– Foi então – disse Bernard –, que o táxi surgiu frente à porta, e, enterrando com força os bonés para assim escondermos aquelas lágrimas muito pouco viris, acabamos por ser conduzidos por ruas onde até mesmo as criadas nos olhavam, e os nossos nomes escritos a branco nas malas proclamavam a todo o mundo que íamos para a escola, transportando connosco o número permitido de meias e cuecas, onde as nossas mães haviam bordado as nossas iniciais. Tratou-se de uma segunda separação do corpo da mãe.
– E havia também a Miss Lambert, já para não falarmos da Miss Cutting e da Miss Bard – disse Jinny. – Tratava-se de senhoras imponentes, de golas brancas; pálidas, enigmáticas, com anéis de ametista colocados em dedos muito esguios, os quais percorriam as páginas dos livros de francês, geografia e aritmética; e haviam ainda os mapas, os quadros de baeta verde, e as filas de sapatos na prateleira.
– As campainhas tocavam sempre a horas – disse Susan. – As raparigas não paravam de rir e de se acotovelar. As cadeiras produziam um barulho estranho quando as arrastavam no chão forrado a oleado. Contudo, num dos sótãos podia ver-se um ponto azul e distante correspondente a um campo não contaminado pela corrupção daquela existência irreal, regulamentada.
– Os véus não paravam de cair por sobre as nossas cabeças – disse Rhoda. – Pegávamos nas flores e com elas construíamos grinaldas.
– Mudamos, tornámo-nos irreconhecíveis – disse Louis. – Expostos a todas estas luzes diferentes, aquilo que possuíamos dentro de nós (pois somos todos diferentes) veio aos poucos à superfície, em golfadas violentas, separadas por abismos vazios, tal como se um qualquer ácido tivesse caído de forma desigual numa determinada superfície. Eu fui isto, o Neville aquilo, o mesmo se passando com o Bernard e a Rhoda.
– Foi então que as canoas passaram através dos ramos levemente tingidos de amarelo – disse Neville –, e o Bernard, avançando de forma descontraída por entre os tufos verdes, contra casas de alicerces antiquíssimos, acabou por se deixar cair junto a mim. Num acesso de emoção, os ventos e os relâmpagos não podem ser mais rápidos, peguei no meu poema, atirei-lho, e fechei a porta atrás de mim.
– No entanto, e pela parte que me tocava – disse Louis –, deixando-vos partir, sentei-me no escritório, e, arrancando as páginas ao calendário, anunciei a todos os que ali iam que sexta, dia dez, ou terça-feira, dezoito, haviam amanhecido na cidade de Londres.
– Então – disse Jinny –, eu e a Rhoda, vestidas com os nossos vestidos mais bonitos e com algumas pedras preciosas a ornamentar os colares gelados que trazíamos ao pescoço, fizemos vénias, apertámos as mãos, e, sem nunca deixar de sorrir, tirámos uma ou outra sanduíche de uma enorme travessa.
– Do outro lado do mundo – disse Rhoda –, o tigre saltou e a andorinha mergulhou as asas nos lagos escuros.
– Mas agora estamos de novo juntos – disse Bernard. – Acabamos por nos juntar, nesta determinada altura, neste preciso local. O que nos faz aqui estar é uma emoção profunda e por todos partilhada. Será conveniente chamarmos-lhe amor? Deveremos dizer que sentimos amor pelo Percival, já que ele vai para a Índia?
Não, trata-se de um nome demasiado pequeno e específico. Não devemos deixar que os nossos sentimentos fiquem confinados a limites tão estreitos. Estamos todos juntos (uns vindos do Norte, outros do Sul, a Susan da sua quinta, o Louis do escritório onde trabalha) para realizarmos algo que, muito embora não seja duradouro – e, afinal, que é que o é? –, é visto ao mesmo tempo por muitos olhos. Há um cravo vermelho naquele vaso. Enquanto estávamos à espera, tratava-se de uma simples flor. Agora, transformou-se em algo com sete possíveis ângulos de observação, muitas pétalas vermelhas, rubras, algo como folhas possuidoras de estrias prateadas – uma flor completa à qual cada olho dá a sua contribuição.
– Depois dos fogos caprichosos e da horrível monotonia da juventude – disse Neville –, a luz acaba por cair em objectos reais. Somos facas e garfos. O mundo está arrumado, o mesmo se passando connosco, e só por isso podemos falar.
– As nossas diferenças talvez sejam demasiado profundas para serem explicadas – disse Louis. – Mas talvez não seja má ideia tentá-lo. Alisei o cabelo quando entrei, pois tentava tornar-me o mais parecido convosco quanto possível. Contudo, e dado não ser tão inteiro quanto vocês, trata-se de algo completamente impossível. Já vivi milhares de vidas. Desenterro uma todos os dias – escavo-a. Descubro relíquias de mim mesmo na areia que foi pisada pelas mulheres há milhares de anos, quando ouvia cânticos no Nilo e o animal encurralado batia as patas com força. Aquilo que têm à vossa frente, este homem, este Louis, é apenas o que resta de algo que já foi magnífico. Já fui um príncipe árabe – reparem na graciosidade dos meus gestos. Já fui um grande poeta no tempo da rainha Isabel. Fui duque na corte de Luís XIV. Sou muito vaidoso, muito confiante; sinto uma enorme vontade de fazer com que as mulheres suspirem por mim. Hoje, não almocei para que a Susan me considere cadavérico e a Jinny me conceda a bênção extravagante da sua simpatia. Mas, muito embora admire a Susan e o Percival, odeio todos os outros, pois é para eles que faço disparates como alisar o cabelo e tentar ocultar o sotaque.
Sou o macaquinho que faz muito barulho quando encontra uma noz; vocês são as mulheres desleixadas que transportam malas lustrosas carregadas de bolos bafientos; para mais, sou também o tigre enjaulado, e vocês são os guardas munidos de ferros em brasa. Ou seja, sou mais feroz e forte que vocês, e, contudo, aquilo que emerge à superfície depois de muitos séculos de não identidade será passado no maior dos horrores, não vão vocês rir-se de mim; esforçando-me por construir um anel de poemas comparável ao aço, o qual levará as gaivotas às mulheres de dentes estragados, as torres das igrejas aos bonés que vejo passar durante a hora do almoço, quando encosto o meu poeta preferido, será Lucrécio?, contra o galheteiro e o suporte da conta.
– Vocês nunca serão capazes de me odiar – disse Jinny. – Nunca serão capazes de me ver, mesmo que seja numa sala repleta de cadeiras douradas e embaixadores, sem de imediato atravessarem o aposento em busca da minha simpatia. Ainda agora, e assim que cheguei, tudo ficou em silêncio. Os criados pararam, os comensais levantaram os garfos e assim os mantiveram. Eu tinha ar de estar preparada para qualquer eventualidade. Quando me sentei, vocês ou levaram as mãos às gravatas ou as esconderam debaixo da mesa. Porém, eu nada tenho a esconder. Estou preparada. Sempre que a porta se abre grito Mais!. Contudo, são os corpos a minha imaginação. Nada mais consigo conceber para lá do círculo de luz provocado pelo meu próprio corpo. Este como que me precede, semelhante a uma lanterna descendo um carreiro escuro, fazendo com que todas as coisas, umas a seguir às outras, penetrem numa espécie de anel de luz. Faço-vos entontecer; levo-vos a acreditar que isto é tudo.
– Quando apareceste à porta – disse Neville –, fizeste com que tudo parasse, exigiste ser admirada, e isso constituiu um grande impedimento à forma livre como as coisas se devem relacionar. Apareceste à porta e obrigaste-nos a reparar em ti. Contudo, nenhum de vós me viu aproximar. Cheguei cedo; vim depressa e rapidamente para aqui, para assim me poder sentar junto à pessoa que amo. A minha vida possui a enorme rapidez que falta às vossas. Sou como um cão de caça a seguir um determinado odor. Caço desde o nascer ao pôr do Sol. Nada, nem a busca da perfeição, a fama ou o dinheiro, tem significado para mim. Possuirei grandes riquezas; serei famoso. No entanto, dado não possuir a agilidade corporal e a coragem que, por norma, costumam acompanhar as qualidades acima mencionadas, nunca conseguirei o que quero. O meu corpo não tem estrutura para suportar a rapidez com que penso. Falho antes de alcançar o que procuro e deixo-me cair, transformado em qualquer coisa sem forma, pegajosa, talvez mesmo revoltante. Sempre que passo por uma qualquer crise, inspiro piedade, e não amor. É por isso que sofro de forma horrível. Mesmo assim, e ao contrário do Louis, não transformo o que sinto num espectáculo. Sou demasiado realista para me dar ao luxo de participar numa farsa deste tipo. Vejo tudo, excepto uma coisa, com a maior das clarezas. É por isso que me salvo. É isso que transforma o meu sofrimento em qualquer coisa de excitante e incessante. É isso que me orienta, mesmo quando nada digo. E, dado que, pelo menos até um certo ponto, não tenho contornos definidos (a pessoa que sou muda constantemente, se bem que o mesmo não se passe no plano dos desejos), nunca começo o dia a saber de antemão com quem vou jantar. É isso que faz com que nunca estagne; que me erga mesmo depois dos piores desastres. Volto-me; mudo. Os seixos ressaltam ao embater na couraça que me reveste os músculos, o corpo. E assim acabarei por envelhecer.
– Se ao menos conseguisse acreditar – disse Rhoda –, que serei capaz de envelhecer em busca de algo e em constante metamorfose, então libertar-me-ia do medo que sinto: nada existe para sempre. Um determinado momento não conduz forçosamente a outro. A porta abre-se e o tigre salta. Vocês não me viram entrar. Fiz questão de passar por entre as cadeiras para evitar o horror do salto. Tenho medo de todos vocês.
Tenho medo do choque provocado pelas sensações que sobre mim se abatem, pois não posso lidar com elas do mesmo modo que vocês – sou incapaz de fazer com que um momento se funda noutro. Para mim, são todos violentos, separados; e, se me deixar derrubar pelo choque do salto efectuado pelo momento, vocês cair-me-ão em cima, acabando por me despedaçar. Não tenho qualquer objectivo em vista. Não sei correr de minuto a minuto, de hora a hora, misturando-os através de uma qualquer força natural até constituírem aquela massa indivisível a que vocês chamam vida. Dado terem um objectivo em vista, será sentarem-se junto a alguém, será uma ideia, será uma beleza? (não sei), os vossos dias e as vossas horas passam com a doçura dos ramos das árvores que se vão baloiçando ao vento, e com a suavidade do verde das florestas, por onde os cães de caça vão perseguindo um determinado odor. Contudo e no que me diz respeito, não há um único cheiro, um único ser a quem possa seguir. Para mais, não possuo rosto. Sou como a espuma que passa a rasar pela areia, ou como um raio de luar, que ora cai nesta lata vazia ora neste fio de alga, ou ainda num osso ou numa embarcação semicarcomida. Sou transportada para o interior das grutas e comprimida contra as paredes dos corredores como se fosse papel, e tenho de pressionar a mão, libertar a parede com toda a força, pois só assim me puxarei de volta. Mas, e dado que aquilo que mais quero é encontrar um refúgio, finjo ter um objectivo em vista, e lá vou subindo as escadas, atrás da Jinny e da Susan. Vejo-as puxar as meias e faço o mesmo às minhas. Deixo-vos falar primeiro e depois imito-vos. Vim até aqui, a este preciso lugar, não para te ver, a ti, a ti, ou a ti, mas para atear a chama que em mim existe na fogueira de todos os que vivem como um todo, de forma indivisível, sem uma preocupação.
– Esta noite, quando aqui cheguei – disse Susan –, parei e examinei tudo com os olhos colados ao chão, como se fosse um animal. O cheiro das carpetes, da mobília e dos perfumes enjoa-me. Gosto de passear sozinha pelos campos úmidos, ou de parar junto ao portão e ver o meu setter farejar em círculo como que a perguntar: “Onde é que está a lebre?”. Gosto de estar junto de quem anda sempre com uma erva nas mãos, cospe para o lume, e, de chinelos, tal como o meu pai, se vai arrastando ao longo dos caminhos. As únicas coisas que compreendo são gritos de amor, ódio, raiva e dor. Toda esta conversa é como despir uma velha cujo vestido parecia fazer parte dela, mas agora, à medida que falamos, a criatura vai revelando uma pele avermelhada, as ancas encarquilhadas, e os peitos descaídos. Voltam a ser belos assim que se calam. Nunca possuirei outra coisa para além de felicidade natural. Bastará isso para me contentar. Irei cansada para a cama. Serei como um campo cujas colheitas vão aumentando; no Verão, o sol aquecer-me-a; no Inverno, a geada fará com que fique queimada. Contudo, o frio e o calor seguir-se-ão de forma natural, sem que eu tenha qualquer coisa a ver com o facto. Os filhos dar-me-ão continuidade; as suas dores de dentes, os seus choros, as suas idas e vindas da escola serão como as ondas do mar que se estende a meus pés. O seu movimento perpetuar-se-á para todo o sempre. As estações do ano farão com que me eleve mais de qualquer um de vós. Quando morrer, possuirei muito mais do que a Jinny ou a Rhoda. Por outro lado, onde vocês são múltiplos e se unem às ideias e às gargalhadas dos outros, serei solene, sombria, sem apresentar diferenças de coloração. A paixão da maternidade, bela e animal, acabará por me desgastar. Farei tudo, até mesmo as maiores baixezas, para melhor orientar a sorte dos meus filhos. Odiarei todos os que descobrirem as suas falhas. Deixarei que construam um muro entre eu e vocês.
Para mais, a inveja já me começou a atormentar. Odeio a Jinny porque ela me faz ver que tenho as mãos vermelhas e as unhas roídas. Amo com tanta violência, que me sinto morrer quando o objecto do meu amor revela através de uma simples frase que tem poderes para me escapar. Ele escapa-se e eu fico agarrada a um fio que não pára de subir e descer por entre as folhas das copas das árvores. Não compreendo frases.
– Se ao nascer ainda não soubesse que a uma palavra se segue outra – disse Bernard –, talvez, quem sabe?, pudesse ter sido qualquer coisa. Dado que assim não foi e encontro sequências por toda a parte, não suporto o peso da solidão.
Sempre que não vejo as palavras circularem à minha volta quais anéis de fumo, sinto-me na escuridão, nessas alturas, nada sou. Quando estou só, deixo-me cair na letargia e digo para mim mesmo enquanto espevito as brasas, que a Mrs. Moffat acabará por chegar e varrer tudo. Quando o Louis está só, as coisas surgem-lhe perante os olhos com uma intensidade incrível, o que lhe permite escrever palavras que talvez nos sobrevivam. A Rhoda ama a solidão. Receia-nos porque a fazemos perder a noção de ser, que se manifesta com grande intensidade quando não está ninguém por perto, reparem como ela pega no garfo, a sua arma contra nós. No entanto, eu só existo quando o canalizador, o comerciante de cavalos, ou seja lá quem for, diz qualquer coisa que me desperta para a vida. É então que o fumo que se eleva da minha frase se torna maravilhoso, subindo e descendo, flutuando e envolvendo as lagostas vermelhas e os frutos amarelos, tornando-os maravilhosos. Todavia, reparem só na falsidade desta frase, construída de evasivas e velhas mentiras. É por isso que o meu carácter é em grande parte constituído pelos estímulos que me são fornecidos pelos outros, não me pertencendo do mesmo modo que a vossa personalidade vos pertence. Existe uma linha fatal, um qualquer veio de prata, irregular e sem rumo certo, a enfraquecê-la. Era precisamente por isso que o Neville tanto se irritava comigo no tempo em que ainda andávamos na escola e eu o deixava. Lembro-me que costumava acompanhar os rapazes gabarolas que usavam bonés e distintivos, e que se movimentavam em grandes bandos, estão aqui alguns esta noite, jantando juntos, impecavelmente vestidos, à espera do momento mais indicado para seguirem para o salão de dança. Adorava-os. O certo é que eles me fazem viver, tanto quanto vocês o fazem. Também, quando me separo de vós e o comboio parte, sei que sentem que não é este que se vai embora, mas sim eu, Bernard, que não me interesso, que não sinto, que não tenho bilhete, que talvez o tenha perdido na mala. A Susan, os olhos presos no fio que aparece por entre as folhas das faias, grita: “Ele partiu! Escapou-me!”. Não existe nada a que me possa agarrar. Estou continuamente a ser montado e desmontado. Pessoas diferentes fazem-me pronunciar palavras diferentes.
Assim, esta noite não queria estar sentado junto a apenas uma pessoa, mas sim a cinquenta. Todavia, sou o único de entre vós que se senta aqui como se estivesse em casa, e isto sem se deixar cair na vulgaridade. Não sou nem grosseiro nem snob. Se ficar exposto à pressão da sociedade, o certo é que, com a habilidade com que falo, são muitas as vezes em que consigo transpor conceitos difíceis para expressões quotidianas. Vejam como os meus brinquedos, construídos a partir do nada em apenas alguns segundos, servem de entretenimento. Não sou ganancioso – quando morrer, de mim apenas restará um armário repleto de roupas velhas – e mostro-me praticamente indiferente face às vaidades menores da vida, as quais tantas torturas causam ao Louis. Mesmo assim, tenho feito bastantes sacrifícios. Dado que em mim correm veios de ferro, prata, e até mesmo de lama, sou incapaz de tomar as atitudes firmes comuns aos que não dependem de estímulos. Não consigo recusar seja o que for, de mostrar o heroísmo do Louis e da Rhoda. Nunca serei capaz, mesmo a falar, de construir uma frase perfeita. Porém, a minha contribuição para o momento presente foi bem maior que a vossa; entrarei em mais quartos (e em quartos muito diferentes entre si) do que qualquer um de vós. Mas, acabarei por ser esquecido devido a algo que vem de fora e não de dentro; quando me calar serei lembrado como o eco de uma voz que costumava ornamentar a fruta com frases.
– Olhem – disse Rhoda. – Escutem. Reparem como a luz se vai tornando mais rica de segundo a segundo, e de como floresce e repousa em toda a parte; e os nossos olhos, à medida que percorrem esta sala com todas as suas mesas, parecem afastar as cortinas de muitas cores, vermelhas, alaranjadas, e de outras tonalidades estranhas, as quais dão a sensação de que não param de se cruzar, fazendo com que as coisas se vão fundindo umas nas outras.
– Sim – disse Jinny -, os nossos sentidos alargam-se.
Membranas, teias de nervos, tudo se espalhou, flutuando à nossa volta como se fossem filamentos, fazendo com que o ar quase possa ser tocado, o que nos torna possível escutar toda uma série de sons distantes que antes eram impossíveis de ouvir.
– Estamos cercados pelo tumulto de Londres – disse Louis. – Automóveis, carrinhas, autocarros, passam e continuam a passar sem nos dar descanso. Tudo se resume a uma enorme roda composta por um só som. Todos os sons separados, rodas, campainhas, os gritos dos bêbedos, dos folgazões, se misturam numa melodia circular, azul metalizada. É então que se ouve uma sirene. A costa vai desaparecendo, as chaminés ficando mais pequenas; o barco abre caminho rumo ao mar alto.
– O Percival vai-se embora – disse Neville. – Nós continuamos aqui sentados, formando um círculo, iluminados, coloridos; todas as coisas, mãos, cortinas, facas e garfos, os outros indivíduos que aqui jantam, se precipitam umas contra as outras, confundindo-se. Aqui, estamos emparedados. Contudo, a Índia fica lá fora.
– Estou a ver a Índia – disse Bernard. – Vejo uma praia enorme, sem dunas; vejo os caminhos tortuosos e enlameados que cercam os pagodes semi-arruinados; vejo os edifícios dourados e com ameias, os quais apresentam um tal ar de fragilidade e decadência, que dão a sensação de que foram construídos apenas para fazerem parte de uma qualquer exposição dedicada ao Oriente. Vejo dois bois a puxar uma carroça ao longo de uma estrada torrada pelo sol. A carroça não pára de baloiçar perigosamente de um lado para o outro. Uma roda acaba por ficar presa na berma, e de pronto são muitos os nativos que, envergando apenas um pano em torno das ancas, a rodeiam, falando com toda a excitação.
Contudo, nada fazem. O tempo parece não ter fim, a ambição parece ser inútil. Por sobre todos paira o sentimento de que o esforço humano de nada vale. Está-se no reino dos odores azedos. Um homem de idade, sentado na valeta, continua a mascar bétel e a contemplar o umbigo. Mas, esperem, é o Percival quem se aproxima; vem montado numa égua cheia de mordidelas de pulgas, e usa um capacete destinado a protegê-lo do sol. Através da aplicação dos métodos ocidentais, servindo-se da linguagem violenta que lhe é natural, o carro de bois fica direito em menos de cinco minutos. O problema oriental foi resolvido. Ele prossegue o seu caminho; a multidão rodeia, olhando-o como se estivesse na presença de um deus – coisa que ele de facto é.
– Desconhecido, com ou sem segredos, nada disso importa – disse Rhoda. – O certo é que ele é como uma pedra que se afunda num lago habitado por pequenos peixes. Tal como estes, também nós, que antes tínhamos andado a deambular de um lado para o outro, nos aproximamos rapidamente quando o vemos chegar. Tal como os pequenos peixes, conscientes da presença de uma enorme pedra, vamos nadando e ondulando com toda a alegria. Somos invadidos por uma sensação de conforto. Corre-nos ouro no sangue. Um, dois; um, dois; o coração vai batendo com serenidade, com confiança, num qualquer transe de bem-estar, num qualquer êxtase de benevolência; e, reparem, as partes mais distantes da terra, as sombras mais pálidas do horizonte, por exemplo, a Índia, elevam-se frente aos nossos olhos. O mundo, até agora uma superfície enrugada, torna-se liso; as províncias mais remotas são trazidas à luz do dia; vemos estradas enlameadas, selvas confusas, enxames de homens, não esquecendo o abutre que se alimenta da carne existente num qualquer corpo em putrefacção; tudo isto surge perante os nossos olhos; tudo isto pertence a uma qualquer província esplêndida e orgulhosa, pois o Percival, montado numa égua mordida pelas pulgas, vai avançando por um carreiro solitário, rodeado de árvores desoladas, até acabar por se sentar sozinho, a olhar para as montanhas gigantescas.
– É o Percival – disse Louis –, que sentado em silêncio no meio das ervas, vendo a brisa soprar as nuvens para de novo as juntar, é o Percival, dizia, quem nos faz compreender o quanto são falsas estas tentativas de dizer sou isto, sou aquilo, as quais nos vão surgindo como se fossem pedaços separados de um corpo e de uma alma. O medo fez-nos pôr qualquer coisa de parte. A vontade fez com que algo se alterasse. Tentamos acentuar as diferenças. O desejo de estarmos separados fez com que sublinhássemos os nossos erros e tudo o que nos é próprio. Contudo, há uma corrente que nos cerca, um círculo azul-metalizado.
– Poderá ser ódio, poderá ser amor – disse Susan. – Trata-se de um curso de água violento e negro, que, e se olharmos bem para ele, nos faz ficar tontos. Estamos numa espécie de parapeito, mas temos vertigens se baixarmos os olhos.
– Poderá ser amor – disse Jinny –, poderá ser ódio, mais ou menos como o que a Susan sente por mim por, certa vez, ter beijado o Louis no jardim, por, e devido aos meus atributos físicos, a ter feito pensar quando entrei: Tenho as mãos vermelhas, acabando por as esconder. Todavia, o ódio que sentimos é quase impossível de separar daquilo que chamamos amor.
– Mesmo assim – disse Neville –, estas águas tumultuosas sobre as quais construímos as nossas plataformas são mais estáveis que os gritos selvagens, fracos e inconsequentes, que emitimos quando tentamos falar; quando argumentamos e pronunciamos frases tão falsas como estas: “Sou isto; sou aquilo!”. O discurso é falso.
Porém, continuo a comer. Aos poucos, vou perdendo consciência do que como. A comida começa a pesar-me. Estes deliciosos pedaços de pato assado, devidamente acompanhados de vegetais, seguindo-se um atrás do outro numa estranha rotação de calor, de peso, de doce e de amargo, vão-me deslizando pela garganta até chegarem ao estômago, onde acabam por estabilizar o meu corpo. Sinto-me calmo, grave, controlado. Tudo se tornou sólido. Como que por instinto, o meu paladar requer e antecipa algo de doce e leve, algo de açucarado e evanescente. É então que bebo uma golada de vinho fresco, que parece cair que nem uma luva nas ramificações nervosas que palpitam no céu da minha boca, fazendo-o deslizar (à medida que bebo) para uma caverna abobadada, verde, devido às folhas de videira que nela existem, vermelha devido às uvas moscatel. Posso agora olhar a direito para o curso de água que corre a meus pés. Que nome lhe deveremos dar? O melhor é deixarmos falar a Rhoda, cujo rosto vejo reflectido no espelho que se encontra no lado oposto; a Rhoda, a quem interrompi quando ela balançava pétalas numa taça castanha, perguntando-lhe se vira o canivete que o Bernard roubara. Para ela, o amor não é um turbilhão. Não sente vertigens quando olha para baixo. Os seus olhos estão fixos muito para lá das nossas cabeças, muito para lá da Índia.
– Sim, por entre os vossos ombros, por sobre as vossas cabeças, em direcção a uma paisagem – disse Rhoda –, para um local onde as muitas montanhas íngremes parecem precipitar-se sobre nós como aves com as asas fechadas. Aí, por entre a erva curta e firme, podem ver-se arbustos de folhas escuras, e é recortando-se contra este negrume que vejo uma forma branca, mas não de pedra, e que se vai movendo. Talvez esteja viva. Contudo, não és nem tu, nem tu, nem sequer tu; não é o Percival, a Susan, a Jinny, o Neville ou o Louis, Forma-se um triângulo quando o braço branco repoisa no joelho; agora está direito, é uma coluna; agora uma fonte, caindo. Não faz qualquer sinal, não acena, nem mesmo nos chega a ver. O mar ruge atrás de si. Está para lá do nosso alcance. No entanto, é para lá que me aventuro. É para lá que me dirijo tentando preencher o vazio que sinto, tentando conseguir aumentar a duração das minhas noites e enchê-las cada vez mais de sonhos. E, até mesmo agora, até mesmo aqui, consigo atingir o objecto que procuro e dizer-lhe: “Não procures mais. Tudo o resto não passa de testes e suposições. Nada mais há para além disto.” Porém, estas peregrinações, estes momentos de ausência, começam sempre junto a vós, nesta mesa, a partir destas luzes, do Percival e da Susan, do aqui e do agora. Estou sempre a ver o meu bosque por sobre as vossas cabeças, por entre os vossos ombros, ou através de uma janela onde acabei por me encostar a olhar para a rua depois de ter atravessado o salão, decorria na altura uma festa.
– Mas, e os chinelos dele? – disse Neville. – E a sua voz ecoando pelas escadas? E o facto de o vermos quando ele não repara em ninguém? Fica-se à espera dele e ele não vem. Está-se a fazer cada vez mais tarde. Esqueceu-se. Está com outra pessoa. É infiel, o seu amor não tem qualquer significado. Oh, e depois há esta agonia, este desespero intolerável! É então que a porta se abre. Cá está ele.
– Brilhando, brilhando cada vez mais e mais, ordenei-lhe que viesse – disse Jinny. – E ele vem; atravessa a sala até chegar ao ponto onde estou sentada, com o vestido ondulando à minha volta como um véu em torno de uma cadeira dourada.
As nossas mãos tocam-se, os nossos corpos sofrem uma explosão de luz. A cadeira, a chávena, a mesa, nada fica por iluminar. Tudo estremece, tudo se incendeia, tudo arde de forma mais clara.
– Repara, Rhoda – disse Louis – transformaram-se em seres nocturnos, extasiados. Os seus olhos assemelham-se às asas das borboletas nocturnas, que se movem tão rapidamente que parecem nem se mover.
– Ouvem-se trompas e trombetas – disse Rhoda. – As folhas abrem-se, os veados vão balindo por entre o matagal.
Ouvem-se tambores e dá-se início a uma dança, qualquer coisa de semelhante às danças e aos tambores de homens nus empunhando lanças.
– Semelhante às danças dos selvagens – disse Louis –, quando estes as executam em redor da fogueira. São selvagens; são impiedosos. Dançam em círculo e empunham bexigas, chamas trepam-lhes pelos rostos pintados, cobrem-lhes as peles de leopardo e os membros sangrentos que foram arrancados aos animais quando estes ainda eram vivos.
– As chamas vão-se elevando nos ares – disse Rhoda. – A procissão vai avançando e os indivíduos que nela se integram agitam folhas verdes e ramos floridos. Das suas cornetas eleva-se um fumo azulado; a luz dos archotes faz com que as suas peles adquiram tons avermelhados e amarelos. Lançam violetas. Coroam os seres amados com grinaldas e folhas de louro, ali, no anel de turfa onde confluem as colinas íngremes. E, à medida que o faz, Louis, ambos estamos conscientes da decadência, ambos vaticinamos a ruína. A sombra inclina-se. Nós, os conspiradores, recuamos com vista a nos encontrarmos a uma qualquer urna fria, e reparamos no modo como as chamas rubras flutuam em direcção ao abismo.
– A morte ligou-se para sempre às violetas – disse Louis. – A morte e ainda outra vez a morte.
– Com que orgulho estamos aqui sentados – disse Jinny –, nós que ainda nem fizemos vinte e cinco anos! Lá fora, as árvores cobrem-se de flores; lá fora, as mulheres deslizam; lá fora, os carros descrevem curvas e contra-curvas. Emergindo depois de uma série de tentativas, depois da obscuridade e do deslumbramento da juventude, olhamos para o que se encontra à nossa frente, prontos para o que há-de vir (a porta abre-se, a porta não pára de se abrir). Tudo é real; tudo é firme, sem sombras ou ilusões. Há beleza no desenho das nossas sobrancelhas, das minhas e das da Susan. A nossa carne é firme e fresca. As diferenças que entre nós existem são tão óbvias como as sombras provocadas pela luz do Sol ao incidir numa rocha. Amarelas e bem definidas, pairam junto a nós; a toalha é branca; temos as mãos semifechadas, prontas a se contrair. Espera-nos um nunca mais acabar de dias e dias; dias de Inverno e de Verão; ainda mal tomámos posse do tesouro que nos pertence. A fruta acabou de inchar por baixo das folhas. A sala está iluminada por um halo dourado, e eu digo-lhe: Vem.
– Ele tem as orelhas vermelhas – disse Louis –, e o cheiro a carne forma como que uma rede úmida que paira sobre nós, enquanto os empregados de escritório da cidade tomam as refeições ao balcão.
– Será por termos a eternidade pela frente – disse Neville –, que perguntamos o que devemos fazer? Deveremos descer Bond Street, a olhar para aqui e para ali, acabando por comprar uma caneta de tinta-permanente só porque esta é verde, ou limitando-nos a perguntar o preço do anel com a pedra azul?
Ou deveremos antes ir para casa, ver os carvões tornarem-se rubros? Deveremos antes estender as mãos para os livros e ler esta ou aquela passagem? Deveremos explodir em gargalhadas sem qualquer razão aparente? Deveremos deambular por prados floridos e fazer coroas de margaridas? Deveremos descobrir quando parte o próximo comboio para as Hébridas e reservar um compartimento? Temos tudo isso pela frente.
– Vocês têm-no – disse Bernard –, mas ontem esbarrei contra uma coluna. Fiquei noivo.
– O aspecto destes pedacinhos de açúcar que estão junto aos nossos pratos – disse Susan –, é tão estranho! O mesmo se passa com as cascas manchadas das pêras e os aros dos espelhos. Nunca antes vira nada disto. Está tudo pronto; está tudo decidido. O Bernard está noivo. Aconteceu algo irrevogável.
As águas reflectem agora um círculo; foi-nos imposta uma corrente. Nunca mais voltaremos a flutuar em liberdade.
– Por apenas um momento – disse Louis. – Antes de a cadeia se partir, antes do regresso da desordem, vê-nos fixos, vê-nos colocados, vê-nos dispostos em círculo.
Porém, este acabou agora mesmo de se quebrar. A corrente voltou a correr. Movendo-nos ainda mais depressa que antes. Agora, as paixões que antes descansavam junto às algas escuras vêm à superfície, alarmando-nos com o barulho provocado pelo rebentar das suas ondas. Dor e ciúme, inveja e desejo, e também algo ainda mais profundo, mais forte e mais subterrâneo que o amor. Fala a voz da acção. Escuta, Rhoda (pois, com as mãos na urna fria, somos como conspiradores). Escuta os sons rápidos, casuais, excitantes, da voz da acção, dos perdigueiros farejando um carreiro. Falam agora sem sequer se darem ao trabalho de completar as frases. Utilizam uma linguagem semelhante à dos amantes. São possuídos por uma qualquer fera imperiosa. Têm os nervos à flor da pele. Os seus corações cavalgam com violência. A Susan vai amarrotando o lenço. Os olhos da Jinny dançam como que alimentados pelo fogo.
– Eles estão imunes ao toque dos dedos e à indiscrição dos olhares – disse Rhoda. – Reparem no à-vontade com que se viram e olham; nas suas poses de energia e orgulho! Quanta vida brilha no olhar da Jinny; quando procura insectos por entre as raízes, a expressão dos olhos da Susan é inteira! Os seus cabelos são brilhantes. Os seus olhos queimam, semelhantes aos dos animais que se embrenham entre as folhas farejando a presa. O círculo foi destruído. Somos atirados para um lado qualquer.
– Mas – disse Bernard –, este êxtase egotista não demora muito a terminar. O momento voraz da identidade não tarda a chegar ao fim, e o apetite que antes sentíamos pela felicidade, por uma felicidade sem fim, é engolido com sofreguidão. A pedra afunda-se; o momento já passou. Em meu redor, estende-se uma vasta margem de indiferença. Abrem-se agora mil olhares curiosos frente a mim. Qualquer um tem agora liberdade para matar o Bernard, que está noivo e vai casar, isto desde que deixe intacta esta margem de território desconhecido, esta floresta de um mundo por desbravar. Por que razão, pergunto (murmurando discretamente), estarão aquelas mulheres ali a jantar sozinhas? Quem serão? E o que as terá trazido nesta noite a este local? A avaliar pelo modo nervoso com que leva a mão à nuca de vez em quando, o jovem que está sentado naquele canto vem do campo. Tem um ar suplicante, e está tão desejoso de responder de forma conveniente à amabilidade do amigo do pai (que lhe serve de anfitrião), que mal consegue tirar prazer daquilo que às onze e meia da manhã seguinte lhe dará a maior das satisfações. Já é a terceira vez que vejo aquela senhora empoar o nariz no decorrer de uma conversa absorvente, talvez que a respeito do amor, talvez que a respeito da infelicidade que se abateu sobre a sua melhor amiga. É então que se lembra, “Ah, não me posso esquecer do nariz!”. Dito isto, pega na borla de pó-de-arroz e com ela dissolve todos os sentimentos mais calorosos do coração humano. Contudo, continua por solucionar o problema do homem solitário e do seu olho de vidro, bem assim como o da mulher de idade que bebe champanhe sem que ninguém a acompanhe. Quem e o quê serão estas pessoas desconhecidas?, pergunto. Poderia construir dúzias de histórias a respeito do que ambos disseram, posso ver dúzias de imagens. No entanto, o que são as minhas histórias? Brinquedos com que me entretenho, bolas de sabão que sopro, um anel passando através de outro. Para mais, às vezes começo a duvidar da sua existência. O que é a minha história? O que é a história da Rhoda? E a do Neville? É certo que existem factos, como por exemplo: O jovem de fato cinzento, indivíduo bem-parecido e cuja reserva contrastava de forma estranha com a loucura dos outros, sacudiu as migalhas do colete, e, com um gesto simultaneamente autoritário e benevolente, fez sinal ao criado, que de imediato se voltou, regressando instantes mais tarde com a conta dobrada de forma discreta em cima de uma bandeja. Tudo isto é verdade; tudo isto constitui um facto, mas para além dele só existem conjecturas e escuridão.
– Mais uma vez – disse Louis –, agora que estamos prestes a nos separar (já pagámos a conta), o círculo que nos corre pelas veias volta a se formar, mesmo depois de ter sido quebrado tantas vezes e de forma tão abrupta. Algo se conseguiu. Sim, quando nos levantamos, um pouco nervosos, rezamos uma espécie de oração que transmite este sentimento comum, Não se mexam, não deixem que a porta de vaivém destrua aquilo que construímos e se concentra aqui, entre estas luzes, estas cascas, estes montes de côdeas de pão e de gente a passar. Não se mexam, não se vão embora. Deixem-se ficar para sempre.
– Vamos mantê-lo assim por um momento – disse Jinny –, amor, ódio, seja qual for o nome por que o chamemos, a este globo cujas paredes só existem devido ao Percival, à juventude e à beleza, e também a algo tão profundamente interiorizado em nós, que é provável que nunca se venha a conseguir um momento igual a este.
– Estão aqui representadas as florestas e os países distantes que existem do outro lado do mundo – disse Rhoda. – Mares e selvas; os uivos dos chacais e o luar caindo num qualquer pico sobre o qual a águia paira.
– Estão aqui representadas a felicidade e a paz das coisas comuns – disse Neville. – Uma mesa, uma cadeira, um livro com uma faca de papel enfiada entre as páginas. A pétala a cair da rosa e a luz brilhando à nossa volta, quer quando estamos em silêncio quer quando dizemos uma qualquer trivialidade.
– Estão aqui contidos os dias da semana – disse Susan. – Segunda, terça, quarta; os cavalos a subir os campos e o seu posterior regresso; as gralhas voando para cima e para baixo, envolvendo os ulmeiros na sua rede, e isto quer em Abril quer em Novembro.
– Estão aqui contidos todos os momentos que hão-de vir – disse Bernard. – Trata-se da última gota, e também da mais brilhante, que deixamos cair no momento maravilhoso criado em nós pelo Percival.
Que virá a seguir?, pergunto, sacudindo as migalhas do colete. O que me espera lá fora? Provámos, pelo simples facto de termos estado aqui sentados, a comer e a falar, que podemos trazer algo de novo à arca dos tesouros. Não somos obrigados a vergar as costas e a apanhar todas as chicotadas que nos quiserem dar. Também não somos carneiros, prontos a seguir um mestre. Somos criadores. Construímos algo que se juntará aos inúmeros feitos do passado. Também nós, à medida que pomos os chapéus e abrimos a porta, saímos de encontro a um mundo que a nossa força pode subjugar, fazendo-nos pertencer àquela estrada iluminada e eterna, e não ao caos.
Agora, enquanto eles chamam o táxi, talvez não seja má ideia dares uma olhadela ao que vais perder, Percival. A estrada é dura e polida devido ao passar de muitas rodas. O dossel amarelo da enorme energia que emanamos paira por sobre as nossas cabeças como um tecido a arder. Essa luz é provocada por toda a espécie de teatros, salões de música e candeeiros acesos nas habitações.
– Nuvens pontiagudas – disse Rhoda –, viajamos por um céu escuro, semelhante a ossos de baleia polidos.
– É agora que começa a agonia; é agora que o terror me agarra com as suas garras – disse Neville. – É agora que o táxi chega; é agora que o Percival parte. Que podemos nós fazer para o manter junto a nós? Como encurtar a distância que nos separa? Como atiçar este fogo de forma a fazê-lo arder para sempre? Como registrar para todo o sempre que nós, os que aqui se encontram nesta rua iluminada, amámos o Percival? Ele já nos abandonou.
O Sol atingira o ponto mais alto. Deixara de se mostrar semi-oculto e semipressentido através de insinuações subtis e brilhos, tal como se fosse uma jovem repousando num manto verde-marinho, a fronte enfeitada de jóias semelhantes a gotas de água, das quais, e vistas sob determinados ângulos, se elevam luzes opalinas que faiscam no ar como se de flancos de golfinhos a saltar ou lâminas cortantes se tratasse. Era agora impossível negar o ardor intenso do sol. Os seus raios batiam na areia dura, e as rochas transformavam-se em fornos rubros; nem os mais pequenos charcos lhes escapavam, o mesmo se passando com os peixes minúsculos que neles se ocultavam por entre as algas. Nada do que fora deixado na areia lhes conseguia fugir. A roda enferrujada, o osso branco, ou até mesmo a bota sem atacadores, negra como uma barra de ferro. Conferiam a todas as coisas a medida exacta de cor; os incontáveis brilhos característicos das dunas, o verde lustroso das ervas selvagens; ou então deixavam-se cair na vastidão do deserto, aqui enrugado pelo vento, ali varrido para dentro de dólmens abandonados, acolá manchado pelo verde-escuro das árvores típicas da selva. Iluminavam as cúpulas douradas das mesquitas, as frágeis casas cor-de-rosa e brancas características do Sul, e as mulheres de peitos grandes e cabelos brancos que se ajoelhavam junto ao rio, batendo as roupas enrugadas contra as pedras. O olhar impávido do Sol abarcava os navios a vapor que vogavam devagar pelas águas do mar, e, atravessando a cobertura construída pelos toldos amarelos, batia nos passageiros que dormitavam ou passeavam no convés, os quais se viam obrigados a proteger os olhos com a mão, à medida que, dia após dia, comprimido nos seus flancos oleados, o navio os continuava a transportar de forma monótona através das águas.
O sol batia nos cumes apinhados das encostas do sul, reflectindo-se nos leitos rochosos e profundos dos rios, sobretudo nos locais onde a água se apertara contra os pilares esguios das pontes de tal forma que as lavadeiras ajoelhadas nas pedras escaldantes mal tinham espaço para umedecer as roupas e onde as mulas escanzeladas abriam caminho por entre pedras cinzentas, transportando alforjes por sobre o dorso estreito. Ao meio-dia, o calor do sol tornava cinzentas as montanhas, tal como se tivessem sido desnudadas e queimadas durante uma qualquer explosão, enquanto, mais a norte, nos países mais enevoados e chuvosos as colinas adquiriam a suavidade de uma laje e uma luz própria, como se uma sentinela, oculta nas profundezas fosse caminhando pelas diversas câmaras transportando um lampião verde. O Sol atingia os campos ingleses escoando-se através de átomos de ar cinzento-azulados, iluminando pântanos e charcos, uma gaivota branca pousada num mastro, o lento pairar das sombras por sobre os bosques e os campos de milho novo e feno ondulante.
Incidia na parede do pomar, e os grãos de todos os tijolos pareciam iluminados por uma luz prateada, rubra, mas que, e ao mesmo tempo dava a sensação de ser suave ao toque, como se o simples facto de ser tocada fizesse com que se derretesse em grãos de poeira. As groselhas apoiavam-se ao muro, provocando cascatas de um vermelho lustroso; as ameixas rompiam por entre as folhas, e todas as tonalidades de erva se uniam numa torrente fluida de verde. A sombra das águas afundava-se num ponto escuro junto às raízes. A luz que caía em cascatas dissolvia a vegetação separada, transformando-a numa única mancha verde.
As aves entoavam com fervor melodias destinadas apenas a um emissário, depois do que paravam. Emitindo toda a espécie de ruídos abafados, transportavam pequenas palhas e raminhos, juntando-os nos escuros nós situados nos ramos mais altos das árvores. Douradas e purpúreas, empoleiravam-se nos ramos existentes no jardim, onde cones de laburno e carmim albergavam manchas douradas e lilases, pois que agora, ao meio-dia o jardim não podia estar mais florido, e até os túneis por baixo das plantas apresentavam tons de verde, vermelho e amarelo-torrado, consoante o sol se escoava através de pétalas encarnadas e amarelas, ou tivesse dificuldade em atravessar um qualquer caule mais grosso.