O certo é que às segundas se sucedem as terças. Contudo, restava ainda uma dúvida, uma nota interrogativa. Ao abrir a porta, surpreendi-me por ver os outros ocupados; ao pegar na chávena de chá, hesitei antes de dizer se preferia com leite ou açúcar. E a luz que caía das estrelas (exactamente como agora o faz) e poisava na minha mão depois de ter viajado durante milhões e milhões de anos, nada mais podia fazer do que me provocar um breve choque – o certo é que a minha imaginação é demasiado fraca. Contudo, restava ainda uma dúvida. Uma sombra na minha mente lembrando o bicho do caruncho que se introduz na madeira. Por exemplo, quando nesse mesmo ano fui visitar a Susan ao Lincolnshire e ela atravessou o jardim para me vir receber, movendo-se com os movimentos de uma vela semi-enfunada, com os movimentos baloiçando-nos no jardim. As carroças subiam o caminho carregadas de feno; as gralhas e as pombas arrulhavam da forma que lhes é peculiar; a fruta fora coberta e envolvida em redes; o jardineiro cavava. As abelhas zumbiam atrás dos carreiros vermelhos das flores; as abelhas mergulhavam nos escudos amarelos dos girassóis. A relva estava coberta de pequenos galhos. Tratava-se de qualquer coisa de rítmico, semiconsciente, envolto em brumas. Todavia, e pela parte que me tocava, era horrível, lembrava-me uma rede que cai sobre nós e nos tolhe os movimentos. Ela, que recusara o Percival, dera-se a isto, a este disfarce. Sentado num banco à espera do comboio, pensei no quanto nos havíamos rendido, na forma como nos tínhamos submetido à estupidez da natureza. À minha frente viam-se bosques cobertos de folhas verdes. E, devido a um qualquer odor ou som, a velha imagem regressava – os jardineiros a varrer e a dama sentada a escrever. Vi as figuras posicionadas junto às árvores, lá em Elvedon. Os jardineiros varriam, a senhora sentada à mesa não parava de escrever. No entanto, agora posso juntar o contributo da maturidade às intuições infantis – saturação e ruína; a sensação de que há sempre algo que não podemos ter; a morte; o conhecimento das nossas limitações; o saber o quanto a vida é mais dura do que aquilo que havíamos pensado. Quando era criança, bastava-me sentir a presença de um inimigo para me sentir espicaçado. Levantava-me e gritava: “Vamos partir à exploração.” E assim punha ponto final ao horror característico destas situações. E que situação havia ali para terminar? Saturação e ruína. E para explorar? Folhas e árvores que nada tinham a esconder. Se uma ave levantava voo, não celebrava o facto fazendo um poema – repetia o que já antes vira. Assim, se tivesse um ponteiro com que indicar as flutuações da curva da vida, indicava esta como sendo a mais baixa; é aqui que ela se enrola sem qualquer sentido na lama onde maré alguma chega – aqui, no local onde me sento com as costas apoiadas à vedação, os olhos cobertos pela aba do chapéu, enquanto o rebanho lá vai avançando com aquele passo duro e automático, característico das suas patas duras e finas. Mas, se afiarmos a lâmina romba de uma faca a uma pedra de amolar, algo se eleva: uma ponta de fogo. Assim, a falta de razão e de destino, o quotidiano, tudo isto misturado produziu uma chama composta por dois factores: ódio e desprezo. Acabei por pegar na minha mente, no meu ser, naquele objecto quase inanimado, e atirei-o contra todas aquelas pontas soltas, paus e palhas, despojos detestáveis de um naufrágio flutuando numa superfície oleosa. Levantei-me de um salto. Gritei: “Luta! Luta!”. O único objectivo que nos mantém vivos é o esforço e a luta, o estado de guerra permanente, o destroçar e voltar a unir – a batalha quotidiana, a derrota ou a vitória. As árvores, antes espalhadas, foram postas em ordem; o verde espesso das folhas transformou-se numa luz bailarina. Prendi tudo isto com uma frase súbita. Arranquei tudo isto ao terror do que é informe apenas com o uso das palavras. O comboio chegou. Alongando-se na plataforma, acabou por parar. Entrei nele. E estava de novo em Londres ao fim da tarde. Como me coube bem aquela atmosfera de senso comum e tabaco; de velhotas sentadas nos compartimentos de terceira classe agarradas aos cestos; de fumadores de cachimbo de “boa noite e até amanhã” pronunciadas por amigos que se despediam nas estações intermédias, e depois as luzes de Londres – nada que se comparasse ao êxtase da juventude, nada que se comparasse aos estandartes violeta de então, mas mesmo assim as luzes de Londres; luzes eléctricas e duras elevando-se nos escritórios mais altos da cidade; candeeiros de iluminação pública espalhados pelos pavimentos secos; chamas rugindo por sobre os mercados. Sinto sempre prazer em ver tudo isto depois de ter despachado um inimigo, nem que seja só por um momento. Por exemplo, gosto de ver o espectáculo da vida quando vou ao teatro. Aqui, o animal pardo, indescritível, que antes vagueava pelos campos, ergue-se nas patas traseiras, e, com uma grande dose de esforço e ingenuidade, ergue-se disposto a lutar contra os bosques e os campos verdes, e também contra os carneiros que, ruminando, avançam a um ritmo regular. E, como não podia deixar de ser, grandes janelas cinzentas estavam iluminadas; rolos de passadeira cortavam o pavimento; era ali que se limpavam e enfeitavam quartos, lareiras, alimentos, vinhos e conversas. Homens de mãos enrugadas e mulheres de brincos de pérolas não paravam de entrar e sair. Vi os rostos dos homens repletos de rugas e esgares provocados pelo trabalho e pelo mundo; e a beleza, que de tão adorada sempre por florescer, mesmo na velhice; e a juventude, tão apta para o prazer que este, pelo simples facto de nele se pensar, se vê obrigado a existir. Parecia que as colinas se precipitavam na sua direcção; e que o mar o cortava em pequenas ondas; e que os bosques fervilhavam de aves coloridas apenas para a juventude, para a juventude expectante. Era lá que se podia encontrar a Jinny e o Hal, o Tom e a Betty; era lá que contávamos as nossas piadas e partilhamos segredos; e nunca nos separávamos sem antes ter combinado um outro encontro no lugar mais apropriado à ocasião e à altura do ano. A vida é agradável; a vida é boa. A terça sucede-se à segunda, e depois daquela vem a quarta. Sim, mas as coisas começam a ser diferentes ao fim de um certo tempo. O facto pode ser-nos sugerido pelo aspecto de uma sala numa determinada noite, pelo modo como as cadeiras se dispõem. Parece ser bastante confortável afundarmo-nos no sofá colocado a uma esquina, e olhar, escutar. É então que duas figuras de costas para a janela se recortam contra os ramos de um salgueiro. Chocados, sentimos que se trata de pessoas cujos rostos não possuem qualquer beleza. Na pausa que se segue ao espalhar das ondas, a rapariga com quem era suposto estarmos a falar diz para si mesma: “Ele é velho”. No entanto não podia estar mais enganada. Não se trata da idade; foi apenas uma gota que caiu; mais uma. O tempo alterou as coisas outra vez. Lá vamos saindo do arco coberto de folhas, penetrando num mundo cada vez mais vasto. A verdadeira ordem das coisas – e é esta a nossa ilusão eterna – é agora apenas aparente. Assim, num instante, numa sala de estar, a nossa vida ajusta-se à marcha pomposa de um dia percorrendo o céu. Foi por isso que, ao invés de pegar nos meus sapatos de pele e de descobrir uma gravata tolerável, fui procurar o Neville. Procurei o mais antigo dos meus amigos, aquele que me conhecia desde os tempos em que eu era Byron, um dos discípulos de Meredith, e também o herói de um livro de Dostoievsky, cujo nome já me esqueci. Fui encontrá-lo só, a ler. A mesa perfeitamente arrumada; a cortina corrida de forma metódica; uma faca de cortar papel separando as páginas de um livro em francês – só então me apercebi de que ninguém altera nem as roupas nem as atitudes pelas quais os conhecemos. Lá estava ele sentado na mesma cadeira, vestindo a mesma roupa, igualzinho ao que fora no dia em que o conheci. Reinava ali a liberdade, a intimidade; o lume da lareira quase fazia explodir as maçãs das cortinas. Ficamos aIi muito tempo sentados a conversar. Acabamos por descer a avenida, a avenida que se oculta por baixo das árvores, por baixo das árvores de folhas pesadas e sussurrantes, as árvores que estão repletas de frutos. Trata-se da avenida que tantas vezes percorremos juntos, de forma que já não existe erva em torno de algumas árvores, em torno de algumas peças e poemas (os que nos eram mais queridos) – já que não existe erva porque a gastamos com os nossos passos. Leio sempre que tenho de esperar; se acordo durante a noite, procuro um livro na prateleira. A inchar, sempre a aumentar de volume, tenho a cabeça cheia de ideias nunca antes registradas. Por vezes, recito uma passagem. Talvez se trate de Shakespeare, talvez de uma velha mulher chamada Peck. A fumar um cigarro enquanto estou deitado na cama, digo de mim para mim: “Isto é Shakespeare. Aquilo é Peck”. Pronuncio estas palavras com a certeza característica do reconhecimento, junto com o choque sempre agradável do conhecimento, muito embora nada disto possa ser totalmente partilhado. E lá vamos comparando as nossas versões de Shakespeare e Peck, permitindo que as opiniões que perfilhamos nos ajudem a esclarecer alguns pontos obscuros das versões alheias; acabando por mergulhar num daqueles silêncios que só muito raramente são quebrados por algumas palavras, como se uma barbatana se elevasse para quebrar o silêncio; depois do que a barbatana (o pensamento) regressa às profundezas, provocando em seu redor uma onda de satisfação, de contentamento. Sim, mas de súbito escutamos o tiquetaque de um relógio. Nós, que antes tínhamos estado imersos neste mundo, apercebemo-nos da existência de outro. É doloroso. Foi o Neville quem alterou o nosso tempo. Ele, que pensara com o tempo ilimitado do espírito, o qual se estende como um relâmpago desde Shakespeare até nós, atiçou o lume e começou a viver de acordo com aquele relógio que marca a aproximação de uma determinada pessoa. Contraiu-se o balançar vasto e digno da sua mente. Pôs-se em guarda. Sentia-o escutar o ruído das ruas. Reparei na forma como tocava na almofada. De entre a vastidão de todos os seres humanos existentes e de todo o passado, escolhera uma única pessoa. Escutou-se um ruído na entrada. Aquilo que ele estava a dizer ficou a pairar no ar como uma chama pouco à vontade. Fiquei a vê-lo avançar passo a passo, esperar por um certo sinal de identificação e olhar para o puxador da porta com a rapidez de uma cobra. (Compreendi então o que fazia com que as suas sensações fossem tão agudas – fora sempre treinado pela mesma pessoa.) Uma paixão tão concentrada só podia expulsar todos os que lhe eram estranhos, mais ou menos como os fluidos cintilantes fazem com todo e qualquer tipo de massa que não os integre. Apercebi-me do quanto a minha natureza, repleta de sedimentos e dúvidas, repleta de frases e agendas recheadas de apontamentos, era vaga e enevoada. As dobras do cortinado imobilizaram-se; o pisa-papéis que estava em cima de uma mesa tornou-se mais pesado; a trama das cortinas faiscou; tudo se tornou definido, externo, uma cena à qual eu não pertencia. Sendo assim, levantei-me e deixei-o. Meu Deus, de que modo as mandíbulas e aquela dor antiga se apossaram de mim assim que abandonei a sala! o desejo de ver uma pessoa que não estava ali. Quem? A princípio não o soube, depois lembrei-me do Percival. Há meses que não pensava nele. Era tão bom que pudesse estar ali com ele, a descer a rua de braço dado e a rir às gargalhadas, troçando do Neville.

Mas ele não estava. O seu lugar era um buraco vazio. É tão estranho o modo como os mortos nos assaltam ao virar da esquina, nos sonhos! Este vento cortante e frio fez-me percorrer Londres durante toda a noite à procura de outros amigos, por exemplo, o Louis e a Rhoda, pois outra coisa não desejava para além de companhia, certezas, contacto. Enquanto subia as escadas interroguei-me sobre o funcionamento da sua relação. Que diriam quando se encontravam a sós? Imaginava-a pouco à vontade com a chaleira na mão. Via-a deixar espraiar o olhar por sobre os telhados – ela, a ninfa da fonte sempre úmida, obcecada com visões, a sonhar. Via-a afastar a cortina. “Fora!” disse. “O pântano junto à Lua está muito escuro.” Toquei, fiquei à espera. O Louis talvez estivesse a encher de leite o prato do gato; o Louis e as suas mãos ossudas semelhantes às margens de uma doca que a muito custo comprime o tumulto das águas, sabia tudo o que os egípcios e os indianos haviam dito; sabia todas as palavras pronunciadas por todos aqueles homens de malares subidos e turbantes enfeitados de jóias. Bati, esperei; não houve qualquer resposta. Voltei a descer as escadas. Os nossos amigos – tão distantes, tão silenciosos, a quem tão pouco visitamos e dos quais quase nada sabemos. Claro que também sou vago e desconhecido aos olhos dos meus amigos, um fantasma, algo que só raramente se vê. A vida só pode ser um sonho. A nossa chama, a chispazinha que dança em alguns olhos, não tarda a se apagar. Lembrei-me dos amigos.

Pensei na Susan. Ela comprara terra. Nas suas estufas amadureciam pepinos e tomates. No vinhedo que a geada de há dois anos destruíra, cresciam agora uma ou duas folhas. Rodeada pelos filhos, percorria os campos com um andar pesado. Andava por ali rodeada de homens calçados com polainas, e ao mesmo tempo apontava com a bengala para um telhado, para as vedações, para os muros a ameaçar ruína. Os pardais seguiam-na, desejosos de apanhar uma ou outra semente que se escapava por entre os seus dedos robustos, capazes. “Mas já deixei de me levantar de madrugada”, disse ela. Seguiu-se então a Jinny – sem dúvida que acompanhada por um qualquer jovem. Por certo, teriam chegado ao momento de crise que costuma ocorrer em todas as conversas. A sala estava propositadamente escurecida; as cadeiras dispostas com precisão. O certo é que ela ainda procurava o momento. Sem ilusões, dura e límpida como o cristal, cavalgava em plena luz do dia com o peito a descoberto. Deixava que os espigões a espetassem. Quando o calor do ferro em brasa que lhe ardia na testa se tornava insuportável, não sentia qualquer espécie de medo. Só assim podia ter a certeza de que tudo estaria em ordem quando a fossem buscar para o enterro. As fitas seriam encontradas no lugar certo. Ainda assim, a porta continua a abrir-se. “Quem é?”, pergunta, ao mesmo tempo que se levanta para o receber. Está tão preparada como naquelas primeiras noites de Primavera, quando as árvores em frente às casas onde os respeitáveis cidadãos londrinos se deitavam com toda a sobriedade mal conseguiam ocultar o seu amor; e o chiar dos eléctricos se misturava com o grito de prazer que emitia, e o ondular das folhas disfarçava o seu langor, a deliciosa lassidão com que se afundava, refrescada por toda a doçura da natureza satisfeita. É certo que quase nunca visitamos os amigos e pouco sabemos a seu respeito. Contudo, quando encontro um desconhecido e lhe tento contar “a minha vida” – como faço neste momento – não me limito a recordar apenas uma vida. Não sou apenas uma pessoa; sou muitas; ao fim e ao cabo, não sei quem sou – se a Jinny, se a Susan, o Neville, a Rhoda, ou o Louis. Para mais, sinto-me incapaz de distinguir a minha vida das que eles viveram. Foi isso que pensei naquela noite outonal em que nos juntamos para mais um jantar em Hampton Court. A princípio era visível que não nos sentíamos à vontade, pois todos tínhamos os nossos compromissos, e as outras pessoas que subiam o caminho vestidas desta ou daquela maneira, com bengala ou sem ela, pareciam contrariá-los. Vi o modo como a Jinny olhava para os dedos grosseiros da Susan e depois ocultava os seus; eu, pelo menos quando comparado com o Neville, tão arrumado e organizado, sentia o quanto a minha vida era um amontoado de frases. Foi então que ele se começou a exibir, pois sentia vergonha de uma sala, de uma pessoa, do seu próprio sucesso. O Louis e a Rhoda, os conspiradores, os espiões sentados à nossa mesa, diziam: “Ao fim e ao cabo, o Bernard consegue que o criado nos venha trazer pães – uma forma de contacto que nos é negada”. Por breves instantes, vimos à nossa frente o corpo daquele ser humano completo que nunca chegamos a ser, mas que, e ao mesmo tempo, somos incapazes de esquecer. Vimos tudo aquilo que poderíamos ter sido; tudo o que perdemos; e por breves instantes ressentimo-nos das pretensões dos outros, quais crianças que, ao verem partir o único bolo que existe, sentem que a parte que lhes foi destinada é a mais pequena. No entanto, tínhamos uma garrafa de vinho, e, assim seduzidos, esquecemos as inimizades e paramos de fazer comparações. E, sensivelmente a meio da refeição, sentimos a escuridão alastrar à nossa volta, a consciência do que não éramos.

O vento, o barulho das rodas, tudo se transformou no rugir do tempo, e precipitamo-nos – para onde? Quem somos nós? Extinguimo-nos por um momento, elevamo-nos como faúlhas saltando de um pedaço de papel queimado, e o negrume rugiu. Fomos além do tempo, além da história. Para mim, trata-se de algo que dura apenas um segundo, terminando devido à minha pugnacidade. Bato na mesa com a colher. Se pudesse medir as coisas com compassos por certo que o faria, mas, dado que a minha medida são as frases, lá as vou construindo. Éramos seis pessoas sentadas a uma mesa em Hampton Court. Levantamo-nos e descemos juntos a avenida. À luz vaga e irreal da madrugada, caprichosa com o som de vozes ecoando ao longo de uma galeria, recuperei a genialidade. Recortando-se contra o portão, contra um qualquer cedro, vejo os contornos brilhantes do Neville, da Jinny, da Rhoda, do Louis, da Susan, e também de mim mesmo. Vejo a nossa vida, a nossa identidade.

Apesar de tudo, o rei Guilherme continuava a ser irreal, com uma coroa feita de lata. Mas nós – encostados aos tijolos, aos ramos, nós os seis, sobressaindo de entre milhões de seres humanos, ardíamos em triunfo, saindo da abundância comedida do passado e do futuro. O momento era tudo, o momento bastava. Foi então que o Neville e a Jinny, a Susan e eu, semelhantes a uma onda que se quebra, nos separamos, nos rendemos – à folha seguinte, a uma determinada ave, a uma criança com um arco, ao valor que fica armazenado nos bosques depois de um dia de sol, às luzes que se contorcem como fitas brancas em águas agitadas. Separamo-nos; consumimo-nos na escuridão das árvores, deixando ficar a Rhoda e o Louis no terraço, junto à urna. Quando emergimos daquele banho – que doce, que profundo! – e vimos que os conspiradores ainda ali se encontravam, não ficamos muito satisfeitos. Perdêramos o que eles ainda possuíam. Havíamos interrompido algo. Contudo, estávamos cansados e, quer tivesse sido bom ou mau, consumido ou deixado por concluir, um véu cinzento caía sobre os nossos esforços; quando paramos por alguns instantes no terraço que dava para o rio, vimos que as luzes se iam afundando. Os barcos a vapor despejavam os passageiros na margem. Ouviu-se uma saudação distante, o som de cânticos, tal como se as pessoas abanassem os chapéus e entoassem em coro a mesma canção. O ruído das vozes atravessou o rio e senti em mim o velho impulso que me moveu durante toda a vida: o de me deixar vogar ao som das vozes dos outros entoando a mesma melodia; o de ser atirado para cima e para baixo de acordo com uma alegria, um sentimento, um triunfo e um desejo quase que despojados de sentido. Mas não agora. Não! Não me podia organizar; não me podia aperceber de mim mesmo; não me podia dar ao luxo de deixar cair na água tudo o que até há um minuto atrás me fizera sentir ansioso, divertido, ciumento, vigilante, e muitas outras coisas mais. Sentia-me incapaz de recuperar de todo aquele desperdício, dissipação, o vogar à tona nas águas contra a nossa vontade, afastando-nos silenciosamente por entre os arcos da ponte, girando em torno de um amontoado de árvores ou de uma olha, lá, onde as aves marinhas descansam no cimo de estacas, por sobre as águas revoltas que no mar acabam por se transformar em ondas – não consegui recuperar desta dissolução. E lá acabamos por nos separar. Seria então aquela mistura com os outros, com a Susan, a Jinny, a Rhoda, o Louis e o Neville, uma espécie de morte? Uma nova disposição dos elementos? Um qualquer sinal do que se viria a passar? Fechei o livro depois de ter tomado nota do facto, pois o certo é que sou um aluno intermitente. Na hora certa, não há maneira de saber a lição. Mais tarde, quando descia Fleet Street durante a hora de ponta, lembrei-me do que se passara e resolvi dar-lhe continuidade. Pensei: “Será que devo continuar a bater com a colher no tampo da mesa? Não faria melhor se cedesse um pouco, aliás, como todos os outros fazem?”. Os autocarros estavam apinhados; sucediam-se ininterruptamente e paravam com um estalido, como se cada um deles fosse um elo numa corrente de pedra. As pessoas continuavam a andar. Eram multidões transportando pastas as que se moviam com a rapidez de um rio aquando da altura das cheias. O ruído por elas provocado era semelhante ao rugir de um comboio num túnel. Aproveitando uma oportunidade, atravessei; mergulhei numa passagem escura e entrei no local onde costumava cortar o cabelo. Recostei a cabeça e colocaram-me uma toalha em volta do pescoço. Havia espelhos por toda a parte e neles via reflectir-se o meu corpo atado e as pessoas que passavam, ora parando ora olhando, acabando por se afastar, indiferentes. O barbeiro começou a mover a tesoura para a frente e para trás. Sentia-me impotente para parar as oscilações produzidas pelo aço frio. Disse para comigo que era assim que somos ceifados e dispostos em feixes; ficando deitados lado a lado nos prados úmidos – ramos murchos e hastes em flor. Deixamos de ter necessidade de nos expor ao vento e à neve; de nos mantermos direitos quando a tempestade se abate sobre nós; de carregar nos ombros o fardo que nos compete; ou de permanecer calados nos dias de Inverno, quando as aves se encostam ao tronco e a umidade cobre as folhas de branco. Somos cortados; caímos. Tornamo-nos parte daquele universo oculto que dorme quando estamos ocupados e vai ao rubro quando dormimos. Renunciamos ao nosso tempo, e agora jazemos no chão, murchos e prestes a ser esquecidos! Foi então que reparei que o barbeiro olhava para a rua como se lá fora houvesse algo que o interessasse. O que lhe teria chamado a atenção? Que teria ele visto na rua? É este tipo de coisas que me desperta. (Dado não ser místico, tem de haver sempre algo a me espicaçar – curiosidade, inveja, admiração, interesse pelo barbeiro.) Enquanto o homem escovava o meu casaco, eu sofria a bom sofrer para me assegurar da sua identidade, e então, a baloiçar a bengala, fui até ao Strand, e, como que para me servir do pólo oposto, evoquei a imagem da Rhoda, sempre tão furtiva, sempre com o medo reflectido nos olhos, sempre à procura de uma coluna no deserto. Acabei por descobrir que ela partira; que se suicidara. “Espera”, disse, imaginando (é assim que comunicamos com os amigos) que lhe segurava o braço. “Espera até os autocarros passarem. Não atravesses dessa forma tão perigosa. Estes homens são teus irmãos.” Ao tentar persuadi-la estou a tentar persuadir a minha própria alma. Pois o certo é que a vida não é só uma; nem sempre sei se sou homem ou mulher, se me chamo Bernard, Neville, Louis, Susan, Jinny ou Rhoda – tão estranho é o contacto que mantemos uns com os outros. A abanar a bengala, com o cabelo acabado de cortar e a nuca a arder, passei por todos aqueles tabuleiros de bonecos baratos importados da Alemanha, os quais são vendidos na rua, perto de St. Paul – St. Paul, a galinha de asas abertas de onde, à hora de ponta, saem autocarros e rios compostos por homens e mulheres.

Imaginei o modo como o Louis subiria aqueles degraus, ele e o seu fatinho engomado, a bengala, e aquele porte sobranceiro. Com o seu sotaque australiano (“O meu pai, um banqueiro de Brisbane”) o certo é que ele demonstraria possuir um respeito muito maior que o meu por todas estas cerimônias antigas, eu, que ouço as mesmas canções de embalar há mais de um milhar de anos. Sempre que entro, deixo-me impressionar pelos rostos bem esfregados e bronzes polidos; pela música e pelos cânticos, pela voz de rapaz que se eleva nos ares como se de uma pomba perdida se tratasse. A paz dos mortos impressiona-me – trata-se de guerreiros repousando à sombra dos seus velhos estandartes. É então que me dá para zombar dos arabescos absurdos de um túmulo qualquer, bem assim como das trombetas, vitórias e armaduras, já para não falarmos da certeza, tão sonoramente repetida, da ressurreição e da vida eterna. O meu olhar ocioso e inquiridor mostra-me então uma criança dominada pelo medo; um reformado que caminha com dificuldade; ou as genuflexões das caixeirinhas que, esmagadas pelo peso de sabe-se lá que sofrimento, vieram aqui procurar algum consolo.

Olho e interrogo-me, e, por vezes, um pouco às escondidas, tento servir-me das orações alheias para ultrapassar a cúpula e acompanhá-las ainda mais, além, seja lá para onde elas forem. É então que, à semelhança daquela pomba perdida, vejo-me esvoaçar, perder altura, e acabar por cair em cima de uma qualquer gárgula, num qualquer nariz partido ou numa tumba ridícula, tudo isto sem perder o sentido de humor e espanto. Volto então a ver os que por ali andam empunhando os roteiros, enquanto a voz do rapaz acaba por azedar, e o órgão de vez em quando deixa escapar uma nota demasiado aguda, demasiado triunfal. Nesse caso, perguntei, como nos conseguiria o Louis encerrar a todos aqui dentro? Como nos conseguiria ele comprimir, transformando-nos num único ser, servindo-se para isso de um frasco de tinta vermelha e de um aparo de excelente qualidade? A voz como que se escapou pela cúpula, a gemer.

Voltei à rua a abanar a bengala e a olhar para os expositores de metal das vitrinas, para os cestos de frutas oriundas das colônias, e a murmurar disparates do estilo: “Escutar, escutar, ouvir os cães a ladrar” ou “A idade de ouro do mundo está prestes a começar” ou “Vem, vem, morte” – misturando parvoíces com poesia, flutuando na corrente. Há sempre uma qualquer coisa que tem de ser feita a seguir. Depois da segunda vem a terça, depois a quarta e a quinta. Cada dia espalha a mesma onda. O ser começa a criar anéis. É como se fosse uma árvore.

E, tal como acontece com estas, as suas folhas também caem. O certo é que, certo dia, quando me encostei a um portão que dava para um campo, o ritmo parou, o mesmo se passando com as rimas e as canções, os disparates e a poesia. Criou-se um espaço vazio na mente. Vi através das folhas espessas do hábito.

Encostado ao portão, lamentei a existência de tantas ninharias, de tantas coisas que ficaram por fazer, do facto de a vida estar cheia de compromissos, nos impedir de atravessar Londres para visitar um amigo, ou de apanhar um navio, rumo à Índia e ver um homem nu arpoando os peixes que vivem nas águas azuis. Disse que a vida fora imperfeita, uma espécie de frase por terminar. Fora-me impossível (pois não é verdade que aceito partilhar o tabaco que qualquer caixeiro-viajante me oferece no comboio?) ser coerente – manter o sentido das gerações que se sucedem, das mulheres que transportam ânforas vermelhas até ao rio Nilo, do rouxinol que canta entre conquistas e migrações. Comentei que o empreendimento fora demasiado grande, e isso impossibilitava-me de continuar a levantar os pés de forma a conseguir subir a escada. Falei comigo mesmo do mesmo modo que o teria feito em relação a um companheiro com quem viajasse rumo ao pólo Norte. Falei com aquele “eu” que me tem acompanhado em tantas e incríveis aventuras; o homem fiel que se senta junto à lareira a atiçar o lume quando já todos se foram deitar; o homem que se foi formando de forma tão misteriosa através de súbitos acréscimos do ser, ora junto a um salgueiro na margem de um rio ora encostado a um parapeito em Hampton Court; o homem que se uniu em momento de urgência e bateu com a colher na mesa, ao mesmo tempo que dizia: “Tal não consentirei!”. Inclinado por sobre aquele portão que dava para uma série de prados onde as cores ondulavam, este ser não me respondeu. Não me ofereceu oposição. Não tentou construir qualquer frase. Nem sequer cerrou os punhos. Esperei. Escutei. Nada surgiu, nada. Possuído pela sensação de ter sido abandonado, soltei um grito. Agora, nada mais existe. Não há barbatana que quebre a fixidez deste mar imenso. A vida destruiu-me. As palavras que digo já não têm qualquer eco. De facto, trata-se de uma morte bem mais verdadeira que a dos amigos, que a da juventude. Sou a figura enfaixada de barbearia, e ocupo pouquíssimo espaço. A cena que se estendia a meus pés como que secou. Foi como um eclipse, como se o Sol se tivesse ido embora e deixasse a terra, antes resplandecente de folhagem verde, seca, murcha. Para mais, vi que na estrada poeirenta o vento fazia dançar os grupos que antes formávamos, a forma como se juntavam, comiam junto, se encontravam nesta ou naquela sala. Vi a minha própria diligência infatigável – o modo como corria, daqui para ali, pegava e transportava, viajava e regressava, me juntava a este grupo e depois àquele, aqui beijando, ali partindo; sempre em movimento devido a um qualquer objectivo extraordinário, com o nariz colado ao chão como um cão farejando um odor; por vezes, virando a cabeça, por vezes soltando um grito de espanto ou desespero, tudo para voltar a poisar o nariz no trilho. Que desordem – que confusão; aqui com um nascimento; ali com uma morte; suculência e doçura; esforço e angústia; e eu sempre a correr de um lado para o outro. Finalmente, tudo terminara. Já não tinha mais apetites para saciar; não mais ferrões com os quais podia envenenar as pessoas; sem dentes nem garras afiadas, sem o desejo de sentir o formato das uvas e das pêras, e de ver o sol bater nos muros do pomar. Os bosques desapareceram; a terra nada mais era que um nevoeiro de sombras. Som algum quebrava o silêncio da paisagem invernosa. Galo algum cantava; o fumo deixara de subir nos ares; os comboios estavam parados. “Um homem sem eu”, disse. Um corpo pesado encostado a um portão. Um homem morto. Com um desespero apaixonado, com a maior das desilusões, examinei a dança do pó; a minha vida, a vida dos meus amigos, e ainda as presenças fabulosas de homens com vassouras, mulheres a escrever, o salgueiro junto ao rio – nuvens e fantasmas também eles feitos de pó, de um pó sempre em mudança, mais ou menos como as nuvens se unem e afastam, adquirem reflexos dourados e vermelhos, e perdem os contornos inclinando-se nesta ou naquela direcção, volúveis, fúteis. Eu, agarrado ao bloco de apontamentos, sempre a construir frases, limitara-me a registrar simples mudanças; uma sombra. Mostrara-me pronto a registrar sombras. Perguntei-me como iria continuar sem “eu”, sem peso e sem visão, através de um mundo sem peso e sem ilusões. O peso do meu desânimo abriu a porta onde me apoiava e empurrou-me, a mim, um homem de idade cheio de cabelos brancos e bastante pesado, em direcção a um campo vazio, sem qualquer cor.

O objectivo desta viagem não era ouvir ecos, ver fantasmas, chamar opositores, mas apenas caminhar sem ter qualquer sombra a me encobrir, não deixando marcas na terra morta. Se ao menos ali houvesse um carneiro a ruminar, a arrastar uma pata atrás da outra, um pássaro ou um homem enterrando uma pá no solo, se ao menos ali houvesse um espinheiro para me prender, ou uma fossa repleta de folhas úmidas onde pudesse cair – mas não, o carreiro melancólico não possuía qualquer desnível, seguindo sempre através da mesma paisagem invernosa, pálida, e sem qualquer interesse. Assim sendo, como é que a luz regressa ao mundo depois de um eclipse solar? Por milagre. Aos poucos. Em faixas muito estreitas. O outro fica suspenso como se fosse uma redoma de vidro. É um círculo que qualquer pequeno toque pode quebrar. Surge ali uma pequena cintilação, de pronto abafada por um qualquer tom pálido. Segue-se um vapor, como se a terra estivesse a respirar pela primeira vez. Então, no meio de toda aquela melancolia, alguém caminha envolto numa luz verde. Adeus fantasma branco! Os bosques são percorridos por frêmitos azuis e verdes, e, aos poucos, os campos ficam inundados de vermelhos, dourados e castanhos. De súbito, há uma luz azul que se eleva das margens do rio. A terra absorve a cor como se de uma esponja a beber água devagar se tratasse. Ganha peso; arredonda-se; fica como que pendurada; assenta e baloiça suavemente a nossos pés. E assim a paisagem acabou por me ser devolvida; vi os campos serem submersos por ondas de cor, mas desta feita com uma diferença: via mas não era visto. Caminhava a descoberto; nada me denunciava. Deixara cair a velha capa, as velhas réplicas, a mão oca que produzia sons. Esguio como um fantasma, sem deixar marcas no solo por onde caminhava, apenas me apercebendo das coisas, percorria sozinho um mundo nunca antes percorrido; roçando flores desconhecidas; incapaz de articular qualquer outra palavra para além dos monossílabos próprios das crianças; sem o abrigo das frases – eu, que tantas construí sem qualquer companhia, eu, sempre rodeado de colegas; solitário, eu, que sempre tive alguém com quem partilhar a grade vazia ou o armário com o seu puxador dourado. Mas como descrever um mundo que é visto sem um “eu”? Não existem palavras. Azul, vermelho – até mesmo eles distraem, até mesmo eles impedem a passagem da luz.

Como voltar a descrever ou a dizer qualquer coisa servindo-me de palavras artificiais? – excepto aquilo que se esbate, aquilo que sofre uma transformação gradual, acabando por se transformar, mesmo no decorrer deste curto passeio. A cegueira regressa à medida que as folhas se vão repetindo. A ternura regressa à medida que olhamos, e com ela todo um comboio de frases-fantasmas. Respira-se cada vez com mais facilidade; lá em baixo, no vale, o comboio atravessa os campos envoltos em fumo. Todavia, houve uma altura em que me sentei na relva num qualquer ponto acima do nível do mar e do som dos bosques, e vi a casa, o jardim, as ondas a se desfazerem. A velha ama que virava as páginas do livro de gravuras parou e disse: “Olha. Isto é verdade”. E assim pensava eu esta noite, ao descer Shaftesbury Avenue. Pensava naquela página do livro de gravuras. Foi então que te encontrei no sítio onde se vai pendurar o casaco e disse para comigo: “Não interessa quem se conhece. Esta história de ser já terminou. Não sei de quem se trata nem me interessa saber; jantaremos juntos”. Foi então que pendurei o casaco, te dei uma pancadinha no ombro e disse: “Anda, vem sentar-te junto a mim”. A refeição já terminou; estamos rodeados de cascas e côdeas.

Tentei quebrar este ramo e oferecer-to, mas não faço a mínima ideia se nele existe alguma verdade ou conteúdo. Para falar com franqueza, nem sei muito bem onde nos encontramos. Que cidade contemplará aquele pedaço de céu? Será Paris, Londres, ou antes uma cidade do Sul, repleta de casas de um rosa desmaiado colocadas à sombra dos ciprestes e de altas montanhas sobrevoadas por águias? De momento, não tenho a certeza. Começo agora a esquecer; começo a duvidar da rigidez das mesas, da realidade do aqui e agora, e a bater com os nós dos dedos nos contornos dos objectos aparentemente sólidos, dizendo: “És mesmo duro?”. Vi tantas coisas, construí tantas frases diferentes. Perdi-me no processo de comer, beber, e esfregar os olhos contra as superfícies finas e duras que cercam a alma, as quais, e durante a juventude, nos impedem de sair – daí a falta de remorsos e a violência característica dos jovens. Chegou agora a hora de perguntar: “Quem sou eu?”. Outra coisa não fiz até agora senão falar a respeito do Bernard, do Neville, da Jinny, da Susan, da Rhoda e do Louis. Serei eu todos eles? Serei uma criatura individual e distinta? Não sei. Houve um tempo em que nos sentávamos juntos. Mas agora o Percival e a Rhoda estão mortos; estamos divididos; não estamos aqui. Mesmo assim, sou incapaz de encontrar qualquer obstáculo a nos separar. Não existem divisões entre eu e eles. À medida que falava, sentia que “eu sou vocês”. Conseguira ultrapassar esta divisão que tanto fazemos, esta identidade que adoramos com tanto fervor. Sim, quando a velha Mrs. Constable levantou a esponja e, derramando água sobre mim, me cobriu a carne, o facto tornou-me ultra-sensível. Sinto na testa o golpe que provocou a morte do Percival. Aqui, na nuca, está a marca do beijo que a Jinny deu ao Louis. Tenho os olhos cheios com as lágrimas da Susan. Lá ao longe, estremecendo como de uma teia dourada se tratasse, vejo a coluna que a Rhoda via, e sinto a deslocação de ar provocada por ela quando se atirou. É assim que para moldar a história da minha vida e te a apresentar como algo completo, tenho de me lembrar de coisas há muito ocorridas, afundadas nesta ou naquela vila, nela se fixando; de sonhos, dos objectos que me rodeavam, e dos seres que em mim habitam, esses velhos fantasmas semi-articulados que não param de me assombrar de noite e de dia; que se agitam durante o sono, que emitem gritos confusos, que estendem os dedos fantasmagóricos e me agarram sempre que tento escapar – sombras de potenciais seres humanos; seres que não chegaram a nascer. Claro que não me posso esquecer do velho bruto, do selvagem, do homem coberto de pêlo, que se entretém a brincar com entranhas; que devora e arrota; cujo discurso é gutural, visceral – bom, ele também existe e vive em mim. Esta noite alimentou-se de codornizes, salada, e timo de vitela. De momento, tem entre as garras um copo de brandy velho. À medida que bebo, vai ronronando de satisfação. Sim, é verdade que lava as mãos antes de jantar, mas mesmo assim estas continuam peludas. Abotoa calças e coletes, mas estes contêm os mesmos órgãos. Faz birras se não lhe dou de jantar.

Não pára de fazer caretas e de apontar com gestos semi-idiotas de cobiça e ganância que o caracterizam para tudo o que deseja. Garanto-vos que, por vezes, tenho dificuldade em o controlar. Aquele homem, peludo e semelhante a um macaco, tem dado a sua regular contribuição na minha vida. Deu um brilho ainda mais verde às coisas que já o eram, levantou a sua tocha vermelha e fumarenta por detrás de todas as folhas.

Chegou mesmo a iluminar todo o jardim. Brandiu o archote em algumas vielas sórdidas onde de súbito as raparigas pareciam brilhar com uma transparência avermelhada. Oh, o certo é que elevou bem alto a sua chama! O certo é que me fez entrar em danças selvagens! Mas agora acabou-se. Esta noite o meu corpo ergue-se como se de um templo se tratasse, um templo coberto de tapetes, onde os murmúrios se elevam e o incenso arde nos altares.

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