre as folhas, podem ver-se olhos brilhantes. São de pássaros – disse Neville.

– As hastes estão cobertas de pêlos curtos e duros – disse Jinny – e as gotas de água ficam presas neles.

– Uma lagarta enroscou-se e parece um anel de onde saem muitos pés verdes – disse Susan.

– Um caracol cinzento vem a descer o caminho, alisando as ervas atrás dele – disse Rhoda.

– E as luzes das janelas reflectem-se aqui e ali na relva – disse Louis.

– As pedras fazem-me ficar com os pés frios – disse Neville. – Sinto-as a todas, uma a uma, redondas e pontiagudas.

– Tenho as costas das mãos quentes – disse Jinny –, mas as palmas estão pegajosas e úmidas por causa do orvalho.

– Agora, o galo está a cantar e lembra um esguicho de água avermelhada numa corrente branca – disse Bernard.

– Os pássaros não param de cantar à nossa volta e por todo o lado – disse Susan.

– O animal bate as patas; o elefante com a perna presa; o enorme animal que está na praia bate os cascos – disse Louis.

– Reparem na casa – disse Jinny –, com todas as janelas e persianas brancas.

– A água fria começa a correr na torneira da cozinha – disse Rhoda –, caindo no peixe que está na bacia.

– As paredes estão cheias de rachas douradas – disse Bernard –, e por baixo das janelas há muitas sombras azuis em forma de dedos.

– Agora, Mrs. Constable está a colocar as suas meias escuras e grossas – disse Susan.

– Quando o fumo se elevar na chaminé, o sono escapar-se-á pelo telhado como uma névoa muito fina – disse Louis.

– Os pássaros começaram por cantar em coro – disse Rhoda. – Agora, a porta da cozinha já não está trancada. E lá vão eles a voar. E lá vão eles pelos ares como uma mão-cheia de sementes. Mesmo assim, há um que continua a cantar junto à janela do quarto.

– Formam-se bolhas no fundo da frigideira – disse Jinny – Depois, elevam-se, cada vez mais rápidas, até formarem uma cadeia prateada que chega ao topo.

– Agora, o Billy está a escamar o peixe com uma faca – disse Neville.

– A janela da casa de jantar é agora azul-escura – disse Bernard –, e o ar ondula por cima das chaminés.

– Uma andorinha está empoleirada no fio eléctrico – disse Susan. – E a Biddy poisou o balde com força nas lajes da cozinha.

– Aquilo era a primeira badalada do relógio da igreja – disse Louis. – A seguir vêm as outras; uma, duas; uma, duas.

– Olhem para a toalha, muito branca, a voar para cima da mesa – disse Rhoda. – Vêem-se, agora, os círculos de porcelana branca e faixas prateadas ao lado dos pratos.

– De repente, uma abelha zumbe ao meu ouvido – disse Neville. – Está aqui; já se foi embora.

– Estou a ferver. Tenho frio – disse Jinny. – Ou estou ao sol ou à sombra.

– Já se foram todos embora – disse Louis. – Estou só. Foram para casa tomar o pequeno-almoço, e eu fiquei ao pé do muro, entre as flores. Ainda é cedo, falta muito tempo para ir para as aulas. As flores são como manchas incrustadas nas profundezas verdes. As pétalas são arlequins. As hastes erguem-se a partir de buracos negros. As flores, semelhantes a peixes luminosos, recortando-se contra um fundo escuro, nadam nas águas verdes. As minhas raízes chegam às profundezas do mundo; passam por terrenos secos e alagados; passam por veios de chumbo e prata. Nada mais sou que fibra. Tudo me faz estremecer, e a terra comprime-se contra os meus veios. Cá em cima, os meus olhos são como folhas verdes e não vêem. Cá em cima, sou um rapaz vestido de flanela cinzenta, com as calças apertadas por um cinto, com uma serpente de bronze. Lá em baixo, os meus olhos são como os das figuras de pedra existentes nos desertos junto ao Nilo: desprovidos de pestanas. A caminho do rio, vejo passar mulheres com as suas ânforas vermelhas; vejo camelos baloiçando-se e homens com turbantes. Ouço tropéis e tremores em meu redor.

Cá em cima, o Bernard, o Neville, a Jinny e a Susan (mas não a Rhoda) passeiam pelos canteiros com as suas redes. Andam a caçar as borboletas que poisam nas flores. Estão a varrer a superfície do mundo. As redes estão cheias de asas esvoaçantes. “Louis! Louis! Louis!”, gritam. No entanto, não me podem ver. Estou do outro lado da sebe. Existem apenas alguns buraquinhos entre as folhas. Oh, meu Deus, eles que passem! Eles que estendam um lenço no cascalho e nele coloquem as borboletas. Eles que contem as suas borboletas com manchas pretas e amarelas, as suas vanessas e borboletas-da-couve, mas que não me vejam. Sou tão verde como um teixo à sombra da vedação. Criei raízes no meio da terra. O meu corpo é um caule. Carrego no caule. Uma gota corre por ele lentamente, e, aos poucos, vai-se tornando maior, cada vez maior. Agora, qualquer coisa cor-de-rosa passa pelo buraquinho. Agora, um olhar passa pela fenda. A luz que dele emana atinge-me. Sou um rapaz com um fato de flanela cinzenta. Ela encontrou-me. Toca-me na nuca. Beija-me. Tudo se desmorona.

– Logo a seguir ao pequeno-almoço – disse Jinny –, eu andava a correr. Vi as folhas mexerem-se através de uma abertura na sebe. Pensei: É um pássaro no ninho. Afastei os ramos e olhei, mas não vi pássaro nem ninho. As folhas continuaram a mover-se. Estava assustada. Passei a correr pela Susan, pela Rhoda, pelo Neville e pelo Bernard. Estavam todos a falar na arrecadação. Gritei enquanto corria, depressa, cada vez mais depressa. Que faria mexer as folhas? Qual a coisa que faz mexer o meu coração, as minhas pernas? Foi então que aqui cheguei e te vi, verde como um arbusto, como um ramo, muito quieto, Louis, com os olhos vítreos. Estará morto?, pensei, e beijei-te. Por baixo do vestido cor-de-rosa, o meu coração saltava, semelhante às folhas, que, e muito embora nada exista que as faça mexer, não param de oscilar. Agora, chega-me ao nariz o odor a gerânios; chega-me ao nariz o odor a terra vegetal. Danço. Ondulo. Deixo-me cair sobre ti como uma rede de luz. Deixo-me ficar deitada em cima de ti, a tremer.

– Vi-a beijá-lo através da fenda na sebe – disse Susan. – Levantei a cabeça do vaso das flores e espreitei por uma fenda da sebe. Vi-a beijá-lo. Vi-os, à Jinny e ao Louis, a beijarem-se. Agora, só me resta embrulhar a minha dor neste lenço. Vou amachucá-lo com força até ficar igual a uma bola. Antes das aulas, irei sozinha para o bosque das faias. Não me irei sentar à mesa, a fazer contas. Não me irei sentar ao lado da Jinny e do Louis. Vou levar a minha angústia e poisá-la nas raízes, por baixo das faias. Examiná-la-ei e passá-la-ei por entre os dedos. Eles não me irão encontrar. Comerei nozes e tentarei encontrar ovos por entre os espinheiros, o meu cabelo vai ficar emaranhado, e acabarei por ter de dormir debaixo das sebes e de beber água das poças, acabando por morrer.

– A Susan passou por nós – disse Bernard. – Passou pela arrecadação com o lenço todo amachucado. Parecia uma bolsa. Não estava a chorar, mas os olhos, que são tão bonitos, pareciam fendas. Lembravam os dos gatos quando eles se preparam para saltar. Vou atrás dela, Neville. Vou atrás dela com todo o cuidado para, com a minha curiosidade, a poder confortar quando toda aquela fúria explodir e ela pensar: “Estou sozinha”. Ela agora vai atravessar o campo com toda a calma, para nos enganar. Já chegou ao declive: pensa que ninguém a vê; começa a correr com os punhos cerrados. As unhas cravam-se na bola em que o lenço se transformou. Vai na direcção do bosque das faias, para longe da luz. Estende os braços quando se aproxima, e parte para a sombra como se nadasse. Porém, a luz deixa-a cega e acaba por tropeçar e cair junto às raízes das árvores, onde a luz aparece e desaparece, inspira e expira. Os ramos movem-se para cima e para baixo. Aqui, a agitação é muita. As trevas movem-se para cima e para baixo. Aqui, a agitação é muita. As trevas abundam. A luz é caprichosa. A angústia é omnipresente. As raízes formam como que um esqueleto no solo, e as folhas mortas amontoam-se nos seus ângulos. A Susan espalhou toda a angústia que sentia. Poisou o lenço nas raízes das faias e soluça, dobrada sobre si mesma no ponto onde caiu.

– Eu vi-a beijá-lo – disse Susan. – Espreitei por entre as folhas e vi-a. Estava a dançar, coberta de diamantes, leve como um grão de poeira. E eu sou gorda, Bernard, e baixa. Os meus olhos nunca se levantam do chão e vejo insectos na erva. O tom quente e amarelo que estava junto a mim transformou-se em pedra quando viu a Jinny beijar o Louis. De hoje em diante, vou passar a comer erva e acabarei por morrer junto a uma poça de água castanha, cheia de folhas podres.

– Vi-te fugir – disse Bernard. – Quando passaste pela arrecadação, ouvi-te gritar: “Sou tão infeliz!”. Poisei a faca. Estava a fazer barcos de madeira com o Neville. Para mais, tenho o cabelo despenteado porque, quando a Mrs. Constable me disse para o pentear, havia uma mosca numa teia de aranha, e dei comigo a perguntar: “Deverei soltar a mosca? Deverei deixá-la ser comida?”. É por isso que ando sempre atrasado. Tenho o cabelo despenteado e estes pauzinhos prenderam-se nele. Quando te ouvi gritar, segui-te e vi-te poisar o lenço amarrotado, contendo toda a raiva e todo o ódio. No entanto, isso vai passar depressa. Os nossos corpos estão agora juntos. Podes ouvir-me respirar. Podes também ver aquele escaravelho com uma folha às costas. Primeiro, vem neste sentido, depois, passa para aquele, e isso faz com que o teu desejo de possuir uma coisa apenas (agora é o Louis) se veja obrigado a estremecer como a luz que se move por entre as folhas das faias; e por fim as palavras, que agora se movem sombrias nas profundezas da tua mente, acabarão por quebrar este nó de dor enrolado no teu lenço.

– Amo – disse Susan –, amo e odeio. Desejo apenas uma coisa. O meu olhar é rígido. Dos olhos da Jinny desprendem-se milhares de luzes. Os da Rhoda assemelham-se àquelas flores pálidas, onde as borboletas nocturnas vêm poisar. Os teus são grandes e redondos, e nunca se quebram. Mas eu já tenho um objectivo. Vejo insectos na erva. Muito embora a minha mãe ainda me tricote meias brancas e me costure bibes, e eu não passe de uma criança, o certo é que amo e odeio.

– Mas, quando nos sentamos juntos – disse Bernard –, fundimo-nos um no outro com frases. Ficamos unidos por uma espécie de nevoeiro. Transformamo-nos num território imaterial.

– Estou a ver o escaravelho – disse Susan. – É preto; estou a ver; é verde, estou a ver; as palavras amarram-me ao solo. Mas tu divagas, tu escapas-te; as palavras e as frases por elas compostas elevam-se mais e mais.

– Bom – disse Bernard –, vamos partir à aventura. Há uma casa branca entre as árvores. Está mesmo lá no fundo. Vamo-nos afundar como dois nadadores, tocando o solo com as pontas dos pés. Vamo-nos afundar através do ar esverdeado das folhas, Susan. Vamo-nos afundar enquanto corremos. As ondas fecham-se sobre nós, as folhas das faias tocam-se por cima das nossas cabeças. Lá está o relógio do estábulo com os seus ponteiros dourados a brilhar. Aqueles ali são os altos e baixos dos telhados da casa grande. O empregado da cavalariça, calçando umas botas de borracha, não pára de gritar no pátio. Estamos em Elvedon. Agora, caímos através das folhas das árvores e chegamos ao chão. O ar já não faz rolar por cima de nós as suas vagas enormes, tristes e avermelhadas. Os nossos pés tocam o solo; pisamos terra firme. Ali, está a sebe bem aparada do jardim das senhoras. É por ali que elas andam, ao meio-dia, munidas de tesouras, a cortar rosas. Agora, estamos no bosque em forma de anel, rodeado por um muro. Estamos em Elvedon. Já tenho visto marcos nos cruzamentos a indicar o caminho para aqui, se bem que nunca ninguém cá tenha estado. Os fetos têm um cheiro muito forte, e por baixo deles crescem fungos vermelhos. Acordamos as gralhas adormecidas que nunca antes viram uma forma humana; pisamos bolotas apodrecidas, escorregadias e avermelhadas devido ao tempo. Há um círculo de pedra em redor deste bosque; nunca cá vem ninguém. Escuta! É o ruído provocado por um sapo gigante a saltar; são as pinhas a cair por entre os fetos.

Põe o pé neste tijolo. Espreita por cima do muro. Aquilo ali é Elvedon. Há uma senhora sentada entre duas grandes vidraças, a escrever. Os jardineiros varrem o jardim com duas grandes vassouras. Somos os primeiros a chegar aqui. Somos os descobridores de um território desconhecido. Não te mexas; os jardineiros disparam se nos virem. Depois, pregam-nos na porta do estábulo como se fôssemos doninhas. Cuidado! Não te mexas. Agarra-te com força aos fetos que crescem em cima do muro.

– Vejo a senhora a escrever. Vejo os jardineiros a varrer – disse Susan. – Se morrermos aqui, não há ninguém para nos enterrar.

– Corre! – disse Bernard. – Corre! O jardineiro da barba preta já nos viu! Vamos morrer! Vão-nos matar como se fôssemos gaios e pregar-nos à parede! Estamos em território hostil. Temos de fugir para o bosque das faias. Temos de nos esconder debaixo das árvores. Existe um caminho secreto. Dobra-te o mais que puderes. Avança sem olhar para trás. Vão pensar que somos raposas. Corre!

Agora, estamos a salvo. Já nos podemos voltar a endireitar. Já podemos estender os braços no meio desta vegetação tão alta, no meio deste bosque tão grande. Não ouça nada. Aquilo é o murmúrio das ondas do ar. Isto é o pombo-bravo que se escondeu no cimo das faias. O pombo agita o ar; o pombo agita o ar com as suas asas de madeira.

– Estás-te a afastar – disse Susan –, tu e as tuas frases. Elevas-te nos ares como bolas de sabão, cada vez mais alto, por entre as camadas de folhas, até acabares por desaparecer. Agora, demoras-te um pouco. Agora, puxas-me a saia, olhas para trás e constróis muitas frases. Acabaste por me escapar. Aqui, é o jardim. Aqui, fica a sebe. Aqui, está a Rhoda no meio do carreiro, a embalar uma bacia castanha cheia de pétalas.

– Todos os meus navios são brancos – disse Rhoda. – Não quero nem as pétalas vermelhas das malvas nem sequer as dos gerânios. Quero apenas pétalas brancas que flutuem quando inclino a taça. Tenho uma frota a vogar de margem a margem. Deixarei cair um ramo lá dentro, tal como se fosse uma jangada destinada a um náufrago. Deixarei cair uma pedra lá dentro e ficarei a ver as bolhas erguerem-se das profundezas do mar. O Neville desapareceu e a Susan também; a Jinny está no jardim em frente à cozinha a apanhar borboletas, e o mais provável é o Louis estar com ela. Tenho pouco tempo para estar só. A esta hora, a Miss Hudson está a espalhar os livros pelas carteiras. Tenho pouco tempo para ser livre. Apanhei todas as pétalas caídas e pu-las a nadar. Pus gotas de chuva em algumas. Vou colocar um farol aqui. Agora, vou embalar a minha taça castanha de um lado para o outro para que os meus navios possam cavalgar as ondas. Alguns afundar-se-ão. Outros despedaçar-se-ão contra os rochedos. Mas há um que navega sozinho. É o que é verdadeiramente meu. Navega por cavernas geladas onde os ursos polares rosnam, e das estalactites pendem correntes negras. As ondas elevam-se; as suas cristas enrolam-se; reparem nas luzes dos mastros principais. A frota separou-se e todos os navios naufragaram à excepção do meu, que sobe as ondas e se antecipa à tempestade, alcançando as ilhas onde os papagaios tagarelam e as trepadeiras...

– Onde é que está o Bernard? – disse Neville. – É ele quem tem a minha faca. Estávamos na arrecadação a fazer barcos, e foi então que a Susan passou. O Bernard deixou cair o barco e foi atrás dela com a minha faca, aquela que é muito afiada e serve para talhar as quilhas. Ele é como um fio muito esticado, sempre a estremecer. É como as algas que estão penduradas do lado de fora da janela, ora úmidas ora secas. Deixa-me sozinho, vai atrás da Susan; e, se ela gritar, ele pega na minha faca e conta-lhe histórias. A lâmina grande é um imperador; a lâmina quebrada um negro. Odeio coisas que estremecem; odeio coisas escorregadias. Odeio delírios e misturas. A campainha está a tocar e vamos chegar atrasados. Temos de poisar os brinquedos. Temos de entrar ao mesmo tempo. Os livros estão arrumados lado a lado, em cima da mesa forrada a baeta verde.

– Só conjugarei o verbo depois de o Bernard o ter dito – disse Louis. – O meu pai é banqueiro em Brisbane e eu falo com sotaque australiano. Vou esperar e imitar o Bernard. Ele é inglês. Eles são todos ingleses. O pai da Susan é vigário. A Rhoda não tem pai. O Bernard e o Neville são filhos de cavalheiros. A Jinny vive em Londres com a avó. Estão todos a morder as canetas. Agora, estão a virar os livros, e, olhando de esguelha para Miss Hudson, contam-lhe os botões vermelhos do corpete. O Bernard tem um raminho no cabelo. Os olhos da Susan estão vermelhos. Ambos estão corados. Mas eu estou pálido; estou limpo; e as minhas calças de golfe estão bem apertadas com um cinto com uma cobra de bronze. Sei a lição de cor. Sei mais do que aquilo que eles alguma vez saberão. Sei os casos e os gêneros; podia aprender tudo e mais alguma coisa se quisesse. Mas eu não quero emergir e dizer a lição. Tal como fibras num vaso de flores, as minhas raízes enrolam-se em torno do mundo. Não quero emergir e viver à luz deste enorme relógio amarelo que não pára de fazer tiquetaque-tiquetaque. A Jinny e a Susan, o Bernard e o Neville, juntam-se e transformam-se numa correia pronta para me chicotear. Riem-se por eu ser tão arrumado, por falar com sotaque australiano. Vou tentar imitar o Bernard com os seus ceceios em latim.

– Tratam-se de palavras brancas – disse Susan –, iguais às pedras que apanhamos à beira-mar.

– À medida que as pronuncio, batem como caudas, ora à esquerda ora à direita – disse Bernard. – Abanam as caudas; fazem-nas estalar; movem-se em bandos pelo ar, agora nesta direcção, agora naquela, agora em conjunto, agora separando-se, agora voltando a juntar-se.

– São palavras que queimam, são palavras amarelas – disse Jinny. – Gostava de ter um vestido quente, um vestido amarelo, para usar à noite.

– Cada forma verbal – disse Neville –, tem um significado diferente. O mundo tem uma ordem; existem distinções; existem diferenças neste mundo em cuja margem tropeço. Trata-se apenas do começo.

– A Miss Hudson acabou de fechar o livro – disse Rhoda. – Está a começar o terror. Agora, pega no giz e começa a desenhar números, seis, sete, oito, e depois uma cruz e só então uma linha. Está tudo no quadro. Qual é a resposta? Os outros olham, olham com ar de quem compreende. O Louis escreve; a Susan escreve; o Neville escreve; a Jinny escreve; até mesmo o Bernard começou agora a escrever. Todavia, eu não consigo. Apenas vejo números. Um a um, os outros vão entregando as respostas. Chegou a minha vez. Só que não tenho respostas. Os outros tiveram autorização para sair. Deixaram-me sozinha para que encontrasse resposta. Os números não têm qualquer sentido. O sentido desapareceu. O relógio faz tiquetaque. Os dois ponteiros são como caravanas a atravessar o deserto. As barras negras no mostrador são como oásis verdes. O ponteiro maior antecipou-se para ir buscar água. O outro, dolorosamente, vai tropeçando por entre as pedras quentes. Acabará por morrer no deserto. A porta da cozinha bate. Os cães vadios ladram lá longe. Reparem, a forma redonda do número começa a encher-se com o tempo; o mundo está todo lá contido. Comecei a traçar um número, o mundo está lá dentro e eu estou fora do laço. Acabo por o fechar – assim – selando-o, tornando-o inteiro. O mundo está completo e eu estou de fora, a gritar: “Oh, salvem-me, salvem-me de ser afastada para sempre do laço do tempo!”.

– Lá está a Rhoda a olhar para o quadro – disse Louis –, na sala. Enquanto isso, eu estou cá fora, a apanhar pedacinhos de tomilho e a apertar folhas de abrótano. E o Bernard vai contando uma história. Tem as omoplatas unidas, e estas lembram as asas de uma pequena borboleta. À medida que olha para aqueles números feitos a giz, a sua mente fica presa por entre os círculos brancos, até que acaba por se soltar dos laços e cair no vazio. Nada daquilo tem sentido para ela. Nada daquilo tem sentido para ela. Nada tem para lhe responder. Ao contrário dos outros, ela não tem corpo. E eu, que falo com sotaque australiano e cujo pai é banqueiro em Brisbane, não a receio como receio os outros.

– Vamos agora rastejar – disse Bernard – por baixo de toda esta vastidão de folhas de groselheira, e contar histórias. Vamos para o mundo subterrâneo. Vamos tomar posse do território que nos pertence, o qual se encontra iluminado por cachos de groselhas semelhantes a candelabros, ora vermelhos ora negros. Aqui, Jinny, se nos baixarmos bastante, podemos ficar sentados por baixo das folhas a ver baloiçar os turíbulos. Este é o nosso universo. Os outros passam lá ao longe, no caminho das carruagens. As saias da Miss Hudson e da Miss Curry revolteiam como se fossem apagar a luz das velas. Aquelas são as meias brancas da Susan. Aqueles são os lindos sapatos do Louis, pisando o cascalho. O cheiro quente das folhas em decomposição, da vegetação que apodrece, espalha-se pelos ares. Estamos agora num pântano, numa floresta tropical. Está ali um elefante coberto de larvas brancas, morto por uma seta que o atingiu no olho. Vêem-se, claramente, os olhos brilhantes de algumas aves – águias e abutres. Tomam-nos por árvores caídas. Precipitam-se por sobre um réptil – é uma cobra de capelo – e deixam-no com uma grande cicatriz, pronto para ser maltratado pelos leões. Este é o nosso mundo, iluminado por crescentes e estrelas; e grandes pétalas semitransparentes que bloqueiam o caminho como se fossem janelas avermelhadas. É tudo muito estranho. As coisas ou são enormes ou muito pequenas. Os caules das flores são tão grossos como carvalhos. As folhas são tão altas como cúpulas de enormes catedrais. Aqui, somos como gigantes, capazes de fazer estremecer as florestas.

– Isso é aqui e agora – disse Jinny – Contudo, em breve teremos de partir. Já falta pouco para que Miss Curry faça soar o apito. Caminharemos. Ficaremos separados. Tu irás para a escola. Terás mestres que usarão cruzes e colarinhos brancos. Eu irei para uma escola na costa oriental, e terei uma professora que se sentará por baixo de um quadro da rainha Alexandra. É para lá que irei, junto com a Susan e a Rhoda. Isto é apenas aqui e agora. Agora, estamos deitados por baixo das groselheiras e, sempre que a brisa sopra, as folhas cobrem-se de manchas. A minha mão lembra a pele de uma cobra. Os meus joelhos são como ilhas cor-de-rosa. A tua cara é como uma macieira.

– É da Selva que vem todo o calor – disse Bernard. – As folhas são asas negras flutuando sobre as nossas cabeças. Lá no terraço, a Miss Curry já soprou o apito. Somos obrigados a sair debaixo das folhas das groselheiras e a pormo-nos em sentido. Tens um raminho no cabelo, Jinny Tens uma lagarta no pescoço. Temos de nos formar filas de dois. A Miss Curry vai levar-nos para uma marcha, ao passo que a Miss Hudson vai ficar sentada à secretária, às voltas com as contas.

– É aborrecido – disse Jinny –, andar pela estrada sem ter janelas para espreitar, sem olhos de vidro azul para olhar para o caminho.

– Temos de formar pares – disse Susan –, e caminhar de forma ordeira, sem arrastar os pés, com o Louis à frente a conduzir-nos, pois ele está sempre atento e não se desvia para apanhar raminhos.

– Dado que é suposto eu ser demasiado delicado para os acompanhar – disse Neville –, dado cansar-me e adoecer com facilidade, servir-me-ei desta hora de solidão, desta fuga às conversas, para vaguear pelas matas junto à casa e recuperar, se conseguir (indo para isso colocar-me no mesmo ponto), aquilo que senti ontem à noite, quando a cozinheira andava atarefada em volta dos fogões, e, através da porta entreaberta, ouvi a história do homem morto. Encontraram-no com a garganta cortada. As folhas da macieira colaram-se ao céu; a lua brilhou; fui incapaz de levantar os pés e subir os degraus. Encontraram-no na valeta. O sangue gorgolejou pela valeta. O rosto era tão branco como um bacalhau morto. Chamarei para sempre a esta rigidez, a esta fixidez, a morte entre as macieiras. Viam-se nuvens de um cinzento-pálido a flutuar; e aquela árvore inexorável; aquela árvore implacável com a sua casca prateada. O ondular da minha vida não tinha qualquer validade. Fui incapaz de passar. Havia um obstáculo. Não sou capaz de ultrapassar este obstáculo impiedoso, disse. E os outros passaram. Porém, todos estamos condenados pelas macieiras, por aquela árvore impiedosa que não conseguimos passar.

Agora, já não há imobilidade ou rigidez; e eu vou continuar o meu passeio pelas matas em torno da casa, ao entardecer, ao pôr do Sol, quando este faz aparecer alguns pontos oleaginosos no linóleo, e os raios de luz se reflectem na parede, fazendo com que as pernas das cadeiras pareçam estar partidas.

– Quando chegamos do passeio – disse Susan -, vi a Florrie no jardim em frente à cozinha. Estivera a lavar, e apertava a roupa contra ela: os pijamas, as camisas de dormir, as ceroulas. E o Ernest beijou-a. Ele tinha vestido o avental de baeta verde, estava a limpar as pratas; a boca parecia uma bolsa amachucada, e ele puxou-a, ficando os pijamas comprimidos contra os corpos de ambos. Ele estava cego como um touro, e a angústia fê-la desfalecer. O rosto pálido cobriu-se-lhe de veias vermelhas. Agora, e muito embora fossem pratos de pão com manteiga e copos de leite à hora do chá, vejo uma fenda na terra, e nos ares elevam-se colunas de vapor quente; a chaleira ruge da mesma maneira que o Ernest rugiu, e, muito embora os meus dentes se enterrem no pão com manteiga e vá bebendo o leite adocicado, sinto-me tão apertada como aqueles pijamas. Não tenho medo do calor, nem mesmo do gelo do Inverno. A Rhoda sonha, chupando uma côdea de pão embebida em leite; com um olhar vítreo, o Louis fita a parede em frente; o Bernard esfarela o pão até o transformar em migalhas, às quais chama pessoas. O Neville, com aqueles modos arruinados e definitivos, já acabou. Enrolou o guardanapo e enfiou-o na argola de prata. A Jinny faz girar os dedos na toalha, tal como se estivessem a dançar ao pôr do Sol, a fazer piruetas. Mas eu não tenho medo nem do calor do Sol nem do gelo do Inverno.

– Agora – disse Louis –, todos nos levantamos; todos nos pomos de pé. A Miss Curry abre o livro negro no harmônio. É difícil não chorar quando cantamos, quando pedimos a Deus que nos proteja durante o sono, chamando-nos criancinhas a nós mesmos. Quando estamos tristes e a tremer de apreensão, é bom cantarmos juntos e apoiarmo-nos uns aos outros, eu contra a Susan e a Susan contra o Bernard, de mãos dadas, com medo de muitas coisas, eu, da minha pronúncia, a Rhoda, das contas; contudo, cheios de vontade de vencer.

– Subimos as escadas como se fôssemos pôneis – disse Bernard –, a bater os pés, aos pulos, uns atrás dos outros, prontos a entrar na casa de banho. Lutamos, brigamos, saltamos para cima e para baixo nas camas duras e brancas. Chegou a minha vez. Entro.

A Mrs. Constable, embrulhada numa toalha, pega na sua esponja cor de limão e mergulha-a na água; aquela ganha uma aparência achocolatada; pinga; e, segurando-a bem por cima de mim, espreme-a. A água corre pelo meio das minhas costas. Sinto picadas brilhantes por toda a parte. Estou coberto por carne quente. As minhas fendas secas estão agora molhadas; o meu corpo frio foi aquecido; está inundado e brilhante. A água desliza por mim e ensopa-me como a uma enguia. Vejo-me agora envolto em toalhas quentes, e a sua superfície rugosa faz com que o meu sangue ronrone quando me esfrego. No topo do meu cérebro formam-se sensações ricas e pesadas; o dia vai-se escoando – as matas; e Elvedon; a Susan e a pomba. Escorrendo pelas paredes da mente, o dia esvai-se, copioso, resplandecente. Aperto o pijama e deito-me por baixo deste fino lençol, flutuando numa luz pálida que lembra uma película de água que me chegou aos olhos trazida por uma vaga. Ouço muito para lá dela, um som distante e fraco, o começo de um cântico; rodas, cães; homens a gritar; sinos de igreja; o começo de um cântico.

– No momento em que dobro o vestido – disse Rhoda–, ponho de parte o desejo impossível de ser a Susan, de ser a Jinny. Contudo, sei que vou esticar os pés para que possam tocar na barra da cama; quando a tocar, ficarei mais segura por sentir qualquer coisa de sólido. Agora, já não me posso afundar, agora, já não posso cair através do lençol. Agora, estendo o corpo neste frágil colchão e fico suspensa. Estou por cima da terra. Já não estou de pé, já não me podem derrubar nem estragar. E tudo é mole, maleável. As paredes e os armários tornam-se muito claros e dobram os cantos amarelados, no topo dos quais brilha um espelho pálido. Fora de mim, a minha mente pode divagar. Penso na armada que deixei a vogar nas ondas. Estou livre de contactos e colisões. Navego sozinha por baixo dos rochedos brancos. Oh, mas estou-me a afundar, a cair! Aquilo é o canto do armário; isto é o espelho do quarto das crianças. Porém, eles distendem-se, alongam-se. Afundo-me nas plumas negras do sono; são asas pesadas aquilo que tenho pregado aos olhos. Viajando através da escuridão, vejo os compridos canteiros, e, de repente, Mrs. Constable aparece por detrás da erva alta para dizer que a minha tia me veio buscar de carruagem. Monto; escapo; elevo-me nos ares, saltando com as minhas botas de saltos de mola. Todavia, acabo por cair na carruagem que está à porta, onde ela se senta abanando as plumas amarelas, os olhos tão duros como berlindes gelados. Oh, desperto do meu sonho! Olha, ali está a cômoda. É melhor sair destas águas. Mas elas amontoam-se à minha volta, arrastam-se por entre os seus grandes ombros; fazem-me virar; fazem-me tombar; fazem-me estender por entre estas luzes esguias, estas ondas enormes, estes caminhos sem fim, com gente a perseguir-me, a perseguir-me.

O Sol elevou-se um pouco mais. Ondas azuis, ondas verdes, todas elas se abrem num rápido leque por sobre a praia, contornando o pontão coberto por azevinho-do-mar e deixando pequenas poças de luz aqui e ali, espalhadas na areia. Deixam atrás de si uma tênue linha desmaiada. As rochas que antes eram tênues e de contornos mal definidos, são agora marcadas por fendas vermelhas.

A erva tinge-se de riscas sombrias, e o orvalho, dançando na ponta das flores e das árvores, transformou o jardim num mosaico composto por brilhos isolados que ainda não constituem um todo. As aves, com os peitos manchados de rosa e amarelo, ensaiam agora um ou outro acorde em conjunto, de forma selvagem, como grupos de patinadores, até acabarem por se calar subitamente, afastando-se.

O Sol fez poisar lâminas ainda mais largas na casa. A luz toca em qualquer coisa verde poisada no canto da janela, transformando-a num pedaço de esmeralda, numa gruta de um verde puro semelhante a um fruto suave. Tornou mais nítidos os contornos das mesas e das cadeiras, traçando fios dourados nas toalhas brancas. À medida que a luz aumentava, aqui e ali, os botões iam despertando, transformando-se em flores cobertas de veios verdes, tremulas, como se o esforço que fizeram para se abrir as obrigasse a abanar. Tudo se transformou numa massa amorfa, como se a louça dos pratos flutuasse e o aço das facas se tivesse tornado líquido. Enquanto isso, o bater das ondas provocava um ruído abafado, semelhante ao dos toros quando caem, e que se espalhava pela praia.

– Agora – disse Bernard –, chegou a hora. Estamos no dia aprazado. O táxi está à porta. O meu enorme malão torna ainda mais arquejadas as pernas do George. A horrível cerimônia chegou ao fim, os conselhos e as despedidas junto à porta. Agora, é a cerimônia das lágrimas, levada a cabo pela minha mãe, agora, é a cerimônia do aperto de mão, levada a cabo pelo meu pai; agora, vou ter de continuar a acenar, pelo menos até dobrarmos a esquina. Mas até mesmo essa cerimônia chegou ao fim. Deus seja louvado, todas as cerimônias chegaram ao fim.

Estou só. Vou à escola pela primeira vez. Toda a gente parece estar a agir de acordo com o momento presente; nunca mais. Nunca mais. A urgência de tudo isto é assustadora. Todos sabem que vou à escola pela primeira vez. “Aquele rapaz vai à escola pela primeira vez”, diz a criada, limpando os degraus. Não devo chorar, devo encará-los com indiferença. Agora, os horríveis portões da estação abrem-se de par em par; “o relógio com cara de lua olha-me”. Vejo-me obrigado a fazer frases e frases, colocando assim qualquer coisa de concreto entre mim e o olhar das criadas, dos relógios, de todos aqueles rostos indiferentes. Se não o fizer, ver-me-ei obrigado a chorar. Lá está o Louis. Lá está o Neville. Estão ambos junto às bilheteiras, envergando casacos compridos e transportando as suas malas. Têm um ar composto. Apesar disso, estão diferentes.

– Aqui, está o Bernard – disse Louis. – Tem um ar composto; está à vontade. Abana a mala à medida que caminha. Dado que não tem medo de nada, o melhor que tenho a fazer é segui-lo. Somos arrastados até à plataforma como se mais não fôssemos que galhos e palhinhas que a corrente faz girar em torno dos pilares de uma ponte. Lá está aquela enorme máquina, poderosa, verde-garrafa, a soprar vapor. O guarda faz soar o apito; a bandeira é descida; sem qualquer esforço, no momento exacto, como uma avalancha provocada por um pequeno empurrão, começamos a avançar. O Bernard estende uma manta e começa a estalar os dedos. O Neville lê. Londres estremece. Londres eleva-se e ondula. Ali, vê-se um amontoado de torres e chaminés. Ali, uma igreja branca; ali, um mastro por entre as espirais. Ali, um canal. Agora, surgem espaços abertos com caminhos de asfalto onde é estranho as pessoas andarem. Daquele lado, há uma colina manchada de casas vermelhas. Um homem atravessa a ponte com um cão colado aos calcanhares. Agora, um rapaz vestido de vermelho dispara contra um faisão. Um outro, vestido de azul, dá-lhe um empurrão. O meu tio é o melhor caçador de Inglaterra. O meu primo é o mestre da Liga dos Caçadores de Raposas. Começam as gabarolices. Só eu não me posso gabar, pois o meu pai é banqueiro em Brisbane e falo com sotaque australiano.

– Depois de todo este reboliço – disse Neville –, depois de toda esta correria e reboliço, acabamos por chegar. Trata-se de um grande momento – de facto, trata-se de um momento solene. Sinto-me como um Lord a entrar nos aposentos que lhe foram destinados. Aquele é o nosso fundador; o nosso ilustre fundador; e está colocado no átrio com um dos pés levantados. Um ar austero e imperial paira por sobre estes pátios. As salas da frente têm as luzes acesas. Ali, devem ser os laboratórios; ali a biblioteca. Será lá que explorarei as certezas do latim, que me sentirei à vontade nas frases bem construídas que lhe são características, e pronunciarei na perfeição os hexâmetros sonoros de Virgílio e Lucrécio; e cantarei com grande paixão os amores de Catulo, tendo nas mãos um grande livro, um in-quarto com margens. Para mais, deitar-me-ei nos campos, por entre as ervas. Deitar-me-ei com os meus amigos por baixo dos ulmeiros imponentes.

Reparem, lá está o director. Bom, o certo é que ele vem despertar o meu sentido do ridículo. É esguio em demasia. Para mais, é demasiado escuro e brilhante. Parece as estátuas dos jardins. E, no lado esquerdo do colete, daquele colete esticado, sem uma ruga, pende um crucifixo.

– O velho Crane – diz Bernard – levanta-se para nos cumprimentar. O velho Crane, o director, tem um nariz que lembra uma montanha ao pôr do Sol, e a fenda azul que lhe enfeita o queixo é como uma ravina coberta de árvores a quem tivessem lançado o fogo. Baloiça-se ligeiramente, pronunciando palavras imponentes e sonoras. Adoro palavras imponentes e sonoras. Contudo, aquilo que ele diz é demasiado sincero para ser verdadeiro. Mesmo assim, está convencido de que fala verdade. E, quando abandona a sala cambaleando pesadamente de um lado para o outro, depois do que passa por uma porta de vaivém, todos os professores lhe seguem o exemplo, cambaleando pesadamente de um lado para o outro, passando a porta de vaivém. Trata-se da nossa primeira noite na escola, longe das nossas irmãs.

– Este é o meu primeiro dia na escola – disse Susan –, longe do meu pai, longe de casa. Tenho os olhos inchados; as lágrimas fazem-me arder os olhos. Odeio o cheiro a pinheiro e a linóleo. Odeio os arbustos batidos pelo vento e os azulejos da casa de banho. Odeio os ditos divertidos e o olhar espantado de todos. Deixei o meu esquilo e as minhas pombas a um rapaz, para que cuidasse dos animais. A porta da cozinha bate com força, e entre as folhas elevam-se disparos. É Percy, disparando contra as gralhas. Tudo aqui é falso; tudo é prostituído. Vestidas de sarja castanha, Rhoda e Jinny estão sentadas do outro lado, a olhar para Miss Lambert, sentada por baixo de um quarto onde se vê a rainha Alexandra a ler. Vê-se ainda um rolo azul. Trata-se do bordado de alguma das raparigas mais velhas. Se não aperto os dentes, se não cravo os dedos no lenço, por certo que começo a chorar.

– A luz vermelha – disse Rhoda – , no anel de Miss Lambert move-se de um lado para o outro na mancha negra existente na página branca do livro de Orações. É uma luz avinhada, amorosa. Agora que as nossas malas já foram desfeitas e tudo está nos dormitórios, sentamo-nos muito quietas por baixo de mapas de todo o mundo. Há secretárias com poços cheios de tinta. Aqui, vamos ter de passar a fazer exercícios a tinta. Porém, aqui ninguém sou. Não tenho rosto. Esta gente, vestida de sarja castanha, rouba-me a identidade. Somos todas frias, indiferentes. Terei de procurar um rosto, um rosto monumental e composto, dotá-lo com o dom da omnisciência e usá-lo por baixo do vestido como se de um amuleto se tratasse. Só depois (prometo) encontrarei uma fresta na madeira onde esconderei a minha colecção de tesouros curiosos. Prometo-o a mim mesma. É por isso que não vou chorar.

– Aquela mulher morena – disse Jinny – , com as maçãs do rosto bastante altas, tem um vestido brilhante como uma concha repleta de veios, próprio para usar à noite. É bom para o Verão, mas para o Inverno gostava de ter um vestido muito fino, com laços vermelhos, destinado a brilhar à luz da lareira. Então, quando as lâmpadas se acendessem, vestiria o meu vestido vermelho, fino como um véu, e entraria na sala, leve como uma pluma, a dançar. Quando me sentasse no meio da sala, numa cadeira dourada, ficaria parecida com uma flor. Mas a Miss Lambert tem um vestido opaco, que lhe cai numa espécie de cascata a partir daquela gola branca. É ela que está sentada por baixo do retrato da rainha Alexandra, pressionando o dedo com força contra a página. E nós rezamos.

– E lá vamos nós aos pares – disse Louis –, ordeiramente, marchando rumo à capela. Gosto da obscuridade que nos envolve quando chegamos ao edifício sagrado. Gosto desta progressão ordenada. Formamos uma fila; sentamo-nos. Pomos de parte as diferenças quando aqui entramos. Gosto deste preciso momento, quando, a tropeçar, o Dr. Crane sobe o púlpito e lê a lição a partir de uma Bíblia aberta nas costas de uma águia de bronze. Rejubilo; o meu coração aumenta ao ouvi-lo, ao escutar as suas palavras autoritárias. Espalha nuvens de poeira na minha mente, tremula e ignominiosamente agitada, o modo como dançávamos em torno da árvore de Natal, recebendo presentes, e de como descobri terem-se esquecido de mim. Ao se aperceber disto, uma mulher gorda disse: “Este rapazinho não recebeu presentes”, tendo-me depois entregue um dos enfeites da árvore, e eu chorei de raiva, por terem pena de mim. Agora, o seu crucifixo, a sua autoridade, tudo põe ordem nas coisas, e eu volto a sentir a terra que piso, e as minhas raízes descem cada vez mais até se enrolarem em torno de qualquer coisa de sólido que está lá bem no centro. À medida que ele lê, recupero o sentido de continuidade. Transformo-me numa das figuras da procissão, um dos elementos daquela enorme roda que não pára de girar, elevando-me de vez em quando. Tenho estado às escuras; tenho estado escondido; mas quando a roda gira (quando ele lê) elevo-me até esta luz difusa onde quase mal me apercebo de um grupo de rapazes ajoelhados, e de uma série de pilares e placas fúnebres.

Aqui, não há qualquer espécie de crueza, de beijos rápidos.

– Aquele animal ameaça a minha liberdade sempre que reza – disse Neville. – Desprovidas de imaginação, as suas palavras atingem-me como pedras da calçada, mais ou menos ao mesmo ritmo que a cruz doirada que traz à cintura baloiça.

As palavras de autoridade são corrompidas por aqueles que as pronunciam. Zombo e troço desta triste religião, destas figuras tristes e abatidas pela dor, cadavéricas e feridas, que vão descendo um caminho esbranquiçado, ladeado por figueiras, e onde um bando de garotos se rebola no pó, garotos nus; e os odres de pele de cabra onde se guarda o vinho estão pendurados à porta das tabernas. Estive em Roma com o meu pai durante a Páscoa, e vi a figura tremula da mãe de Cristo ser transportada aos solavancos pelas ruas, o mesmo se passando com um Cristo abatido dentro de uma redoma de vidro.

Agora, vou-me inclinar para o lado como se fosse coçar a perna. E a única maneira que tenho de ver o Percival. Lá está ele, sentado no meio dos mais pequenos. Respira com alguma dificuldade através do nariz. Os olhos azuis, estranhamente inexpressivos, fixam-se com uma indiferença pagã no pilar em frente. Dará um magnífico funcionário da igreja. Dar-lhe-ão uma vara para que possa bater aos rapazinhos que se portem mal. É um dos aliados das frases latinas escritas no memorial de bronze. Nada vê; nada ouve. Está longe de todos nós, num universo pagão. Mas olhem – acaba de levar a mão à nuca.

São gestos como estes que provocam paixões eternas, desesperadas. O Dalton, o Jones, o Edgar e o Bateman também levam as mãos ao pescoço. Mas não é a mesma coisa.

– Por fim – disse Bernard – , o ruído pára. O sermão termina. Ele falou com elegância a respeito do voo das borboletas. A sua voz dura e hirsuta é como um queixo por barbear. Volta agora aos tropeções para a cadeira. Parece um marinheiro embriagado. Trata-se de uma acção que todos os outros mestres tentarão imitar; mas, e dado serem fracos, dado serem moles e usarem calças cinzentas, nunca conseguirão ser ridículos. Não os vou desprezar. As suas bizarrias são dignas de pena. Trata-se de mais um entre os muitos factos que registrarei no meu livro de notas, com vista a consultas futuras. Quando for grande, andarei sempre com um bloco-notas, um bloco bastante grande e com muitas páginas, todas metodicamente organizadas por ordem alfabética. Tomarei nota de todas as frases. Na letra B colocarei pó de borboleta. Se, no meu livro, descrever o sol poisado no parapeito da janela, procurarei na letra B de pó de borboleta. Ser-me-á de grande utilidade. As folhas verdes das árvores projectam os seus dedos esguios na janela. Ser-me-á útil. Mas caramba! Distraio-me com tanta facilidade, por causa de um cabelo torcido como um chupa-chupa, pelo livro de orações da Celia, revestido a marfim. O Louis pode contemplar a natureza durante horas; sem pestanejar. Contudo, só sou capaz de o fazer se falarem comigo. O lago da minha mente, onde não há vestígio de remos, é tão liso como um espelho, e não demora muito a se afundar numa sonolência oleosa. Ser-me-á bastante útil.

– E lá vamos nós a sair deste templo sombrio, de volta aos pátios amarelos – disse Louis. – E, dado estarmos num feriado (é o aniversário do Duque), iremos sentar-nos na erva alta enquanto eles jogam críquete. Se assim o quisesse, podia ser um deles; poria as caneleiras e correria pelo campo, na direcção do distribuidor. Reparem só como todos vão atrás do Percival. É um indivíduo grande. Desce o campo de forma desajeitada, atravessa a erva alta e dirige-se para junto dos ulmeiros. A sua magnificência assemelha-se à de um chefe medieval. Um rasto de luz parece segui-lo pela erva. Reparem no modo como o seguimos, nós, os seus fiéis seguidores, apenas para sermos abatidos como carneiros, pois, por certo que ele nos arrastará para uma empresa arriscada, durante a qual acabaremos por perder a vida. O meu coração endurece; transforma-se numa faca de dois gumes: de um lado, a adoração que tenho pela sua magnificência; do outro, o desprezo que nutro pela forma pouco cuidada como fala, eu, que lhe sou superior em todos os aspectos, e invejo-o.

– E agora – disse Neville –, deixemos o Bernard começar. Ele que nos conte histórias enquanto aqui estamos deitados. Ele que descreva aquilo que todos vimos até que os factos formem uma sequência. O Bernard diz que tudo tem uma história. Eu sou uma história. O Louis é outra história. Há ainda a história do rapaz do barco, a do homem só com um olho, e a da mulher que vende moluscos. Ele que gagueje as suas histórias enquanto me deito de costas e, através da erva que estremece, e olho para as pernas hirtas dos distribuidores, enfeitadas de caneleiras. É como se o mundo inteiro se curvasse e flutuasse, as árvores na terra, as nuvens no céu. Olho através das árvores e vejo o céu. Dá a impressão de que é lá que estão a jogar. Por entre as nuvens brancas e fofas chegam-me algumas frases aos ouvidos: Corre, e Como é que isso é possível. À medida que o vento as descompõe, as nuvens vão perdendo tufos de brancura. Se aquele azul pudesse ficar sempre assim; se aquele buraco pudesse ficar sempre assim; se este momento pudesse ser eterno...

Mas o Bernard continua a falar. E lá vão elas a subir – as imagens. “Como um camelo”... “um abutre”. O camelo é um abutre; o abutre é um camelo; não nos devemos esquecer que o Bernard é como um fio solto, sempre a estremecer, mas bastante sedutor. Sim, porque quando ele fala, quando faz estas comparações idiotas, uma espécie de leveza cai sobre nós.

Sentimo-nos flutuar como se fôssemos bolas de sabão; sentimo-nos livres; “escapei-me”, sentimos. Até mesmo os rapazes mais pequenos (o Dalton, o Larpente e o Baker) sentem o mesmo abandono. Gostam mais disto que do críquete. Apanham as frases quando estas se elevam. Deixam que as ervas lhes façam cócegas no nariz. E é então que sentimos o Percival sentar-se pesadamente ao nosso lado. As suas gargalhadas grosseiras parecem repreender o nosso riso. No entanto, ele agora estirou-se em cima da erva. Penso que está a morder um qualquer caule. Está aborrecido; e também me sinto aborrecido. O Bernard de pronto se apercebe do facto. Detecto um certo esforço, uma certa extravagância nas suas palavras, como se quisesse dizer “Olhem!”, mas o Percival diz “Não”. Claro que ele é sempre o primeiro a detectar a insinceridade, sendo terrivelmente brutal. A frase vai morrendo aos poucos. Sim, chegou o momento horrível em que os poderes do Bernard o abandonam e a sequência deixa de ter sentido. Ele gagueja e acaba por parar, arquejando, como se estivesse prestes a irromper em pranto. Entre as torturas e devastações da vida encontra-se esta: a de os nossos amigos não serem capazes de concluir as suas histórias.

– Antes de nos levantarmos – disse Louis –, antes de irmos lanchar, deixa-me fazer o esforço supremo e tentar fixar o momento. Isto durará para sempre. Separamo-nos; alguns vão lanchar; outros dormir a sesta; eu vou mostrar o meu ensaio a Mr. Baker. Isto durará para sempre. A partir da discórdia, do ódio (desprezo todos os que se ocupam de imagens só para passar o tempo, ressinto-me bastante do poder do Percival), a minha mente desunida volta a ligar-se devido a uma súbita percepção. Peço às árvores e às nuvens que testemunhem a minha completa integração. Eu, Louis, eu, que andarei na terra durante os próximos setenta anos, renasci inteiro a partir do ódio e da discórdia. Aqui, neste círculo de erva, sentamo-nos juntos devido ao enorme poder de uma compulsão interior. As árvores estremecem, as nuvens passam. Aproxima-se o momento em que estes solilóquios serão partilhados. Não ficaremos para sempre a produzir sons semelhantes às batidas de um gongo, cada pancada seguindo-se a uma nova sensação. Crianças, as nossas vidas assemelham-se a pancadas de gongos; clamores e bazófias; gritos de desespero; pancadas na nuca desferidas nos jardins.

Agora, a erva e as árvores, o ar viajante que com o seu sopro abre espaços vazios no azul apenas para os voltar a fechar, as folhas tremulas que se sobrepõem umas às outras, e o círculo por nós formado, os braços em torno dos joelhos, tudo isto aponta para uma ordem nova e melhor, a qual torna a ser razão eterna. Percepciono isto durante um segundo, e esta noite tentarei fixá-lo em palavras, forjar uma espécie de anel de aço, muito embora o Percival o destrua quando avança por entre a erva, seguido pela sua corte de servidores mais pequenos. Contudo, é do Percival que preciso, pois é ele quem inspira a poesia.

– Há quantos meses – disse Susan –, há quantos anos ando a subir estas escadas, tanto nos dias escuros de Inverno como nos dias gelados de Primavera? Estamos agora no pino do Verão. Temos de ir lá acima pôr os vestidos brancos próprios para jogar tênis, a Jinny e eu, e a Rhoda atrás de nós. Conto os degraus à medida que os subo, e logo os considero como coisas acabadas. É por isso que todas as noites arranco o dia velho do calendário e o amachuco até ele se transformar numa bola. Faço isto por vingança, enquanto a Betty e a Clara estão de joelhos. Eu não rezo. Vingo-me do dia. Descarrego o meu ódio na sua imagem. “Estás morto”, digo, dia de escola, dia odiado. Fizeram com que todos os dias de Junho, este é o vigésimo quinto, fossem brilhantes e ordenados, com gongos, aulas, ordens para nos lavarmos, para mudarmos de roupa, para comermos, para trabalharmos. Ouvimos os missionários da China. Levam-nos de automóvel a ver concertos em grandes salões. Mostram-nos galerias e quadros.

Lá em casa, o feno ondula nos prados. O meu pai está encostado à vedação, a fumar. Dentro de casa, as portas batem uma a seguir à outra, devido às correntes de ar que circulam pelas passagens vazias. Alguns dos quadros velhos talvez se baloicem nas paredes. Há uma pétala de rosa a cair de uma jarra. As carroças da quinta espalham tufos de feno pela sebe. Vejo tudo isto (é aquilo que sempre vejo) quando passo pelo espelho do andar térreo, com a Jinny à frente e a Rhoda atrás. A Jinny dança. Nunca pára de dançar, nem mesmo nas feias tijoleiras da entrada; vira os carrinhos que estão no recreio; apanha as flores às escondidas e coloca-as atrás da orelha, o que faz com que os olhos escuros da Miss Perry se abram de admiração. Pela Jinny, claro, não por mim. A Miss Perry adora, e talvez eu mesma a pudesse ter adorado, só que não amo mais ninguém para além do meu pai, das minhas pombas e do esquilo que deixei em casa, aos cuidados de um rapaz.

– Odeio o espelho pequenino da escada – disse Jinny. – Mostra apenas as nossas cabeças. Decapita-nos. E os meus olhos são demasiado juntos, a minha boca é demasiado grande; mostro as gengivas quando rio. A cabeça da Susan, com o seu aspecto bravio e os seus olhos verde-musgo, que, e de acordo com o Bernard, estão destinados a ser amados pelos poetas, porque se fixam nas coisas, põe a minha a um canto. Até mesmo o rosto da Rhoda, redondo, vazio, está completo, mais ou menos como as pétalas que ela costumava baloiçar na taça. É por isso que lhes passo à frente e me precipito para o andar seguinte, onde está pendurado um espelho muito maior, onde me posso ver inteira. Vejo o meu corpo e a minha cabeça; pois que mesmo com este vestido de sarja eles são unos, o corpo e a cabeça. Reparem, o simples facto de mexer a cabeça faz com que todo o corpo ondule; até mesmo as minhas pernas magras ondulam como caules ao vento. Brilho entre o rosto bem definido da Susan e a imprecisão da Rhoda; elevo-me como uma dessas chamas que correm por entre as fendas da terra; movo-me; danço; nunca paro de me mover nem de dançar. Movo-me como se moveu aquela folha na vedação, quando eu era criança, assustando-me. Danço por sobre estas paredes manchadas, impessoais, que ganham uma coloração amarelada sempre que a luz do lume paira por sobre os bules do chá. Desperto o fogo mesmo nos olhares mais finos das mulheres. Quando leio, uma orla vermelha bem delimitar os contornos negros do livro. Contudo, não posso acompanhar todas as mudanças das palavras. Não consigo acompanhar uma linha de pensamento que se dirija do presente para o passado. Não me posso perder, como a Susan, com as lágrimas nos olhos, lembrando-se de casa; ou deitar-me, como a Rhoda, entre os fetos, manchando de verde o meu vestido cor-de-rosa, enquanto sonho a respeito de plantas que florescem debaixo das águas do mar, e de rochas por entre as quais os peixes nadam devagar. Para ser franca, nem sequer sonho.

Bom, vamos lá a despachar. Deixa-me ser a primeira a tirar estas roupas ásperas. Aqui, estão as minhas meias brancas, impecavelmente limpas. Aqui, estão os meus sapatos novos. Vou atar uma fita ao cabelo para que, quando correr pelo court, ela brilhe com a velocidade de um relâmpago, sem, no entanto, sair do seu lugar. Nem um só cabelo ficará em desalinho.

– Esta é a minha cara – disse Rhoda –, a cara que aparece por detrás do ombro da Susan sempre que passamos frente ao espelho. Bom, não há dúvida de que se trata da minha cara. Mas eu vou-me esconder atrás dela para a tapar, pois não estou aqui. Não tenho rosto. As outras pessoas têm-no; a Susan e a Jinny têm rostos; estão aqui. O mundo delas é um mundo real. As coisas em que pegam são pesadas. Dizem Sim, dizem Não. Enquanto isso, eu estou sempre a mudar e desapareço num segundo. Se se cruzam com uma das criadas, estas nunca se riem delas. Mas riem-se de mim. Elas sabem o que dizer. Elas riem de verdade, elas zangam-se de verdade.

Enquanto isso, eu tenho de ver primeiro o que as outras pessoas fazem para depois as imitar.

Reparem só na extraordinária convicção com que a Jinny puxa as meias, e isto apenas para jogar tênis. Admiro-a por isso. Mas gosto ainda mais dos modos da Susan, já que é mais resoluta e menos ambiciosa que a Jinny. Ambas me desprezam por as imitar, mas às vezes a Susan ensina-me a fazer algumas coisas, por exemplo, a apertar um laço, ao passo que a Jinny guarda tudo o que sabe para si mesma. Ambas têm amigas ao lado de quem se sentam. Mas eu apenas me ligo a nomes e a rostos, usando-os como amuletos contra os desastres. Escolho uma cara desconhecida de entre todas as que se encontram do lado oposto ao que me encontro, e mal consigo beber o chá quando aquela cujo nome desconheço se senta à minha frente. Sufoco. A emoção faz-me abanar de um lado para o outro.

Imagino toda esta gente anônima e imaculada a espreitar-me por detrás dos arbustos. Elevo-me nos ares para lhes fazer aumentar a admiração. De noite, na cama, faço-as pasmar por completo. É com frequência que morro cravejada de setas apenas para as fazer chorar. Se elas dizem, ou se vê através de uma das etiquetas das malas, que estiveram em Scarborough durante as últimas férias, a cidade resplandece, as ruas tornam-se douradas. É por isso que odeio os espelhos que mostram o meu verdadeiro rosto. Quando estou só, é com frequência que me deixo cair no vazio. Tenho de ter cuidado e ver onde ponho os pés, não vá tropeçar na orla do mundo e cair no vazio. Tenho de bater com a cabeça nas paredes para poder voltar ao meu próprio corpo.

– Estamos atrasadas – disse Susan. – Temos de esperar pela nossa vez de jogar. Enquanto isso, vamos ficar na erva a fingir que estamos a ver a Jinny e a Clara, a Betty e a Mavis. Mas o certo é que não lhes prestamos a mais pequena atenção. Odeio ver os outros jogar. Vou construir imagens de tudo aquilo que odeio e enterrá-las no chão. Este seixo brilhante é a Madame Carlo, e vou enterrá-la devido aos seus modos insinuantes, e também por causa dos seis dinheiros que me deu por não ter dobrado os dedos quando praticava as escalas. Enterrei os seis dinheiros. Enterraria toda a escola: o ginásio, a sala de aulas, a sala de jantar que cheira sempre a carne; e a capela. Enterraria as tijoleiras vermelhas e os retratos a óleo de todos aqueles velhos, benfeitores, fundadores da escola. Gosto de algumas árvores; da cerejeira e dos montes de seiva clara que se acumulam na sua casca; e das montanhas distantes que se vêem de uma das janelas do sótão. Fora isso, enterraria tudo o mais como enterro estas feias pedras que se encontram por toda esta costa salgada, com os seus molhes e turistas. Lá em casa, as ondas têm milhas de comprimento. Ouvimo-las ribombar nas noites de Inverno. No Natal passado, um homem afogou-se quando estava sozinho na sua carroça.

– Quando a Miss Lambert passa – disse Rhoda –, a conversar com o vigário, todos se riem e imitam a corcunda que ela tem nas costas. Contudo, as coisas todas mudam e ficam luminosas. Até mesmo a Jinny salta mais alto à sua passagem. Se ela olhar para aquela margarida, esta muda. Para onde quer que vá, tudo se altera debaixo dos seus olhos; e, no entanto, depois de ela partir, será que as coisas não voltam a ser o que eram? Miss Lambert conduz o vigário através do portão e fá-lo entrar no seu jardim particular; e, quando alcançam o lago, ela vê um sapo num nenúfar, e também isso muda. Tudo é solene, tudo é pálido no local onde ela se encontra, semelhante a uma estátua no jardim. Acaba por deixar cair a capa de seda enfeitada com borlas, e só o seu anel cor de púrpura continua a brilhar, o seu anel cor de vinho, cor de ametista. Quando as pessoas nos deixam, atrás delas fica sempre um rasto de mistério. Quando a Miss Lambert passa, as margaridas ficam diferentes; e, quando trincha a carne, à sua volta elevam-se chispas de fogo. Mês após mês, as coisas começaram a perder a sua dureza; até mesmo o meu corpo começa a deixar passar a luz; a minha espinha está macia como um pedaço de cera colocado junto à chama de uma vela. Sonho; sonho.

– Ganhei o jogo – disse Jinny – Agora, é a vossa vez. Tenho de me atirar para o chão e arfar. A corrida e o triunfo deixaram-me sem fôlego. A corrida e o triunfo parecem ter gasto tudo o que tinha no corpo. O meu sangue deve ser agora de um vermelho muito vivo, saltando e batendo de encontro às veias. Sinto picadas na sola dos pés, mais ou menos como se lhes estivessem a espetar fios de metal. Distingo com grande clareza os recortes de todas as ervas. Mas o sangue pulsa-me com tanta força nas têmporas, por detrás dos olhos, que tudo parece dançar, a rede, a erva; os vossos rostos palpitam como borboletas, as árvores parecem saltar para cima e para baixo. Neste universo não existe nada de estável, nada de imóvel. Tudo se move, tudo dança; tudo é rapidez e triunfo. Só que, depois de me ter deitado sozinha no solo duro, a ver-vos jogar, começo a sentir vontade de ser escolhida, de ser chamada, de que uma pessoa me venha buscar de propósito, de alguém que se sinta atraído por mim e que venha ter comigo sempre que me sento na minha cadeira dourada, com o vestido caindo à minha volta como se fosse uma flor. E, retirando-nos para longe da multidão, sentar-nos-emos na varanda, a conversar.

Agora, a maré acaba por baixar. As árvores aproximam-se da terra; as ondas bravias que fustigam as minhas veias começam a agitar-se mais devagar, e o meu coração prepara-se para ancorar, como um veleiro, cujas velas se recolhem e caem por sobre um convés imaculado. O jogo terminou. Está na hora de ir lanchar.

– Os gabarolas – disse Louis –, acabaram de formar uma enorme equipa para jogar críquete. Afastaram-se, cantando a plenos pulmões.Todas as cabeças se viram ao mesmo tempo quando chegam àquela esquina, ali, onde estão os loureiros. Já se começaram a gabar. O irmão do Larpent jogou futebol pela equipa de Oxford; o pai do Smith pertenceu à centúria dos Lordes. O Archie e o Hugh; o Parker e o Dalton; o Larpent e o Smith, os nomes vão-se repetindo; os nomes são sempre os mesmos. Eles são os voluntários; são os jogadores de críquete; são os funcionários da Natural History Society. Andam sempre em grupos de quatro e marcham em bandos com insígnias nos bonés; e, sempre que passam pelo chefe, saúdam-no em uníssono. Como a sua ordem é majestosa, como a sua obediência é bela! Se pudesse, sacrificaria tudo para estar com eles. Contudo, são também eles que arrancam as asas às borboletas; são eles que atiram lenços manchados de sangue para os cantos. São eles quem fazem soluçar os garotos pequenos nas passagens escuras. Têm orelhas grandes e vermelhas que lhes saem dos bonés. Mesmo assim, é com eles que eu e o Neville nos queremos parecer! É com inveja que os vejo partir. A espreitar atrás da cortina, delicio-me a observar o modo como avançam em simultâneo. Se as minhas pernas pudessem ter o poder das deles, como correriam depressa! Se tivesse estado com eles, ganho desafios e participado em corridas importantes, com que força não cantaria quando chegasse a meia-noite! Com que rapidez as palavras não jorrariam da minha garganta!

– O Percival já foi – disse Neville. – Não pensa em mais nada a não ser no jogo. Nunca acena quando a equipa vira a esquina, junto aos loureiros. Despreza-me por ser demasiado fraco para jogar (muito embora a minha fraqueza lhes desperte simpatia). Despreza-me por não me importar com o facto de saber se ganharam ou perderam, mas sim de apenas querer saber daquilo que lhe interessa. Aceita a minha devoção; aceita a minha oferta tremula (sem dúvida que abjecta), muito embora nela se encontre uma certa dose de desprezo pela sua mente. É que ele não sabe ler. Mesmo assim, quando me deito na relva a ler Catulo ou Shakespeare, ele compreende tudo melhor que o Louis. Não me estou a referir às palavras – afinal, que são elas? Não saberei já como rimar, como imitar Pope, Dryden, até mesmo Shakespeare? Contudo, não posso estar todo o dia ao sol a olhar para a bola; não posso sentir os movimentos da bola através do meu corpo e pensar apenas nela. Viverei sempre agarrado aos contornos das palavras. Todavia, seria incapaz de viver com ele e suportar toda a sua estupidez. Por certo que praguejará e ressonará. Acabará por casar e fazer cenas de ternura durante o pequeno-almoço. Mas agora ainda é novo. É como uma folha de papel, e não como uma rede, aquilo que se estende entre ele e o mundo, entre ele e a chuva, entre ele e a lua, quando se deita na cama, o corpo nu e quente. Agora, à medida que sobem o caminho, o seu rosto está manchado de vermelho e amarelo. Acabará por despir o casaco e firmar-se de pernas abertas, as mãos prontas, os olhos postos nos três paus horizontais que se elevam no campo. Os seus lábios murmurarão “Meu Deus faz com que ganhemos”; não pensará em outra coisa para além da vitória.

Como é que alguma vez me poderei juntar a uma equipa de críquete? Só o Bernard o poderia fazer, mas já é tarde demais para isso. Ele chega sempre tarde demais. É a sua incorrigível melancolia que o impede de ir com eles. Quando lava as mãos, pára para dizer: “Está uma mosca naquela teia. Deverei libertá-la? Deverei deixar que a aranha a coma?”. Preocupa-se com um sem-número de insignificâncias. Se assim não fosse, teria ido jogar críquete com eles, e talvez agora estivesse deitado na relva, a olhar o céu, sobressaltando-se ao ouvir o som dos tacos a bater na bola. Mas, e dado que lhes contaria uma história, os outros acabariam por lhe perdoar.

– Já se foram embora – disse Bernard –, e eu atrasei-me demais e já não posso ir com eles. Aqueles rapazinhos horríveis, que também são muito belos, e de quem tu e o Louis, Neville, têm tanta inveja, afastaram-se com as cabeças voltadas na mesma direcção. No entanto, não me apercebo destas diferenças profundas. Os meus dedos percorrem as teclas sem se aperceberem quais as que são brancas e as que são pretas. O Archie não tem qualquer dificuldade em chegar às cem; eu só por sorte consigo fazer quinze. Mas qual a diferença entre nós?

Espera um pouco, Neville, deixa-me falar. As bolhas vão-se elevando como as bolas prateadas que se elevam do fundo de uma frigideira; imagem atrás de imagem. Não me consigo agarrar aos livros com a tenacidade feroz que caracteriza o Louis. Tenho de abrir a portinhola da ratoeira e deixar escapar estas frases ligadas umas às outras, nas quais me movimento. Assim, e em vez de um sistema incoerente, vemos antes uma teia suave, capaz de unir as coisas umas às outras. Vou-te contar a história do professor.

Quando, depois das orações, o Dr. Crane atravessa as portas de vaivém a cambalear, ficamos com a sensação de que ele está convencido da sua superioridade. De facto, Neville, não podemos negar que a sua partida não só nos deixa com uma enorme sensação de alívio mas também com a impressão de que nos tiraram algo, por exemplo, um dente. Vamos então segui-lo até aos seus aposentos. Vamos imaginá-lo no quarto que lhe pertence, por cima dos estábulos, a despir-se. Desaperta os elásticos que lhe podem prender as meias (sejamos triviais, sejamos íntimos). Depois, com um gesto que lhe é peculiar (é difícil evitar estas frases feitas, e, neste caso concreto quando elas até se mostram apropriadas), tira as moedas dos bolsos das calças e coloca-as aos molhos em cima da cômoda. Com os braços apoiados nos braços da cadeira, reflecte (este é o seu momento de privacidade; é aqui que o devemos tentar apanhar): deverá ele atravessar a ponte cor-de-rosa que o leva até ao quarto contíguo, ou não? Os dois quartos estão unidos por uma ponte de luz cor-de-rosa que vem do candeeiro colocado junto a Mrs. Crane que, com a cabeça apoiada na almofada, lê um livro de memórias em francês. Enquanto lê, passa a mão pela testa num gesto de abandono e desespero, e suspira “é tudo?”, comparando-se a uma qualquer duquesa francesa. Só faltam dois anos para me reformar, diz o director. Irei aparar sebes num jardim da zona ocidental do país. Poderia ter sido almirante; talvez mesmo juiz; nunca um professor. Que forças, pergunta, olhando para o fogão a gás com os ombros ainda mais curvados que o costume (não te esqueças de que está em mangas de camisa), me terão transformado nisto? Que forças poderosas, pensa, deixando-se levar pelas frases bombásticas de que tanto gosta, ao mesmo tempo que, por cima do ombro, espreita pela janela. A noite é de tempestade, os ramos da avelaneira não param de andar para baixo e para cima. As estrelas brilham entre eles. Que forças poderosas do bem e do mal me terão trazido até aqui?, pergunta, e, não sem algum desgosto, repara que o pé da cadeira fez um buraco na carpete vermelha. E ali está ele sentado, a abanar os braços. Contudo, são difíceis as histórias que seguem as pessoas até aos seus quartos. Não consigo prosseguir esta história. Estou a brincar com um cordel; viro as quatro ou cinco moedas que tenho no bolso das calças.

– No princípio, as histórias do Bernard divertem-me sempre – disse Neville. – Mas, quando terminam de forma absurda, e ele se cala, a brincar com um qualquer pedaço de cordel, sinto a minha própria solidão. Ele vê todas as coisas com os contornos desmaiados. É por isso que não lhe posso falar do Percival. Não posso expor a minha paixão absurda e violenta à sua simpatia compreensiva. Também ela serviria para fazer uma história. Preciso de alguém cuja mente caia como um machado no seu cepo; para quem o cúmulo do absurdo seja sublime, e considere um simples atacador como algo digno de admiração. A quem poderei desvendar a urgência da minha paixão? O Louis é demasiado frio, demasiado universal. Não há ninguém aqui entre estas arcadas cinzentas, estes tolos que se lamentam, estes jogos e animadas tradições, tudo organizado com grande mestria para que não nos sintamos sós. Porém, vejo-me obrigado a parar enquanto caminho, assaltado por súbitas premonições relacionadas com o que há-de vir Ontem, quando ia a passar o portão do pátio interior, vi o Fenwick levantar o malho. Uma nuvem de vapor elevava-se do bule de chá. Por toda a parte se viam canteiros de flores azuis. Então, de repente, desceu sobre mim o sentido obscuro e místico da adoração, do uno que triunfa sobre o caos. Ninguém adivinhou a necessidade que senti de oferecer o meu ser a um deus e depois perecer, desaparecer. O malho desceu; a visão quebrou-se.

Deverei sair ao encontro das árvores? Deverei abandonar estas salas e bibliotecas? Deverei abandonar as enormes páginas amarelas onde leio Catulo, trocando-as por bosques e campos? Deverei caminhar por entre as faias, ou vaguear ao longo da margem do rio, onde as árvores se unem como amantes? Porém, a natureza é demasiado vegetal, demasiado insípida. Limita-se a possuir água e folhas, vastidão e espaços sublimes. Começo a desejar uma lareira, um pouco de privacidade, e também os membros de outra pessoa.

– Começo a desejar – disse Louis –, que a noite chegue. Enquanto aqui estou, a mão apoiada no painel de carvalho que constitui a porta de Mr. Wickham, imagino que sou um dos amigos de Richelieu, ou mesmo o duque de St. Simon, estendendo ao rei uma caixa de rapé. Trata-se de um privilégio que é só meu. A minha inteligência espalha-se pela corte como fogo. Admiradas, as duquesas despojam-se dos anéis de esmeralda, porém, estes foguetes elevam-se melhor na escuridão da noite, quando estou no quarto. Não passo de um rapaz com um sotaque colonial que bate à porta de Mr. Wickham com os nós dos dedos. O dia revelou-se como algo cheio de triunfos e humilhações que tive de esconder com medo do riso dos outros. Sou o melhor aluno da escola. Mas, quando a noite cai; despojo-me deste corpo insignificante, do meu enorme nariz, dos lábios finos, da pronúncia típica das colônias, e ocupo espaço. Sou, então, o companheiro de Virgílio e Platão. Passo a ser o último descendente de uma das grandes casas da França. Mas sou também aquele que se obriga a abandonar estas paragens desertas e iluminadas pelo luar, estes passeios nocturnos, confrontando-se com portas de carvalho. Acabarei por conseguir, queira Deus que não demore muito, uma qualquer mistura destas duas discrepâncias, tão terrivelmente evidentes para mim. Consegui-lo-ei com o meu sofrimento. Vou bater à porta. Vou entrar.

– Arranquei todos os dias de Maio e Junho – disse Susan –, e ainda vinte dias de Julho. Arranquei-os e amachuquei-os até nada mais serem que um punhado de papéis a meu lado. Foram dias difíceis de passar, como borboletas de asas queimadas pelo sol, incapazes de voar. Já só faltam oito dias. Daqui a oito dias, às seis e vinte e cinco, descerei do comboio e poisarei os pés na plataforma. Então, a minha liberdade desfraldará as velas, afastando para bem longe estas restrições que queimam e enchem de pregas – horas de ordem e disciplina, e o estar aqui no momento preciso. O dia desabrochará no preciso momento em que abrir a porta da carruagem e vir o meu pai, com o seu velho chapéu e polainas. Tremerei. Debulhar-me-ei em lágrimas. Depois, na manhã seguinte, levantar-me-ei ao amanhecer. Sairei pela porta da cozinha. Irei passear na charneca. Os enormes cavalos dos cavaleiros fantasmas correrão atrás de mim apenas para parar subitamente. Verei a andorinha vasculhar a erva, procurando alimento. Deixar-me-ei cair na margem do rio e ficarei a ver os peixes deslizar por entre as canas. As palmas das minhas mãos ficarão cheias de marcas provocadas pelas agulhas dos pinheiros. Lá conseguirei tirar de dentro de mim aquilo que aqui foi construído; qualquer coisa dura. Sei que, ao longo dos invernos e verões que aqui passei, qualquer coisa se formou nas escadas e nos quartos. Ao contrário da Jinny, não quero ser admirada. Não quero que as pessoas levantem os olhos e me fitem, admiradas, sempre que entro numa sala. Quero dar, dar-me, e preciso de solidão, da solidão que me permitirá revelar tudo o que possuo.

Depois, voltarei para casa caminhando através dos carreiros estreitos que se ocultam por baixo dos arcos formados pelas folhas das avelaneiras. Passarei por uma velha que empurra um carrinho cheio de pauzinhos; e pelo pastor. Contudo, não trocaremos qualquer palavra. Voltarei a atravessar o jardim frente à cozinha, e verei as folhas das couves carregadas de gotas de orvalho, e a casa no meio do jardim, cega devido às janelas cheias de cortinas. Subirei as escadas que levam ao quarto e passarei revista a tudo aquilo que possuo e que está fechado com todo o cuidado no guarda-vestidos: as minhas conchas; os meus ovos; as minhas ervas estranhas. Darei de comer às pombas e ao esquilo. Irei até ao canil escovar o pêlo do cão. Assim, aos poucos, acabarei por expulsar esta coisa dura que cresceu aqui comigo, do meu lado. Contudo, as campainhas não param de tocar; os pés arrastam-se pelo chão num movimento perpétuo.

– Detesto a escuridão, o sono e a noite – disse Jinny –, e não me canso de esperar pelo dia. Gostava que a semana fosse apenas um dia, sem quaisquer divisões. Quando acordo cedo, e são os pássaros que me acordam, fico deitada a ver os puxadores de bronze do armário tornarem-se mais claros; depois a bacia; depois o toalheiro. À medida que as coisas no quarto se vão tornando mais claras, o coração bate-me mais depressa. Sinto o corpo enrijecer e tornar-se cor-de-rosa, amarelo, castanho. Passo as mãos pelo corpo e pelas pernas. Sinto os seus declives, a sua espessura. Adoro ouvir o gongo ecoar pela casa, dando assim início ao ruído, aqui um baque, ali uma rápida sucessão de passos. As portas batem; a água corre. “Começou outro dia, começou outro dia!”, exclamo, pondo os pés no chão. Pode muito bem não vir a ser um dia bom, antes se revelando imperfeito. É com frequência que me repreendem. É com frequência que caio em desgraça por ser preguiçosa e me estar sempre a rir; mas mesmo quando Miss Mathews resmunga qualquer coisa sobre o quanto sou cabeça-de-vento, consigo captar algo que se move – talvez uma mancha de sol poisada num quadro, ou o burro puxando a máquina de ceifar através da encosta; ou uma vela passando por entre as folhas do loureiro. O certo é que não me deixo abater. Miss Mathews não me pode impedir de dar graças.

Está a chegar a hora de deixar a escola e usar saias compridas. Durante a noite usarei muitos colares e um vestido branco, sem mangas. Irei a muitas festas em salões iluminados; e um homem acabará por me escolher, dizendo-me o que nunca antes disse a mais ninguém. Gostará mais de mim que da Susan ou da Rhoda. Verá em mim uma qualquer qualidade, uma característica particular. Todavia, não me deixarei prender por uma única pessoa. Não quero ser presa, pregada. Tremo e estremeço, tal como uma folha abandonada ao vento, quando me sento na cama a abanar os pés, como um dia novo à frente, pronto para ser descoberto. Tenho à minha frente cinquenta, sessenta anos para gastar. Ainda não preciso de começar a usar as reservas. Estou apenas no começo.

– Passam-se horas e horas – disse Rhoda –, antes de poder apagar a luz e deitar-me na cama, suspensa por sobre o mundo, antes de poder deixar cair o dia, antes de poder deixar crescer a minha árvore, estremecendo por sobre mim em grandes pavilhões verdes. Aqui não a posso deixar crescer. Há sempre alguém pronto a deitá-la abaixo. Não param de me fazer perguntas e de me interromper.

Agora vou até à casa de banho, tiro os sapatos e lavo-me; mas, enquanto me lavo, enquanto baixo a cabeça para a bacia, deixo que o véu da imperatriz russa flutue à altura dos meus ombros. Na testa brilham-me os diamantes da coroa imperial. Ouço o rugir da tuba hostil quando me aproximo da varanda. Agora, esfrego as mãos com tal força, que a Miss (esqueci-me do nome) não consegue suspeitar que estou a ameaçar com o punho a multidão enraivecida. “Sou a vossa imperatriz, gentalha.” A minha atitude é de desafio. Não tenho medo, pertenço à raça dos conquistadores.

Contudo, trata-se de um sonho pouco consistente. Trata-se de uma árvore de papel. Miss Lambert fá-la desaparecer nos ares. Até mesmo a visão da sua figura esgueirando-se pelo corredor fá-la desfazer-se em átomos. Este sonho da imperatriz não é sólido; não me satisfaz. Agora, que já foi destruído, deixa-me a tremer de frio. Irei até à biblioteca, escolherei um livro e ali ficarei, ora a ler ora a olhar; ora a olhar ora a ler. Está aqui um poema a respeito de uma vedação. Seguirei junto a ela e colherei flores, rosas silvestres e trepadeiras sinuosas. Apertá-las-ei com força nas mãos, e acabarei por as colocar na superfície brilhante da secretária. Sentar-me-ei na margem trêmula do rio e ficarei a ver os lírios-de-água, largos e brilhantes, que iluminam o carvalho que se debruça por sobre a vedação com os raios de luar reflectidos na sua própria luz líquida. Apanharei flores; unirei todas as flores numa grinalda, e, depois de esta estar pronta, irei dá-la de presente... Oh! A quem? O fluxo do meu ser não corre como deveria; um curso de água profundo esbarra em qualquer obstáculo; sacode-se; luta; um qualquer nó existente no centro oferece resistência. Oh, esta dor, esta angústia! Desfaleço, caio. O meu corpo perde a rigidez; é como se me tivesse tirado o lacre, estou em brasa. Agora, a corrente transformou-se num fluxo fertilizador, forçando tudo o que encontra pela frente. A quem oferecerei tudo o que corre através de mim, pelo meu corpo quente e poroso? Colherei um ramo de flores e vou oferecê-las... Oh! A quem?

Marinheiros e casais apaixonados percorrem a procissão; os autocarros abandonam a costa e dirigem-se para a cidade. Darei; contribuirei para enriquecer qualquer coisa; devolverei toda esta beleza ao mundo. Recolherei as minhas flores até elas formarem um único núcleo, e, avançando de mão estendida, dá-las-ei.... Oh! A quem?

– Acabamos de receber – disse Louis –, pois trata-se do último dia do último período, o nosso último dia, para mim, para o Bernard e para o Neville, aquilo que os mestres tinham para nos dar. Concluiu-se a introdução; o mundo está apresentado. Eles ficam; nós partimos. O Grande Professor, o homem a quem mais respeito, balançou-se um pouco por entre as mesas e os livros, falou-nos a respeito de Horácio, Tennyson, das obras completas de Keats, e também de Mathew Arnold. Respeito a mão que tudo isto nos deu a conhecer. Fala com a mais completa das convicções. Para si, e muito embora não se passe o mesmo connosco, as palavras que diz são verdadeiras. Com aquela voz rouca característica dos estados emocionais profundos, disse-nos que estávamos prestes a partir. Pediu-nos para sairmos como homens. (Nos seus lábios, tanto as citações da Bíblia como as do The Times têm a mesma magnificência.) Alguns de nós farão isto; outros aquilo. Alguns nunca mais se verão. O Neville, o Bernard e eu nunca mais nos voltaremos a encontrar aqui. A vida far-nos-á seguir caminhos diversos. Contudo, constituímos alguns laços. Terminaram os anos infantis, irresponsáveis. Contudo, forjamos algumas ligações. Acima de tudo, herdamos tradições.

Marcos de pedra estão aqui há seiscentos anos. Nestas paredes encontram-se inscritos nomes de militares, estadistas, até mesmo de alguns poetas infelizes (o meu estará entre os deles). Deus abençoe as tradições, todos os limites destinados a nos salvaguardar! Estou deveras grato a todos vós, homens de capas negras, e também a vós, já mortos, por nos terem guiado; contudo, ao fim ao cabo, o problema permanece. As diferenças ainda não foram resolvidas. As flores continuam a espreitar pelas janelas. Vejo aves selvagens, e no meu coração agitam-se impulsos ainda mais selvagens que os pássaros. Os meus olhos têm uma expressão desvairada; aperto os lábios com força. A ave voa; a flor dança; mas nunca deixo de escutar o bater monótono das ondas; e a fera acorrentada continua a bater as patas lá na praia. Não pára de bater. Bate e vai batendo.

– Esta é a cerimônia final – disse Bernard. – Esta é a última de todas as nossas cerimônias. Estamos dominados por estranhos sentimentos. O guarda que segura a bandeira está prestes a soprar o apito; o comboio não para de soltar colunas de vapor e estará pronto a partir daqui a alguns instantes. Uma pessoa sente-se tentada a dizer qualquer coisa, a sentir qualquer coisa de absolutamente apropriado à ocasião. Sente-se a cabeça fervilhar: os lábios estão apertados. Uma abelha entra em cena a zumbir, esvoaçando em torno do bouquet de flores de Lady Hampton, a esposa do director, que não pára de o cheirar, como que para demonstrar ter apreciado o cumprimento. E se a abelha lhe desse uma ferroada no nariz? Estamos todos profundamente comovidos; e, no entanto, irreverentes; penitentes; desejosos de que tudo acabe e relutantes em partir. A abelha distrai-nos; o seu voo ao acaso parece fazer diminuir a nossa concentração. Zumbindo de forma vaga, movendo-se em círculos largos, acabou por poisar no cravo. Muitos de nós não se voltarão a ver. Não voltaremos a gozar certos prazeres quando formos livres de nos deitar e levantar quando muito bem nos apetecer, e quando eu já não precisar de ler textos imortais às escondidas, à luz de cotos de velas. A abelha zumbe agora em torno da cabeça do Grande Professor. Larpent, Jolin, Archie. Percival, Baker e Smith – gostei imenso de os conhecer. Apenas conheci um rapaz louco. Apenas odiei um rapaz mesquinho. Divirto-me imenso a relembrar aqueles pequenos-almoços à mesa do director, compostos por torradas e marmelada. Ele é o único que não repara na abelha.

Se ela lhe poisasse no nariz, afastá-la-ia com um gesto magnífico. Acabou de dizer uma piada. A sua voz quase deixou de se ouvir. Estamos livres das nossas obrigações, o Louis, o Neville e eu, para sempre. Pegamos nos livros de capas polidas, todos escritos com a caligrafia própria dos eruditos, miúda e desenhada. Levantamo-nos; dispersamos; a pressão deixa de se fazer sentir. A abelha transformou-se num insecto insignificante e desrespeitoso, voando através da janela ao encontro da obscuridade. Partimos amanhã.

– Estamos quase a partir – disse Neville. – As malas estão aqui; os carros estão aqui. Lá está o Percival com o seu chapéu de coco. Acabará por me esquecer. Não responderá às minhas cartas, deixando-as esquecidas por entre armas e cães. Enviar-lhe-ei poemas, e talvez me responda com bilhetes postais. Mas é exactamente por isso que o amo. Propor-lhe-ei um encontro, talvez por baixo de um relógio, junto a uma Cruz; ficarei à sua espera e ele não comparecerá. Sairá da minha vida sem sequer disso se aperceber. E, por incrível que pareça, eu sairei ao encontro de outras vidas; isto é, apenas uma capa, um prelúdio. Começo a sentir, muito embora mal consiga aguentar o discurso pomposo do director e as suas emoções fingidas, que as coisas de que nos tínhamos apercebido se estão a aproximar. Serei livre para entrar no jardim onde Fenwick levanta o malho. Aqueles que me desprezaram reconhecerão a minha sabedoria. Contudo, e devido a qualquer lei obscura do meu ser, nem o poder nem a sabedoria serão o suficiente para mim; andarei sempre à procura da privacidade e a murmurar palavras solitárias. E é assim que vou, na dúvida, mas exaltado; apreensivo e com uma dor intolerável; mas pronto a descobrir o que quero depois de muito sofrimento. Ali, vejo pela última vez a estátua do nosso piedoso fundador, as pombas poisadas na sua cabeça. Elas nunca pararão de esvoaçar em torno da sua cabeça, embranquecendo-a, enquanto na capela o órgão não pára de tocar. Assim, ocuparei o lugar que me foi reservado no compartimento, e, quando isso acontecer, ocultarei os olhos com um livro para que não vejam que choro; ocultarei os olhos para observar; para olhar de esguelha para o rosto. Estamos no primeiro dia das férias grandes.

– Estamos no primeiro dia das férias grandes – disse Susan. – Mas o dia ainda está enrolado. Não o examinarei até ao momento em que poisar na plataforma, ao fim da tarde. Não me darei sequer ao trabalho de o cheirar até sentir nas narinas o vento fraco dos campos. Contudo, estes já não são os terrenos da escola; estas já não são as vedações da escola; os homens que estão nos campos praticam acções reais; enchem carroças com feno verdadeiro; e aquelas são vacas reais, em nada semelhantes às vacas da escola. No entanto, o cheiro a ácido carbólico dos corredores e o odor a giz característico das salas não me abandonam o nariz. Trago ainda nos olhos o brilho uniforme da ardósia. Para enterrar profundamente a escola que tanto odeio tenho de esperar pelos campos e pelas vedações, pelos bosques e pelos pastos, pelas vedações pontiagudas das estações ferroviárias, juncadas de giestas e carruagens descansando nas linhas secundárias, pelos túneis e pelos jardins suburbanos onde as mulheres penduram a roupa nos estendais, e de novo pelos campos e pelos portões onde as crianças se baloiçam.

Nunca passarei uma noite que seja da minha vida em Londres, nem mandarei os meus filhos para a escola. Aqui, nesta enorme estação, todas as coisas têm um eco vazio. A luz é amarelada, semelhante à que nos chega através de um toldo. A Jinny vive aqui. A Jinny passeia o cão nestas ruas. As pessoas daqui andam pelas ruas em silêncio. Não olham para mais nada a não ser para as montras das lojas. As suas cabeças não param de fazer o mesmo movimento simultâneo, para cima e para baixo. As ruas estão atadas umas às outras pelos fios do telégrafo. As casas são todas de vidro, enfeitadas com festões e toda a espécie de brilhos; agora, todas são portas principais e cortinas de renda, pilares e degraus brancos. Mas o certo, lá vou eu, de novo para longe de Londres; estou de novo nos campos; vejo as casas, as mulheres, que penduram a roupa às árvores, e os pastos. Londres apresenta-se agora velada, acabando por se dobrar sobre si mesma e desaparecer. O ácido carbólico e a resina começam agora a perder o seu sabor. Cheira-me a milho e a nabos. Desfaço um embrulho de papel amarrado com um fio de algodão branco. As cascas de ovo rebolam para a depressão que separa os meus dois joelhos. As estações vão-se seguindo umas às outras. As mulheres beijam-se e ajudam-se mutuamente a carregar os cestos. Agora, já posso abrir a janela e deitar a cabeça de fora. O ar entra-me às golfadas pelo nariz e pela garganta – este ar fresco, este ar com sabor a sal e cheiro a nabos. E lá está o meu pai, de costas voltadas, a falar com um agricultor. Estremeço. Choro. Lá está o meu pai com as suas palavras. Lá está o meu pai.

– Sento-me muito quietinha no meu canto e lá vou para o Norte – disse Jinny. – O comboio faz muito barulho, mas é tão suave que esbate as vedações, aumenta o tamanho das encostas. Passamos por inúmeros sinais luminosos; fazemos a terra abanar ligeiramente de um lado para o outro. A distância concentra-se para todo o sempre num único ponto; e estamos condenados para todo o sempre a fendê-la, a obrigá-la a se distanciar. Os postes do telégrafo não param de nos surgir pela frente; abate-se um, eleva-se outro. Agora, rugimos e precipitamo-nos num túnel. Um cavalheiro levanta a janela. Vejo bolhas no vidro brilhante onde o túnel se reflecte. Vejo-o baixar o jornal. Sorri para o meu reflexo no túnel. Por sua livre e espontânea vontade, o meu corpo endireita-se ao sentir o seu olhar. O meu corpo vive uma vida que é só dele. Agora, o vidro negro da janela voltou a ser verde. Estamos fora do túnel. Ele lê o jornal. Mas já tocamos a aprovação dos nossos corpos. Lá fora existe uma sociedade de corpos, e o meu já lhe pertence; o meu já chegou à sala onde estão as cadeiras douradas. Olha, tudo dança, as janelas das villas e as cortinas que as enfeitam; e os homens estão sentados nas vedações dos campos de milho, com os seus lenços azuis atados ao pescoço; estão tão conscientes como eu de todo este êxtase e calor. Um deles acena à nossa passagem. Nos jardins destas villas existem caramanchões e pavilhões, e jovens em mangas de camisa a podar as roseiras. Um homem a cavalo vai galopando pelo prado. O animal dá um salto quando passamos. E o cavaleiro vira-se para nos olhar. Voltamos a nos encontrar no meio da escuridão. Recosto-me; entrego-me ao êxtase; imagino que no fundo do túnel entrarei num salão repleto de cadeiras, numa das quais me sentarei, sob os olhares de admiração de todos, com o vestido muito bem arranjado à minha volta. Mas aterro, quando levanto a cabeça encontro os olhos de uma mulher azeda, que suspeita que me deixo levar pelo êxtase. Com alguma impertinência, fecho o corpo bem à sua frente, como se de um guarda-sol se tratasse. O meu corpo abre-se e fecha-se quando quero. A vida está a começar. Entro agora nos segredos que esta para mim reservou.

– Estamos no primeiro dia das férias grandes – disse Rhoda. – E agora, à medida que o comboio passa por estas rochas vermelhas, por este mar azul, o trimestre, agora que chegou ao fim, ganha uma determinada forma atrás de mim. Vejo-lhe a cor. Junho foi branco. Vejo os campos repletos de margaridas brancas, vestidos brancos, e campos de tênis, cujos limites estão traçados a branco. Seguiu-se então uma tempestade muito forte. Certa noite, vi uma estrela cavalgar as nuvens e disse-lhe: “Consome-me!”. Estava-se em pleno Verão, depois da festa ao ar livre e da humilhação por que tive de passar. O vento e a tempestade deram cor ao mês de Julho. É sensivelmente a meio que, horrível, cadavérica, se deve posicionar a poça cinzenta no pátio, quando, de envelope na mão, me fizeram transportar uma mensagem. Aproximei-me da poça. Não a consegui atravessar. A noção de identidade abandonou-me. “Nada somos”, disse, depois do que caí. Fui arrastada como uma pena, transportaram-me através de túneis. Então, com muita cautela, dei um passo em frente. Encostei a mão a uma parede de tijolo. Foi a muito custo que voltei, recolhendo-me de novo no meu corpo, por cima do espaço cinzento e cadavérico da poça. Esta é então a vida com a qual estou comprometida.

E é assim que deixo para trás o trimestre do Verão. Através de choques intermitentes, rápidos como os saltos de um tigre, a vida emerge do mar, tecendo a sua crista escura. É com isto que estamos comprometidos; é a isto que estamos ligados, como corpos a cavalos selvagens. Contudo, inventamos engenhos destinados a encher as rochas e a disfarçar as fendas. Cá está o revisor. Aqui, estão dois homens; três mulheres; um gato dentro de um cesto; eu mesma, o cotovelo apoiado à calha da janela – isto é o aqui e agora. E lá vamos nós avançando através destas cearas douradas. As mondadeiras surpreendem-se por ficarem para trás. O comboio faz agora muito barulho e respira penosamente, pois vamos a subir, a subir cada vez mais. Acabamos por chegar ao cimo da charneca. Aqui, só vivem umas quantas ovelhas bravas, uns quantos pôneis felpudos; apesar disso, temos todos os confortos: mesas onde poisar os jornais; espaços destinados a segurar os copos. Levamos todas estas coisas connosco para o cimo da charneca. Estamos agora no ponto mais alto. O silêncio fecha-se atrás de nós. Se olhar por cima daquela cabeça careca, poderei ver o silêncio fechar-se e as sombras das nuvens perseguindo-se umas às outras ao longo da charneca vazia; o silêncio fecha-se atrás da nossa breve passagem. Chamo a isto o momento presente; este é o primeiro dia das férias grandes. Isto é apenas uma parte do monstro a que estamos ligados.

– Já saímos – disse Louis. – Estou agora em suspensão, sem estar seguro a coisa alguma. Estamos sem estar. Estamos a atravessar a Inglaterra de comboio. A Inglaterra vai passando através da janela, transformando-se de colina em bosque, em rios e salgueiros, e tudo apenas para voltar a ser cidade. E eu não tenho qualquer ponto concreto para onde possa ir. O Bernard e o Neville, o Percival, o Archie, o Larpent e o Baker, todos vão para Oxford ou Cambridge, para Edimburgo, Roma, Paris, Berlim, ou para qualquer universidade americana. Eu limito-me a avançar de forma vaga, destinado a fazer dinheiro de forma vaga. É por isso que uma sombra dolorosa, um sotaque familiar, poisa nestas sedas douradas, nestes campos de papoulas vermelhas, nestas espigas de trigo que nunca ultrapassam o limite, mantendo-se sempre dentro da vedação. Este é o primeiro dia de uma nova vida, mais um dos raios da roda que se eleva. Contudo, o meu corpo é tão errante como a sombra de uma ave. Deveria ser tão efêmero como uma sombra no pasto, ora desmaiando ora escurecendo, acabando por morrer no ponto onde encontra o bosque, e assim seria se não fizesse um enorme esforço mental para que as coisas não se passassem desta forma; obrigo-me a registrar o momento presente, quanto mais não seja no verso de uma poesia que nunca será escrita; a anotar esta pequena marca da longa história que começou no Egipto, no tempo dos faraós, quando mulheres levavam ânforas vermelhas para o Nilo. Tenho a sensação de que já vivi milhares de anos. Mas, se fechar os olhos, se não conseguir descobrir o ponto de encontro entre o passado e o presente, que estou sentado numa carruagem de terceira classe repleta de rapazes que vão passar férias a casa, a história da humanidade ficará despojada da imagem de um determinado momento. O seu olho, que deveria ver através de mim, fecha-se (isto se a cobardia ou o descuido me fizerem adormecer, enterrando-me no passado, na escuridão; ou o condescender, tal como o Bernard faz, contando histórias; ou gabando-me, tal como se gabam o Percival, o Archie, o John, o Walter, o Lathom, o Roper e o Smith), os nomes são sempre os mesmos, são os nomes dos fanfarrões. Estão-se todos a gabar, estão todos a falar, todos menos o Neville, que de vez em quando deixa o olhar escorregar por um dos cantos do livro francês que está a ler. E assim continuará a se esgueirar, penetrando em aposentos iluminados pela luz da lareira e onde se vêem muitas poltronas, tendo como companhia um amigo e muitos livros. Enquanto isso, estarei sentado num escritório, por detrás de um balcão. Acabarei por me tornar amargo e troçar deles. Invejarei o modo como seguir as suas tradições, escudando-se na sombra dos velhos teixos, enquanto eu terei de me misturar com funcionários públicos e gente de baixa condição, palmilhando as pedras da calçada.

No entanto, desmembrado e sem nada onde me possa segurar (está ali um rio; um homem pesca; vê-se ali um pináculo, ali a rua principal da aldeia com as suas janelas em arco) tudo me parece um sonho, sem contornos definidos. Estes pensamentos duros, esta inveja, esta amargura, nada disto me atinge. Sou o fantasma do Louis, um viandante efêmero, em cuja mente os sonhos são poderosos, e os jardins ecoam quando, de manhã bem cedo, as pétalas flutuam em profundezas insondáveis e as aves cantam. Mergulho nas águas límpidas da infância. O véu fino que a cobre estremece. Mas, lá na praia, o animal acorrentado não cessa de bater as patas.

– O Louis e o Neville – disse Bernard – estão ambos em silêncio. Estão ambos absortos. Ambos sentem a presença dos outros como se de um muro se tratasse, um muro que os isola. Todavia, se me retiro em companhia dos outros, as palavras de imediato se elevam dos meus lábios como se fossem anéis de fumo. É como se chegassem um fósforo a um monte de lenha; algo se incendeia. Entra agora um viajante, um homem idoso, de aparência próspera. De imediato sinto desejo dele me aproximar; há qualquer coisa na sua presença fria, não assimilada, que me desgosta profundamente. Não acredito em separações. Não somos seres individuais. Para mais, tenho vontade de alargar a minha colecção de observações valiosas a respeito da verdadeira natureza humana. Por certo que a minha obra constará de muitos volumes e abrangerá todos os tipos conhecidos de homens e mulheres. Encho a mente com todos os elementos de uma sala ou de uma carruagem, do mesmo modo que os outros enchem uma caneta de tinta-permanente. Tenho uma sede impossível de mitigar. Através de sinais imperceptíveis, os quais só mais tarde poderei interpretar, sinto que a sua atitude provocatória está prestes a esmorecer. A solidão que demonstra parece estar prestes a estalar. Acabou de dizer qualquer coisa a respeito de uma casa de campo. Um círculo de fumo eleva-se dos meus lábios (a respeito de colheitas) e gira em volta dele, obrigando-o a estabelecer contacto. A voz humana tem uma qualidade desarmante (não somos seres individuais, somos um todo). À medida que trocamos algumas frases a respeito de casas de campo é como se o polisse e tornasse real. Como marido é tolerante, se bem que infiel; trata-se de um pequeno mestre-de-obra com alguns homens a trabalhar para si. É importante na sociedade a que pertence; já atingiu a posição de conselheiro, e, com o tempo, talvez venha a ser presidente de câmara. Pendurado na corrente do relógio, está um qualquer enfeite de coral, uma espécie de dente arrancado pela raiz. Walter J. Trumble é o tipo de nome que lhe ficaria bem. Esteve na América com a mulher, a tratar de negócios, e um quarto de casal numa pensão importante custou-lhe o equivalente a um mês de salário. Um dos dentes da frente é de ouro.

Bom, o certo é que não tenho jeito para grandes reflexões. Preciso de sentir o concreto em tudo. Só assim me consigo apropriar do mundo. Contudo, dá-me a sensação de que uma frase tem existência própria. Mesmo assim, penso que é na completa solidão que se produz o melhor. As minhas palavras são cálidas e solúveis, carecem de um certo arejamento que não lhes posso dar. Mesmo assim, o meu método tem vantagens. Por exemplo, a vulgaridade de um indivíduo como Trumble faz com que o Neville se afaste. O Louis, caminhando com o passo alto das garças desdenhosas, vai apanhando palavras como se para isso se servisse de pinças. É certo que os seus olhos – ariscos, sorridentes, mas também desesperados – expressam algo que não conseguimos alcançar. Há qualquer coisa de exacto e preciso em relação ao Neville e ao Louis, algo que tanto admiro e que nunca possuirei. Começo agora a aperceber-me da necessidade de agir. Aproximamo-nos de um entroncamento; é aqui que devo mudar. Tenho de apanhar um comboio para Edimburgo. Sinto que não consigo encarar este facto – escapa-se-me por entre os dedos como um botão, como uma moedinha. Aqui vem o revisor pedir os bilhetes. Eu tinha um – claro que tinha um. Mas isso não interessa. Ou o encontro ou não o encontro. Procuro na carteira. Vasculho os bolsos. São coisas deste tipo que estão constantemente a interromper o processo no qual me vejo sempre envolvido, e que se prende com a procura da frase perfeita que se adeque a este momento.

– O Bernard foi-se embora sem bilhete – disse Neville. – Escapou-se como uma frase, um aceno. Falava com a mesma facilidade com que nos falava tanto a um canalizador como a um criador de cavalos. O canalizador aceitava-o com devoção. Se tivesse um filho como ele, pensava, arranjava maneira de o mandar para Oxford. Mas que sentiria o Bernard pelo canalizador? Será que não desejaria apenas continuar a sequência da história que nunca pára de contar a si mesmo? Começou-a em criança quando desfazia o pão em migalhas. Esta migalha era um homem, aquela uma mulher.

Somos todos migalhas. Somos todos frases na sua história, factos que anota na letra A ou B. Revela uma incrível compreensão quando conta a nossa história, excepto no que se refere ao que sentimos. O certo é que não precisa de nós. Tudo está à nossa mercê. Ali está ele, na plataforma, a acenar. O comboio partiu sem ele. Perdeu a ligação. Perdeu o bilhete.

Mas isso não importa. Acabará por falar com o empregado do bar a respeito do destino humano. Estamos de fora; ele já nos esqueceu; saímos do seu ângulo de visão; continuamos repletos de sensações, meio-doces, meio-amargas, pois, e, de certa forma, ele é digno de piedade, enfrentando o mundo com as suas frases incompletas e sem o bilhete. Mesmo assim, também merece ser amado.

Volto a fingir que estou a ler. Levanto o livro até este quase me tapar os olhos. Todavia, sou incapaz de ler frente a canalizadores e criadores de cavalos. Não tenho o poder de inspirar simpatia. Não admiro aquele homem; ele não me admira. Deixem-me ao menos ser honesto. Deixem-me denunciar este mundo fútil, oco, em paz consigo mesmo; estes assentos de pele de cavalo; estas fotografias a cores de molhes e paredões. É claro que poderia denunciar em voz alta a mediocridade deste mundo, que produz negociantes de cavalos que usam berloques de coral nas correntes dos relógios. Há em mim a capacidade de os consumir por completo. As minhas gargalhadas fá-los-ão revolver-se nos assentos; fá-los-ão uivar à minha frente. Não; eles são imortais. São eles quem triunfam. Farão com que nunca me seja possível ler Catulo numa carruagem de terceira classe. Farão com que em Outubro me refugie numa universidade, onde acabarei por me tornar professor; e ir até à Grécia dar palestras no Parténon. Seria melhor criar cavalos e viver numa daquelas casas vermelhas do que passar a vida a revolver-me nas caveiras de Sófocles e Eurípides, semelhante a uma larva, tendo por companheira uma esposa de vasta erudição, uma dessas mulheres das universidades. Apesar de tudo, será esse o meu destino. Sofrerei. Aos dezoito anos, sou capaz de mostrar uma tão grande dose de desprezo, que os criadores de cavalos me odeiam. É esse o meu triunfo; sou incapaz de compromissos. Não sou tímido; não tenho qualquer sotaque estranho. Ao contrário do Louis, não preciso de me preocupar com o que irão as pessoas pensar por o meu pai ser banqueiro em Brisbane”.

Aproximamo-nos do mundo civilizado. Já vejo os gasômetros. Lá estão os jardins municipais por onde passam linhas asfaltadas. Lá estão os amantes, deitados na relva sem qualquer pudor, as bocas apertadas umas contra as outras. O Percival deve estar quase na Escócia; por certo que o comboio onde viajava atravessa charnecas avermelhadas; por certo que deve estar a ver a linha composta pelas montanhas que marcam o início do país, bem assim como o muro romano. Deve estar a ler um livro policial e a entender tudo o que lá está.

O comboio abranda e alonga-se à medida que nos aproximamos de Londres, do centro, e o meu coração quase que salta, de medo, de satisfação. Estou prestes a encontrar... o quê? Que aventuras extraordinárias me esperarão por entre estas carrinhas dos correios, estes bagageiros, estes enxames de gente à espera de táxi? Sinto-me insignificante, perdido, mas também satisfeito. Paramos com um ligeiro solavanco. Vou deixar que os outros saiam antes de mim. Deixar-me-ei ficar sentado durante mais um instante antes de sair ao encontro daquele caos, daquele tumulto. Tentarei não antecipar o que está para vir. Sinto um enorme rugido nos ouvidos, qualquer coisa que, por baixo deste telhado de vidro, lembra o barulho do mar. Despejam-nos na plataforma com as malas na mão. O turbilhão faz com que nos separemos. O meu sentido de unidade, o desprezo que me caracteriza, quase desaparece. Sou arrastado pela multidão. Afasto-me da plataforma agarrado a tudo o que possuo – uma mala.

O Sol já nasceu. Barras de amarelo e verde incidem na praia, dourando as traves do barco carcomido e fazendo com que as algas emitam reflexos azul metalizado. A luz quase que atravessa as finas ondas que se estendem pela praia. A rapariga que abanou a cabeça, fazendo dançar todas as jóias, os topázios, as águas-marinhas, as contas cor de água com lampejos de fogo, desnudou agora a testa e, de olhos bem abertos, traça um caminho em linha recta por sobre as ondas. Os seus brilhos tremeluzentes escurecem; os seus abismos verdes aprofundam-se e escurecem, podendo ser atravessados por cardumes errantes de peixes. À medida que se quebram e recolhem, deixam atrás de si, na praia, uma orla composta por raminhos e cascas de árvore, palhas e pedaços de madeira, tal como se uma chalupa se tivesse quebrado contra as rochas, os marinheiros tivessem nadado para a terra, e, do alto do penhasco, vissem a frágil embarcação em que seguiam ser arrastada para a praia.

No jardim, as aves que até então haviam cantado de forma esporádica, anunciando a alvorada, ora nesta árvore ora naquele arbusto, cantavam agora em coro, alto e bom som; ora juntas (como se estivessem conscientes da companhia) ora a sós (como se para homenagear o pálido céu azul). Como se tivessem combinado, levantavam voo em conjunto quando viam um gato preto avançar por entre os arbustos; quando viam a cozinheira atirar mais uma pá de cinza para o monte já grande do dia anterior. O seu canto revelava medo, dor e apreensão, e também a alegria de terem conseguido escapar no instante preciso. Para mais, cantavam também de felicidade no ar fresco da manhã, voando alto por cima do ulmeiro, cantando em conjunto ao se perseguirem mutuamente, escapando-se, tentando agarrar-se enquanto voltejavam nos ares. E então, cansadas de voar e da perseguição, desceram devagar, com suavidade, acabando por poisar e se sentar em silêncio na árvore, no muro, com os olhos brilhantes sempre alerta, e as cabeças ora viradas nesta ou naquela direcção; vivos, despertos; profundamente conscientes de uma casa, de um determinado objecto.

Sem parar de olhar de um lado para o outro, começaram a examinar mais em profundidade, virando as cabeças para o nível inferior ao das flores, para as avenidas escuras que compõem o mundo obscuro onde as folhas apodrecem e as flores acabam por cair. Então, um dos pássaros, fazendo um voo rasante, ataca o corpo mole e indefeso de um verme monstruoso, bicando-o repetidas vezes até acabar por decidir deixá-lo apodrecer. Lá em baixo, entre as raízes, onde as flores apodreciam, e elevava-se nos ares toda a espécie de cheiros indicadores de morte; formavam-se gotas nos flancos inchados e entumecidos das coisas. A pele da fruta podre rebentava, e a matéria tornava-se demasiado espessa para correr. As lesmas deixavam atrás de si uma série de excreções amarelas, e, de vez em quando, um corpo amorfo com uma cabeça em ambas as extremidades abanava-se devagar de um lado para o outro. As aves de olhos dourados, poisadas entre as folhas, observavam de forma zombeteira toda aquela purulência, aquela viscosidade. De vez em quando, espetavam as pontas dos bicos na mistura pegajosa.

Também agora o sol atingiu a janela, tocando a cortina orlada a vermelho, começando a criar círculos e linhas. Agora, à luz da claridade que não parava de aumentar, a sua brancura poisava na bandeja; a lâmina condensava o seu brilho. As cadeiras e os armários apareciam de forma indistinta mais atrás, o que fazia com que, muito embora fossem objectos diferentes, parecessem ser incapazes de se separar. O espelho cobria a parede de branco. A flor que repousava no parapeito da janela tinha por companhia uma flor fantasma. Todavia, aquela espécie de espectro fazia parte da flor, pois que quando se soltava um botão, um outro abria na forma mais pálida, reflectida no espelho.

O vento começou a soprar. As ondas batiam com força na praia, como se fossem guerreiros de turbante, como se fossem homens de turbante com azagaias envenenadas que, erguendo os braços, avançassem contra rebanhos compostos por ovelhas brancas.

– Aqui, na faculdade, onde a agitação da vida e o modo como esta nos pressiona são tremendos, onde a excitação de viver se torna cada dia mais urgente, aqui a complexidade das coisas torna-se óbvia – disse Bernard. – A toda a hora descubro coisas novas. “Que sou eu?”, pergunto. Isto? Não, sou aquilo. Principalmente agora, que abandonei uma sala cheia de gente a conversar, e os meus passos solitários ressoam nas lajes, e vejo a lua elevar-se, sublime, indiferente, por sobre a antiga capela, é então que se torna claro que não sou um ser uno e simples, mas antes complexo e múltiplo. Em público, o Bernard não se cala; em privado, é misterioso. É por isso que eles não compreendem, pois por certo que estão a falar a meu respeito, dizendo que lhes escapo, que sou evasivo. Não compreendem que tenho de passar por muitas transformações; que tenho de comandar as entradas e as saídas dos diferentes homens que desempenham o papel de Bernard. Tenho uma capacidade anormal para me aperceber das circunstâncias. Sou incapaz de ler um livro no comboio sem perguntar: “Será ele um construtor? Será ela infeliz?”. Por exemplo, hoje apercebi-me claramente da amargura com que o pobre Simes (ele e a sua borbulha) sentia serem diminutas as hipóteses que tinha de impressionar o Billy Jackson. O facto doeu-me, e foi com ardor que o convidei para jantar. Ele talvez vá atribuir o que se passou a uma admiração que não é minha. Claro que estou a dizer a verdade. Mas, para além da sensibilidade própria das mulheres (e aqui estou a citar o meu biógrafo) Bernard possuía a sobriedade lógica de um homem. As pessoas que apenas retêm uma impressão das coisas, a qual costuma ser quase sempre boa (pois parece existir uma qualquer virtude na simplicidade), são as que mantêm o equilíbrio no meio da corrente. (De imediato vejo um cardume de peixes com os narizes apontados na mesma direcção.) Canon, Lycett, Peters, Hawkins, Larpent, Neville, todos são peixes a nadar no meio da corrente. Mas tu compreendes, tu, o meu eu, que respondes sempre que te chamo (seria terrível esperar e não obter resposta; só isso explicaria a expressão dos homens idosos que frequentam os clubes, há muito que deixaram de chamar por um eu que não responde), tu compreendes que aquilo que disse esta noite apenas representa uma parte superficial do meu ser. No fundo, é quando estou mais distante que me sinto mais integrado. Sou efusivamente simpático; também me sento, tal como um sapo num charco, recebendo com toda a calma seja o que for que o destino me reserva. Poucos de vós, que agora discutem a meu respeito, têm a dupla capacidade de sentir, de raciocinar. Repare, o Lycett continua a correr atrás das lebres; o Hawkins passou uma tarde atarefadissima na biblioteca. O Peters tem uma namoradinha na biblioteca móvel. Vocês estão todos comprometidos, envolvidos, absorvidos, e completamente activados dos pés à cabeça, todos menos o Neville, cuja mente é demasiado complexa para se interessar por uma única actividade. Eu também sou demasiado complexo. No meu caso, há algo que permanece a flutuar, sem se prender a nada.

Agora, como que para provar que sou susceptível à atmosfera que me rodeia, aqui, no meu quarto, quando acendo a luz e vejo as folhas de papel, a mesa, o roupão negligentemente poisado nas costas da cadeira, sinto que sou aquele homem simultaneamente ousado e prudente, aquela figura intrépida e perniciosa que, despindo o casaco com elegância, agarra na caneta e de imediato se põe a escrever à rapariga por quem está profundamente apaixonado.

Sim, tudo é propício. Estou no estado de espírito adequado. Posso escrever de um só fôlego a carta que tantas vezes comecei. Acabei de entrar; deixei cair o chapéu e a bengala; estou a escrever a primeira coisa que me veio à cabeça sem sequer me ter dado ao trabalho de endireitar o papel. Irá transformar-se num esboço brilhante, a respeito do qual ela deverá pensar ter sido escrito sem uma pausa, sem uma emenda. Reparem como as letras estão desordenadas – ali há mesmo um borrão. Tudo deverá ser sacrificado em nome da velocidade e do descuido. Utilizarei uma caligrafia pequena, apressada, exagerando a curva inferior do “y” e atravessando os “t” assim – com um traço. A data será apenas terça-feira, dezessete, ao que se seguirá um ponto de interrogação. Todavia, devo dar-lhe a impressão de que muito embora ele – pois este não sou eu – esteja a escrever de forma tão pouco cuidada, tão impetuosa, existe aqui uma subtil sugestão de intimidade e respeito. Terei de aludir a conversas travadas por ambos – trazer à baila uma qualquer cena conhecida. Contudo, tenho de lhe dar a impressão (e isto é muito importante) de que salto de uma coisa para outra com o maior à-vontade do mundo. Saltarei do trabalho para o homem que se afogou (tenho uma frase para isso), depois para Mrs. Moffat e os seus ditos (tenho algumas notas a esse respeito), e só então farei algumas reflexões aparentemente casuais, mas repletas de profundidade (é com frequência as críticas mais profundas serem feitas por acaso) sobre um qualquer livro que tenha andado a ler, um livro pouco conhecido.

Quero que ela diga quando escova o cabelo ou apaga a vela: “Onde é que li isto? Oh, na carta do Bernard!”. É na velocidade que reside o efeito quente, úmido, o fluxo continuo de frases de que tanto preciso. Em quem estarei a pensar? Em Byron, claro. Sou como ele em alguns aspectos. Talvez que um pouco de Byron me ajude. Talvez seja melhor ler uma ou duas páginas. Não; isto é maçador; fragmentado. Isto é demasiado formal. Comecei agora a sentir-lhe o ritmo (o ritmo é a característica mais importante da escrita). Agora, e sem proceder a qualquer paragem, inspirado por esta cadência melodiosa, vou escrever tudo de um só fôlego.

Porém, não o consigo. Sou incapaz de reunir a energia suficiente para proceder à transição. O meu verdadeiro eu sobrepõe-se à máscara. Se recomeçar a escrever, ela pensará: “O Bernard está a armar-se em intelectual; está a pensar no biógrafo” (o que até é verdade). Não, talvez seja melhor deixar a carta para amanhã, logo a seguir ao pequeno-almoço.

Deixa-me antes de encher o espírito com cenas imaginárias. Vamos partir do princípio que me pedem para ficar em Restover, Kings Laughton, a três milhas de Station Langley. No pátio desta casa em mau estado encontram-se dois ou três cães, esquivos, de pernas compridas. A entrada está coberta por tapetes desbotados; um cavalheiro de porte marcial fuma o seu cachimbo enquanto percorre o terraço, de cá para lá e de lá para cá. O tom reinante é o de um misto de pobreza aristocrática e de ligações com o exército. Em cima da escrivaninha vê-se o casco de um cavalo – o animal preferido. “Gosta de montar?” “Sim, adoro.” “A minha filha está à nossa espera na sala.”

O coração quase me salta do peito. Ela está sentada junto a uma mesa baixa; esteve a caçar; há qualquer coisa de maria-rapaz na forma como mastiga o pão. O coronel ficou com uma excelente impressão a meu respeito. Acha que não sou nem demasiado esperto nem demasiado rude. Também sei jogar bilhar. É então que entra na sala a simpática criada que trabalha para a família há mais de trinta anos. Os pratos estão enfeitados com aves de longas caudas, bem ao estilo oriental. Por cima da lareira pode ver-se o retrato da mãe, envergando um vestido de musselina. É com facilidade que descrevo aqui o que me rodeia. Mas será que consigo fazer com que as coisas resultem? Serei capaz de ouvir a sua voz – o tom exacto com que pronunciará a palavra “Bernard” assim que nos encontremos a sós? E depois, o que virá a seguir?

O certo é que preciso do estímulo alheio. A sós, junto à lareira apagada, consigo ver os pontos pouco consistentes da minha história. O verdadeiro romancista, o ser humano verdadeiramente simples, seria capaz de continuar a dar largas à imaginação até quase ao infinito. Ao contrário do que se passa comigo, nunca se integraria. Nunca se aperceberia do terrível facto de existirem inúmeras partículas de cinza repousando na grelha. É como se um estore se corresse por sobre o meu olhar. Tudo adquire características impenetráveis. Sou obrigado a parar de inventar.

Deixa-me fazer um balanço do que se passou hoje. Em termos gerais, até foi um bom dia. A gota que se forma logo pela manhã no telhado da alma é redonda e tem muitas cores. A manhã foi boa; passei a tarde a andar. Gosto de ver espirais elevando-se por entre os campos cinzentos. Gosto de olhar por entre os ombros das pessoas. Estavam-me sempre a vir imagens à mente. Fui imaginativo, subtil. Depois do jantar, mostrei-me dramático. Transformei em factos concretos muitas coisas a respeito dos nossos amigos comuns de que apenas me tinha apercebido vagamente. Foi com facilidade que fiz as minhas passagens. Agora, sentado de frente a este lume cinzento, com os seus promontórios de carvão escuro, talvez não seja má ideia interrogar-me a respeito de qual destas pessoas sou. Depende tanto da sala. Quando digo para mim mesmo a palavra “Bernard”, quem é que aparece? Um homem fiel, sardônico, desiludido, se bem que não amargurado. Um homem sem qualquer idade ou ocupação específicas. Ou seja, apenas eu. É ele quem agora pega no atiçador e sacode as cinzas, fazendo-as escoar-se através da grelha. “Meu Deus”, diz ele ao vê-las cair, “que fumarada!”, ao que a seguir acrescenta de forma lúgubre, mas que à laia de consolo: “A Mrs. Moffat virá varrer tudo isto”– acho que irei repetir muitas vezes esta frase ao longo da vida. “Oh, sim, a Mrs. Moffat virá varrer tudo isto.” “E o melhor será mesmo ir para a cama.”

– Num mundo que contém o momento presente – disse Neville –, para quê discriminar? Não deveríamos dar nomes a coisa alguma, já que, ao fazê-lo, estamos a alterá-la. Deixemo-las existir, esta margem, esta beleza, para que eu, por um só instante que seja, possa sentir prazer. O sol está quente. Contemplo o rio. Vejo as árvores manchadas e como que incendiadas pelo sol avermelhado do Outono. Os barcos vão passando a flutuar, ora através do vermelho ora através do verde. Lá longe, os sinos dobram, se bem que não pelos mortos. Estas campainhas são antes um louvor à vida. A felicidade faz com que uma folha caia. Oh, estou apaixonado pela vida! Reparem só como o salgueiro estende os ramos pelo ar! Reparem só como um barco recheado de jovens indolentes, fortes e inconscientes, passa através deles. Os rapazes têm um gramofone ligado e estão a comer fruta que tiram de dentro de sacos de papel. Atiram as cascas das bananas para o rio, e aquelas acabam por se afundar com um movimento semelhante ao das enguias. Tudo o que fazem é belo. Atrás deles estão galheteiros e ornamentos; os seus quartos estão cheios de remos e oleografias, mas acabaram por transformar tudo em beleza. O barco em que seguem passa por baixo da ponte. Há outro que se aproxima, de pronto seguido por mais outro. Lá está o Percival reclinado nas almofadas, monolítico, num repouso de gigantes. Não, é apenas um dos que em torno dele giram, imitando a sua postura monolítica. O próprio Percival não tem consciência dos seus truques, e, quando por acaso deles se apercebe, afasta-os com um gesto bem-humorado. Também eles passaram por baixo da ponte, pela fonte das árvores pendentes, através das suas delicadas tonalidades de amarelo e cor de ameixa. Sopra uma ligeira brisa; a cortina agita-se; por detrás dela surge uma série de edifícios graves, se bem que eternamente felizes, os quais parecem porosos, e não compactos; leves, apesar de construídos na turfa eterna. Começa agora a soar em mim um ritmo familiar; as palavras que até agora haviam estado adormecidas vão aos poucos elevando-se, sobem e descem, e voltam a subir e a descer. Sim, sou poeta. Só posso ser um grande poeta. Barcos cheios de jovens e árvores distantes, a fonte das árvores pendentes. Tudo isto vejo. Tudo isto sinto. Sinto-me inspirado. Os olhos enchem-se-me de lágrimas. Todavia, e apesar de me sentir assim, tento refrear o mais possível o frenesi que sinto. Este espuma. Torna-se artificial, pouco sincero. Palavras, palavras e palavras, observem o modo como galopam, como abanam as longas caudas e crinas, mas, e por qualquer falha minha, não me posso dar ao luxo de as montar; não posso voar junto com elas. Existe em mim um qualquer defeito, uma qualquer hesitação fatal, que, se não lhe prestar atenção, se transforma em espuma e falsidade. Contudo, mal consigo acreditar que não possa vir a ser um grande poeta. Se o que escrevi ontem à noite não é poesia, então o que é? Serei demasiado rápido, demasiado fácil? Não sei. Às vezes não me conheço, chegando mesmo a não saber como medir, contar e classificar os grãos que compõem aquilo que sou.

Há algo que me abandona; algo que se afasta de mim e vai ao encontro da figura que se aproxima, o que me faz ter a certeza de a conhecer, mesmo antes de ver quem é. Como é curioso o modo como nos transformamos na presença de um amigo – mesmo que este esteja longe. Como é útil o serviço que os amigos nos prestam quando nos procuram. No entanto, como é doloroso vermos o nosso eu adulterado, misturado, como que fazendo parte de outra criatura. À medida que ele se aproxima, transforma-se numa mistura do Neville com mais alguém – quem? – com o Bernard? Sim, é mesmo o Bernard, e é a ele que deverei colocar a questão: “Quem sou eu?”.

– Que estranho parecem os salgueiros quando vistos em conjunto – disse Bernard. – Eu era Byron, e as árvores eram as árvores de Byron, lacrimosas, de ramos pendentes, como que a lamentarem-se. Quando olhamos atentamente apenas para uma árvore, vemos que tudo combina, até mesmo os ramos mais diferentes, e, forçado pela tua claridade, vejo-me obrigado a dizer o que sinto.

Sinto a tua desaprovação, a tua força. Junto contigo, transformo-me num ser humano desordenado e impulsivo, cujo lenço está para sempre manchado com a gordura dos bolos. Sim, seguro um livro de Gray numa das mãos (trata-se do Elegy), enquanto com a outra agarro o último bolo, aquele que absorveu toda a manteiga e ficou agarrado ao fundo do prato. O facto ofende-te; sinto o teu descontentamento. Inspirado por ele e ansioso por voltar a cair nas tuas boas graças, começo a contar-te a forma como consegui arrancar o Percival da cama; descrevo os seus chinelos; a mesa e a vela gotejante que se encontram no quarto; os seus protestos e amuos quando o destapo; o modo como ele acaba por se enroscar como se fosse um casulo gigante. Descrevo tudo isto de tal forma, que, muito embora estejas embrenhado numa qualquer mágoa particular (pois há uma figura embuçada a presidir ao nosso encontro), acabas por ceder, soltas uma gargalhada e delicias-me. O meu encanto e o modo como me exprimo, inesperado e espontâneo, também me deliciam. Sempre que desnudo as coisas através das palavras, fico espantado com o quanto o meu poder de observação é bem mais desenvolvido que a linguagem que utilizo. À medida que falo, são cada vez mais as imagens que me vêm à cabeça. É isto mesmo que preciso, digo eu para comigo; sendo assim, por que razão não consigo acabar a carta que estou a escrever? O certo é que o meu quarto está sempre cheio de cartas por acabar. Começo a suspeitar de que quando estou contigo me encontro entre o mais dotado dos homens. Sinto-me invadido pelas delícias da juventude, da força, do sentido do que está para vir. Aos tropeções, mas cheio de fervor, vejo-me a zumbir em torno das mais variadas flores, descendo ao longo de corolas escarlates, fazendo com que os funis azuis ecoem os sons prodigiosos que provoco. Com que riqueza gozarei a juventude (pelo menos é assim que me fazes sentir!). E Londres. E a liberdade. Mas o melhor é parar. Não me estás a ouvir. Ao deslizares a mão pelo joelho, num gesto indescritivelmente familiar, é como se estivesses a fazer um qualquer protesto. É através destes sinais que diagnosticamos as doenças dos amigos. Pareces estar a dizer: “Por favor, na tua plenitude e fluência, não te esqueças de mim. Pára. Pergunta qual a razão que me leva a sofrer”.

Deixa-me inventar-te. (Fizeste tanto por mim.) Estás deitado nesta margem quente, neste incrível dia de Outubro, à hora em que o Sol se põe mas tudo é ainda claro, a ver passar os barcos através dos ramos despenteados do salgueiro. Queres ser poeta; queres amar. Mas a claridade esplêndida da tua inteligência, a honestidade impiedosa do teu intelecto (foi contigo que aprendi estas palavras latinas; tratam-se de qualidades que possuis e que me deixam pouco à vontade, revelando os pontos fracos do meu próprio eu) obrigam-te a parar. És incapaz de te deixar mistificar. Não te iludes com nuvens cor-de-rosa e amarelas.

Será que estou certo? Terei lido correctamente o gesto da tua mão esquerda? Se assim foi, deixa-me ver os teus poemas; com a mão por sobre as folhas, ontem à noite escreveste de forma tão inspirada, que agora te estás a sentir um tudo-nada idiota. O certo é que não confias na inspiração, nem na tua nem na minha. O melhor a fazer é passarmos a ponte, caminhar por baixo dos ulmeiros, e voltar ao meu quarto, onde, apenas com as paredes à nossa volta e as cortinas de sarja vermelha corridas, podemos manter longe de nós estas vozes que nos distraem, estes cheiros e sabores a lima e a outras vidas; a estas caixeirinhas insolentes que arrastam os pés; a estas olhadelas furtivas que nos são enviadas por uma qualquer figura vaga e indistinta – talvez a Jinny, talvez a Susan, ou seria antes a Rhoda, desaparecendo ao fundo da alameda? Mais uma vez, e apenas devido a uma ligeira piscadela de olhos, volto a adivinhar o que sentes; escapei-te; desapareci a zumbir como se fosse um enxame de abelhas, sem qualquer vestígio da tua capacidade de se fixar num único objecto sem sentir remorsos. No entanto, acabarei por voltar.

– Onde existem edifícios como estes – disse Neville –, não suporto a presença de caixeirinhas. Sinto-me ofendido pela sua tagarelice, pelos seus risinhos; é algo que perturba a minha calma, fazendo com que, em momentos da mais pura exaltação, me veja obrigado a lembrar a degradação humana.

Mas agora, depois das bicicletas, do odor a lima e das figuras que desapareciam nas esquinas, reconquistamos o território que nos pertence. Aqui, somos mestres da tranquilidade e da ordem; herdeiros de uma tradição orgulhosa. As luzes começam a abrir fendas na praça. O nevoeiro que se eleva do rio vai enchendo estes espaços antigos. Com toda a suavidade, vão-se agarrando às pedras esbranquiçadas. Nas encostas, as folhas tornaram-se pesadas, as ovelhas balam nos campos úmidos; contudo, no teu quarto estamos secos. Falamos na maior das intimidades. As chamas elevam-se e esmorecem, fazendo brilhar um qualquer puxador.

Tens andado a ler Byron. Sublinhaste as passagens que parecem estar de acordo com a tua personalidade. Descubro traços por baixo de todas as frases que parecem exprimir uma natureza, não só sardônica mas também apaixonada; uma impetuosidade que, semelhante a uma borboleta, se precipita contra um vidro duro. Quando pegaste no lápis, por certo que pensaste: “Eu também dispo a capa da mesma maneira. Eu também estalo os dedos no rosto do destino, desafiando-o”. Porém, Byron nunca fez chá como tu fazes, enchendo o bule de forma tal, que, quando pões a tampa, o líquido se espalha pela mesa. Existe agora no tampo da mesa uma espécie de lago castanho, e este espalha-se por entre os teus livros e papéis. Acabas por tentar ensopar o líquido, desajeitado, usando o lenço de assoar. Voltas a guardar o lenço no bolso – isso não é Byron; és tu; és de tal maneira tu que, daqui a vinte anos, quando formos ambos famosos, atacados pelo reumático e intolerantes, será precisamente por causa desta cena que te recordarei. E, se por acaso tiveres morrido, chorarei. Houve um tempo em que eras discípulo de Byron; talvez um dia o venhas a ser de Meredith; depois, hás-de ir a Paris durante as férias da Páscoa e voltarás de gravata preta, transformado em qualquer francês detestável de que nunca se ouviu falar. Deixarei então de ser teu amigo.

Limito-me a ser uma pessoa – eu. Não tento representar o papel de Catulo, a quem adoro. Sou o mais aplicado de todos os alunos, sempre agarrado a este dicionário ou àquele bloco de apontamentos, onde acabo por notar todas as formas curiosas de usar o particípio passado. Contudo, ninguém pode passar a vida a desbastar todas estas inscrições antiquíssimas. Deverei sempre correr o cortinado de forma a ver o livro que leio, semelhante a um bloco de mármore, única e exclusivamente à luz pálida da lâmpada? Seria de facto uma vida grandiosa; uma espécie de dependência da perfeição; seguir a curva da frase fosse ela para onde fosse, para os desertos, para as dunas, sem prestar qualquer atenção aos chamados que nos costumam esperar pelo caminho; ser sempre pobre e desamparado; fazer figuras ridículas em Picadilly.

Porém, sou demasiado nervoso para terminar as frases do modo mais apropriado. Falo muito depressa e ando de um lado para o outro, tentando ocultar a minha agitação. Odeio os lenços gordurosos que possuis – vais acabar por manchar o teu Don Juan. Não me estás a ouvir. Estás antes a falar a respeito de Byron. E enquanto vais gesticulando, ainda de capa e bengala, tento revelar um segredo que ainda ninguém sabe; estou a pedir-te (é isso que faço mesmo com as costas viradas para ti) para que tomes a minha vida nas mãos e me respondas se estou condenado a causar sempre má impressão em todos aqueles que amo.

Estou de costas viradas para o teu gesticular. Não, as minhas mãos não podiam estar mais sossegadas. É então que procuro um espaço vazio entre os livros da estante e aí coloco o teu exemplar do Don Juan. Preferiria ser amado, preferiria ser famoso, a perseguir a perfeição através da areia. Mas será que estou condenado a provocar a aversão alheia? Serei poeta? Toma, aceita. O desejo que se esconde atrás dos meus lábios, frios como chumbo, mais parece uma bala, algo que aponto às caixeiras, às mulheres, à falsidade e vulgaridade da vida (e isto precisamente porque a amo) e dirige-se na tua direcção. Apanha – é o meu poema.

– Ele disparou algo semelhante a uma seta – disse Bernard. – Deixou-me o seu poema. Ah, amizade, também eu colocarei flores entre as páginas dos sonetos de Shakespeare! Ah, amizade, como são penetrantes os teus dardos – ali, ali, mais uma vez ali. Voltou-se para mim, olhou-me bem nos olhos; deixou-me o seu poema. Todos os vapores se escoam através da chaminé do meu ser. Guardarei até à morte a confiança por ti demonstrada. Semelhante a uma onda de grandes dimensões, semelhante a uma coluna de águas pesadas, ele passou-me por cima (ou pelo menos a sua presença devastadora) e deixou a descoberto todos os seixos existentes na praia que é a minha alma. Foi humilhante; vi-me transformado numa série de pequenas pedras. Desapareceram todas as semelhanças. Tu não és o Byron; és apenas tu mesmo. É tão estranho que alguém nos tenha obrigado a ficar reduzidos a um único ser.

É tão estranho sentir que a linha que se estende a partir de nós vai avançando ao longo dos espaços enevoados que constituem o mundo exterior. Ele já partiu. Eu fiquei, segurando o seu poema. Entre nós existe esta linha. Contudo, é tão reconfortante saber que aquela presença estranha deixou de se fazer sentir, que deixei de ser observado! E tão bom correr os estores e admitir que não está mais ninguém presente, sentir que todas aquelas figuras familiares que ele e a sua força superior fizeram fugir, regressam dos cantos escuros onde se refugiaram. Os espíritos observadores e trocistas que, mesmo neste momento, de crise, zelaram por mim, voltam a casa. Com a sua ajuda, sou; o Bernard; sou Byron; isto, aquilo, aquele outro. Escurecem o ar e tornam-me mais rico com as suas atitudes trocistas, os seus comentários, obscurecendo a simplicidade deste momento de emoção. É que eu tenho mais personalidade do que aquela que o Neville julga. Não somos tão simples como aquilo que os nossos amigos gostariam que fôssemos. No entanto, amar é simples.

Eles regressam, os meus companheiros, a minha família... Agora, a ferida aberta pelo Neville está prestes a sarar. Estou praticamente completo; reconheço o quanto sou alegre fazendo entrar em cena tudo o que o Neville ignora a meu respeito. Ao afastar as cortinas para observar o que se passa lá fora, sinto que o facto pouco ou nenhum prazer lhe daria; mas a mim faz-me rejubilar. (Servimo-nos dos amigos para medir o quanto valemos.) A minha visão abrange aquilo que o Neville é incapaz de alcançar. Lá fora há quem cante canções de caça. Estão a fazer uma espécie de corrida com os perdigueiros. Os rapazinhos de boné não param de bater nos ombros uns dos outros e de se gabar. Todavia, o Neville, evitando todo o tipo de interferência e semelhante a um conspirador, escapa-se sorrateiramente para o quarto. Vejo-o afundar-se na cadeira e olhar para as chamas da lareira, que, durante breves instantes, assumiu uma solidez arquitectónica. Pensa no quanto seria bom se a vida pudesse assumir essa permanência, se a vida pudesse apresentar a mesma ordem – pois aquilo que ele mais deseja é a ordem, detestando a minha desordem byroniana. É então que corre a cortina e o fecho da porta. Os seus olhos (pois o certo é que o rapaz está apaixonado; a figura sinistra do amor presidiu ao nosso encontro) enchem-se de desejo; enchem-se de lágrimas. Agarra no atiçador e, com um só gesto, destrói a aparência momentânea de solidez que até então caracterizou os carvões incandescentes. Tudo muda. A juventude e o amor. O barco passou através do arco constituído pelos salgueiros e está agora debaixo da ponte. O Percival, o Tony, o Archie, e talvez mais um ou outro, irão para a Índia. Nunca mais nos veremos. Estende então a mão para o bloco de apontamentos – um caderno grosso e embrulhado em papel mosqueado – e começa a escrever febrilmente, imitando o poeta que mais admira de momento.

Porém, eu quero ficar; debruçar-me à janela; escutar. Lá vem de novo o refrão. Os rapazes estão agora a partir louça – trata-se de algo que também faz parte da convenção. O refrão, semelhante a uma avalancha de enormes rochas, assalta brutalmente as velhas árvores, e deságua num abandono esplêndido em todos os precipícios. E lá vão eles a rolar, a galopar, atrás dos cães, atrás das bolas de futebol; sobem e descem como se fossem sacos de farinha agarrados a remos. As divisões desapareceram – agem como um único homem. O vento forte de Outubro arrasta o tumulto pelo pátio, transformando-o numa malha de som e silêncio. Estão de novo a partir louça – também isso faz parte da convenção. Uma mulher de idade segue para casa avançando a passo incerto, ao mesmo tempo que transporta uma mala. Vê-se que tem receio que a ataquem e a deixem caída na sarjeta. Mesmo assim, acaba por parar como se quisesse aquecer as mãos deformadas pelo reumático à chama quente da fogueira, de onde se elevam inúmeras faúlhas e pedaços de papel. A velhota pára frente à janela iluminada. É isso que sinto, mas o Neville é incapaz de o fazer. É essa a razão que o fará alcançar a perfeição, enquanto eu me limitarei a deixar atrás de mim uma série de frases imperfeitas, inundadas de areia.

Vem-me agora à mente a imagem do Louis. Que luz maléfica, se bem que inquiridora, lançaria ele sobre este entardecer outonal, sobre este partir de objectos de louça e este trautear de canções de caça, sobre o Neville, Byron, e a vida que aqui levamos? Os seus lábios finos estão como que cosidos; o rosto é muito pálido; encontra-se num escritório, embrenhado na leitura de um qualquer documento oficial obscuro. “O meu pai, que é banqueiro em Brisbane – apesar de se envergonhar dele, está sempre a falar no pai – falhou”. – É por isso que se encontra sentado no escritório, o Louis, o melhor aluno da escola. Todavia, e dado que ando sempre à procura de contrastes, é com frequência que vejo que tem os olhos trocistas, selvagens, poisados em nós, somando-nos como se fôssemos algarismos insignificantes numa qualquer conta de grandes dimensões, cujo total não pára de perseguir. E, mais cedo ou mais tarde, molhando em tinta vermelha o aparo de uma qualquer bela caneta, a soma estará completa; saberemos qual o nosso total; contudo, isso não chegará.

Bang! Acabaram de atirar uma cadeira contra a parede. Sendo assim, estamos condenados. O meu caso é igualmente dúbio. Não estarei eu a deixar-me levar por emoções injustificadas? Sim, quando me debruço à janela e deixo cair o cigarro, fazendo-o girar levemente até poisar no chão, sinto que o Louis está também a observá-lo. E diz: “Isso significa qualquer coisa. Mas quê?”.

– As pessoas continuam a passar – disse Louis. – Estão sempre a passar frente à janela deste restaurante. Automóveis, carrinhas, autocarros; e mais uma vez autocarros, carrinhas, automóveis, todos passam pela janela. Como pano de fundo, apercebo-me da existência de lojas e casas, e também das espirais cinzentas de uma igreja. Bem à minha frente encontram-se prateleiras de vidro onde repousam pratos carregados de bolos de leite e sandes de fiambre. Tudo isto é como que tornado difuso pelo vapor que se eleva de um bule de chá. Bem no centro do restaurante paira um cheiro gorduroso a carne de vaca e carneiro, a salsichas e a papas. Encosto o livro a uma garrafa de molho de Worcester e tento parecer-me com todos os outros.

Porém, nunca o consigo. (Eles continuam a passar, continuam a passar numa procissão desordenada.) Não consigo ler, nem mesmo pedir que me tragam a carne, com um mínimo de convicção. Estou sempre a repetir “Sou um inglês médio; sou um funcionário público médio”, mas acabo sempre por olhar para o homem sozinho da mesa ao lado para me certificar do que ele faz. De rostos flexíveis e peles elásticas, a multiplicidade das sensações com que se debatem fazem-nos estar constantemente a estremecer. Semelhantes a macacos, bastante engordurados como convém à situação. Enche demasiado a sala a um deles. Vendo-o por dez libras. As pessoas continuam a passar; continuam a passar recortando-se contra as espirais da igreja e as sandes de fiambre. A linha condutora dos meus pensamentos é profundamente afectada por esta desordem. É por isso que não me consigo concentrar no jantar. “Vendo-o por dez libras. É um móvel bonito mas enche-me demasiado a sala.” Precipitam-se para as águas como mergulhões com as penas escorregadias devido ao óleo. Todos os excessos que estão para além daquela norma podem ser considerados como vaidade. É isto o meio-termo; é isto a média. Enquanto isso, os chapéus não param de balançar para baixo e para cima; a porta não pára de se abrir e fechar. Tenho consciência do fluxo, da desordem; do aniquilamento e do desespero. Se isto é tudo, então não vale a pena. Mesmo assim, não deixo de sentir o ritmo do restaurante. É como se de uma valsa se tratasse, rodopiando, sempre a rodopiar. As criadas, balançando travessas, não param de girar leite-creme; entregam-nos na altura certa, ao cliente certo. Os indivíduos normais, incluindo o ritmo delas nos seus próprios ritmos (“Vendo-o por dez libras; aquilo está-me a encher a sala”) aceitam as saladas, os damascos, os pratos de leite-creme. Onde estará, pois, a brecha dentro de toda esta continuidade? Através de que fissura poderemos nós antecipar a catástrofe? O círculo não se quebra; a harmonia está completa. É aqui que se situa o ritmo central; é aqui que se encontra a mola comum. Vejo-a expandir e contrair, apenas para de pronto voltar a se expandir. Contudo, estou de fora. Se falo, imitando a sua pronúncia, ficam de orelhas arrebitadas, à espera que volte a falar, pois estão desejosos de saber de onde venho – se do Canadá se da Austrália. Eu, que acima de tudo desejo ser amado, sou um estranho, uma criatura que não pertence ao meio. Eu desejaria sentir fechar-se sobre mim as ondas protectoras da vulgaridade, consegui ver pelo canto do olho um qualquer horizonte distante; apercebo-me de um mar de chapéus agitando-se para cima e para baixo, numa desordem permanente. É a mim que se dirigem as queixas dos espíritos errantes dos distraídos (uma mulher de dentes estragados tropeça junto ao balcão). “Leva-nos de volta ao rebanho, a nós, que caminhamos de forma tão dispersa, baloiçando-nos para cima e para baixo, tendo como pano de fundo vitrinas com pratos de sandes de fiambre. Sim, acabarei por vos reduzir à ordem.

Vou ler o livro que está encostado à garrafa de molho de Worcester. Trata-se de um livro com alguns anéis bastante apertados, algumas afirmações perfeitas, poucas palavras, mas poesia. Vós, todos vós, ignoram-no. Já se esqueceram do poeta morto. E eu não as posso traduzir para vós de forma a que o poder que delas emana vos faça ver com clareza a falta de objectivos que vos caracteriza; o quanto o vosso ritmo é barato e inútil; removendo assim aquela degradação que, a não se aperceberem da vossa falta de objectivos, vos tornará senis mesmo quando jovens. A minha missão será traduzir este poema de forma a torná-lo acessível a todos. Eu, o companheiro de Platão e de Virgílio, também baterei à porta de painéis de carvalho. Não me submeterei a este desfile inútil de chapéus de coco e cartolas, bem assim como a todas as plumas que ornamentam as cabeças das mulheres. (A Susan, a quem tanto respeito, limita-se a usar um chapéu de palha durante o Verão, quando o sol é forte.) E os grãos de vapor que escorrem em gotas desiguais pelo caixilho da janela; e as paragens e os arranques bruscos dos autocarros; e os tropeções junto ao balcão; e as palavras que vagueiam de forma lúgubre e sem qualquer sentido humano; tudo isto porei em ordem.

As minhas raízes atravessam veios de chumbo e prata, locais úmidos e pântanos que exalam odores, até atingirem um nó feito de raízes de carvalho, bem no centro do mundo. Surdo e cego, com os ouvidos cheios de terra, mesmo assim escutei rumores de guerras; e também de rouxinóis; senti o som dos passos de inúmeras colunas de soldados precipitando-se em defesa da civilização, mais ou menos como se fossem aves migratórias em busca do Verão; vi mulheres transportando ânforas vermelhas até às margens do Nilo. Acordei num jardim, com uma pancada na nuca e um beijo quente; era a Jinny. Lembro-me de tudo isto como alguém que se lembra de gritos confusos e do desmoronar de colunas negras e vermelhas no decorrer de um qualquer confronto nocturno. Não paro de dormir e de acordar. Ora durmo; ora acordo. Vejo o bule de chá; as vitrinas repletas de sandes de um amarelo-pálido; os homens de casacões compridos empoleirados nos bancos junto ao balcão; e também, bem atrás deles, a eternidade. Trata-se de uma imagem que me foi gravada na carne por um homem encapuzado empunhando um ferro em brasa. Vejo este restaurante recortar-se contra as asas multicoloridas das aves que pertencem ao passado. É por isso que comprimo os lábios, que tenho uma palidez doentia; é daí que vem o meu aspecto pouco simpático e a amargura com que viro o rosto na direcção do Bernard e do Neville, que passeiam por entre os teixos, que herdam cadeiras de baloiço; e que correm as cortinas para que a luz das lâmpadas incida sobre os livros que estão a ler.

A Susan merece o meu respeito porque sabe coser. Está sentada a costurar à luz de uma pequena lâmpada, numa casa onde os campos de milho chegam quase até à janela, facto que me dá bastante segurança. O certo é que sou o mais fraco e o mais novo de todos eles. Sou uma criança que olha para os pés e para os pequenos canais que a água abriu no cascalho. Digo para mim mesmo que isto é um caracol e aquilo uma folha. Delicio-me com os caracóis; delicio-me com as folhas. Serei sempre o mais jovem, o mais inocente, o mais crédulo. Vocês estão todos protegidos. Eu estou nu. Quando a empregada se desloca, é para vos entregar os damascos e o leite-creme sem qualquer hesitação, como uma irmã. Vocês são seus irmãos. Mas quando me levanto, sacudindo as migalhas do sobretudo, coloco uma gorjeta demasiado elevada, um xelim, bem debaixo do prato, pois assim ela só a poderá encontrar depois de eu ter saído, e o seu desprezo, revelado por uma gargalhada, só me poderá atingir depois de eu ter passado as portas de vaivém.

– O vento levanta a persiana – disse Susan. – Jarras, taças, tapetes, e até mesmo a velha poltrona coçada, aquela que tem um buraco, tudo se tornou distante. As mesmas listras desmaiadas espalham-se pelo papel de parede. As aves deixaram de cantar em coro, e apenas uma teima em o fazer, junto à janela do quarto. Vou calçar as meias e esgueirar-me em silêncio pela porta, atravessar a cozinha e o jardim, passar junto à estufa e acabar no prado. É ainda muito cedo. A charneca está coberta de nevoeiro. O dia é duro e áspero como uma mortalha de linho. Porém, acabará por se tornar macio e por aquecer. A esta hora, a esta hora matinal e calma, julgo-me o campo, o celeiro, as árvores; os bandos de aves pertencem-me, o mesmo se passando com esta jovem lebre, que dá um passo no preciso momento em que a estou prestes a pisar. Minha é a garça que, com indolência, estende as enormes asas; a vaca que vai ruminando à medida que avança; o vento e as andorinhas ariscas; o vermelho desmaiado do céu e o verde em que este acaba por se transformar; o silêncio e os sinos a tocar; o chamamento do homem que atrela os cavalos ao carro, tudo me pertence.

Não posso ser dividida, separada. Mandaram-me para a escola; mandaram-me para a Suíça para completar a minha educação. Odeio linóleo; odeio figueiras e montanhas. Deixem-me antes deitar neste solo liso, tendo por cima de mim um céu muito pálido onde as nuvens se movem devagar. O carro vai-se tornando cada vez maior à medida que sobe a estrada. As aves juntam-se no meio do correio – ainda não precisam de voar. O fumo vai-se elevando. A rigidez do amanhecer vai desaparecendo. O dia começa a se agitar. Assiste-se ao regressar da cor. As cearas e o dia vão-se tornando amarelos. A terra pesa bastante por baixo dos pés.

Mas, afinal, quem sou eu, esta pessoa que se encosta ao portão e observa o nariz do cão que a acompanha? Às vezes penso (ainda não cheguei aos vinte) que não sou uma mulher, mas antes a luz que incide neste portão, no solo. Por vezes, penso ser as estações do ano, Janeiro, Maio, Novembro; a lama, o nevoeiro, a alvorada. Não posso ser empurrada para o meio dos outros sem me misturar com eles. Contudo, apoiada ao portão, sinto um peso que se formou junto a mim e me acompanha. Na Suíça, quando estava na escola, formou-se em mim qualquer coisa, qualquer coisa de forte.

Nada de suspiros e gargalhadas, de rodeios e frases ingênuas; nada que se compare à estranha forma de comunicar característica da Rhoda, o modo como ela nos olha por cima do ombro quando nos avista; nem as piruetas da Jinny, uma criatura que parece ter sido feita de uma só peça, tronco e membros. O que tenho para dar é pesado. Não consigo flutuar com suavidade nem misturar-me com os outros. Prefiro o olhar dos pastores que encontro no caminho; o olhar das ciganas que alimentam os filhos ao lado das carroças, exactamente do mesmo modo que amamentarei os meus filhos. Já não falta muito para que, ao calor do meio-dia, com as abelhas a zumbir em torno das malvas, o meu amado entre em cena. Por certo que estará à sombra do cedro. Responderei à sua saudação com apenas uma palavra. Dar-lhe-ei aquilo que se formou em mim. Terei filhos, criadas de avental, camponeses com forquilhas, uma cozinha para onde levarão os cordeiros doentes para que se possam aquecer, onde os presuntos e as réstias de cebolas brilharão à luz. Serei como a minha mãe, silenciosa no seu avental azul, fechando à chave todos os armários.

Estou com fome. Vou chamar o cão. Vêm-me à ideia imagens de côdeas, miolo de pão, manteiga e pratos brancos colocados numa divisão cheia de sol. Voltarei a casa através dos campos. Caminharei por entre a erva com passadas fortes e regulares, ora desviando-me para evitar uma poça ora saltando por cima de um arbusto. Vão-se formando gotas de suor na minha camisa grosseira; os sapatos tornam-se flexíveis e escuros. O dia já não revela sinais de dureza; antes adquiriu tonalidades cinzentas, verdes e ocres. As aves deixaram de se concentrar na estrada.

Regresso, qual raposa ou gato em cujas peles a geada deixou manchas cinzentas e cujas patas endureceram devido ao contacto com a terra dura. Abro caminho através das couves, o que faz com que as suas folhas estalem e o orvalho que nelas repousa vá caindo aos poucos. Sento-me à espera de ouvir os passos do meu pai arrastando-se através da passagem, apertando uma qualquer erva entre os dedos. Vou enchendo chávena após chávena, enquanto as flores que ainda não abriram se mantêm muito direitas na jarra que se encontra na mesa, por entre os frascos de compota, os pãezinhos e a manteiga.

Mantemo-nos em silêncio.

Vou até ao armário e pego nas sacas úmidas onde se guardam as sultanas; espalho a farinha na mesa da cozinha, a qual está impecavelmente limpa. Amasso; estendo; bato; enfio as mãos no interior quente da massa. Deixo que a água fria se espalhe por entre os meus dedos. O lume ruge; as moscas zumbem em círculos. Todas as minhas passas-de-corinto e bagos de arroz, os saquinhos azuis e prateados, tudo isto voltou a ser fechado no armário. A carne está ao lume; a massa para o pão vai aumentando de tamanho por baixo de uma toalha limpa, adquirindo o formato de uma cúpula. De tarde, desço até ao rio. O mundo está-se a reproduzir por inteiro. As moscas vão voando de erva em erva. As flores estão pesadas devido ao pólen. Os cisnes vogam pelas águas na mais perfeita das ordens. As nuvens, agora quentes e manchadas de sol, voam por sobre as colinas, deixando um rasto dourado na água e no pescoço dos cisnes. Levantando uma pata a seguir à outra, as vacas vão ruminando enquanto percorrem o pasto. Vasculho a erva à procura de um cogumelo branco; parto-lhe o caule e apanho a orquídea cor de rubi que cresce junto a ele, acabando por juntar ambas as coisas ao pé uma da outra, a terra ainda agarrada às raízes. Está na hora de ir para casa preparar o chá para o meu pai e servi-lo na mesa onde se encontram as rosas vermelhas.

É então que chega a noite e se acendem as luzes. E quando a noite chega e as luzes se acendem, a hera como que fica iluminada por um halo amarelo. Sento-me junto à mesa com a minha costura. Penso na Jinny; na Rhoda; e ouço o ruído provocado pelas rodas das carroças puxadas pelos cavalos da quinta ao regressarem a casa; o vento nocturno traz-me o rugido do trânsito. Olho para as folhas que estremecem no jardim às escuras e penso: “Estão todos em Londres a dançar. A Jinny está a beijar o Louis.”

– É tão estranho – disse Jinny – que as pessoas durmam, que apaguem as luzes e subam as escadas. A estas horas já tiraram os vestidos e puseram camisas de dormir brancas. Já não há luzes em nenhuma daquelas casas. Os contornos das chaminés recortam-se contra o céu; na rua, umas duas lâmpadas ardem do modo que lhes é peculiar quando delas ninguém precisa. Nas ruas só se vêem alguns pobres apressados. Nesta rua não existe ninguém; o dia terminou. Há alguns polícias nas esquinas. No entanto, só agora começou a noite. Sinto-me brilhar na escuridão. Sinto o toque da seda nos joelhos. Esfrego suavemente uma perna contra a outra. Sinto no pescoço o toque frio das pedras do colar. Sinto os pés comprimidos dentro dos sapatos. Estou sentada muito direita para não tocar com o cabelo no espaldar da cadeira. Estou enfeitada, estou preparada. Esta é apenas uma pausa momentânea; o instante escuro. Os violinistas acabaram de levantar os arcos.

Neste momento ouço um carro parar. Faz-se luz numa faixa do pavimento. A porta vai-se abrindo e fechando. As pessoas estão a chegar; não falam; limitam-se a entrar. Ouço o som sibilante provocado pelas capas deslizando pelos ombros dos que as despem. Trata-se do prelúdio, do princípio. Olho, espreito, espalho pó no rosto. Tudo está certo; devidamente preparado. O meu cabelo descreve uma curva. Os meus lábios têm o devido tom de vermelho. Estou pronta a me juntar aos homens e mulheres que percorrem a escada, os meus pares. Passo por eles e exponho-me aos seus olhares do mesmo modo que eles se expõem ao meu. Semelhantes a relâmpagos, olhamo-nos sem mostrar sinais de reconhecimento ou de que estamos dispostos a abrandar. A comunicação é feita através dos corpos. É este o meu chamamento. É este o meu mundo. Tudo está pronto e decidido; os criados, sempre, sempre presentes, pegam no meu nome, no meu nome fresco e desconhecido, e lançam-no à minha frente. Entro.

Cá estão as cadeiras douradas nas salas vazias e como que à espera, e flores (maiores e muito mais paradas que as naturais) recortando-se contra as paredes em manchas verdes e brancas. Foi com tudo isto que sonhei; foi tudo isto que pressagiei. Pertenço a este mundo. Piso com naturalidade as carpetes espessas. Deslizo com facilidade por sobre os soalhos encerados. Sob esta luz, sob este cheiro, começo a me desdobrar, semelhante a um feto, cujas folhas se vão desdobrando aos poucos. Paro. Tomo consciência deste mundo. Entre as formas brilhantes das mulheres, verdes, cor-de-rosa, cinzento-pérola, encontram-se os corpos direitos dos homens. Estão vestidos de preto e branco; estão como que ocultos por detrás das roupas. Volto a ver a imagem de um túnel reflectida na janela. Aquela acaba por se mover. À medida que avanço, as figuras pretas e brancas daqueles homens desconhecidos seguem-me com os olhos; quando me viro para olhar para um quadro, viram-se também. As suas mãos como que esvoaçam em direcção aos laços que usam no pescoço. Tocam nos coletes, nos lenços de assoar. São muito jovens. Estão desejosos de causar boa impressão. Sinto nascer em mim milhares de capacidades. Sou maliciosa, alegre, lânguida, melancólica. Apesar de estar como que enraizada, sinto-me flutuar. Com um aspecto completamente dourado, flutuo naquela direcção e digo a este indivíduo: “Vem”. Ao me encolher, digo “Não” àquele outro. Há um que se afasta do grupo que se encontra debaixo do camarim de vidro. Aproxima-se. Vem na minha direcção. Trata-se do momento mais excitante que alguma vez vivi. Flutuo. Ondulo. Estendo-me como uma planta aquática, ora nesta ora naquela direcção, mas sempre presa a um ponto fixo, pois só assim ele poderá vir ao meu encontro. “Vem”, digo, “vem”. Pálido, de cabelo escuro, aquele que se aproxima é melancólico, romântico. E eu mostro-me maliciosa, volúvel e caprichosa, precisamente porque ele é melancólico e romântico. Cá está ele, mesmo ao meu lado.

Agora, com um ligeiro puxão, mais ou menos como uma lasca que é arrancada a uma pedra, sou arrastada: caio junto com ele; sou levada para longe. Deixamo-nos levar por esta doce corrente. Saímos e entramos ao som desta música hesitante. As pedras impedem agora o deslize da corrente da dança; esta agita-se, estremece. Acabamos por ser compelidos a nos juntar a esta enorme figura. Ela mantém-nos juntos; não nos conseguimos escapar das suas paredes sinuosas, hesitantes, abruptas. Os nossos corpos, forte o dele, leve o meu, são forçados a se manter dentro deste corpo. Depois, como que para nos dar a ilusão de espaço, toma-nos nas suas dobras sinuosas e embala-nos de um lado para o outro. De súbito, a música pára. Apesar disso, o meu sangue não pára de correr. A sala gira em meu redor.

Acaba por parar.

Anda, vamos passear por entre as cadeiras douradas. O corpo é mais forte do que aquilo que pensava. Estou mais tonta do que o que era suposto estar. Ninguém mais me interessa a não ser este homem, cujo nome desconheço. Lua, achas que somos aceitáveis? Não seremos nós encantadores, eu de cetim ele de preto e branco? Os meus iguais bem me podem agora olhar. Encaro-vos bem de frente, homens e mulheres. Pertenço ao vosso mundo. O vosso mundo é o meu. Pego agora neste cálice esguio e bebo um gole do seu conteúdo. O vinho tem um sabor drástico, ácido. Sou obrigada a estremecer enquanto bebo. Aromas e flores, luz e calor, tudo aqui se concentra num líquido amarelo, fogoso. Mesmo por trás das minhas costas, qualquer coisa seca e de olhos muito grandes, fecha-se sobre si mesma, embalando-se suavemente até adormecer.

Chama-se a isto êxtase, alívio. A alavanca que me impedia de falar abranda a pressão que exercia. As palavras agrupam-se e acabam por jorrar, umas a seguir às outras. A ordem é perfeitamente arbitrária. É como se saltassem para os ombros umas das outras. Os seres sós e solitários tropeçam e transformam-se em muitos. Não interessa o que digo. Semelhante a uma nave a esvoaçar, uma frase atravessa o espaço vazio que se estende entre nós. Acaba por poisar nos lábios dele. Volto a encher o copo. Bebo. Desce um véu entre nós. Encontro espaço no calor e na privacidade de uma outra alma. Encontramo-nos ambos num ponto muito alto, num qualquer desfiladeiro a pino. Melancólico, ele deixa-se ficar no ponto mais elevado do trilho. Inclino-me. Pego numa flor azul e, em bicos dos pés para o poder alcançar, prendo-lha no casaco. Pronto! Trata-se do meu momento de êxtase. E agora já passou.

Invadem-nos a preguiça e a indiferença. As pessoas continuam a passar. Perdemos consciência dos nossos corpos unidos, ocultos por sob a mesa. Também gosto de homens louros, de olhos azuis. A porta abre-se. A porta não pára de se abrir. Digo para mim mesma que, da próxima vez que ela se abrir, o curso da minha vida mudará. Quem é que acaba de entrar? Oh, trata-se apenas de um criado carregado de copos. Aquele é já um senhor de idade – junto a ele não passaria de uma criança. Aquela é uma grande dama – a seu lado teria de fingir.

Vejo algumas raparigas da minha idade, em relação às quais sinto um antagonismo respeitável. Estou entre os meus. Pertenço a este mundo. É neste facto que reside o meu risco, a minha aventura. A porta abre-se. Oh, vem, digo eu a este, emitindo sinais dourados com todo o corpo. “Vem”, e ele aproxima-se de mim.

– Mover-me-ei por trás deles – disse Rhoda –, como se tivesse visto alguém conhecido. Contudo, não conheço ninguém. Afastarei a cortina para ver melhor a Lua. O esquecimento acalmará a agitação em que me debato. A porta abre-se; o tigre salta. A porta abre-se; o terror esgueira-se por entre ela; terror e mais terror, perseguindo-me. Melhor será visitar às escondidas os tesouros que separei. No outro lado do mundo, há colunas reflectidas em lagos. As andorinhas mergulham as asas nos lagos escuros. Contudo, a porta não pára de se abrir e as pessoas vão entrando; avançam todas na minha direcção. Com sorrisos falsos, destinados a disfarçar a crueldade, a indiferença, apoderam-se de mim. A andorinha molha as asas; a Lua passeia solitária através de oceanos azuis. Sou obrigada a lhes apertar a mão; sou obrigada a responder. Mas que resposta deverei dar? Sou obrigada a usar este corpo desajeitado, sem graça, e a aceitar as suas manifestações de desprezo, de indiferença, eu, que sonho com colunas de mármore e lagos situados no outro lado do mundo, onde as andorinhas molham as asas.

A noite escureceu um pouco mais os contornos das chaminés. Do lado de fora, por sobre o ombro do meu companheiro, vejo um gato, ligeiro, à vontade, sem estar inundado em luz, sem estar preso em seda, livre para parar, para se espreguiçar, para voltar a andar. Odeio todos os pormenores da vida individual. Contudo, sou obrigada a escutá-los. Sinto em mim uma enorme pressão. Não me posso mover sem deslocar o peso de séculos. Sinto-me espicaçada por um milhão de setas. O desprezo e o sentido do ridículo não param de me dar alfinetadas. Eu, que seria capaz de enfrentar o granizo, e, com toda a alegria, deixar o granizo sufocar-me, estou como presa neste local; sinto-me exposta. O tigre salta. As línguas, semelhantes a chicotes, não param de me atingir. Ágeis, incessantes, não param de me bater. Tenho de fingir e mantê-los à distância com mentiras. Qual será o amuleto capaz de me proteger deste desastre? Que rosto poderei invocar para apagar este incêndio. Penso nos rótulos das caixas; em mães de cujos joelhos largos as saias se espalham; em clareiras onde desembocam os caminhos íngremes das montanhas. Escondam-me, grito, pois sou a mais nova, a mais desprotegida de todos vós. A Jinny sente-se tão à vontade como uma gaivota cavalgando as ondas, distribuindo olhares à esquerda e à direita, dizendo isto e aquilo, mas sempre com convicção. Enquanto isso, eu vejo-me obrigada a mentir.

Quando estou só, balanço as minhas taças; sou dona e senhora da minha frota de navios. Porém, aqui, a virar as pregas das cortinas de brocado da minha anfitriã, sinto-me repartida em mil pedaços; deixei de ser una. De que será então feita a sabedoria que a Jinny demonstra ao dançar; a certeza revelada pela Susan quando, inclinando-se suavemente junto ao candeeiro, enfia a linha de algodão branco através do buraco da agulha? Elas dizem Sim; elas dizem Não; eles batem com os punhos na mesa. Mas eu tenho dúvidas; estremeço; vejo a sombra do espinheiro selvagem projectar-se no deserto.

Tal como se tivesse um fim em vista, vou atravessar a sala até chegar à varanda por baixo do toldo. Vejo o céu, a que o luar confere uma aparência suave. Observo igualmente os contornos da praça e os dois indivíduos sem rosto que se recortam como estátuas contra o firmamento. Trata-se, pois, de um mundo imune a mudanças. Ao passar por esta sala repleta de línguas que me cortam como se fossem facas, fazendo-me gaguejar, levando-me a mentir, encontrei rostos sem feições, despojados de beleza. Os casais de namorados ocultam-se por entre as árvores. O polícia está de sentinela a uma esquina. Um homem passa. Trata-se de um mundo imune a mudanças. Todavia, ainda não me recompus o suficiente, apoiada em bicos de pés junto à lareira, afogueada devido ao ar quente, com medo que a porta se abra e o tigre salte, com medo até de formar uma frase. Tudo o que digo está sujeito a ser permanentemente contrariado. Sou interrompida de cada vez que a porta se abre. Ainda não fiz os vinte e um. Estou destinada a ser despedaçada. Estou destinada ao ridículo. Estou destinada a vogar ao sabor das línguas de todos estes homens e mulheres de rostos contraídos, tal como se fosse um pedaço de cortiça a boiar num mar encapelado. Semelhante a uma alga, sou atirada para longe de cada vez que a porta se abre. Sou a espuma que cobre de branco os contornos das rochas, até mesmo os mais recônditos; aqui, nesta sala, também sou uma rapariga. Depois de ter abandonado as almofadas verdes onde se reclinava, espreitando furtivamente através das jóias marinhas, o Sol mostrou o rosto e olhou de frente para as ondas. Estas caíam a um ritmo regular. Caíam provocando um som semelhante ao dos cascos dos cavalos na turfa. Os salpicos por si provocados elevavam-se como lanças empunhadas por sobre as cabeças dos cavaleiros. Enchiam a praia com as suas águas de um azul metalizado, salpicadas de brilhos cor de diamante. Recuavam e avançavam com a força, a energia, de uma máquina que não pára de trabalhar. O Sol incidia nos campos de milho e nos bosques. Os rios tornaram-se azuis e como que adquiriram muitas dobras, os relvados que se estendiam até à beira-mar adquiriram uma coloração tão verde como a das penas das aves esvoaçando à brisa matinal. As encostas curvas e contraídas, davam a sensação de estarem a ser puxadas por tenazes, mais ou menos como os músculos envolvem os membros; e os bosques, orgulhosamente eriçados nos seus flancos, lembravam as crinas dos cavalos quando são cortadas rente.

No jardim, onde as árvores se erguiam frondosas por cima dos canteiros, dos charcos e das estufas, os pássaros cantavam ao sol, cada um por si mesmo e não em coro. Um cantava por baixo da janela do quarto; outro, no ramo mais alto do lilás; outro ainda, empoleirado no muro. Todos cantavam de forma estridente com paixão, com veemência, como se para deixarem o canto explodir, em nada se importando com o facto de arruinarem as melodias das outras aves. Os seus olhos redondos brilhavam de excitação; as patas agarravam-se com força aos ramos e aos parapeitos. Cantavam, expostas e sem qualquer tipo de abrigo, ao ar e ao sol, belíssimas na sua nova plumagem, estriada ou sarapintada como as conchas, aqui manchada de azul claro, ali salpicada de dourado, aqui e ali com uma simples pena a destoar do conjunto. Cantavam como se a própria manhã as levasse a isso. Cantavam como se os contornos afiados da existência as obrigassem a quebrar a doçura da luz azul esverdeada; a umidade da terra empapada lança emanações e exalações provenientes dos vapores oleosos da cozinha; o odor quente da carne de carneiro e de vaca; a riqueza dos doces e das frutas; os restos moles e as cascas provenientes do caixote do lixo, sobre as quais pesava uma espécie de vapor pesado e lento. Era sobre todas estas coisas encharcadas, manchadas e encarquilhadas devido à umidade, que as aves se lançavam, abruptas, impiedosas, de bico aberto. De repente, sem que nada o fizesse prever, como que se atiravam dos lilases e das vedações. Observavam os caracóis somente para depois lhes partirem a casca de encontro a uma pedra. Batiam com fúria, metodicamente, até a casca se partir e qualquer coisa de viscoso jorrar da fenda. Batiam de novo as asas e elevavam-se nos ares, emitindo notas curtas e agudas, até acabarem por se empoleirar nos ramos superiores de uma qualquer árvore, de onde se deixavam ficar a observar as folhas e as espirais que se encontravam mais abaixo, bem assim como o solo coberto de botões brancos, ervas que flutuavam ao vento, e o mar, batendo contra a praia, com um ritmo semelhante ao de um tambor, que faz avançar um regimento de soldados envergando turbantes enfeitados de plumas. De vez em quando, as suas vozes uniam-se em escalas melodiosas, tal como acontece com os vários cursos de água que percorrem as montanhas e que, ao se unirem, provocam uma corrente de espuma antes de se precipitarem cada vez mais depressa ao longo do mesmo canal, arrastando consigo todas as folhas que encontram. No entanto, acabam por bater contra uma pedra; dividem-se.

Dentro de casa, o sol penetrava em colunas de contornos bem delineados. Tudo aquilo em que a luz tocava adquiria uma existência fanática. Os pratos transformavam-se em lagos brancos. As facas aparentavam ser punhais de gelo. Sem que nada o fizesse prever, os copos pareciam estar suspensos em raios de luz. Cadeiras e mesas subiam à superfície como se tivessem estado debaixo de água, e, ao se elevarem, era como se estivessem envoltas num véu de cores, vermelho, laranja, púrpura, mais ou menos como a casca de um fruto maduro. Os veios que sulcavam as louças, os poros da madeira, as fibras dos tapetes, tudo se tornava mais nítido e como que melhor gravado nos objectos a que pertenciam.

Coisa alguma possuía sombra. Uma determinada jarra era de tal forma verde, que os olhos que a fitavam eram como que sugados através de um canal devido à sua intensidade, ficando a ela agarrados como lapas às rochas. Só então as formas indistintas ganhavam consistência. Via-se aqui o bojo de uma cadeira; ali, o volume de um armário. E, à medida que a luz aumentava, arrastava à sua frente os bandos de sombras que antes ali haviam reinado, agrupando-os e suspendendo-os no pano de fundo que suportava toda a cena.

– Que pálida, que estranha – disse Bernard – é a cidade de Londres com todas as suas torres e cúpulas, repousando sob o nevoeiro. Guardada por gasômetros e chaminés de fábricas, a nossa aproximação não lhe perturba o sono. Ela aperta o formigueiro contra o peito. Todos os gritos e clamores estão suavemente envolvidos em silêncio. Nem a própria Roma tem um ar mais majestoso. Mesmo assim, é para lá que nos dirigimos. A sua sonolência maternal começa já a dar mostras de não ser muito natural. Por entre o nevoeiro elevam-se colinas cobertas de casas. Fábricas, catedrais, cúpulas de vidro, instituições e teatros, tudo isto surge perante os nossos olhos. O primeiro comboio da manhã, vindo do Norte, dirigiu-se na sua direcção como se fosse um míssil. Afastamos a cortina para observar a paisagem. Rostos vazios e expectantes olham-nos quando passamos pelas estações a grande velocidade. Como se antevissem a morte ao sentirem a deslocação de ar por nós provocada, os homens agarram-se aos jornais com um pouco mais de força. Estamos prestes a explodir nos flancos da cidade, do mesmo modo que uma granada o faz junto ao corpo de um animal majestoso, maternal. A cidade zumbe e sussurra; está à nossa espera.

Entretanto, à medida que vou espreitando pela janela do comboio, deixo-me invadir por uma sensação estranha, persuasiva, de que, e devido à minha grande felicidade (estou noivo e vou-me casar), me tornarei parte desta velocidade, deste míssil disparado contra a cidade. A tolerância e a submissão deixam-me paralisado. Poderia até dizer coisas como: “Meu caro senhor, por que se inquieta, por que razão pega na pasta e comprime contra ela o boné que usou durante toda a noite?”. Nada do que fazemos tem utilidade. Paira sobre nós uma unanimidade esplêndida. O facto de termos todos o mesmo desejo – chegar à estação – transforma-nos numa massa uniforme semelhante às asas cinzentas de um enorme ganso (ao fim e ao cabo, e apesar de a manhã ser bonita, o certo é que não tem qualquer cor). Não quero que o comboio pare com um solavanco. Não quero quebrar a corrente que nos fez estar toda a noite sentados em frente uns dos outros. Não quero sentir que o ódio e a rivalidade voltaram a reinar. A nossa comunidade, um grupo de indivíduos sentados num comboio apressado e com um único desejo em mente, chegar a Euston, era bastante simpática. Mas atenção! Acabou-se. Conseguimos o que desejávamos. Chegamos à plataforma. Gera-se a pressa e a confusão quando todos se precipitam rumo ao portão, na tentativa de serem os primeiros a chegar ao elevador. Contudo, não quero ser o primeiro a assumir o fardo de possuir uma vida individual. Eu, desde segunda-feira (o dia em que ela me aceitou), via-me confrontado com um profundo sentimento de identidade, de tal forma que não podia ver a escova de dentes no copo sem dizer “A minha escova de dentes”, não desejo agora outra coisa senão abrir as mãos e deixar cair todos os meus haveres, limitar-me a ficar na rua sem participar, a observar os autocarros, sem sentir quaisquer desejos; sem invejas; apenas com aquilo a que se poderia chamar uma curiosidade ilimitada a respeito do destino humano, e isto se a minha mente ainda tivesse limites. Contudo, já nada possui. Cheguei; fui aceite. Nada peço em troca. Depois de me ter satisfeito como uma qualquer criança que acabou de mamar, estou agora livre para me afundar nas profundezas de tudo o que passa, nesta vida omnipresente e geral. (Só agora me apercebo do papel importante desempenhado pelas calças; de nada serve possuir uma cabeça inteligente se as calças estiverem coçadas.) É possível observar-se algumas hesitações curiosas à porta do elevador. Por este lado e por aquele, pelo outro? É então que a individualidade se impõe. Acabam todos por partir. São impelidos por uma qualquer necessidade. Um qualquer assunto insignificante, por exemplo, chegar a horas a um encontro, comprar um chapéu, separar estes belíssimos seres humanos até então fortemente unidos.

Pela parte que me toca, não tenho objectivos. Não tenho ambições. Deixar-me-ei levar pelos impulsos gerais. A superfície da minha mente desliza como um fio de água cinzento-claro que reflecte tudo por onde passa. Não me consigo lembrar do meu passado, do meu nariz, nem sequer da cor dos meus olhos, já para não falarmos da opinião geral que formo a meu respeito. Apenas em situações de emergência, num cruzamento, numa berma, me vejo frente a frente com o desejo de preservar o meu corpo, o qual me agarra e me obriga a parar aqui, frente ao autocarro. Parece que nos recusamos a deixar de viver. Depois, a indiferença volta a descer sobre nós. O rugir do trânsito, a passagem de tantos rostos impossíveis de diferenciar, este ou aquele caminho, tudo me intoxica e me faz sonhar; tudo apaga as feições das faces dos que comigo se cruzam. As pessoas quase me podiam atravessar. Para mais, qual o significado deste instante, deste dia específico em que me vi envolvido? Os ruídos do tráfego podem ser comparados a outros sons – o das árvores a restolhar e o rugir dos animais selvagens. O tempo como que fez recuar um pouco a sua progressão; o nosso avanço parece ter sido cancelado. Para falar com franqueza, acho que os nossos corpos estão nus. Estamos apenas revestidos por um tecido com botões; e por baixo destes passeios existem conchas, ossos e silêncio.

E claro que, tal como acontece durante o sono, as minhas tentativas para ir além da superfície do rio, os meus sonhos, são interrompidos, puxados, distorcidos por sensações, espontâneas e irrelevantes, de curiosidade, ganância e desejo. (Cobiço aquela mala, etc...) Não, mas desejo ir mais fundo; visitar as profundezas; de vez em quando dar-me ao luxo de nem sempre agir, mas também de explorar; de escutar sons vagos e ancestrais de ramos a partir, de mamutes; de me deixar levar pela fantasia impossível de abraçar o mundo inteiro com os braços do conhecimento – algo francamente impossível para aqueles que agem. Não estarei eu, à medida que avanço, a ser percorrido por estranhos tremores e vibrações de simpatia, que, a nada terem a ver com um ser individual, me pedem para abraçar a multidão, estes mirones e excursionistas baratos, estas raparigas furtivas e escorregadias que, ignorando a sombra negra que sobre elas paira, olham as montras das lojas? Porém, estou consciente da nossa existência efêmera.

Todavia, é verdade que não posso deixar de negar a sensação de que a vida me foi misteriosamente prolongada. Será que poderei ter filhos, lançar sementes que consigam sobreviver a esta geração, a estes indivíduos eternamente condenados, arrastando-se mutuamente pelas ruas numa competição incessante? As minhas filhas virão passear aqui em verões que ainda não chegaram; os meus filhos desbravarão outros campos. É por isso que não somos gotas de chuva, de pronto secas pelo vento; fazemos florescer os jardins e rugir as florestas; não cessamos de tomar formas diferentes, isto para todo o sempre.

São estas coisas que explicam a minha confiança, a estabilidade central (o que de outra forma seria monstruosamente absurdo) que demonstro ao enfrentar esta multidão, abrindo sempre caminho por entre os corpos das pessoas, aproveitando os momentos seguros para atravessar. Não se trata de vaidade; o certo é que estou despido de ambições; não me lembro dos meus dons ou idiossincrasias especiais, bem assim como das marcas características da minha pessoa: olhos, nariz ou boca. Pelo menos neste momento, despojei-me de mim.

Mas atenção, sinto-o voltar. É impossível extinguir este cheiro persistente. Trata-se de algo que se infiltra na mais pequena fenda existente na estrutura – a nossa identidade. Não pertenço à rua – não, observo-a. É assim que os indivíduos se isolam. Por exemplo, no cimo daquela rua secundária há uma rapariga à espera; de quem? Uma história romântica. Na parede daquela loja vê-se uma pequena grua. É então que me pergunto qual o motivo que poderia ter levado aquele objecto a ser ali colocado, e de pronto imagino a história de uma dama vestida de vermelho, inchada, gordíssima, sendo puxada de cabriolé por um marido alagado em suor, alguém na casa dos sessenta. Trata-se de uma história grotesca. Claro que sou um falsário de palavras, alguém que usa tudo e mais alguma coisa para soprar bolas de sabão. E, é à custa destas observações espontâneas que me vou elaborando, diferenciando, e, ao escutar a voz que murmura à minha passagem: “Olha! Toma nota disto!”, imagino-me destinado a conceber, numa qualquer noite de Inverno, um significado para as minhas observações – uma série de linhas que se completam e que sumarizam tudo o que vejo. No entanto, os solilóquios nas ruas secundárias não tardam a perder o interesse. Preciso de uma audiência. É precisamente aí que reside a minha desgraça. É sempre isso que corta as arestas da frase fina, impedindo a sua formação. Não me consigo imaginar numa qualquer casa-de-pasto de aspecto sórdido, a pedir a mesma bebida dia após dia, e a me deixar embebedar completamente num só líquido – esta vida. Construo uma frase e fujo com ela para uma qualquer sala bem mobiliada, onde a luz de dezenas de velas a poderão iluminar. Sinto necessidade de olhos para poder empregar os meus floreados. Concluo que, para ser eu mesmo, necessito da luz dos olhos de terceiros, e por isso não posso estar completamente seguro daquilo que sou. Os seres autênticos, por exemplo, o Louis e a Rhoda, só se revelam de forma completa na maior das escuridões. Ressentem-se da luz, das cópias. Destroem os quadros anteriormente traçados a seu respeito, atirando-os contra o solo. As palavras do Louis lembram blocos de gelo. São sólidas, compactas, douradas. Então, e depois desta sonolência, desejo brilhar, brilhar à luz que emana dos rostos dos meus amigos. Tenho estado a atravessar o território sombrio da não identidade. Trata-se de uma terra estranha. Num momento de calma, num momento de satisfação avassaladora, escutei os suspiros da corrente que flui e reflui para lá deste círculo de luz brilhante, deste tamborilar de fúria insensata. Por breves instantes, fui possuído por uma enorme calma. Talvez a isto se chame felicidade. Uma série de sensações irritantes fazem-me voltar a mim; curiosidade, avidez (tenho fome), e o desejo irresistível de ser eu mesmo. Penso nas pessoas a quem tenho coisas para dizer: o Louis, o Neville, a Susan, a Jinny e a Rhoda. Junto delas sou multifacetado. São elas que me tiram das trevas. Graças a Deus, vamo-nos encontrar esta noite. Graças a Deus, não precisarei mais de ficar só. Vamos jantar juntos. Vamo-nos despedir do Percival, que vai para a Índia. Apesar de a hora ainda vir longe, sinto as sombras dos amigos ausentes. Vejo o Louis, esculpido em granito, semelhante a uma estátua; o Neville, exacto, cortante como uma tesoura; a Susan, com aqueles olhos semelhantes a pedaços de cristal; a Jinny, a dançar como uma chama, febril, quente, por sobre a terra seca; e a Rhoda, a ninfa da fonte sempre úmida. Tratam-se de imagens fantásticas – estas visões dos amigos ausentes são irreais, grotescas, desaparecem ao primeiro toque de uma bota verdadeira. Apesar disso, são elas que me mantêm vivo. São elas que afastam estes vapores. A solidão começa a me impacientar – sinto que todos estes véus que me cercam se começam a soltar. Oh, como seria bom pô-los de parte e entrar em acção! Qualquer pessoa serviria. Não sou esquisito. O varredor das ruas serviria; o carteiro; o empregado do restaurante francês; melhor ainda, o seu genial proprietário, cujo talento parece estar reservado para uma determinada pessoa. É ele que prepara a salada com as suas próprias mãos para um certo convidado especial. Mas quem será este convidado especial, e porquê? E que estará ele a dizer àquela senhora de brincos? Será ela uma amiga ou apenas uma cliente? Assim que me sento à mesa sinto-me invadido por todo um sentimento de confusão, de incerteza, de especulação. As imagens não param de se formar. A minha fertilidade embaraça-me. Se assim o desejasse, poderia descrever todas as cadeiras, mesas e comensais que aqui se encontram. Na minha mente não param de surgir palavras que se adaptam a tudo. O simples acto de falar ao criado a respeito do vinho é já provocar uma explosão. O foguete não pára de subir. Os grãos dourados que dele se desprendem caem um a um no solo da minha imaginação, fertilizando. A natureza totalmente inesperada da explosão – é aí que reside a maravilha do facto. Eu, misturado com um empregado italiano desconhecido – que sou eu? Não existe estabilidade neste mundo. Existirá alguém capaz de descobrir o significado de todas as coisas? Quem será capaz de prever o voo de uma palavra? Trata-se de um balão que voa por sobre as copas das árvores. É inútil falar sobre conhecimento. Nada mais existe para além de experiências e aventuras. Estamos permanentemente a misturarmo-nos com quantidades desconhecidas. O que virá a seguir? Não sei. Mas, à medida que vou poisando o copo, lembro-me. Estou noivo e vou-me casar. Esta noite vou jantar com os amigos. Sou Bernard, eu mesmo.

– Faltam cinco minutos para as oito – disse Neville. – Cheguei cedo. Ocupei o meu lugar à mesa dez minutos antes da hora prevista, pois só assim poderia saborear todos os momentos de antecipação; ver a porta a abrir e dizer: Será o Percival? Não, não é o Percival. Sinto um prazer mórbido ao dizer: Não é o Percival. A porta já se abriu e fechou cerca de vinte vezes, e a expectativa é cada vez maior. Estou no local onde ele acabará por chegar. Esta é a mesa onde se sentará. Aqui, e por muito incrível que possa parecer, estará o seu corpo. Esta mesa, estas cadeiras, esta jarra de metal contendo três flores vermelhas, tudo isto está prestes a sofrer uma transformação extraordinária. A própria sala, com as suas portas de vaivém, as mesas repletas de fruta e carnes frias, apresenta uma aparência irreal, desfocada, própria de um local onde se espera vir a acontecer algo. As coisas estremecem como se ainda estivessem longe de possuir as características do ser. A brancura da toalha como que resplandece. A hostilidade e a indiferença das outras pessoas que aqui jantam é opressiva. Entreolhamo-nos; vemos que não nos conhecemos e viramos as costas. Tratam-se de olhares semelhantes a chicotadas. Sinto neles toda a crueldade e indiferença do mundo. Se ele não vier, serei incapaz de as suportar. Contudo, e neste preciso momento, alguém o deve estar a ver. É provável que esteja dentro de um táxi; a passar por alguma loja. E a todo o instante ele parece fazer com que a sala se encha de luz, desta intensidade do ser, obrigando as coisas a perder os seus usos normais – a lâmina desta faca transforma-se num raio de luz e deixa de ser um objecto cortante. É a abolição do normal.

A porta abre-se, mas ainda não é ele. Trata-se do Louis, algo hesitante. Esta hesitação é uma estranha mistura de segurança e timidez. Ao entrar, olha de relance para o espelho; passa a mão pelo cabelo; não está satisfeito com a sua aparência. Diz: “Sou um duque” – o último de uma raça antiga. É um ser amargo, desconfiado, dominador, difícil (estou a compará-lo ao Percival). Ao mesmo tempo, e dado existir uma estranha alegria nos seus olhos, é um ser formidável. Acaba por me ver. Aí vem ele.

– Ali está a Susan – disse Louis. – Ainda não nos viu.

Não está vestida para a ocasião, pois despreza a futilidade de Londres. Deixa-se estar à porta por alguns instantes, ofuscada pela luz de um candeeiro. Acaba por se mover. Ao andar por entre as mesas e cadeiras, revela possuir os movimentos furtivos, se bem que seguros, de um animal selvagem. Parece possuir a capacidade instintiva de abrir caminho por entre estas pequenas mesas sem tocar em nada nem em ninguém, sem prestar sequer atenção aos empregados, até chegar junto à nossa mesa. Quando nos vê (a mim e a Neville) o seu rosto assume uma expressão de certeza alarmante, como se tivesse conseguido o que queria. Ser amado por ela seria o mesmo que ser crucificado pelo bico afiado de uma ave, de ser pregado à porta do celeiro, e isto de uma vez por todas.

É agora a vez da Rhoda, que surge como que vinda de parte alguma, depois de ter entrado quando não estávamos a olhar. Por certo que seguiu uma rota tortuosa, escondendo-se ora atrás de um criado ora atrás de um pilar, como se tivesse vontade de adiar o mais possível o momento do reconhecimento, como se quisesse certificar-se de que poderia balançar a taça onde se encontram as suas pétalas por mais um momento.

Fazemo-la despertar. Torturamo-la. Teme-nos, despreza-nos, mas mesmo assim vem-se juntar a nós, pois, e apesar de toda a nossa crueldade, existe sempre um nome, um rosto, que lança um brilho, que lhe ilumina o caminho e lhe dá a hipótese de voltar a sonhar.

– A porta abre-se, a porta não pára de se abrir – disse Neville –, mas ele continua a não aparecer.

– Lá está a Jinny – disse Susan. – Está mesmo junto à porta. Tudo parece ter parado. Os criados imobilizam-se. Os clientes que se encontram nas mesas junto à porta olham. Dá a sensação de que concentra tudo. Em seu redor, mesas, portas, janelas, tectos, tudo se parece agrupar como que em raios concêntricos, semelhantes aos que se formam em torno de uma estrela vista através de um vidro partido. É como se tivesse capacidade para pôr tudo em ordem. Acaba por nos ver e põe-se em movimento.

É então que os raios começam a flutuar na nossa direcção, trazendo-nos novas correntes de sensações. Mudamos. O Louis leva a mão à gravata. O Neville, que revela sinais de quem sofre uma profunda agonia, endireita os talheres que estão à sua frente, isto não sem algum nervosismo. A Rhoda olha-a, surpreendida, como se visse um incêndio alastrar num campo distante. E eu, muito embora tente pensar em erva e campos úmidos, no som da chuva a bater no telhado e nas rajadas de vento que abanam a casa no Inverno, tentando assim proteger a alma contra ela, sinto-me cercada pela energia que dela se desprende, sinto as suas gargalhadas enrolarem-se à minha volta com línguas de fogo a queimarem-me sem dó nem piedade o vestido gasto, as unhas cortadas rente, de tal forma que me vejo obrigada a escondê-las debaixo da toalha.

– Ele não vem – disse Neville. – A porta não pára de se abrir e ele não chega. Quem lá vem é o Bernard. Como seria de esperar, ao tirar o casaco levanta os braços de tal maneira, que qualquer um lhe pode ver os sovacos. E, ao contrário do que se passou com todos nós, vai andando sem precisar de abrir porta alguma, sem sequer se aperceber de que entrou numa sala repleta de desconhecidos. Não olha para o espelho. Está despenteado, mas nem sequer se apercebe do facto. Não vê que somos diferentes nem que é para esta mesa que se deve dirigir. Hesita durante breves instantes. Quem será aquela?, pergunta ele em voz baixa, pensando reconhecer uma mulher embrulhada numa capa, daquelas com que se costuma ir à ópera. O certo é que ele pensa sempre que conhece toda a gente, quando a verdade é que conhece ninguém (estou a compará-lo ao Percival). Contudo, ao nos reconhecer, esboça um aceno benevolente; inclina-se com tanta bondade, com tanto amor pela humanidade (ao que se mistura um pouco de troça pela futilidade de amar a humanidade), que, se não fosse o Percival que transforma tudo isto em vapor, seria capaz de me juntar aos outros e achar, tal como eles o fazem, que esta festa é nossa, que finalmente estamos todos juntos. Todavia, sem o Percival as coisas carecem de solidez. Somos silhuetas, fantasmas ocos a pairar sem qualquer pano de fundo que nos sirva de suporte.

– A porta de vaivém não pára de se abrir – disse Rhoda.

Por ela vão entrando estranhos, indivíduos que nunca mais veremos, indivíduos que nos tocam de forma desagradável com a sua familiaridade e indiferença, bem assim como com a ideia de que o mundo vai continuar mesmo sem a nossa presença. Somos incapazes de nos afundar, de esquecer os rostos que possuímos. Mesmo eu, que nunca mudo de expressão (a Susan e a Jinny alteraram os rostos e os corpos quando entraram), sinto-me flutuar, sem possuir um porto onde ancorar, incompleta, incapaz de construir uma câmara de vácuo, um muro, onde possa colocar estes corpos em movimento. Creio que tudo isto se deve ao Neville e à tristeza que dele emana.

Sinto-me abalada pela profunda desolação em que está mergulhado. Nada pode assentar. Nada pode ser fixado. De cada vez que a porta se abre ele olha fixamente para a mesa, nem sequer se atreve a levantar os olhos, acaba por espreitar durante breves segundos, e diz: “Ele não vem!”. Porém, ei-lo que chega.

– Agora – disse Neville –, a minha árvore floresce. O meu coração eleva-se. Acabaram-se as opressões e os impedimentos. O reino do caos chegou ao fim. Foi ele quem impôs a ordem. As facas voltaram a cortar.

– Lá está o Percival – disse Jinny. – Não se vestiu para a ocasião.

– Lá está o Percival – disse Bernard –, a ajeitar o cabelo.

Não se trata de um gesto de vaidade (nem sequer olha para o espelho), mas sim de algo para agradar ao deus da decência. É um indivíduo convencional; é um herói. Os rapazinhos mais novos marchavam atrás dele no campo de jogos. Mas, e apesar de assoarem o nariz do mesmo modo que ele, não tinham qualquer sucesso, pois só ele é o Percival. Agora, que está prestes a nos deixar, a partir para a Índia, todas estas pequenas coisas se juntam numa só. Estamos em presença de um herói. Oh, sim, ninguém o pode negar, e, quando se senta junto à Susan (a quem ama profundamente) a ocasião torna-se perfeita. Nós, que antes nos entretínhamos a lutar uns contra os outros, assumimos agora o ar sóbrio e confiante de soldados na presença do capitão. Nós, a quem a juventude separou (o mais velho ainda não fez vinte e cinco anos), que, semelhantes a aves sedentas, cantamos a plenos pulmões, e, com o egoísmo próprio dos jovens, batemos na nossa própria carapaça com tanta força que quase a chegamos a partir (estou noivo), ou, empoleirados no parapeito de uma qualquer janela solitária entoamos cânticos de amor e fama, coisa tão querida às avezinhas jovens de penugem amarela, acabamos por nos aproximar; e, em cima dos poleiros que ocupamos neste restaurante onde cada um tem os seus interesses e somos distraídos pelo desfile incessante dos copos e tentados por toda a espécie de coisas de cada vez que a porta se abre, é aqui sentados que sentimos o quanto nos amamos, acreditando também que somos consistentes e possuímos capacidade para resistir ao tempo.

– Resta-nos agora sair da obscuridade da solidão – disse Louis.

– Resta-nos agora dizer, de forma directa e brutal, o que nos vai na alma – disse Neville. – Longe está o período de isolamento e preparação; os dias furtivos da clandestinidade e dos segredos, das revelações inesperadas, dos momentos de terror e êxtase.

– A velha Mrs. Constable levantava a esponja e sentíamos o calor escorrer-nos pela pele – disse Bernard. – Sentíamo-nos envolvidos por estas novas roupas feitas de carne.

– O rapaz das botas fez amor com a criada, no jardim – disse Susan –, por entre os alguidares de roupa lavada.

– O modo como o vento respirava lembrava o arfar de um tigre – disse Rhoda.

– Havia um homem na valeta, lívido, com o pescoço cortado – disse Neville. – E, sempre que subia os degraus, não conseguia olhar para a madeira com as suas folhas prateadas.

– Sem que houvesse ninguém para a soprar, a folha não parava de se agitar – disse Jinny.

– No canto iluminado pelo sol – disse Louis –, as pétalas nadavam em profundezas de verde.

– Em Elvedon, os jardineiros não paravam de varrer, servindo-se para isso das suas enormes vassouras, e a mulher sentada à mesa não parava de escrever – disse Bernard.

– Agora, sempre que nos encontramos – disse Louis –, pegamos no novelo em que o passado se transformou e tentamos desenrolá-lo.

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