O sol incidia directamente na casa, fazendo luzir as paredes brancas situadas entre as janelas escuras. As vidraças, unidas com os ramos verdes numa trama quase que inseparável, construíam círculos de uma escuridão impenetrável. Triângulos de luz possuidores de contornos bem definidos poisavam nos parapeitos das janelas, revelando o conteúdo das diversas salas: pratos enfeitados de anéis azuis, chávenas com pegas curvas, a forma de uma qualquer tigela de grandes dimensões, o padrão axadrezado do tapete, e todos os recantos e paredes forrados com papeleiras e estantes. Para lá deste conglomerado situava-se uma zona de sombras, na qual talvez se pudesse descobrir uma qualquer outra forma, ou nada mais existisse para além de abismos ainda mais profundos de escuridão.
As ondas quebravam-se, espalhando as águas com suavidade ao longo da praia. Uma a seguir à outra, enrolavam-se e caíam; devido à energia com que o faziam, as gotas eram obrigadas a recuar. As ondas apresentavam uma coloração azul profunda excepto no que respeitava a um ponto luminoso em forma de diamante situado na crista, que se encrespava de forma semelhante à que acompanha os movimentos dos músculos dos cavalos. As ondas quebravam; recuavam e voltavam a quebrar, emitindo um som semelhante ao que é provocado pelo bater das patas de um animal de grande porte.
– Morreu – disse Neville. – Caiu. O cavalo tropeçou.
Foi cuspido. As velas do mundo giravam com violência e atingiram-me em cheio na cabeça. Tudo terminou. Apagaram-se as luzes do mundo. Aquela é a árvore através da qual não passo.
Oh, se eu pudesse rasgar este telegrama – devolver a luz ao mundo – dizer que isto não aconteceu! Mas para quê bater com a cabeça nas paredes? Trata-se da verdade. Trata-se de um facto. O cavalo tropeçou; ele caiu. As árvores brilhantes e a vedação branca estilhaçaram-se em mil pedaços. Toldou-se-lhe o olhar; sentiu um tambor ressoar junto aos seus ouvidos. Só então se deu a explosão; o mundo desabou; faltou-lhe o ar. Morreu ao chegar ao solo.
Celeiros e dias estivais passados no campo, salas onde nos sentamos – tudo isso pertence agora a um mundo irreal que já não existe mais. Deixei de ter passado. Os outros aproximaram-se a correr. Levaram-no para um qualquer pavilhão; tratava-se de homens com botas de montar e chapéus coloniais. Morreu entre desconhecidos. Era com frequência que a solidão e o silêncio o rodeavam. E depois, ao voltar, eu dizia sempre “Olhem quem lá vem!”.
As mulheres andam como se na rua não existisse um abismo, nenhuma árvore de folhas rijas através da qual é impossível passar. Não há dúvida de que merecemos ser soterrados. Somos terrivelmente abjectos, avançando de olhos fechados. Mas por que razão me deverei submeter? Para quê tentar erguer o pé e subir as escadas? É aqui que me encontro; aqui, a segurar o telegrama. O passado (os dias estivais e as salas onde nos sentávamos) vão desaparecendo como se fossem papéis queimados contendo olhos vermelhos.
Para quê marcar encontros e retomar velhas amizades? Para quê falar, comer, e combinar coisas com outras pessoas? Estarei sempre só a partir de agora. Ninguém mais me conhecerá. Tenho três cartas. “Vou jogar quoits com um coronel, por isso fico por aqui.” É assim que ele termina a nossa amizade, abrindo caminho por entre a multidão ao mesmo tempo que se despede com um aceno. Esta farsa não merece que a voltemos a celebrar em termos formais. Contudo, se alguém tivesse dito “Espera”, talvez ele tivesse apertado melhor a correia – talvez vivesse por mais cinquenta anos e acabasse por arranjar lugar na corte, comandando tropas e denunciando tiranias monstruosas, tudo para acabar por regressar para junto de nós.
Digo agora que existe um sorriso, uma evasiva. Existe algo que ri de forma escarninha nas nossas costas. Aquele rapaz quase que caía ao subir para o autocarro. O Percival caiu; morreu; está enterrado; e eu vejo as pessoas passarem; agarrar-se com força aos varões dos autocarros, determinadas a salvar a vida.
Não levantarei o pé para subir a escada. Vou-me deixar ficar um pouco mais debaixo desta árvore insaciável, a sós com o homem do pescoço cortado, enquanto no andar de baixo a cozinheira se ocupa do fogão. Não subirei a escada. Estamos condenados, todos nós. As mulheres vão passando a correr, carregadas com os sacos das compras. As pessoas não param de correr. Porém, vocês não me vão destruir. Durante este instante, este breve instante, estamos juntos. Aperto-vos contra mim. Vem, dor, alimenta-te em mim. Enterra as tuas presas na minha carne. Desfaz-me em pedaços. Soluço, soluço.
– Assim é a incompreensível combinação das coisas – disse Bernard –, assim é a complexidade das coisas. O certo é que, enquanto vou descendo as escadas, não sei distinguir a dor da alegria. O meu filho nasceu; o Percival está morto. Vou-me apoiando aos pilares; estou rodeado por emoções fortes; todavia, como distinguir a tristeza da alegria? Faço esta pergunta a mim mesmo e não encontro qualquer resposta. Sei apenas que preciso de silêncio, de estar só e de sair daqui, e de passar uma hora a meditar sobre o que aconteceu ao meu mundo, que tipo de morte nele ocorreu.
É então este o mundo que o Percival nunca mais verá.
Deixa-me olhá-lo. O carniceiro entrega carne na porta ao lado; dois velhotes arrastam-se pela calçada; os pardais levantam voo.
Há ali uma máquina a funcionar; sinto o seu ritmo, e dado ele já não a ver, encaro-a como algo de que já não faço parte. (A estas horas, o seu corpo pálido e amortalhado repousa numa qualquer sala.) Chegou agora a minha oportunidade de descobrir o que é de facto importante, e para tal devo ter muito cuidado e não dizer mentiras. O que sentia a seu respeito resume-se a isto: ele ocupava o lugar central. Já não vou mais a esse ponto.
O lugar está vazio.
Oh, sim, posso garantir-vos, homens de chapéus de feltro e mulheres transportando cestos – perderam algo que vos seria de grande valor. Perderam um chefe que não teriam relutância em seguir; e uma de vós perdeu a felicidade e os filhos.
Aquele que vos daria tudo isto está agora morto. Está em cima de uma maca, enrolado em ligaduras, num qualquer hospital indiano, isto enquanto os nativos, sentados no chão, agitam aqueles leques – esqueci-me de como se chamam. Contudo, “isto é importante; Vocês não sabem de nada”, disse, ao mesmo tempo que as pombas poisavam nos telhados e o meu filho nascia. Lembro-me bastante bem do ar de desapego que o caracterizava enquanto rapaz. E lá acabo por dizer (os meus olhos vão-se enchendo de lágrimas que secam quase no mesmo instante) que: “Mas isto é melhor do que aquilo que se poderia esperar”. É isto que digo, dirigindo-me ao abstracto, vendo-me cego no fundo da avenida, no céu: “Será que não podes fazer mais nada?”. Acabamos por triunfar. “Fizeste tudo o que podias”, digo, falando com aquele rosto vazio, brutal e sem qualquer préstimo (pois ele só tinha vinte e cinco anos e devia ter vivido até aos oitenta). Não me vou deitar no chão e chorar toda uma vida. (Temos aqui uma boa entrada para a minha agenda; desprezo por todos aqueles que impõem mortes sem sentido.) Para mais, e isto é importante, eu devia ter sido capaz de o ter colocado em situações banais e ridículas, pois só assim evitaria encará-lo como algo absurdo, montado num enorme cavalo. Devia ter sido capaz de dizer: “Percival mas que nome, tão ridículo!”. Contudo, deixem-me que vos diga, homens e mulheres que se precipitam para a estação de metropolitano, que teriam de o respeitar. Teriam de se alinhar atrás dele e segui-lo. É tão estranho abrir caminho ao longo de multidões que vêem a vida através de olhos vazios, escaldantes.
Todavia, registra-se já a existência de sinais, chamamentos, tentativas de me fazer voltar atrás. A curiosidade só pode ser eliminada durante breves instantes. Não se pode viver fora da máquina durante mais de meia hora. Reparo que os corpos começam a parecer-se vulgares. Porém, há qualquer coisa por trás deles que não é a mesma – a perspectiva. Por detrás daquela banca de jornais encontra-se o hospital; uma sala enorme onde homens de pele escura puxam cordas; é então que o enterram. Mesmo assim, e dado que num dos jornais se fala no divórcio de uma actriz famosa, sou incapaz de perguntar: “Quem?”. Todavia, não consigo puxar da carteira; não consigo comprar o jornal, ainda não consigo ser interrompido.
Pergunto-me de que modo poderemos comunicar se nunca mais te verei, se nunca mais poderei fixar o olhar na solidez que te caracterizava. Foste avançado através do pátio, enlaçando-nos na teia que nos ligava. De qualquer dos modos, existes em alguma parte. Restam ainda vestígios de ti. O papel de juiz. Ou seja, se descobrir em mim uma nova veia, por certo a submeterei à tua apreciação. Perguntarei: “Qual o teu veredicto?”. Continuarás a ser o árbitro. Mas por quanto tempo? As coisas tornar-se-ão demasiado difíceis para serem explicadas de forma adequada: existirão coisas novas; o meu filho é uma delas. Atingi o zênite da minha experiência. A ele se seguirá o declínio. Deixei de exclamar “Que sorte!” de um modo convicto. Acabou-se a exaltação, o voo das pombas cruzando os céus. Assisto ao regresso do caos. Já não me espanto com os nomes escritos por cima das montras das lojas. Deixei de sentir. “Para quê apressar-me? Para quê apanhar o comboio?” As coisas regressam como em sequência; despoletam-se mutuamente – a ordem do costume.
Todavia, continuo a me ressentir da ordem do costume. Ainda me recuso a aceitar de ânimo leve a sequência dos factos. Andarei; não vou alterar o ritmo da minha mente só porque paro e olho; continuarei a andar. Vou subir estes degraus, entrar na galeria e submeter-me à influência de uma série de mentes iguais à minha, tudo fora da sequência. Tenho pouco tempo para responder à pergunta; o meu poder enfraquece; torno-me apático. Cá estão os quadros. Cá estão as frias madonas entre as suas colunas. Elas que façam parar a actividade incessante desta espécie de olho mental, elas que façam parar as imagens da cabeça envolta em ligaduras e dos homens com as cordas, pois só assim poderei encontrar qualquer coisa que não se veja. Cá estão os jardins; e Vênus por entre as flores; cá estão os santos e as madonas de ar triste. Felizmente, trata-se de imagens que a nada aludem; não apontam; não nos chamam a atenção com cotoveladas. É assim que expandem a consciência que dele tenho, devolvendo-mo de maneira diferente. Recordo o quanto era belo. “Reparem, lá vem ele”, dizia.
As linhas e as cores quase me convencem de que posso ser um herói, eu, que construo frases com tanta facilidade. De imediato, me sinto seduzido, pronto para amar o que vem a seguir, incapaz de cerrar os punhos, vacilante, construindo frases de acordo com as circunstâncias. Agora, devido à dor que sinto, descubro o que ele era: o meu oposto. Dado ser verdadeiro por natureza, não via qualquer interesse em exagerar, deixando-se levar por uma percepção natural do que era próprio. De facto, tratava-se de um grande mestre da arte de viver, pois só assim se explicava a sensação de que viveu durante muito tempo, tendo também espalhado uma grande calma à sua volta. Talvez que a isto se possa chamar “indiferença”. Contudo, temos de dizer que nele também existia uma grande dose de compaixão. Uma criança a brincar – um entardecer estival, as portas irão continuar a se abrir e fechar, e através delas verei sinais que me farão chorar. Trata-se de coisas que não podem ser partilhadas. Daí a solidão e o desamparo que nos caracterizam. Viro-me para esse ponto da mente e encontro-o vazio. Sinto-me oprimido pelos meus próprios defeitos. Já não o tenho para dele contrastar.
Reparem naquela madona de olhos rasos de água. É este o meu serviço fúnebre. Não temos cerimônias, apenas cânticos privados e nada de conclusões, apenas sensações violentas, todas separadas umas das outras. Nada do que foi dito nos serve. Estamos sentados na sala italiana da National Gallery, e outra coisa não fazemos senão recolher fragmentos. Duvido que Ticiano tenha alguma vez sentido este ratinho a roer. Os pintores levam uma vida de absorção metódica, adicionando pinceladas. Não são como os poetas – bodes expiatórios; não estão acorrentados a rochas. Daí o silêncio, a sensação do sublime. Mesmo assim, aquele vermelho deve ter-lhe queimado a garganta. Sem dúvida que se elevou nos ares, segurando uma enorme cornucópia, e acabou por ser tragado por ela. Porém, o silêncio pesa-me – a solicitação permanente da vista. Trata-se de uma pressão intermitente e abafada. Pouco distingo e vejo-o de forma vaga. Carreguei na campainha mas ela não toca nem dela saem quaisquer sons. Há um qualquer esplendor que me excita; o vermelho forte contrastando com o verde; o curso dos pilares; a luz alaranjada espreitando por detrás das folhas escuras das oliveiras. Sinto-me percorrido por vagas de sensação, mas estas são desordenadas.
Contudo, algo se veio juntar à minha interpretação. Há em mim qualquer coisa de profundamente oculto. Por instantes, cheguei mesmo a pensar tê-la descoberto. Mas o melhor será enterrá-la, enterrá-la; deixá-la crescer oculta nas profundezas do espírito, para que um dia venha a dar frutos. Talvez que no fim da vida, num momento de revelação, a venha a agarrar, mas agora a ideia escapa-se-me por entre as mãos. Por cada ideia que consigo agarrar, são mil as que me escapam. Quebram-se; caem sobre mim. “As linhas e as cores sobrevivem”, por isso...
Bocejo. Estou cansado de sensações. Estou cansado devido à tensão e ao tempo – vinte e cinco minutos, meia hora – que passei a sós, fora da máquina. Sinto-me entorpecido. Como estilhaçar esta apatia que em nada honra o meu coração compassivo? Existe mais gente a sofrer – são muitos os que o fazem. O Neville deve estar a sofrer. Amava o Percival. Porém, já não consigo suportar extremos; quero alguém com quem possa rir, com quem possa bocejar, com quem possa recordar o modo como ele coçava a cabeça, alguém de quem ele gostasse e com quem se sentisse à vontade (não pode ser a Susan, pois ele amava-a, mas antes a Jinny). Para mais, poderei penitenciar-me no seu quarto. Poderei perguntar-lhe: “Ele contou-te que certo dia me recusei a acompanhá-lo a Hampton Court?”. São estes os pensamentos que me farão acordar sobressaltado a meio da noite – os crimes pelos quais nos vemos obrigados a fazer penitência todos os dias; que certa vez me recusei a ir com ele a Hampton Court.
Mas agora quero voltar a sentir-me rodeado pela vida, por livros e pequenos ornamentos, e também pelos sons habituais feitos pelos mercados a apregoar as suas mercadorias. Depois desta revelação, quero repousar a cabeça e fechar os olhos.
Assim, vou descer as escadas, apanhar o primeiro táxi que encontrar, e seguir para casa da Jinny.
– Há ali uma poça – disse Rhoda –, e não a consigo atravessar. Escuto o ruído da mó, que me chega vindo de um ponto a escassos centímetros da minha cabeça. O vento ruge quando me bate no rosto. Todas as formas palpáveis da vida me abandonaram. Serei sugada pelo corredor eterno se não conseguir agarrar nada de sólido. Sendo assim, em que poderei tocar. Que tijolo, que pedra, me possibilitará regressar ao meu corpo em segurança?
A sombra caiu e a luz incide de forma oblíqua nas coisas. A figura que antes estava envolta em beleza, não passa agora de um objecto arruinado. A figura que antes se encontrava no bosque onde as colunas se juntavam não passa agora de destroços. Foi isso que lhe disse quando todos afirmaram amar a sua voz, os sapatos velhos que usava, e os momentos em que se juntavam.
Preparo-me para descer Oxford Street e enfrentar um mundo iluminado pelos relâmpagos; verei os ramos dos carvalhos, até então floridos, quebrarem-se e adquirirem uma coloração avermelhada. Irei até Oxford Street comprar meias para ir a uma festa. Farei as coisas do costume iluminada pelo brilho dos relâmpagos. Colherei violetas, farei com elas um ramo e entregá-las-ei ao Percival. Serão a prenda que lhe darei. Reparem agora no que ele me ofereceu. Reparem na rua agora, depois de o Percival ter morrido. Os alicerces das casas são de tal maneira fracos, que estas podem ser arrastadas pela mais ligeira brisa. Semelhantes a mastins sangrentos, os automóveis passam por nós a correr e a rugir. Estou só num mundo hostil.
O rosto humano é hediondo. As coisas estão como eu gosto. Quero que a violência e a publicidade deslizem pelas ruas como pedras durante uma avalancha. Gosto das chaminés das fábricas, das gruas e dos camiões. Gosto deste desfilar incessante de rostos deformados, indiferentes. Estou farta da beleza; estou farta da privacidade. Cavalgo as ondas e afundar-me-ei sem que haja alguém para me salvar.
Pelo simples facto de ter morrido, o Percival deixou-me este presente, revelou-me este terror, fez-me passar esta humilhação – rostos e mais rostos, sucedendo-se como pratos de sopa servidos por moços de cozinha; rudes, gananciosos, vulgares; os olhos postos nas montras das lojas; cobiçando, varrendo e destruindo tudo. Até mesmo o nosso amor se tornou impuro depois de ter sentido o contacto dos seus dedos sujos.
Cá está a loja onde se vendem meias. Chego mesmo a acreditar que a beleza está outra vez em movimento. Ouço-a sussurrar ao longo dos corredores, através das rendas, respirando por entre os cestos de fitas coloridas. Afinal, sempre existem nichos protectores gravados no coração da tempestade; refúgios silenciosos onde nos podemos esconder da verdade ocultando-nos sob as asas da beleza. A dor fica como que suspensa quando vejo uma rapariga abrir uma gaveta no maior dos silêncios. É então que fala. O som desperta-me. A sua voz transporta-me ao fundo do mar. Lá, por entre as algas, vejo a inveja, o ciúme, o ódio e o desprezo rastejarem como caranguejos por sobre a areia. São estes os nossos companheiros. Pagarei a conta, só então partindo com o embrulho que me pertence.
Estou em Oxford Street. Aqui se concentram o ódio, a inveja, e também a indiferença, precipitando-se depois contra a fachada daquilo a que chamamos vida. O certo é que acabam por nos acompanhar. Pensemos nos amigos com quem nos sentamos para jantar. Vem-me à ideia o Louis, a ler a página desportiva de um qualquer jornal da tarde, cheio de medo de cair no ridículo; um snob. Se lhe submetêssemos, acabaria por mandar em nós. A melhor forma que encontrou para mitigar a dor provocada pela morte do Percival é olhar fixamente para o galheteiro, para lá dos prédios, até nada mais ver para além do céu. Enquanto isso, até nada mais ver para além do céu.
Enquanto isso, e de olhos vermelhos, o Bernard afunda-se numa poltrona. Acabará por puxar do bloco-notas: escreverá o seguinte na letra M: “Frases para serem usadas por ocasião da morte de amigos”. A Jinny, atravessando a sala a dançar, irá sentar-se no braço da poltrona em que o Bernard se encontra e perguntar-lhe-á: “Ele amava-me? Mais do que à Susan?” Esta última, noiva de um agricultor da sua terra, olhará para o telegrama durante alguns segundos sem deixar de segurar o prato que tem numa das mãos; depois, com o tornozelo, fechará a porta do forno. O Neville, depois de ter chorado durante algum tempo frente à janela, acabará por ver através das lágrimas e perguntar: “Quem está a passar lá fora?”
– “Qual o rapaz mais belo que por aí anda?”
É esta a homenagem que presto ao Percival; um ramo de violetas escuras, murchas.
Assim sendo, para onde ir? Talvez que para algum museu onde existam anéis dentro de redomas de vidro, armários e vestidos usados por rainhas. Ou deverei antes ir para Hampton Court e ficar a olhar para as paredes vermelhas, os pátios e toda aquela massa compacta de teixos que projectam na erva e nas flores as suas sombras negras e em forma de pirâmide?
Será lá que recuperarei o sentido de beleza, impondo ordem na minha alma atormentada? Ao fim e ao cabo, que se pode fazer quando se está só? Limitar-me-ia a permanecer na erva vazia e a dizer: “As gralhas voam; alguém passa transportando uma mala; o jardineiro empurra um carrinho de mão”. Ficaria numa fila, sujeita a sentir o cheiro a suor dos outros e a apanhá-lo como que por contágio. Seria comprimida contra as pessoas como se fosse um rolo de carne comprimido contra outros rolos de carne.
Vejo um salão onde se paga para entrar e onde se pode escutar música por entre grupos de gente sonolenta que até aqui se deslocou nesta tarde quente, depois do almoço. Comemos carne e pudim em quantidade suficiente para sobreviver durante uma semana sem tocar nos alimentos. É por isso que nos juntamos aos magotes e nos recostamos contra o fundo de qualquer coisa que nos transporte. Com todo o decoro e dignidade – por baixo dos chapéus, temos madeixas bem penteadas de cabelo branco; sapatos elegantes; malinhas de mão, rostos bem escanhoados; aqui e ali vêem-se alguns bigodes militares. Não foi permitido o mais pequeno grão de poeira no nosso pano de primeira qualidade. Sentamo-nos a abrir os programas e a cumprimentar os amigos. Parecemos morsas empoleiradas nas rochas. Somos como corpos demasiado pesados para seguir rumo ao mar. Imploramos que uma onda nos levante, mas somos demasiado pesados e entre nós e o mar existe uma vasta extensão de terreno coberta de seixos. Lá nos vamos deixando ficar, enfartados de tanta comida e entorpecidos pelo calor. É então que, inchada mas envergando num traje de cetim escorregadio, uma sereia verde resolve vir em nosso socorro. Morde os lábios, assume um ar de intensidade, insufla-se e eleva-se nos ares quase que no mesmo instante, tal como se tivesse visto uma maçã, e o som por ela emitido, “Ah!” fosse uma flecha.
Sei de uma árvore que foi cortada ao meio por um machado; a seiva ainda está quente; a casca é percorrida por muitos sonos. “Ah!”, gritou uma mulher ao amante, inclinando-se da janela, em Veneza. “Ah, ah!”, gritou, apenas para o voltar a fazer: “Ah!”. Brindou-nos com um grito, e apenas com um grito. Porém, qual o significado de um grito? É então que chegam os homens-escaravelhos com os seus violinos; esperam; contam; acenam; baixam os arcos. Ouvem-se então murmúrios e gargalhadas. Lembramo-nos então da dança das oliveiras e da grande quantidade de línguas faladas pelas suas folhas cinzentas sempre que uma qualquer sereia aparece na praia, a mordiscar um qualquer raminho.
Semelhanças, semelhanças e ainda mais semelhanças – mas, afinal, que será que se oculta por trás da aparência das coisas? Agora, depois de o raio ter fulminado a árvore, de o ramo florido se ter abatido no chão, e de o Percival (pelo simples facto de estar morto) me ter legado tudo isto, talvez agora tenha chegado o momento de analisar a questão. Ali está um quadrado; ali está um rectângulo. Os músicos pegam no quadrado e colocam-no no rectângulo. Fazem-no com bastante precisão; ficamos com a ideia de que não podiam ter feito melhor. Pouco é deixado de fora. A estrutura torna-se visível; registra-se agora o começo; não somos nem tantos nem tão mesquinhos; construímos triângulos e colocamo-los em cima de quadrados. É este o nosso triunfo; é este o nosso consolo.
A doçura própria desta alegria escorre pelas paredes da minha mente, libertando a compreensão. “Não vagueis mais”, digo, “chegaste ao fim”. O rectângulo foi colocado por cima do quadrado; a espiral está no topo. Fomos transportados por sobre os seixos até atingirmos o mar. Os músicos estão de volta. Contudo, desta vez estão a fazer carretas. Deixaram de se mostrar tão janotas e joviais como antes. Acabarei por partir.
Esta tarde, farei uma peregrinação. Irei a Greenwich. Sem revelar qualquer espécie de medo, entrarei em eléctricos e autocarros. À medida que descemos Regent Street e vou sendo atirada ora contra esta mulher ora contra este homem, o facto não me irrita nem me ultraja. Há um quadrado em cima de um rectângulo. Cá estão as ruas pobres, onde é costume regatear nos mercados; onde todo o tipo de ferro, lingueta e parafuso é posto de lado, e onde as pessoas se movem pelos campos como que em enxames, beliscando carne crua com os dedos grossos. A estrutura é bem visível. Acabamos por a transformar num lugar para habitar.
São então estas as flores que crescem nos campos de erva dura onde as vacas pastam, batidas pelo vento, deformadas sem frutos nem botões. É isto que trago, é isto que arranquei pelas raízes do passeio de Oxford Street, tu, o meu pequeno ramo de violetas baratas. Agora, sentada no eléctrico, vejo mastros por entre as chaminés; lá está o rio; lá estão os navios que partem para a Índia. Caminharei junto ao rio. Percorrerei este aterro onde um velhote lê o jornal que se encontra por detrás de um vidro. Percorrerei este terraço e verei os navios curvando-se ao sabor da maré. Há uma mulher no convés e um cão a ladrar em seu redor. A saia e o cabelo dela são batidos pelo vento; vão a caminho do mar; abandonam-nos; com eles levam este entardecer estival. Resignar-me-ei; acabarei por me perder. Acabarei por soltar o meu tão reprimido desejo de ser gasta, consumida. Galoparemos juntos por sobre colinas desertas onde as andorinhas mergulham as asas nos lagos e os pilares se mantêm direitos. E é contra a onda que bate com força na praia, é contra a onda que enche de espuma branca os cantos mais recônditos do mundo, que atiro as minhas violetas, a minha oferta ao Percival.
O Sol deixara de estar no meio do céu. A luz incidia na terra de forma oblíqua. Aqui, era a vez de um cantinho de nuvem se incendiar, de pronto se transformando numa ilha incandescente onde nenhum pé seria capaz de poisar. Aos poucos, todas as nuvens se deixavam apanhar pela luz, o que fazia com que as ondas se iluminassem com setas enfeitadas de penas, as quais caíam de forma desordenada no azul. O calor queimava as folhas mais altas das árvores, que murmuravam em surdina ao compasso da brisa suave. As aves estariam imóveis se, de vez em quando, não virassem as cabeças de um lado para o outro. Já não cantavam. Era como se o sol do meio-dia as tivesse sufocado, impedindo o som de sair. A borboleta poisou numa cana por alguns instantes, apenas para se voltar a lançar nos ares. O zumbido que se ouvia à distância dava a sensação de ser provocado pelo bater de asas que ora se elevavam ora se baixavam no horizonte. A água do rio mantinha os contornos de tal forma fixos, que era como se estes fossem redomas de vidro. Contudo, o vidro oscilou e as canas soltaram-se. Arquejando, de cabeça baixa, o gado caminhava pelos campos, movendo-se a custo. Pararam de cair gotas de água no balde que se encontrava perto da casa, tal como se estivesse cheio. Foi então que caíram uma, duas, três gotas, devagar, sem pressas.
As janelas revelavam de forma arbitrária pontos luminosos, por exemplo, a esquina de um ramo, ao que se seguia um qualquer espaço de claridade pura. A cortina apresentava uma tonalidade avermelhada, e, dentro do quarto, lâminas de luz incidiam nas cadeiras e nas mesas, abrindo fendas naquelas superfícies lacadas e polidas. A jarra verde adquiria dimensões monstruosas. A luz, empurrando a escuridão à sua frente, derramava-se em profusão por todos os cantos e saliências, ao mesmo tempo que, e de forma algo paradoxal, amontoava as trevas de forma anárquica.
As ondas formavam-se, curvavam-se e batiam com força na areia, fazendo voar pedras e seixos. Traziam as rochas e a espuma, elevando-se nos ares, espalhavam-se pelas paredes de uma rocha que antes estivera seca, ao passo que, em terra, deixavam atrás de si um rasto composto por pequenas poças onde alguns peixes perdidos abanavam as barbatanas sempre que uma nova onda se aproximava.
– Já assinei o meu nome por mais de vinte vezes – disse Louis. – Eu, de novo eu, e outra vez eu. Claro, firme e inequivocamente, lá está ele, o meu nome. Também eu tenho contornos definidos e sou inequívoco. Todavia, guardo em mim um vasto legado constituído por todo o tipo de experiências.
Sou como um verme que abriu caminho à dentada através da madeira de um velho carvalho. Mesmo assim, esta manhã sou compacto, consegui reunir todos os pedacinhos.
O Sol brilha e o céu está limpo. Contudo, o meio-dia não é marcado nem por uma grande chuvada nem por uma qualquer claridade especial. Trata-se da hora em que Miss Johnson me vem trazer a correspondência. Gravo o meu nome nestas páginas em branco. O sussurro das folhas, a água a escorrer pelas goteiras, abismos verdes manchados de dálias ou zínias; eu, ora duque ora Platão, amigo de Sócrates; o vaguear de negros e asiáticos viajando para este, oeste, norte e sul; a procissão eterna: as mulheres vão descendo o Strand transportando as suas carteiras, da mesma forma que antes carregavam as ânforas para o Nilo; todas as folhas dobradas em muitas partes, as quais correspondem a toda a minha vida, condensam-se na assinatura que gravo no papel. Sou agora um adulto; enfrento o sol e a chuva de cabeça erguida. Tenho de me deixar cair com a força de uma machadinha e cortar o carvalho com um único golpe, pois, se não o fizer, se me desviar e perder tempo a olhar de um lado para o outro, cairei como se fosse um floco de neve derretendo-me.
Estou semi-apaixonado pela máquina de escrever e pelo telefone. Consegui fundir todas as vidas que já vivi através de letras, cabos e ordens emitidas de forma delicada através do telefone, e que seguem para Paris, Berlim, Nova Iorque. Através da assiduidade e do poder de decisão que me caracterizam, consegui inserir estas linhas no mapa que une as diferentes partes do mundo.
Adoro chegar ao escritório às dez em ponto; adoro o brilho avermelhado do mogno escuro; adoro a secretária e os seus contornos bem definidos, bem assim como o modo como as gavetas deslizam em silêncio. Adoro o telefone com os lábios sempre prontos a receber os meus sussurros; o calendário de parede; a agenda. Há quem chegue sempre à mesma hora: Mr. Prentice às quatro; Mr. Eyres às quatro e trinta.
Gosto que me peçam para ir ao gabinete de Mr. Burchard prestar-lhe contas dos nossos negócios na China. Espero vir a herdar um cadeirão e um tapete persa. Pressiono o globo com os ombros; faço a escuridão girar à minha frente, levando o comboio às mais distantes partes do mundo, onde antes reinava o caos. Se assim continuar, transformando o caos em ordem, acabarei por me encontrar nos mesmos locais onde já antes estiveram Chatham, Pitt, Burk, e Sir Robert Peel. É assim que elimino certas nódoas e apago velhas ofensas: a mulher que me deu a bandeira que estava no cimo da árvore de Natal; a minha pronúncia; as pancadas e as outras torturas; os fanfarrões; o meu pai, um banqueiro de Brisbane.
Li o meu poeta preferido à mesa do restaurante, e, sempre a mexer o café, escutei os que, nas outras mesas, faziam apostas, e vi as mulheres hesitar ao se aproximarem do balcão. Afirmei que nada devia ser irrelevante, até mesmo um pedaço de papel castanho caído ao chão por acaso. Disse que as suas movimentações deviam ter um fim em vista; que deviam ganhar duas libras semanais às ordens de um mestre ilustre; que, quando chega a noite, somos envolvidos por uma qualquer mão, um qualquer manto. Quando tiver cicatrizado estas feridas e compreendido estas monstruosidades de modo a que não necessitem nem de pretextos nem de desculpas, que nos obrigam a despender tantas energias, devolverei às ruas e aos restaurantes aquilo que perderam quando caíram nestes tempos difíceis e se quebraram contra estas praias rochosas. Reunirei algumas palavras e forjarei à nossa volta um anel de aço.
Todavia, agora não tenho um momento a perder. Aqui, não existem intervalos, sombras formadas à custa de folhas tremulas, ou sala onde, na companhia de um amante, nos possamos recolher do sol e gozar a brisa fresca da noite. Temos o peso do mundo aos ombros; é pelos nossos olhos que ele existe; se pestanejarmos ou olharmos de esguelha ou nos virarmos para lembrar aquilo que Platão disse ou Napoleão conquistou, estamos a ser desonestos para com o mundo. É assim a vida. Mr. Prentice às quatro; Mr. Eyres às quatro e trinta. Gosto de ouvir o elevador deslizar e ouvir o baque por ele provocado quando pára no meu piso, bem assim com os pés dos homens responsáveis que percorrem os corredores. É assim, através da combinação das nossas forças, que enviamos navios repletos de lavatórios e ginásios para as partes mais remotas do globo.
Temos aos ombros o peso do mundo. É assim a vida. Se continuar, herdarei uma cadeira e um tapete; uma quinta no Surrey cheia de estufas onde crescerão coníferas, melões, ou arbustos de tal forma raros, que despertarei a inveja de todos os outros comerciantes.
Apesar de tudo, continuo a manter o meu sótão. É aí que abro o meu livrinho do costume; é aí que fico a ver a chuva brilhar nas teias, emitindo uma luz semelhante à dos impermeáveis dos polícias; é aí que vejo os vidros partidos existentes nas casas dos pobres; uma qualquer prostituta mirando-se num espelho partido enquanto retoca a maquilagem na esquina onde se encontra; é aí que a Rhoda às vezes aparece. É que eu e ela somos amantes.
O Percival morreu, (morreu no Egipto, morreu na Grécia, todas as mortes são apenas uma). A Susan tem filhos; o Neville sobe cada vez mais alto. A vida vai seguindo o seu curso. As nuvens que pairam sobre as casas nunca são as mesmas. Faço isto, faço aquilo, apenas para voltar a fazer isto e depois aquilo. Unindo-nos e separando-nos, assumimos formas diferentes, construímos diferentes padrões. No entanto, se não fixar estas impressões no placar, bem posso dizer adeus às muitas personalidades que em mim se transformam numa só, existem aqui e agora, e não em manchas e listras, semelhantes a farrapos de neve nas montanhas distantes; pergunto a Miss Johnson a sua opinião sobre este ou aquele filme, aceito a chávena de chá que me estava destinada e o biscoito de que mais gosto; se não fizer nada disto, então serei como um floco de neve, acabando por derreter.
Porém, as seis horas acabam por chegar e saúdo o encarregado com uma espécie de continência, mostrando-me sempre demasiado efusivo, tal é o meu desejo de ser aceite; e luto contra o vento, o casaco apertado até cima, os maxilares azuis devido ao frio e as lágrimas a correrem-me pelos olhos. Gostaria que uma qualquer dactilógrafa se sentasse ao meu colo; acho que o meu prato favorito é bacon com fígado. Sinto-me em condições de ir vaguear para junto do rio, para aquelas ruas estreitas onde os bares abundam e ao fundo se vêem as sombras dos navios e as mulheres a brigar. É aqui, digo, depois de ter recuperado a sanidade, que Mr. Prentice vem às quatro e Mr. Eyres às quatro e trinta. O machado tem de acertar na madeira; o carvalho tem de ser atingido bem no centro. Sinto o peso do mundo nas costas. Aqui está a caneta e o papel; coloco o nome nas folhas que se encontram no cesto de arame, eu, eu, e eu de novo.
– O Verão e o Inverno acabam sempre por chegar – disse Susan. – As estações vão passando. A pereira enche-se de frutos que acabam por cair. As folhas mortas acumulam-se na valeta. Contudo, o vapor quase cobriu a janela. Estou sentada junto à lareira a ver a chaleira ferver. Vejo a pereira através dos sulcos existentes no vapor que encheu a janela.
Dorme, dorme, cantarolo, quer seja Verão ou Inverno, Maio ou Novembro. Dorme, canto – eu, que não tenho ouvido para a música e as únicas melodias que ouço são os sons rústicos dos cães a ladrar, das campainhas a tocar, e das rodas a ranger no cascalho. Canto a minha canção junto à lareira como se fosse uma concha velha murmurando na praia. Dorme, dorme, digo, alertando com o tom da minha voz todos os que agitam as vasilhas do leite, disparam contra as gralhas, matam os coelhos, ou, de uma forma ou de outra, trazem o choque da destruição até junto deste berço frágil, suportado por membros pouco fortes, coberto por uma cortina cor-de-rosa.
Perdi a indiferença, o olhar vazio, os olhos em forma de pêra que viam até às raízes. Deixei de ser Janeiro, Maio ou qualquer outra estação, estando como que transformada numa teia muito fina que cobre o berço por completo, envolvendo os membros delicados do bebê com uma espécie de casulo constituído pelo meu próprio sangue. Dorme, digo, e sinto nascer em mim uma violência sombria, arisca, capaz de me fazer derrubar com um só golpe qualquer intruso que entrasse nesta divisão para acordar o que está a dormir.
Tal como a minha mãe, que morreu com um cancro, passo o dia a percorrer a casa com o avental posto e os chinelos calçados. Deixei de distinguir o Verão do Inverno através das coisas tão simples como a erva que cobre a charneca ou a flor da urze. Sei-o apenas pelo vapor que se condensa na janela ou pelo gelo que a cobre. Inclino-me quando ouço o canto da cotovia elevar-se nos ares; alimento o bebê. Eu, que costumava caminhar por entre as faias vendo as penas do gaio tornarem-se cada vez mais azuis à medida que caíam, que me cruzava com os pastores e os vagabundos, que observava a mulher agachada junto a uma carroça caída na valeta, percorro agora os quartos de espanador na mão. Dorme, digo, desejosa que o sono caia como um cobertor e cubra estes membros frágeis; exigindo à vida que recolha as garras e prossiga viagem, transformando o corpo numa caverna, num abrigo aquecido onde o meu bebê possa dormir. Dorme, digo, dorme. Ou então, e como alternativa, vou até à janela, observo com atenção o ninho das gralhas e a pereira. “Os olhos dele continuarão a ver mesmo depois de os meus se terem fechado”, penso. Misturar-me-ei com eles para lá do corpo que possuo e verei a Índia. Ele regressará a casa carregado de troféus que colocará a meus pés. Os meus haveres aumentarão à sua custa. Contudo, nunca me lembro de madrugada para ver as gotas púrpuras de orvalho repousando nas folhas das couves, as gotas vermelhas de orvalho das rosas. Não vejo o cão a farejar em círculo, nem me deito à noite vendo as folhas ocultar as estrelas, e estas moverem-se e as folhas permanecerem imóveis. Ouço chamar o carniceiro; o leite tem de ser colocado à sombra para que não azede.
Dorme, digo, dorme, enquanto a chaleira ferve e o vapor que dela se eleva se vai tornando mais espesso, subindo num jacto a partir do bico. É assim que a vida me enche as veias. É assim que a vida me escorre pelos membros. É assim que vou avançando até quase poder gritar, enquanto, sempre a abrir e a fechar as coisas, vejo o Sol nascer e pôr-se.
Chega. Estou prestes a sufocar de tanta felicidade natural. Contudo, sei que não vou ficar por aqui. Terei mais filhos; mais berços; mais cestos na cozinha e presuntos a secar; cebolas a brilhar; e talhões de alfaces e batatas. Sinto-me vogar como uma folha ao sabor da tempestade; ora roçando a erva úmida ora sendo arrastada pelos ares. Estou prestes a sufocar de felicidade natural, e por vezes desejava que este sentimento de realização esmorecesse, que o peso da casa adormecida deixasse de existir (e que tanto se faz sentir quando nos sentamos a ler), e que eu voltasse a ser o centro da trama que a minha agulha vai tecendo. A lâmpada como que acende uma fogueira na janela. Há um fogo a arder no coração da hera. Vejo uma rua iluminada nas sempre-verdes. Ouço o ruído do trânsito nos sons provocados pelo vento; vozes; gargalhadas; e também a Jinny que abre a porta e grita: “Vem! Vem!”.
Contudo, som algum interrompe o silêncio da nossa casa, onde os campos suspiram junto à porta. O vento passa através dos ulmeiros; uma borboleta nocturna vai bater de encontro à lâmpada; uma vaca muge; um qualquer som infiltra-se entre as vigas, e eu quase que enfio a cabeça através do buraco da agulha e murmuro: “Dorme”.
– Chegou a hora – disse Jinny. – Acabamos de nos conhecer e juntámo-nos. Vamos falar, vamos contar histórias? Quem é ele? Quem é ela? Sinto uma curiosidade infinita e não sei o que vem a seguir. Se tu, a quem nunca vi antes, me dissesses: O comboio parte de Piccadilly às quatro, nem sequer perderia tempo a fazer a mala, partindo o mais depressa possível.
É melhor sentarmo-nos aqui, por baixo das flores, no sofá que está junto ao quadro. Vamos decorar a nossa árvore de Natal com factos e mais factos. As pessoas não demorariam muito tempo a partir; é melhor agarrá-las enquanto é tempo. Dizes tu que aquele homem ali, junto à papeleira, vive rodeado de jarras de porcelana. Partir uma delas é deitar milhares de libras pela janela. Apaixonou-se por uma rapariga em Roma e ela deixou-o. É daí que vem a fixação pelas jarras, velharias encontradas em antiquários ou desenterradas nas areias do deserto. E, dado que a beleza precisa ser diariamente estilhaçada para permanecer bela, a vida daquele homem é algo de estático num mar de porcelana. Mesmo assim, não deixa de ser estranho, pois, e enquanto jovem, chegou a sentar-se no solo enlameado e a beber rum com os soldados.
Precisamos ser rápidos e somar os factos com destreza fixando-os com um simples torcer de dedos. Ele não pára de fazer vénias. Chega a fazê-las frente às azáleas. Fá-lo mesmo frente a uma mulher bastante idosa, pois ela usa brincos de diamante, e, exibindo o estatuto social que ocupava através de uma carruagem puxada por um pônei, vai dizendo quem merece ser ajudado, que árvore deverá ser cortada, e quem irá aparecer amanhã. (Devo dizer-te que durante todos estes anos, e já passei dos trinta, vivi em equilíbrio precário, mais ou menos como uma cabra montesa que vai saltando de rocha em rocha. Não fico muito tempo no mesmo sítio; e, muito embora não me ligue a ninguém em particular, basta levantar o braço para que venham ter comigo.) Aquele homem é juiz; o outro é milionário, e aquele, o que tem o olho de vidro, matou a governanta quando tinha dez anos, espetando-lhe uma flecha no coração. Depois disso, atravessou desertos transportando mensagens, participou em várias revoluções, e agora recolhe o material para escrever um livro sobre a família da mãe, há muito estabelecida em Norfolk. Aquele sujeito de queixo azul tem a mão direita mirrada. Porquê? Não sabemos. Aquela mulher – segredas-me discretamente, a que tem os brincos de pérolas –, foi em tempos a chama que iluminou a vida de um dos nossos estadistas. Agora, e desde que ele morreu, vê fantasmas, lê a sina, e adoptou um jovem de pele escura, a quem chama o Messias. Aquele homem com os bigodes caídos, tal como os de um oficial de cavalaria, levou uma vida da maior devassidão (está tudo escrito num qualquer livro de memórias) até que certo dia encontrou um desconhecido no comboio, que, e no decorrer da viagem entre Edimburgo e Carlisle, o converteu limitando-se-lhe a ler a Bíblia.
E é assim que, em apenas alguns segundos, ágeis, perspicazes, deciframos os hieróglifos escritos no rosto dos outros. Aqui, nesta sala, somos como conchas atiradas com violência contra a praia.
A porta não pára de se abrir. A sala não pára de se encher com conhecimento, angústia, vários tipos de ambição, uma grande dose de indiferença, e também algum desespero. Dizes que juntos poderíamos construir catedrais, estabelecer políticas, condenar homens à morte, e administrar os assuntos de várias repartições públicas. O grau de experiência que partilhamos é bastante profundo. Possuímos filhos de ambos os sexos, os quais educamos, tratamos quando estão com varicela, e criamos para que possam herdar as nossas casas. De uma maneira ou de outra, todos trabalhamos na construção desta sexta-feira, alguns indo aos tribunais, outros ao jardim infantil; outros ainda marchando e agrupando-se quatro a quatro. Há milhões de mãos ocupadas a costurar, a erguer ripas carregadas de tijolos. A actividade não tem fim. Escusado será dizer que tudo recomeça amanhã; amanhã construiremos o sábado. Há quem vá apanhar o comboio para a França; outros embarcarão para a Índia. Há os que nunca mais voltarão a entrar nesta sala. Um de nós pode morrer esta noite. O outro talvez conceba uma criança. Estar-nos-á reservado qualquer tipo de construção, política, empreendimento, quadro, poema, filho, fábrica. A vida vem; a vida vai; somos nós quem a faz. Assim o dizes.
Mas nós, que vivemos no corpo, vemos os contornos das coisas com os olhos da imaginação. Vejo rochas iluminadas pelo sol. Não posso pegar nestes factos e colocá-los numa gruta, fundindo as diferentes tonalidades que os caracterizam, amarelos e azuis, por exemplo, até os transformar numa única substância. Não posso permanecer sentada por mais tempo. Preciso de me levantar e partir. O comboio deve estar prestes a abandonar o Piccadilly. Deixo cair todos estes factos – diamantes, mãos enrugadas, jarras de porcelana – como um qualquer macaco deixa cair coco das patas. Sou incapaz de te dizer se a vida é isto ou aquilo. Vou juntar-me a esta multidão heterogênea. Vou ser empurrada; atirada para cima e para baixo, semelhante a um navio no mar alto.
O certo é que agora sou chamada pelo meu próprio corpo, um companheiro que não pára de enviar sinais: “Não”, escuro e desagradável, e o dourado “Vem”, os quais se sucedem rapidamente. Alguém se mexe. Terei levantado o braço? Terei olhado. Terá o meu lenço amarelo com os morangos vermelhos esvoaçado e emitido sinais? Ele destacou-me do muro.
Segue-me. Estou a ser perseguida através da floresta. Tudo é arrebatado, tudo é nocturno, e os papagaios, empoleirados entre os ramos, soltam os gritos que os caracterizam. Não podia ter os sentidos mais alerta. Sinto o quanto é áspera a cortina que empurro; sinto o gradeamento de ferro frio e a sua pintura estalada sempre que nele poiso a mão. Estamos ao ar livre. A noite como que se abre; a noite, povoada de borboletas nocturnas; a noite, ocultando amantes preparados para as maiores aventuras. Sinto o cheiro das rosas; das violetas; vejo pequenas manchas vermelhas e azuis. O cascalho e a relva vão-se sucedendo por baixo dos meus pés. As traseiras dos edifícios iluminados erguem-se nos ares não sem alguma culpa. Todo este excesso de luzes faz com que Londres se mostre pouco à vontade. Está na hora de entoarmos o nosso cântico de amor – Vem, vem, vem. Agora, o sinal dourado que emito assemelha-se a uma borboleta. Canta, canta, canta, exclamo, qual rouxinol cuja melodia lhe tenha ficado entalada na garganta estreita. Ouço o estalar dos ramos e o entrechocar das hastes tal como se todos os animais da floresta estivessem a caçar, elevando-se nos ares e mergulhando por entre os espinhos. Um deles acabou de me picar. Houve um que se enterrou bem fundo em mim.
As flores aveludadas e as folhas frescas acalmam-me, como que me ungem.
– Para quê olhar o relógio que está em cima da lareira? – disse Neville. – Sim, o tempo passa. E nós envelhecemos. Contudo, sinto-me bem em estar sentado junto a ti, eu aqui e tu aí, nesta sala iluminada pelo fogo, em Londres. O mundo foi revistado até ao mais ínfimo pormenor, e nele já nada resta, nem mesmo flores. Repara na luz vermelha que percorre a cortina dourada. A fruta por ela rodeada cai pesadamente. Cai mesmo junto à tua bota, ao mesmo tempo que te empresta ao rosto uma moldura vermelha – creio tratar-se da luz da lareira e não da tua cara; creio serem aqueles livros encostados contra a parede; aquilo uma cortina; e isso talvez um cadeirão. Todavia, quando entras tudo muda. As chávenas e os pires transformaram-se quando aqui chegaste de manhã. Pondo de lado o jornal, pensei que só o amor faz com que as nossas vidas mesquinhas tenham algum esplendor e valham a pena ser vividas.
Levantei-me. Terminara o pequeno-almoço. Tínhamos todo o dia pela frente, e, dado o tempo estar agradável, atravessamos o parque e fomos até ao cais, descemos o Strand até chegarmos a St. Paul, e paramos na loja onde comprei o guarda-chuva. Nunca deixamos de conversar, parando de vez em quando para ver as montras. Contudo, será que isto pode durar? Foi esta a pergunta que fiz quando avistei o leão de Trafalgar Square – foi aí que revi o passado, cena a cena; ali está um ulmeiro, e é aí que o Percival se encontra. Jurei que para sempre. Foi então que me deixei invadir pelas dúvidas do costume. Apertei-te a mão. Deixaste-me. A descida até ao metropolitano foi como experimentar a morte. Somos como que separados, dissolvidos, por todos aqueles rostos e também pelo vento oco que parece rugir naqueles corredores desertos. Sentei-me a observar o meu próprio quarto. Às cinco fiquei a saber que eras infiel. Peguei no telefone e o zumbir estúpido da sua voz a ecoar no quarto vazio fez com que o coração me caísse aos pés. Foi então que a porta se abriu e tu apareceste. Tratou-se do mais perfeito dos nossos encontros. Porém, estes encontros e despedidas acabam por nos destruir., Tenho a impressão de que esta sala é central, qualquer coisa escavada na noite eterna. Lá fora, as linhas cruzam-se e intersectam-se, mas sempre à nossa volta, envolvendo-nos. Estamos num ponto central. Aqui podemos estar em silêncio ou falar sem levantar a voz. “Já reparaste nisto e naquilo?”, perguntamos. Quando ele disse isto, queria dizer... Ela hesitou, e acredito que tenha mesmo chegado a suspeitar. Seja como for, o certo é que, ontem à noite, nas escadas, ouvi vozes e um soluço. Tratava-se do fim da relação por eles mantida. É assim que tecemos os mais delicados filamentos em nosso redor, construindo um sistema. Platão e Shakespeare estão incluídos, o mesmo se passando com uma série de gente obscura, de pessoas sem qualquer importância. Odeio homens que usam crucifixos no lado esquerdo do colete. Odeio cerimônias, lamentações, e a figura trêmula e triste de Cristo colocada junto a outras figuras tremulas e tristes. Odeio igualmente a pompa, a indiferença e o ênfase, sempre colocado no local errado, de todas as pessoas que se pavoneiam à luz de candelabros envergando vestidos de noite, estrelas e condecorações. Há ainda os que urinam contra as vedações ou contra o sol poente nas planícies iluminadas pela luz fraca do Inverno, já para não falarmos do modo como algumas mulheres se sentam no autocarro, de mãos nas ancas, transportando cestos – são estas as pessoas que nos levam a fazer sinais aos amigos para que as olhem. Constitui um enorme alívio ter alguém a quem fazer sinais e não pronunciar qualquer palavra. Seguir os carreiros escuros da mente e entrar no passado, visitar livros, empurrar ramos e arrancar alguns frutos. Então, tu pegas neles e ficas em estado de êxtase. Enquanto isso, eu observo os movimentos descontraídos do teu corpo e maravilho-me com o à-vontade que os caracteriza, a sua força – o modo como abres as janelas de par em par, e tens a mesma facilidade em mover ambas as mãos. Mas, infelizmente, a minha mente anda um pouco preguiçosa, cansa-se com facilidade; deixo-me cair exausto; talvez que um pouco enjoado, sempre que alcanço o objectivo a que me tinha proposto. Caramba! Não pude montar a cavalo na Índia, usar um chapéu colonial e regressar a um bangalô. Sou incapaz de pular, como tu fazes, como o fazem todos aqueles rapazinhos seminus que, no convés dos navios, se molham mutuamente com as mangueiras. Quero esta lareira, quero esta cadeira. Quero alguém que se sente a meu lado depois de toda a angústia e correria do dia-a-dia, das suas conversas, esperas e suspeitas. Depois das brigas e reconciliações, preciso de privacidade – de estar a sós contigo, de fazer calar este tumulto. O certo é que os meus hábitos são tão organizados como os dos gatos. Temos de combater o desperdício e as deformidades do mundo, as multidões que nele se agitam, ruidosas e apressadas. Temos de usar facas de cortar papel para abrir de forma correcta as páginas dos livros, atar maços de cartas com fitas de seda verde, e varrer as cinzas com a vassoura da lareira.
Devemos fazer tudo o que nos permita exprobrar o horror da deformidade. O melhor será lermos os escritores que apregoam a austeridade e a severidade romanas; o melhor será procurarmos a perfeição por entre as areias. Sim, mas o certo é que adoro deixar escapar a virtude e a austeridade dos nobres romanos sob a luz cinzenta dos teus olhos, das ervas que dançam a compasso com as brisas estivais, e das gargalhadas e gritos dos rapazes que não param de brincar – daqueles rapazes nus que se molham no convés dos navios, servindo-se para isso de mangueiras. É por isso que, ao contrário do Louis, não busco a perfeição de forma desinteressada. As páginas apresentam sempre muitas cores; as nuvens passam por sobre elas. Quanto ao poema – é apenas o som da tua voz. Alcibíades, Ájax, Heitor e Percival, todos eles se encarnam em ti. Adoravam montar, arriscavam a vida em Verão, e também não eram grandes leitores. Todavia, não és Ájax nem Percival. Eles não franziam o nariz nem coçavam a testa com gestos tão precisos. Tu és tu. É isso que me consola da falta de muitas coisas – sou feio, sou fraco –, da depravação do mundo, do passar da juventude, da morte do Percival, e de todo um sem-número de amarguras, rancores e invejas. Porém, se houver um dia em que não venhas logo após o pequeno-almoço, se houver um dia em que, através do espelho, te vir à procura de outro, se o telefone não parar de tocar no teu apartamento vazio, então, depois de ter sentido uma angústia indescritível, então – pois não há fim para a loucura existente nos corações humanos – procurarei outro; acabando por encontrar alguém parecido contigo. Entretanto, o melhor será abolirmos o tiquetaque do relógio com um único gesto. Aproxima-te!
O Sol estava agora mais baixo. As ilhas compostas por nuvens haviam ganho em densidade e espalhavam-se frente ao Sol, fazendo com que as rochas escurecessem subitamente, as algas tremulas perdessem o tom azul que lhes era característico e se tornassem em fios prateados, e as sombras fossem arrastadas pelo mar como farrapos cinzentos. As ondas haviam deixado de alcançar as poças situadas mais acima, o mesmo se passando em relação à linha escura traçada na praia de forma irregular. A areia apresentava uma coloração branca semelhante à das pérolas, e era macia e brilhante.
Lá bem no alto, as aves voavam em círculos. Algumas montavam as pregas do vento e nelas se moviam como se fossem um corpo cortado em mil pedaços. Semelhantes a redes, os pássaros caíam das copas das árvores. Aqui, uma ave solitária dirigia-se para o pântano, acabando por se sentar numa estaca branca, depois do que abria as asas apenas para as voltar a fechar.
Caíram algumas pétalas no jardim. Lembram conchas poisadas no solo. A folha morta já não se encontra na vedação, tendo antes sido arrastada, ora correndo ora parando, contra uma qualquer haste. Todas as flores eram iluminadas pela mesma onda de luz e rapidez, semelhante a uma barbatana riscando o espelho verde de um lago. De vez em quando, uma rajada agitava as folhas para cima e para baixo, até que, com o amainar do vento, estas acabavam por recuperar a sua identidade. As flores, queimando os discos brilhantes ao sol, espalhavam luz por toda a parte sempre que o vento as agitava, depois do que algumas cabeças demasiado pesadas para se voltarem a erguer pendiam um pouco.
O sol da tarde iluminava os campos, tingindo as nuvens de azul e os milheirais de vermelho. Os campos pareciam estar cobertos por uma grossa camada de verniz. Carroças, cavalos, bandos de gralhas – fosse o que fosse que ali se movesse ficava envolvido em ouro. Quando as vacas mexiam as patas, era como se delas se desprendessem fios de ouro-velho, dando a impressão de terem os cornos envoltos em luz. As vedações estavam cobertas por espigas de milho dourado, as quais haviam sido arrastadas das carroças desengonçadas que subiam os campos com um ar primitivo, primordial. As nuvens de cabeça redonda nunca se desfaziam, mantendo antes todos os átomos que as tornavam tão redondas. Agora, ao passarem apanhavam toda uma aldeia na rede por elas formada, depois do que a deixavam de novo em liberdade. Lá longe, por entre os milhões de grãos de poeira azul acinzentada, via-se arder uma vidraça ou adivinhavam-se os contornos de um campanário ou de uma árvore.
As cortinas vermelhas e as persianas brancas esvoaçavam para dentro e para fora batendo contra o parapeito da janela, e a luz que se escoava e filtrava de forma irregular possuía um qualquer pigmento castanho e um certo ar de abandono, como se fosse soprada em folgadas contra as cortinas. Neste ponto, fazia com que uma papeleira se tornasse um pouco mais castanha, enquanto naquele fazia tremer a janela junto à qual se encontrava a jarra verde.
Durante alguns instantes, tudo estremeceu e se curvou devido à incerteza e à ambiguidade, como se uma grande borboleta nocturna que percorresse a sala tivesse ocultado com as asas a enorme solidez das cadeiras e das mesas.
– E o tempo – disse Bernard – deixa cair a sua gota. A gota que se formou no topo da alma acaba por cair. No topo da minha mente, o tempo deixou cair a sua gota. Esta caiu a semana passada, quando me estava a barbear. De súbito, com a lâmina na mão, apercebi-me da natureza puramente mecânica do acto que desempenhava (era a gota a formar-se) e, não sem alguma ironia, dei os parabéns às minhas mãos por conseguirem levar as coisas até ao fim. Barbeia, barbeia, barbeia, disse. Continua a barbear. A gota caiu. Durante o dia, a intervalos regulares, sentia que o espírito como que viajava até esse espaço vazio, perguntando: “O que se perdeu? O que terminou?”. Ainda murmurei: “Acabado e bem acabado, acabado e bem acabado”, consolando-me com palavras. As pessoas repararam na expressão vazia do meu rosto e na inutilidade da conversa. As últimas palavras da frase foram-se apagando. E, quando apertava o casaco e me preparava para ir para casa, disse de forma dramática: “Perdi a juventude.”
É curioso que, quando ocorre uma crise, há uma frase que insiste em nos vir socorrer, mesmo nada tendo a ver com o caso – trata-se do castigo de viver numa civilização antiga e munido de um bloco-notas. A gota que caiu nada tinha a ver com o facto de estar a perder a juventude. Esta gota mais não era que o tempo a atingir um certo ponto. O tempo, que mais não é que um pasto soalheiro coberto por uma luz trêmula, o tempo, que se espalha pelos campos ao meio-dia, fica como que suspenso num determinado ponto. Semelhante a uma gota que cai de um copo cheio, assim o tempo cai. São estes os verdadeiros ciclos, os verdadeiros acontecimentos. Então, como se toda a luminosidade da atmosfera tivesse sido retirada, vejo-lhe o fundo vazio. Vejo aqui o que o hábito cobre.
Deixo-me ficar na cama durante dias a fio. Janto fora e não paro de bocejar. Nem sequer me dou ao trabalho de concluir as frases, e as acções que pratico, por norma tão inconstantes adquirem uma precisão mecânica. Foi numa destas ocasiões que, ao passar por uma agência de viagens e nela tendo entrado, comprei um bilhete para Roma com a compostura característica das figuras mecânicas.
Encontro-me agora sentado num dos bancos de pedra existentes num dos muitos jardins que rodeiam a cidade eterna, e o homenzinho que se barbeava em Londres parece-se com um monte de roupas velhas. Até mesmo Londres se desmoronou. A cidade nada mais é que fábricas em ruínas e alguns gasômetros. Ao mesmo tempo, não me sinto integrado neste ambiente. Vejo padres vestidos de violeta e pitorescas irmãs-de-caridade; reparo apenas no que é exterior. Estou aqui sentado como se fosse um convalescente, como se fosse um qualquer idiota que só consegue articular palavras compostas por apenas uma sílaba. “O sol é bom”, digo. “O frio é mau.” Semelhante a um insecto poisado no cimo da terra, sinto-me andar às voltas, e, aqui sentado, quase podia jurar ser capaz de identificar o movimento de rotação do planeta. Não consigo seguir o caminho oposto ao da terra. Tenho o pressentimento de que se prolongasse esta sensação por mais algumas polegadas acabaria por ir parar a um qualquer território estranho. Porém, não sou muito arrojado. Nunca quero prolongar estes estados de desprendimento; não gosto deles; desprezo-os. Não quero transformar-me em alguém capaz de se sentar no mesmo sítio durante cinquenta anos a viver em função do seu umbigo. Prefiro antes transformar-me numa carroça própria para transportar vegetais, e ser arrastado por caminhos pedregosos.
A verdade é que não pertenço ao gênero dos que se satisfazem com uma pessoa ou com o infinito. Tanto um quarto fechado como o céu me dão as mesmas náuseas. O meu ser apenas brilha quando todas as suas facetas se expõem aos olhares de muita gente. Encho-me de buracos quando o público me falta, diminuindo de volume como se fosse um pedaço de papel queimado. “Oh, Mrs. Moffat, Mrs. Moffat”, digo, “venha varrer tudo isto”. As coisas escaparam-se-me por entre os dedos. Sobrevivi a certos desejos; perdi amigos, alguns levados pela morte – o Percival – outros por não me ter dado ao trabalho de atravessar a rua. Não sou tão dotado como em tempos pensei. Certas coisas estão para lá do meu alcance. Nunca conseguirei entender os problemas filosóficos mais difíceis. Roma é o limite da minha viagem. Semelhante a uma gota adormecida, sou por vezes sobressaltado pela ideia de que nunca verei os selvagens do Taiti arpoando peixes à luz dos lampiões, nem mesmo leões a saltar na selva e homens nus a comer carne crua. Nunca aprenderei russo ou lerei os Vedas. Nunca voltarei a ir bater com força contra o marco-postal. (Contudo, e devido à violência do embate, a minha noite é magnificamente iluminada com algumas estrelas.) Todavia, e à medida que vou pensando, a verdade está cada vez mais próxima. Foram muitos os anos em que murmurei com complacência: “Os meus filhos... a minha mulher... a minha casa... o meu cão”. Assim que abria a porta, deixava-me levar por todos esses rituais familiares, envolvendo-me no seu calor. Porém, esse véu carinhoso caiu. Deixei de ter sentimentos de posse. (Nota: em termos de refinamento físico, uma lavadeira italiana ocupa a mesma posição que a filha de um qualquer duque inglês.) Mas deixa-me pensar. A gota cai; atingiu-se outra etapa. Etapa após etapa. E por que razão deveriam estas terminar? E até onde nos levam elas? A que conclusão? O certo é que envergam trajes solenes. Quando confrontados com estes dilemas, os crentes consultam estes indivíduos trajados de violeta e aspecto sensual que por mim vão passando. Pela parte que nos toca, não gostamos de professores. Se um homem se levantar e disser: “Olhem, esta é a verdade”, nesse mesmo instante, e à laia de pano de fundo, vejo um gato cor de areia a roubar uma posta de peixe. “Repare, esqueceu-se do gato”, digo. Era por isso que, na escola, quando estávamos na capela mal iluminada, a visão do crucifixo usado pelo professor tanto irritava o Neville. Eu, que estou sempre distraído, quer seja a olhar para os gatos ou para aquela abelha que não pára de zumbir em torno do bouquet que Lady Hampton insiste em manter colado ao nariz, de pronto invento uma história que acaba por obliterar os ângulos do crucifixo. Inventei milhares de histórias. Enchi inúmeros blocos de apontamentos com frases prontas a serem usadas assim que encontrasse a história verdadeira, a história à qual todas as frases se referem. No entanto, nunca a descobri. Foi então que comecei a perguntar: “Será que existem histórias?”.
A partir deste terraço, repara na multidão que fervilha a teus pés. Repara na azáfama geral e no barulho. Aquela mula está a dar problemas ao condutor. Meia dúzia de vagabundos bem intencionados oferecem os seus préstimos. Outros passam sem olhar. Têm tantos interesses como os fios de uma meada. Repara no arco formado pelo céu, curvado por sobre as nuvens brancas. Imagina a mistura composta pelos prados, aquedutos e estradas, e também túmulos romanos destruídos, tudo isto na zona de Champagna, e para lá desta o mar, e depois ainda mais terra e mais mar. Poderia isolar qualquer pormenor deste quadro – por exemplo, a carroça e a mula – e descrevê-lo com o maior dos à-vontades. Mas por que razão perder tempo a descrever um homem atrapalhado com uma mula? Poderia também inventar histórias da rapariga que vem a subir os degraus. Encontrou-se com ele à sombra de um arco... “Está tudo acabado”, disse ele, desviando-se da gaiola onde se encontrava um papagaio de louça. Ou apenas: “Acabou-se”. Mas para quê impor as minhas concepções arbitrárias? Para quê realçar isto, moldar aquilo e construir figurinhas semelhantes aos brinquedos que os vendedores ambulantes exibem pelas ruas? Para quê escolher isto entre uma infinitude de coisas – apenas um pormenor?
Aqui estou, em pleno processo de mudar de pele e tudo o que dirão será: “O Bernard está a passar dez dias em Roma”. Aqui estou eu, a subir e a descer este terraço sem qualquer ponto de referência. Contudo, reparem como, à medida que caminho, os pontos e os traços se vão transformando em linhas contínuas, no modo como as coisas vão perdendo a identidade separada que as caracterizava quando subi os degraus. O enorme vaso vermelho é agora uma mancha encarniçada vogando num mar cuja coloração oscila entre o vermelho e o amarelo.
O mundo começa a mover-se como as vedações se movem quando o comboio parte, ou como as ondas do mar ao tentarem acompanhar os movimentos de um barco a vapor. Eu também me movo. Começo a fazer parte da sequência geral em que uma coisa se sucede a outra, e parece ser inevitável que àquela árvore se siga o poste do telégrafo, e só depois o intervalo na vedação. E, à medida que avanço, rodeado, incluído e fazendo parte de um todo, começam-se a formar as frases habituais, e sinto vontade de as deixar escapar pelo alçapão que tenho na cabeça, e dirigir os passos na direcção daquele homem, cuja parte posterior da cabeça não deixa de me parecer familiar. Andamos juntos na escola. Não tenho dúvidas de que nos encontraremos. Por certo, jantaremos juntos. Falaremos. Mas espera, espera um momento.
Estes instantes de evasão não devem ser desprezados. É com pouca frequência que ocorrem. O Taiti torna-se possível. Inclino-me no parapeito e vejo uma vastidão de água. De súbito, eis que surge uma barbatana. Esta impressão visual não se encontra ligada a qualquer linha racional, surge como uma barbatana de golfinho no horizonte. É com frequência as impressões visuais transmitirem umas quantas ideias breves, as quais o tempo se encarregará de decodificar e traduzir em palavras. Sendo assim, anoto na letra B a seguinte frase: “Barbatana num deserto aquático”. Eu, que estou permanentemente a tomar notas nas margens da mente com vista à elaboração de uma frase final, registro esta entrada, à espera de uma noite invernosa.
De momento, o melhor que tenho a fazer é ir almoçar a algum lado, erguer o copo, olhar através do vinho e ver mais do que aquilo que me é permitido pelo distanciamento que me caracteriza. E, quando uma mulher bonita entrar no restaurante e abrir caminho entre as mesas, direi para mim mesmo: “Reparem como ela caminha ao encontro de um deserto aquático”. Trata-se de uma observação sem sentido, mas para mim é algo de solene, plúmbeo, com o som fatal dos mundos a ruir e das águas caminhando para a destruição.
Assim sendo, Bernard (é contigo que falo, tu, meu companheiro de aventuras), vamos começar este novo capítulo e observar a formação desta nova experiência – desta nova gota – qualquer coisa de desconhecido, de estranho, impossível de ser identificado e igualmente terrível, e que está prestes a se formar. Aquele homem chama-se Larpent.
– Nesta tarde quente – disse Susan –, aqui neste jardim, aqui, neste prado onde falo com o meu filho, alcancei o ponto mais alto dos meus desejos. A dobradiça do portão tem ferrugem; ele puxa-a para a abrir. As paixões violentas características da infância, as lágrimas que chorei no jardim quando a Jinny beijou o Louis, a raiva que me invadia na escola (que cheirava a pinho), a solidão que sentia em locais desconhecidos, quando os cascos das mulas batiam de encontro ao chão e as mulheres italianas falavam junto à fonte, embrulhadas em xales e com cravos espetados nos cabelos, tudo isto foi recompensado por um sentimento de segurança, posse, familiaridade. Conheci anos produtivos, calmos. Possuo tudo o que vejo. Assisti ao crescimento das árvores que plantei. Construí pequenos lagos onde os peixes dourados se escondem por baixo das folhas largas dos lírios. Coloquei redes por sobre os canteiros de morangos e alfaces, e coloquei as peras e as ameixas em sacos brancos impedindo assim que as vespas as picassem. Vi os meus filhos e filhas, também eles outrora protegidos por rede quando ainda não se levantavam dos berços, crescerem até se tornarem mais altos que eu e projectarem grandes sombras na erva quando caminham a meu lado.
Pertenço aqui. Semelhante às minhas árvores, é aqui que tenho raízes. Uso frases como “meu filho”, e “minha filha”, e até mesmo o dono da loja de ferragens, erguendo os olhos do balcão cheio de pregos, tintas e redes, respeita o velho carro que se encontra estacionado à sua porta, repleto de redes para caçar borboletas, almofadas e cortiços. No Natal, penduramos visco branco por cima do relógio, pesamos as nossas amoras e cogumelos, contamos os frascos de compota, e colocamo-nos junto à veneziana da janela da sala para sermos medidos. Também faço coroas mortuárias com flores brancas e folhas prateadas, às quais junto um cartão lamentando a morte do pastor; enviando condolências à mulher do carreteiro morto; e sento-me junto ao leito das mulheres moribundas que murmuram os últimos terrores e se agarram com força à minha mão; frequento divisões intoleráveis para quem não tenha nascido no campo, acostumado à vida na quinta, às lixeiras e às galinhas a esgaravatar, e à mãe que tem apenas dois quartos e muitos filhos para criar. Vi janelas partirem-se devido ao calor, e senti nas narinas o cheiro das fossas. Pergunto-me agora, de tesoura de podar nas mãos e por entre as flores, por onde poderá entrar a sombra. Que choque será capaz de libertar a minha vida, tão laboriosamente unida e comprimida? Mesmo assim, dias há em que estou cansada da felicidade natural, dos frutos a crescer e das crianças enchendo a casa com remos, espingardas, caveiras, livros ganhos em concursos, e toda a espécie de troféus. Estou farta do meu corpo, farta do modo laborioso como trabalho, dos modos pouco escrupulosos característicos da mãe que protege, que reúne os filhos à mesa quando chega a hora das refeições, fitando-os de forma possessiva.
E quando chega a Primavera, com os seus aguaceiros frios e flores amarelas, que, ao olhar para a carne e ao apertar com força os saquinhos dourados das sultanas, me lembro do modo como o Sol se erguia, as andorinhas vasculhavam a erva, das frases inventadas pelo Bernard quando éramos crianças, das folhas que sobre nós caíam, brilhantes, luminosas, riscando o azul do céu, projectando luzes tremulas nas raízes esqueléticas das faias onde me sentava a soluçar. O pardal levantou voo. Ergui-me de um salto e comecei a perseguir as palavras que insistiam em correr à minha frente, sem parar de subir, escapando-se por entre os ramos. Então, tal como acontece com a superfície vidrada de uma tigela, a fixidez da minha manhã quebrou-se, e, poisando as sacas de farinha, pensei: “A vida aperta-se em meu redor como uma redoma de vidro cercando um canavial”.
Peguei na tesoura e cortei algumas malvas, eu, que já estive em Elvedon, pisei bolotas podres, vi uma dama a escrever no jardim e os jardineiros com as suas vassouras. Vimo-nos obrigados a fugir, arquejando, caso contrário seríamos mortos e pregados ao muro como doninhas. Agora, calculo e encarrego-me de manter as coisas. À noite, sento-me no cadeirão e estendo a mão para a costura; ouço o meu marido ressonar; levanto os olhos quando as luzes dos carros que vão passando iluminam as janelas e sinto as ondas da vida agitarem-se e quebrarem-se em meu redor, eu, que estou presa pelas raízes; ouço grilos e vejo as vidas alheias rodopiarem como palhinhas em torno dos pilares das pontes. Tudo isto acontece à medida que enfio e puxo a agulha, construindo um bordado no tecido de algodão branco.
Às vezes, penso no Percival, que tanto me amou. Estava na Índia, ia a cavalo e caiu. Há alturas em que me lembro da Rhoda. Gritos agudos despertam-me a meio da noite. Porém, e durante a maior parte do tempo, sinto-me feliz em andar com os meus filhos. Corto as pétalas mortas das malvas. Entroncada, com o cabelo branco antes do tempo, passeio pelos campos que me pertencem, percorrendo-os com um olhar claro, o olhar de quem tem olhos em forma de pêra.
– Cá estou eu – disse Jinny –, na estação de metropolitano onde conflui tudo o que há de desejável, Piccadilly South Side, Piccadilly North Side, Regent Street e Haymarket. Deixo-me ficar debaixo do passeio durante alguns instantes, bem no coração de Londres. São muitas as rodas e os pés que circulam por sobre a minha cabeça. É aqui que se encontram as avenidas da civilização, bifurcando-se depois nesta ou naquela direcção. Estou no coração da vida. Mas, reparem, lá está o meu corpo reflectido naquele espelho. Como ele parece solitário, mirrado, envelhecido! Deixei de ser jovem. Deixei de pertencer à procissão. São milhões os que caminham escada abaixo, numa descida infernal. Muitas são as engrenagens que os empurram para baixo. O número dos que morreram ascende aos muitos milhões. O Percival também morreu. Todavia, continuo viva, em movimento. Mas, o que acontecerá se eu fizer um sinal?
Dado não passar de um pequeno animal, arfando de medo, deixo-me aqui ficar, palpitante, trêmula. Porém, sei que hei-de perder o medo. Baixarei o chicote sobre os meus flancos. Não sou um animalzinho uivante que procura a sombra. Só me senti assim durante breves instantes, ao me ver sem ter tido tempo de me preparar, o que sempre faço antes de me confrontar com a visão de mim mesma.
É verdade; não sou jovem – já falta pouco para sentir que levanto o braço em vão e que o lenço cai a meu lado sem ter emitido qualquer sinal. Deixarei de ouvir a noite encher-se de suspiros e sentir que alguém se aproxima de mim através da escuridão. As vidraças dos túneis escuros deixarão de se encher de reflexos. Olharei para os rostos alheios e vê-los-ei procurar outra face. Durante um breve momento admito que o modo como os corpos descem as escadas rolantes, muito direitos, assemelhando-se ao avançar de um qualquer exército composto por mortos, e a vibração das grandes máquinas que nos empurram a todos, me fez medo e senti a necessidade de procurar abrigo.
No entanto, ainda à frente do espelho e fazendo todos aqueles preparativos que me permitem estar à vontade, juro nunca mais sentir medo. Penso em todos os autocarros que existem, amarelos e vermelhos, que param e partem de acordo com o horário. Penso nos magníficos e poderosos automóveis que ora abrandam até estarem em condições de acompanhar o caminhar dos seres humanos, ora se precipitam para a frente como flechas; penso nos homens e nas mulheres, equipados, preparados, que seguem em frente. Trata-se de uma procissão triunfante; é este o exército que, armado de pendões, águias de bronze e cabeças coroadas de coroas de louro, ganhou a batalha. Trata-se de indivíduos superiores aos selvagens que cobrem as ancas com panos, às mulheres desgrenhadas e de peitos caídos, aos quais as crianças se agarram. Estas vias largas – Piccadilly South, Piccadilly North, Regent Street e Haymarket – são como carreiros cobertos de areia atravessando a selva. Também eu, com os meus sapatinhos de pele, o lenço que mais não é que uma rede finíssima, os lábios vermelhos e as sobrancelhas perfeitamente desenhadas, marcho com eles rumo à vitória.
Reparem no modo como todos exibem as roupas que vestem. Mesmo no subsolo, é como se a luz nunca parasse de brilhar. Não deixarão que a terra seja uma pasta enlamada e cheia de vermes. Existem vitrinas carregadas de rendas e seda, e roupa interior finamente bordada. Púrpura, verde, violeta, as cores misturam-se por toda a parte. Pensem no modo como estes túneis que sulcam as rochas foram organizados, abertos, limpos e pintados. Os elevadores sobem e descem; os comboios param e partem com uma regularidade semelhante à das ondas do mar. É com isto que concordo. Sou natural deste mundo, sigo os seus pendões. Como poderia pensar em procurar abrigo quando tudo é tão magnificamente curioso, ousado, aventureiro, e também suficientemente forte para, mesmo durante o maior esforço, parar e rabiscar na parede uma qualquer anedota? É por isso que vou espalhar pó no rosto e retocar a pintura dos lábios. Traçarei a linha das sobrancelhas ainda com mais força. Tão direita como os outros, acabarei por emergir à superfície, em Piccadilly Circus. Farei sinal a um táxi, cujo condutor compreenderá de imediato aquilo que quero, demonstrando-o pelo modo como ocorrer à chamada. O certo é que ainda desperto desejo. Continuo a sentir o modo como os homens se viram na rua, lembrando o mover silencioso das hastes de milho quando o vento as empurra, enchendo-as de pregas vermelhas. Vou para casa encher as jarras com ramos de flores exuberantes, extravagantes. Disporei as cadeiras desta ou daquela maneira. Terei prontos alguns cigarros, copos, e um qualquer livro recém-publicado, cuja capa chame a atenção, não se vá dar o caso de receber a visita do Bernard, do Neville ou do Louis. Mas talvez nem sequer seja um deles, antes sim alguém novo, desconhecido, alguém com quem me tenha cruzado numa escada e a quem, voltando-me um pouco, murmurei: “Vem”. Ele virá esta tarde, alguém que não conheço, alguém novo. O exército silencioso dos mortos que desça. Eu sigo em frente.
– Deixei de precisar de um quarto – disse Neville –, o mesmo se passando em relação às paredes e às lareiras. Já não sou jovem. Passo pela casa da Jinny sem qualquer sentimento de inveja, e sorrio ao jovem que, com algum nervosismo, arranja a gravata nos degraus. O janota que toque a campainha; que a encontre. Quanto a mim, encontrá-la-ei se quiser; se não, nem sequer me deterei. A velha acidez deixou de arder – tudo se foi: a inveja, a intriga e a amargura. Também perdemos a nossa glória. Quando éramos jovens, sentávamo-nos em qualquer lado, em bancos desconfortáveis e em salas onde as portas não paravam de bater. Andávamos de um lado para o outro seminus, iguais a rapazes atirando água uns aos outros no convés do navio. Sou agora capaz de jurar que gosto de ver as multidões sair do metropolitano ao fim de um dia de trabalho, uniformes, indiscriminadas, incontáveis. Já colhi o fruto que me cabia. Observo sem nutrir qualquer tipo de paixão.
Ao fim e ao cabo, não somos responsáveis. Não somos juízes. Ninguém nos obriga a torturar os nossos semelhantes com ferros e outros aparelhos; ninguém nos pede que subamos aos púlpitos, dando-lhes sermões nas tardes pálidas de domingo. É bem melhor olhar para uma rosa, ou mesmo ler Shakespeare, que é o que faço aqui, em Shaftesbury Avenue. Cá está o bobo, cá está o vilão. Ardendo na sua barca, é Cleópatra quem se aproxima naquele carro. Também aqui, se encontram as imagens dos danados, de homens sem nariz que, na esquadra de polícia, gritam ao sentir que lhes estão a queimar os pés. Tudo isto é poesia desde que ninguém o escreva. Todos representam os seus papéis com a maior das exactidões, e, antes mesmo de abrirem a boca, já sei o que vão dizer, ficando à espera do momento divino em que pronunciem a palavra que devia ter sido escrita. Se fosse apenas pelo bem da peça, era capaz de percorrer Shaftesbury Avenue para sempre.
Vinda da rua, entrando em salas, há gente a falar, ou pelo menos a tentar fazê-lo. Ele diz, ela diz, alguém comenta que as coisas têm sido ditas com tanta frequência, que basta uma palavra para que tudo fique dito. Discussões, gargalhadas, velhas ofensas – tudo isto paira no ar, engrossando-o. Pego num livro e leio meia página de qualquer coisa. Ainda não consertaram o bico do bule de chá. Vestida com as roupas da mãe, uma criança dança.
Mas é então que a Rhoda, ou talvez seja o Louis, não importa, trata-se de um espírito austero e angustiado, entra e volta a sair. Querem enredo, não querem? Querem uma razão? Esta cena vulgar não lhes basta? Não lhes basta esperar que as palavras sejam pronunciadas como se tivessem sido escritas; verem a forma encaixar no sítio que lhes foi previamente destinado; aperceberem-se de súbito de um grupo recortando-se contra o céu. Contudo, se o que querem é violência, em todas as salas vi mortes, crimes e suicídios. Este entra, aquele sai. Há soluços na escada. Ouvi frios quebrarem-se e o som de linhas unindo-se em nós no pedaço de cambraia branca que aquela mulher tem poisado nos joelhos. Para quê, e à semelhança do que acontece com o Louis, querer encontrar um motivo, ou ainda, tal como a Rhoda, voar até aos bosques e afastar as folhas dos loureiros à procura de estátuas? Dizem que devemos enfrentar a tempestade acreditando que o Sol brilha do outro lado; que o Sol se reflecte em lagos cobertos de andorinhas. (Estamos em Novembro; os pobres seguram caixas de fósforos nos dedos roídos pelo vento.) Dizem que só aí se poderá descobrir a verdade, e que a virtude (que aqui se deixa corromper nos becos) apenas lá é perfeita. A Rhoda passa por nós de pescoço estirado, um brilho fanático e cego no olhar. O Louis, agora tão corpulento, sobe até ao sótão, coloca-se à janela, e fica a observar o ponto por onde ela desapareceu. Contudo, vê-se obrigado a se sentar no escritório, rodeado de máquinas de escrever e telefones, e descobrir tudo o que é necessário à nossa reabilitação, e à reforma de um mundo que ainda não nasceu.
Todavia, nesta sala onde entro sem bater, as coisas dizem-se como se tivessem sido escritas. Dirijo-me para a estante. Se me apetecer, leio meia página de qualquer coisa. Não preciso falar. Escuto. Estou incrivelmente alerta. Claro que qualquer um pode ler este poema sem grandes esforços. É com frequência a página encontrar-se corrompida e manchada de lama, rasgada e unida com folhas de coloração desmaiada, com pedacinhos de verbena ou gerânio. Para se ler este poema é preciso ter-se olhos ultra-sensíveis, semelhantes àquelas lâmpadas que, a meio da noite, iluminam as águas do Atlântico, quando apenas só um punhado de algas se encontra à superfície, ou, sem que nada o fizesse esperar, as ondas se abrissem e um monstro surgisse por entre elas. É preciso pôr de lado invejas e antipatias e não interromper. É preciso ter paciência e um cuidado infinito, deixando que a luz descubra as coisas só por si, quer se trate das patas delicadas das aranhas percorrendo uma folha, ou o som da água a escoar-se por um qualquer esgoto sem importância.
Nada deverá ser rejeitado por medo ou horror. O poeta que escreveu esta página (aquilo que leio enquanto os outros falam) retirou-se. Não existem vírgulas nem pontos e vírgulas. Os versos não se sucedem com a métrica conveniente. A maior parte das coisas não faz sentido. Temos de ser cépticos, mas isso não quer dizer que não deitemos as precauções para trás das costas e não aceitemos tudo o que nos entra pela porta. Há vezes em que devemos chorar; outras, servimo-nos de um machado para cortar de forma impiedosa todo o tipo de cascas e outras excrescências. E assim (enquanto eles falam) deixar a rede mergulhar cada vez mais fundo, só depois a puxando. É então que trazemos à superfície tudo o que ele e ela disseram, fazendo poesia.
Já os ouvi falar. Foram-se todos embora. Estou só. O facto de poder ver o fogo consumir-se eternamente, como uma caldeira, como uma fornalha, deveria alegrar-me. Agora, um pedaço de madeira assemelha-se a um cadafalso, a um poço, ou ao vale da felicidade; agora é uma serpente vermelha com escamas brancas. Junto ao bico do papagaio, o fruto que enfeita o cortinado parece aumentar de volume. O lume zumbe, lembrando insectos a zumbir na floresta. Não pára de crepitar. Enquanto isso, lá fora os ramos quebram-se, e, provocando um ruído semelhante ao de um tiro, uma árvore cai. São estes os sons da noite de Londres. É então que ouço aquilo por que esperava. Aproxima-se cada vez mais, hesita, pára à minha porta. Grito: “Entra. Senta-te junto a mim. Senta-te à beira do cadeirão”. Deixando-me levar por esta velha fantasia, grito: “Aproxima-te, aproxima-te!”.
– Estou de volta ao escritório – disse Louis. – Penduro o casaco aqui, coloco a bengala ali – gosto de imaginar que Richelieu se apoiou na minha bengala. E assim me despojo da autoridade que possuo. Passei o dia sentado à direita do director, na mesa envernizada. Os mapas dos nossos empreendimentos bem sucedidos olham-nos da parede. Unimos o mundo com os navios da companhia. Só as nossas linhas mantêm o mundo unido. Sou muitíssimo respeitado. Todos os jovens que trabalham no escritório se apercebem da minha entrada. Posso jantar onde quiser, e, sem revelar qualquer vaidade, imaginar que já falta pouco para que possa adquirir uma casa no Surrey, dois automóveis, e uma estufa com algumas espécies raras de melão. Apesar disto, continuo a voltar a este salão, a pendurar o chapéu, e, na mais completa solidão, reiniciar a curiosa tentativa que me mantém ocupado desde o dia em que bati à porta da sala do meu mestre. Abro um livrinho. Leio um poema. Basta apenas um poema.
Oh, vento oeste...
“Oh, vento oeste, tu que estás em luta constante com a minha mesa de mogno e os polainitos que uso, e também, como não podia deixar de ser, com a vulgaridade da minha amante, uma actrizinha que nunca conseguiu falar inglês correctamente...”
Oh, vento oeste, quando irás soprar...
A Rhoda, com a sua enorme capacidade de abstracção, com aqueles olhos cegos, de cor indefinida, é incapaz de te destruir, vento oeste, quer venha à meia-noite, quando as estrelas brilham, ou à hora bastante mais prosaica do meio-dia. Deixa-se ficar à janela a olhar os cataventos e as vidraças partidas das casas dos pobres... Oh, vento oeste, quando irás soprar...
A minha tarefa, o meu fardo, tem sido sempre maior que o das outras pessoas. Colocaram-me uma pirâmide nos ombros. Tentei desempenhar uma tarefa colossal. Derrotei uma equipa violenta, desordenada e amiga de fazer jogo sujo. Com o meu sotaque australiano, sentei-me nos restaurantes e tentei fazer com que os criados me aceitassem, sem, no entanto, esquecer as minhas mais solenes e severas convicções, bem assim como as discrepâncias e incoerências que tinham de ser resolvidas. Enquanto rapaz, e muito embora sonhasse com o Nilo e me mostrasse relutante em acordar, consegui bater à porta construída de madeira de carvalho. Teria sido muito mais feliz se, à semelhança da Susan e do Percival, a quem tanto admiro, tivesse nascido sem destino.
Oh, vento oeste, quando irás soprar, fazendo assim cair a chuvinha miudinha?
A vida não tem sido fácil para mim. Sou uma espécie de aspirador gigante, uma boca gelatinosa, aderente, insaciável. Tentei desalojar da carne a pedra que aí se alojara. Foi pouca a felicidade natural que conheci, muito embora tenha escolhido a minha amante de forma a que, com o seu sotaque cockney me fizesse sentir à vontade. Porém, ela limita-se a espalhar pelo chão uma série de roupa interior pouco limpa, e a mulher da limpeza e os marçanos não param de falar a meu respeito durante o dia, troçando do meu porte altivo e empertigado.
Oh, vento oeste, quando irás soprar, fazendo assim cair a chuvinha miudinha?
Afinal, que tem sido o meu destino, a pirâmide pontiaguda que trago aos ombros ao longo de todos estes anos? Que me lembre do Nilo e das mulheres transportando ânforas à cabeça; que me sinta parte dos verões e invernos que fazem ondular o milho e gelar os rios? Não sou um ser singular e passageiro. A minha vida não se assemelha ao brilho momentâneo que ocorre na superfície de um diamante. Penetro no solo de forma tortuosa, semelhante ao carcereiro que percorre as celas transportando uma lanterna. O meu destino traduz-se pela obrigação de jantar, de unir, de transformar em um todos os fios existentes no mundo, os mais finos, os mais grossos, os que se partiram, tudo o que constitui a nossa longa história, os nossos dias tumultuosos e variados. Há sempre algo mais para ser compreendido; uma discórdia a que dar ouvidos; uma falsidade a ser reprimida. Estes telhados de telhas soltas, gatos escanzelados e águas-furtadas, todos eles estão quebrados e cheios de fuligem. Abro caminho por sobre vidros partidos, azulejos riscados, e apenas vejo rostos vis e famintos.
Vamos supor que consigo resumir tudo isto – escrevo um poema e depois morro. Posso garantir-vos que não o faria de má vontade. O Percival morreu. A Rhoda deixou-me. Contudo, sei que viverei de forma muito respeitável, abrindo caminho com a minha bengala de castão dourado por entre as ruas da cidade. Talvez nunca chegue sequer a morrer, nunca consiga atingir essa continuidade e permanência... Oh, vento oeste, quando irás soprar, fazendo assim cair a chuvinha miudinha?
O Percival estava coberto de folhas verdes e desceu à terra com todos os ramos a murmurar ainda de acordo com a brisa estival. A Rhoda, com quem partilhava o silêncio quando todos os outros falavam, ela, que se retraía e desviava quando a manada se reunia e marchava ordeiramente rumo às ricas pastagens, desapareceu como uma miragem. É nela que penso quando o sol incendeia os telhados da cidade; quando as folhas secas caem ao chão; quando os velhotes se aproximam com as bengalas pontiagudas e furam os pequenos pedaços de papel do mesmo modo que nós fazíamos com ela...
Oh, vento oeste, quando irás soprar, fazendo assim cair a chuvinha miudinha? Oh, meu Deus, como era bom o meu amor estar nos meus braços, E eu de volta ao leito!
Regresso ao meu livro; regresso à minha tentativa.
– Oh, vida, como te tenho odiado – disse Rhoda –, oh, seres humanos, como vos tenho detestado! O modo como se têm acotovelado, a forma como têm interrompido, o aspecto hediondo que apresentam em Oxford Street, o ar esquálido que tinham, sentados em frente uns aos outros no metropolitano, fixando o vazio! Agora, à medida que subo esta montanha, no cimo da qual avistarei África, a minha mente está repleta de embrulhos compostos por papel castanho e pelos vossos rostos. Vocês mancharam-me e corromperam-me. Para mais, nas filas que formavam junto às bilheteiras, desprendia-se dos vossos corpos um odor desagradável.
Estavam todos vestidos em tons de castanho e cinzento, sem que nos vossos chapéus se verificasse a presença de uma simples pena azul. Ninguém tinha coragem de ser diferente daquilo que era. Para chegarem ao fim do dia, imagino até que ponto a vossa alma teve de enfrentar um processo de dissolução, as mentiras, vénias, galanteios e actos de servilismo por vós levados a cabo! A forma como me amarraram a um único ponto, a uma cadeira, durante uma hora, e se sentaram do lado oposto! A forma como me arrancaram os espaços em branco que dividem as horas e os transformaram em bolinhas sujas, as quais depois atiraram para o cesto dos papéis com as vossas patas gordurosas!
No entanto, submeti-me. Com a mão, cobri todos os bocejos e caretas. Não saí para a rua e parti uma garrafa de encontro à valeta em sinal de protesto. Tremendo de raiva, tentei mostrar que não estava surpreendida. Aquilo que faziam estava feito. Se a Susan e a Jinny puxavam as meias de uma determinada forma, então eu fazia o mesmo. A vida era tão terrível, que apoiei as sombras umas nas outras. Olhei a vida desta e daquela maneira; deixei que ali houvessem folhas de rosa e ali parras de videira – percorri a rua inteira, Oxford Street, Piccadilly Circus, com o turbilhão existente no meu espírito, com as parras e as folhas de rosa. Haviam também malões, os quais se encontravam à porta da escola no primeiro dia de aulas. Esgueirava-me em segredo para ler as etiquetas e sonhar a respeito de nomes e rostos. Talvez Harrogate, talvez Edimburgo, talvez toda a glória destes locais estivesse concentrada no ponto onde se podia ver uma qualquer rapariga, cujo nome já esqueci. Mas tratava-se apenas do nome. Abandonei o Louis; receava abraços. Com que vestes, com que velas, tentei ocultar a lâmina azul-escura? Implorei ao dia para que se revelasse durante a noite. Ansiei ver o armário mover-se, sentir a cama tornar-se mais macia, flutuar nos ares, avistar árvores e rostos distantes, um pântano rodeado por uma faixa de terreno verde, e duas figuras alteradas despedindo-se. Atirei as palavras aos montes, qual agricultor espalhando as sementes pelos campos arados quando a terra está nua. O meu maior desejo sempre foi o de aumentar a noite para a conseguir encher de sonhos.
Então, num qualquer festival, separei os fios condutores da música e descobri a casa que tínhamos construído: o quadrado em cima do rectângulo. “Está tudo contido nesta casa”, disse, ao mesmo tempo que ia sendo atirada contra os ombros das pessoas que seguiam no mesmo autocarro, logo após a morte do Percival. Acabei por ir para Greenwich. Enquanto caminhava pelo paredão, rezei para que me pudesse sempre manter nos limites do mundo, nos locais onde não há vegetação, mas sim uma ou outra coluna de mármore. Atirei o ramo de flores contra a onda que alastrava. Disse: “Consome-me, leva-me até ao fim dos limites”. A onda rebentou; o ramo murchou.
São poucas as vezes em que penso no Percival.
Vou agora a subir esta colina espanhola, e não tenho qualquer dificuldade em achar que esta mula é a minha cama, e que já morri. Apenas uma película muito fina me separa das profundezas infinitas. O coxim vai-se tornando mais mole. Vamos subindo aos tropeções – avançamos aos tropeções. Tenho vindo sempre a subir, rumo a uma árvore solitária com um pequeno lago junto a si. Naveguei pelas águas da beleza na noite em que as montanhas se fecharam sobre si mesmas, semelhantes a aves que encolhem as asas. Apanhei um ou outro cravo e hastes de feno. Deixei-me cair na turfa, toquei com os dedos num osso velho, e pensei: “Quando o vento fustiga este monte, talvez que aqui só se consiga encontrar um grão de poeira”.
A mula tropeça e vai avançando. O cume da colina eleva-se como nevoeiro, mas lá de cima poderei ver África. A cama acaba por ceder debaixo do meu peso. Os lençóis salpicados de buracos amarelos deixam-me cair. A boa mulher, cuja face lembra um cavalo branco e que se encontra aos pés da cama, faz um gesto de despedida e vira-me as costas. Sendo assim, quem me irá acompanhar? Apenas as flores, nada mais. Apanhando-as uma a uma, fiz com elas uma coroa e ofereci-as – oh, a quem? Avançamos agora pelo precipício. Aos nossos pés vêem-se as luzes dos barcos que pescam arenques. Os rochedos desaparecem. Pequenas e cinzentas, são muitas as ondas que se espalham aos nossos pés. Nada toco. Nada vejo. Podemo-nos afundar e ir para o meio das ondas. O mar produziria toda a espécie de sons nos meus ouvidos. A água salgada escureceria as pétalas brancas. Flutuariam durante alguns instantes, acabando por se afundar. Fazendo-me rebolar por sobre elas, as ondas acabariam por me servir de suporte. Tudo se desfaz numa tremenda quantidade de salpicos, dissolvendo-me. Contudo, aquela árvore possui ramos; e aquilo mais não é que o contorno bem definido do telhado de uma casa de campo. Aquelas formas pintadas de vermelho e amarelo afinal são rostos. Ponho os pés no chão e começo a andar com cautela, até acabar por colocar a mão contra a porta dura de uma estalagem espanhola.
O Sol estava a pôr-se. A pedra dura que constituía o dia estava-se a partir, e a luz escoava-se por todas as fendas. As ondas eram percorridas por raios vermelhos e dourados, semelhantes a flechas enfeitadas de penas escuras. Raios esporádicos de luz brilhavam e vagueavam um pouco por toda a parte, como se fossem sinais enviados de ilhas isoladas, ou mesmo dardos lançados por rapazes brincalhões e sem vergonha. Todavia, as ondas, ao se aproximarem da praia, já não possuíam qualquer tipo de luz, caindo todas ao mesmo tempo com um baque surdo, tal como um muro a cair, um muro de pedra cinzenta, sem que qualquer brilhozinho as iluminasse.
Elevou-se uma brisa; as folhas foram percorridas por um tremor; e, ao serem agitadas, perderam a intensidade castanha que as caracterizava, adquirindo tons cinzentos ou brancos consoante a direcção em que as árvores se moviam. O falcão poisado no ramo superior pestanejou por alguns instantes, levantou voo e afastou-se. A tarambola selvagem que vagueava pelos pântanos não parava de gritar, proclamando aos quatro ventos a sua solidão. O fumo dos comboios e das chaminés como que se desfiava, fundindo-se com as velas que pairavam por sobre o mar e os campos.
O milho já fora cortado. O restolho era tudo o que restava da agitação que antes ali se vivera. Devagar, um mocho elevou-se do ulmeiro em que estava poisado, indo aterrar num cedro. Nas montanhas, as sombras lentas ora se alargavam ora encolhiam. O lago existente na parte mais alta da charneca era um buraco vazio. Nenhum focinho peludo ali se reflectia, casco algum ali batia, e nem mesmo os animais sequiosos ali procuravam água. Uma ave, empoleirada num ramo cor de cinza, encheu o bico de água fria.
Não se ouvia o som das ceifeiras nem o ruído das rodas, mas apenas o súbito rugir do vento a enfunar as velas, com isso fustigando as copas das árvores. Via-se ali um osso, objecto de tal forma marcado pela chuva e pelo sol, que emitia um brilho semelhante ao de uma concha polida pelo mar. A árvore, que na Primavera apresentava uma coloração avermelhada e que no Verão deixava o vento sul agitar as folhas sensíveis, apresentava-se agora tão negra e despida como uma barra de ferro.
A terra encontrava-se tão longe que era impossível distinguir os brilhos de um telhado ou de uma janela. O tremendo peso da terra sombria arrastara consigo estas frágeis cadeias, todas estas conchas embaraçadas. Via-se a sombra líquida de uma nuvem, o bater da chuva, um raio solitário de sol, ou o riscar inesperado dos relâmpagos. Semelhantes a obeliscos, árvores solitárias marcavam as colinas distantes.
O sol poente, despojado de calor e cada vez menos intenso, suavizava as mesas e as cadeiras enfeitando-as de losangos castanhos e amarelos. Separadas por sombras, o seu peso parecia maior, como se a cor, inclinando-se, se tivesse concentrado num único lado. As facas, garfos e copos pareciam agora mais alongados, como que inchados e mais imponentes. Rodeado por um círculo vermelho, o espelho imobilizava a cena como que para todo o sempre.
Enquanto isso, as sombras alongavam-se na praia; a escuridão aumentava. A bota de ferro negro era agora uma mancha azul profunda. As rochas já não eram duras. A água que rodeava o velho barco era escura, como que repleta de mexilhões. A espuma era lívida, deixando aqui e ali um brilho prateado na areia enevoada.
– Hampton Court – disse Bernard. – Hampton Court. É aqui o nosso ponto de encontro. Reparem nas chaminés vermelhas, nas ameias quadradas de Hampton Court. O tom de voz que utilizo para pronunciar Hampton Court serve para provar que sou um indivíduo de meia-idade. Há dez, quinze anos atrás, teria dito Hampton Court, ou seja, na interrogativa, perguntando-me o que lá poderia encontrar. Lagos, labirintos? Ou, como quem antecipa algo: O que me irá acontecer uma vez lá chegado? Quem irei encontrar? Agora, Hampton Court, Hampton Court, as palavras chocam contra um gongo suspenso no ar (o qual fiz os possíveis por limpar através de meia dúzia de telefonemas e postais) e ecoam em anéis de som, estrondosos, vibrantes. Tudo isto me traz à mente uma série de imagens (tardes de Verão, barcos, senhoras de idade erguendo as pontas das saias, uma urna no Inverno, os narcisos em Março), tudo isto flutua agora nas águas que se encontram bem no fundo de todas as cenas.
Ali, na porta da estalagem, o local onde nos combinamos encontrar, posso vê-los a todos – Susan, Louis, Rhoda, Jinny e Neville. Chegaram juntos. Dentro de momentos, quando me juntar a eles, formar-se-á um outro arranjo, um outro padrão. Aquilo que agora se desperdiça e forma cenas em profusão, será verificado, organizado. Sinto-me um tanto relutante em me submeter a esta regra. Sinto que a ordem do meu ser irá ser alterada a cinquenta jardas de distância. A força do íman por eles formado faz-se exercer sobre mim. Aproximo-me. Não me vêem. A Rhoda acaba por me descobrir, mas, dado ter um verdadeiro horror ao choque provocado pelos encontros, finge que não passo de um estranho. O Neville volta-se. De súbito, ao levantar a mão para o saudar, grito: “Também coloquei pétalas de flores entre as páginas dos sonetos de Shakespeare”, e mostro-me bastante agitado. Os meus barcos vão vogando ao sabor das ondas. Não existe panaceia (e talvez seja bom tomar nota disto) contra o choque característico dos encontros.
É também pouco agradável termos de juntar pontas rasgadas, cruas. Só aos poucos o encontro se vai tornando agradável, à medida que entramos na estalagem e vamos tirando casacos e chapéus. Sentamo-nos numa sala de jantar enorme e despida, a qual dá para uma espécie de parque, um qualquer espaço verde iluminado de forma esplendorosa pelo sol poente, o que faz com que as árvores estejam separadas por barras douradas.
– Agora, sentados lado a lado nesta mesa estreita – disse Neville –, agora que a primeira vaga de emoções ainda não se esbateu, que sentimentos nos dominam? Com honestidade e de forma aberta e frontal, como convém a velhos amigos que se encontram com dificuldade, quais os sentimentos que o nosso encontro desperta? Pena. A porta não se irá abrir; ele não entrará. E temos pesos às costas, o que acontece com todos os que alcançaram a meia-idade. O melhor será despojarmo-nos dos fardos. Perguntamos uns aos outros o que foi que fizemos da vida. Tu, Bernard; tu, Susan; tu, Jinny; e vocês, Rhoda e Louis?
As listas foram afixadas na porta. Antes de quebrarmos estes rolos e de nos servirmos do peixe e da salada, meto a mão no bolso interior e encontro os documentos que procurava, aquilo que transporto para provar a minha superioridade. Passei. Trago documentos no bolso interior que o podem provar. Mas os teus olhos, Susan, cheios de nabos e milheirais, perturbam-me.
Os papéis que trago no bolso, a prova de que fui bem sucedido, produzem um som bastante fraco, semelhante ao que é provocado por um homem que bate as palmas num campo vazio para assim afugentar as gralhas. Agora, sob o olhar da Susan, os ruídos por mim provocados deixaram de se fazer sentir, e apenas escuto o vento varrendo os campos arados e o canto de uma ave, talvez uma cotovia intoxicada. Será que o criado me escutou, o criado ou aqueles casais furtivos, ora se debruçando e recostando ora olhando para as árvores que ainda não estão suficientemente escuras para proteger os seus corpos prostrados? Não; o som das palmas fracassou.
Que será então que me resta, agora que não posso puxar dos documentos e ler-vos em voz alta a prova de que fui bem sucedido? O que resta é o que a Susan traz à tona com aqueles olhos verdes e amargos, aqueles olhos cristalinos, em forma de pêra. Quando nos juntamos, há sempre alguém que se recusa a ser submergido (e os nossos encontros têm as pontas afiadas); alguém cuja identidade desejamos abafar com o nosso peso. Pela parte que me toca, gostaria de submergir a Susan. Falo para a impressionar. Escuta-me, Susan!
Quando recebo visitas ao pequeno-almoço, até mesmo os frutos bordados nas cortinas parecem inchar, tornando assim possível que os papagaios os agarrem; qualquer um os pode abrir pressionando-os entre os dedos. O leite desnatado da manhã ganha colorações opalinas, azuis, cor-de-rosa. A essa mesma hora, o teu marido – o homem que pôs de parte as palavras e aponta para as vacas estéreis com o chicote – vai resmungando. Tu nada dizes. Nada vês. O hábito torna-te cega. A essa hora, a vossa relação é muda, nula, parda. Nesse mesmo instante, a minha é quente e variada. Desconheço a palavra “repetição”. Os dias são todos perigosos. Lisos à superfície, somos todos feitos de ossos, os quais, e à semelhança das serpentes, se vão contorcendo. Vamos supor que lemos o The Times; vamos supor que discutimos. Trata-se de uma experiência. Suponhamos que é Inverno. A neve vai-se acumulando no telhado e escorregando por ele abaixo, selando-nos numa gruta vermelha. Os canos rebentaram. Pomos uma banheira amarela no meio do quarto. Corremos a procurar todo o tipo de recipientes. Olha para ali – voltou a rebentar junto à escada. A visão da catástrofe faz-nos rir a bom rir. Que se destrua a solidez! Que nos tirem tudo o que temos! Ou será que é Verão? Podemos ir passear para junto de um lago e ver os gansos chineses nadar perto da margem, ou observar uma igreja citadina, semelhante a um osso, bem assim como as árvores tremulas que a rodeiam. (Escolho ao acaso; escolho o que é óbvio.) Todos os sinais são como arabescos destinados a ilustrar um qualquer episódio e a maravilhar-nos no mais íntimo de nós mesmos. A neve, o cano rebentado, a banheira de metal, os gansos chineses – trata-se de sinais erguidos bem alto, bastando-me olhar para eles para ler as características de cada amor; para ver o quanto eram diferentes.
Entretanto, tu – e é por isso que quero diminuir a tua hostilidade, esses olhos verdes fixos nos meus, o teu vestido pobre, as tuas mãos calejadas, e todos os outros emblemas característicos do teu esplendor maternal – fixaste-te como uma lapa à mesma rocha. Sim, é verdade, não te quero magoar; apenas refrescar e restaurar a crença que nutro em relação a mim mesmo, e que desapareceu quando entraste. Antes, quando nos encontramos num restaurante de Londres com o Percival, tudo fervilhava e se separava em grupos; podíamos ter sido qualquer coisa. Acabamos por escolher (às vezes parece que a escolha foi feita por nós) um par de tenazes, as quais nos foram colocadas entre os ombros. Escolho. Sigo o fio da vida para dentro, e não para o exterior, em direcção a uma fibra crua desprotegida. Sinto-me sufocado e magoado pelas marcas deixadas por mentes, rostos, e outras coisas tão subtis que, muito embora possuidoras de cheiro, cor, textura e substância, não têm nome. Para vocês, que vêem os limites estreitos da minha vida e a linha que ela não pode ultrapassar, não passo do Neville. Contudo, e para mim, não conheço limites; sou uma rede cujas fibras se estendem de forma imperceptível por todas as partes do mundo. É quase impossível distingui-la do que nela se encontra envolvido. Levanta baleias – monstros enormes e alforrecas brancas, tudo o que é amorfo e errante ; detecto; distingo. Por baixo dos meus olhos, abre-se... um livro; vejo o fundo; o coração – observo as profundezas. Sei quais os amores que estão prestes a se incendiar; o modo como a inveja espalha por toda a parte os seus raios verdes; a forma intrincada como os amores se cruzam; como os amores se atam e separam brutalmente. Já estive amarrado; já fui separado.
Mas já conhecemos tempos gloriosos, quando esperávamos que a porta se abrisse e o Percival entrou; quando nos deixávamos cair num qualquer assento existente nas salas públicas.
– Havia o bosque de faias – disse Susan –, Elvedon, e os ponteiros dourados do relógio lançando raios por entre as árvores. Os pardais partiram as folhas. Luzes tremeluzentes pairavam por sobre a minha cabeça. Conseguiram-me escapar.
No entanto, repara bem, Neville (a quem desprezo para que possa ser eu mesma), na minha mão poisada em cima da mesa. Repara nas tonalidades saudáveis que se espalham pelos nós dos dedos e pela pele da palma. O meu corpo é usado diariamente, como um instrumento manejado por um bom jardineiro que dele sabe fazer uso. A lâmina está limpa, afiada, um pouco gasta no centro. (Batalhamos juntos como animais lutando no campo, como veados que fazem bater as hastes umas contra as outras.) Vistas através da carne pálida e flácida, até mesmo as maçãs e os restantes frutos devem dar a sensação de estarem numa redoma de vidro. Enterrados num cadeirão com apenas uma pessoa (mas uma pessoa que muda), vocês limitam-se a ver uma pequena porção de carne; os nervos, as fibras, o fluxo, ora veloz ora lento, do sangue; mas nada vêem por completo.
Não vêem a casa que está no jardim; o cavalo que está no campo; o modo como a cidade está disposta, e tudo porque se curvam como as mulheres idosas que não desviam os olhos da peça que costuram. Todavia, eu vi a vida em blocos, substancial, enorme; as suas ameias e torres, fábricas e gasômetros, uma habitação que vem sendo construída ao longo dos tempos, seguindo um padrão hereditário. Trata-se de coisas que permanecem concretas, definidas, indissolúveis, pelo menos para mim. Não sou sinuosa nem suave; sento-me entre vós enfrentando a vossa apatia com a minha dureza, destruindo os frêmitos das asas cinzentas das vossas palavras, servindo-me para isso da raiva esverdeada dos meus olhos claros.
Acabamos por nos defrontar. Trata-se do prelúdio necessário; da saudação dos velhos amigos.
– O ouro desapareceu por entre as árvores – disse Rhoda –, atrás delas só se vê uma mancha verde, comprida como uma lâmina das facas que vemos nos sonhos, ou uma qualquer ilha onde ninguém pisa. Os carros que descem a avenida começam a escassear. Os amantes podem agora ocultar-se sob o manto da escuridão; os troncos das árvores parecem inchados, obscenos mesmo, pois estão cheios de amantes.
– Houve um tempo em que as coisas eram diferentes – disse Bernard. – Tempos em que podíamos romper as amarras se assim o desejássemos. Quantos telefonemas, quantos postais são agora precisos para romper este buraco no qual nos juntamos, unidos, em Hampton Court? Com que rapidez a vida desliza de Janeiro a Dezembro! Somos arrastados pela corrente composta por toda uma série de coisas que se tornaram demasiado óbvias, familiares, e que já não projectam sombra; não fazemos comparações; pouco pensamos a nosso respeito; e é neste estado de inconsciência que nos libertamos da fricção, rompendo as algas que haviam entupido os desembocadouros dos canais subterrâneos. Para que possamos apanhar o comboio que parte de Waterloo, temos de saltar e de nos elevar nos ares como se fôssemos peixes. E, não importa o quão alto saltemos, acabamos sempre por voltar a mergulhar nas águas. Nunca entrarei naquele navio com destino aos mares do Sul. Roma marcou o limite das minhas viagens.
Tenho filhos e filhas. Semelhante à peça de um puzzle, pertenço a um determinado lugar.
No entanto, trata-se apenas do meu corpo (este homem envelhecido a quem chamam Bernard) que se fixou de forma irrevogável – pelo menos é isso que desejo acreditar. Penso agora de forma mais desinteressada do que a que me caracterizava na juventude, e, para me descobrir, tenho de ir cada vez mais fundo. “Olha, que será isto? E isto? Será que dará um belo presente? Será que é tudo?”, e assim por diante. Sei agora o que está dentro dos embrulhos e não me importo muito. Atiro os pensamentos aos quatro ventos, tal como um homem atira as sementes ao ar, as quais caem por entre a luz do sol-poente, indo cair na terra previamente arada, brilhante e comprimida, onde nada se encontra.
Uma frase. Uma frase imperfeita. E o que são frases? Deixaram-me pouco para colocar no tampo da mesa, junto à mão de Susan; pouco para tirar do bolso, junto com as credenciais do Neville. Não sou nenhum perito em leis, medicina ou economia. Semelhante a uma palha rodeada de água, estou envolvido em frases fosforescentes, emito brilhos. E, sempre que falo, todos sentem: Estou aceso. Estou a brilhar. Quando nos encontrávamos à sombra dos ulmeiros, nos campos de jogos, os rapazinhos costumavam pensar que as frases que saíam dos meus lábios aos borbotões eram bastante boas. Eles próprios se elevavam; também eles se escapavam com as minhas frases. Porém, eu definho na solidão. Esta é a minha ruína.
Vagueio de casa em casa como os frades da Idade Média que enganavam as raparigas e as mulheres casadas com contas e baladas. Sou um viajante, um bufarinheiro, pagando com uma caução a hospitalidade que me oferecem; sou um convidado fácil de agradar; alguém que ora dorme no melhor quarto da casa, na cama de dossel, ora passa a noite no estábulo, deitado num molho de feno. Não me importo com as pulgas, o mesmo se passando com o toque da seda. Tenho uma percepção demasiado clara da perenidade da vida e das tentações que a caracterizam para impor proibições.
Apesar de tudo, não sou tão tolerante como vos pareço, a vós, que me julgam pela fluência com que me exprimo. Trago escondido na manga um punhal envenenado com desprezo e austeridade. Contudo, estou sempre pronto a me dispersar. Invento histórias. Construo brinquedos a partir do nada. Há uma rapariga sentada à porta de uma vivenda; está à espera; de quem? Seduzida ou não? O director descobre que há um buraco no tapete. Suspira. A esposa, passando os dedos pelas ondas do cabelo, ainda abundante, reflecte – e assim por diante. O ondular de mãos, as hesitações ocorridas nas esquinas, alguém que deixa cair o cigarro na valeta – tudo isto são histórias. Mas qual delas é a verdadeira? Isso não sei. É por isso que penduro as frases, como se estivessem num roupeiro à espera que alguém as use. E assim, esperando, especulando, tomando nota disto ou daquilo, não me agarro à vida. Serei arrastado como uma abelha que zumbe junto aos girassóis. A minha filosofia, sempre a se acumular, a crescer de momento a momento, espraia-se em simultâneo nas mais diversas direcções. Porém, o Louis, austero, se bem que de olhar selvagem, no sótão, no escritório, chegou a conclusões inalteráveis sobre a verdadeira natura daquilo que há a saber.
– Quebrou-se – disse Louis. – A teia que tentei tecer acabou de se quebrar. Foram as vossas gargalhadas, a vossa indiferença, e também a vossa beleza, que a quebraram. A Jinny partiu o fio há muitos anos, quando me beijou no jardim. Os gabarolas troçavam de mim na escola por falar com sotaque australiano, e também o partiram. É este o significado, disse, e foi então que um baque me fez parar – vaidade. Escutem, disse, escutem o rouxinol que canta mesmo aos vossos pés; as conquistas e as migrações. Acreditem e é então que sou como que posto de lado. Opto por viajar por sobre telhas partidas e vidros estilhaçados. São muitas as luzes que tombam sobre mim, tornando estranho um simples leopardo. Este momento de reconciliação, quando nos unimos mais uma vez, este momento nocturno, com o seu vinho e folhas tremulas, e jovens subindo a margem do rio, vestidos de flanela e transportando almofadas, dizia, este momento está obscurecido com as sombras dos calabouços e das torturas praticadas por alguns homens contra outros homens. Tenho os sentidos tão imperfeitos que não consigo ocultar os ataques bastante graves que, em termos racionais, vou fazendo contra todos nós, mesmo quando aqui estamos sentados. Pergunto a mim mesmo e à ponte qual será a solução. Como poderei reduzir estas vertigens, estas aparições bailarinas, a uma linha capaz de as unificar? E é nisto que vou pensando. Entretanto, vocês observam com malícia o modo como comprimo os lábios, as minhas faces macilentas, e as rugas que se formam na minha testa.
Todavia, peço-vos também para repararem na bengala e no colete. Herdei uma secretária de mogno e um gabinete repleto de mapas. Os nossos navios alcançaram uma reputação invejável devido às suas cabinas luxuosas. Fornecemos piscinas e ginásios. O colete que uso é branco e consulto sempre a agenda antes de aceitar qualquer compromisso.
É este o escudo e a forma irônica através da qual espero desviar as atenções de todos vós da minha alma trêmula, meiga, e infinitamente jovem e desprotegida. O certo é que sou sempre o mais novo; o que se surpreende da forma mais ingênua; o que se oferece para ir à frente, mas sempre com medo de parecer ridículo – não vá ter o nariz sujo ou um botão desapertado. Sofro em mim todas as humilhações. Apesar disso, também consigo ser impiedoso, duro. Não entendo quando vos ouço dizer que a vida vale a pena ser vivida. As vossas pequenas alegrias, os vossos transportes infantis, os quais ocorrem quando a chaleira ferve, quando a brisa levanta o lenço da Jinny e o faz flutuar como se de uma teia de aranha se tratasse, são para mim idênticos a véus de seda, com os quais se tenta tapar os olhos dos touros enraivecidos. Condeno-vos. Porém, o meu coração precisa de vós. Convosco seria até capaz de atravessar as fogueiras da morte. Mesmo assim, sou mais feliz quando estou só. Adoro vestir de ouro e púrpura. Apesar disso, prefiro olhar os contornos das chaminés; os gatos coçando os flancos escanzelados; as janelas partidas; e o ruído duro e seco provocado pelos sinos que tocam numa qualquer capela de tijolo.
– Vejo o que tenho à frente – disse Jinny. – Este lenço, estas manchas cor de vinho. Este copo. Esta jarra cor de mostarda. Esta flor. Gosto do que pode ser tocado, saboreado. Gosto da chuva depois de ela se ter transformado em neve e ganho gosto. E, dado ser mais brusca e muito mais corajosa que todos vós, não considero a minha beleza mesquinha, caso contrário queimar-me-ia. Assumo-a por inteiro. É feita de carne; é feita de matéria. Só conheço a imaginação do corpo. As suas visões não são tão finas nem tão imaculadamente brancas como as do Louis. Não gosto de gatos magros e das tuas chaminés rachadas. As belezas desagradáveis dos teus telhados repelem-me. Delicio-me com a visão de homens e mulheres de uniforme, perucas e capas, chapéus de coco e camisolas pólo, e a incrível variedade de vestidos femininos (reparo sempre em todas as roupas). É com eles que me misturo, que entro e saio de salas, salões, deste ou daquele lugar. É com eles que vou para toda a parte. Este homem levanta o casco de um cavalo. Aquele abre e fecha as gavetas onde guarda as suas colecções. Nunca estou só. Vivo rodeada por indivíduos que me são semelhantes. A minha mãe deve ter seguido o tambor, o meu pai o mar. Sou como um cachorro que desce a rua atrás da banda do regimento, mas que pára para cheirar o tronco de uma árvore, esta ou aquela mancha castanha, e que de súbito corre atrás de um rafeiro qualquer, acabando por levantar uma pata ao sentir o cheiro a carne que lhe chega do talho. As minhas viagens levaram-me a locais estranhos. Foram muitos os homens que passaram através do muro e vieram ter comigo. Bastou-me levantar a mão. Em linha recta, semelhantes a dardos, vieram encontrar-se comigo no local devido, talvez uma cadeira colocada na varanda, talvez uma loja de esquina. Os tormentos, as divisões típicas foram por mim resolvidas noite após noite, às vezes apenas devido ao toque de um dedo por baixo da toalha, o meu corpo tornou-se tão fluido, que basta o toque de um dedo para se transformar numa única gota, a qual se enche, estremece, reluz, e acaba por cair, em êxtase.
Tenho-me sentado frente ao espelho do mesmo modo que vocês se sentam a escrever e a fazer contas. Assim, em frente ao espelho que se encontra no templo constituído pelo meu quarto, analisei os olhos e o queixo que nele se reflectiam; aqueles lábios que se abrem de mais, revelando grande parte das gengivas. Tenho olhado. Tenho reparado. Tenho escolhido aquilo que mais me convém: o branco ou o amarelo, o que brilha e o que é baço, as curvas e as linhas rectas. Sou volátil para este, rígida para aquele, angulosa como um cristal de neve prateado, ou voluptuosa como uma chama púrpura. Projectei-me com toda a violência possível, como se fosse um chicote. A camisa dele, ali, naquele canto, começou por ser branca; depois vermelha; fomos envolvidos pelo fumo e pelas chamas; depois de uma confrontação furiosa – muito embora mal tenhamos levantado a voz, sentado no tapete em frente à lareira, à medida que murmurávamos os nossos segredos mais íntimos de forma a os transformar em conchas, evitando assim que fossem escutados, mesmo depois de eu ter ouvido o cozinheiro e de certa vez termos pensado ser o tiquetaque do relógio uma bola de futebol – transformamo-nos em cinzas, nada deixando que pudesse servir de relíquia, nenhum osso por queimar, nenhuma madeixa de cabelo susceptível de ser guardada. O meu cabelo começou a embranquecer; estou a definhar; mas continuo a sentar-me frente ao espelho em pleno dia, e reparo com exactidão no meu nariz, queixo, e lábios que se abrem de mais e revelam grande parte das gengivas. Mesmo assim, não tenho medo.
– Quando vinha da estação – disse Rhoda –, vi candeeiros e árvores que ainda não deixaram cair as folhas. Estas talvez me tivessem podido ocultar. Contudo, e ao contrário do que era costume, não me escondi atrás delas. Ao invés de começar a andar em círculos com vista a evitar o choque provocado pela sensação, de pronto caminhei ao vosso encontro. Mas claro que isto só foi possível porque ensinei o meu corpo a desempenhar um certo truque. Mesmo assim, este não resulta no que respeita ao nível inferior; tenho medo, odeio, amo, invejo-vos e desprezo-vos, mas nunca me sinto feliz por vos encontrar. Quando vinha da estação, recusando-me a aceitar a sombra das árvores e dos postes, apercebi-me através dos vossos casacos e chapéus de chuva, e isto mesmo à distância, o quanto vocês estão embebidos numa substância constituída pela união de uma série de momentos repetidos; do modo como se comprometem, tomam atitudes, têm filhos, autoridade, fama, amor, amigos. Pela parte que me toca, nada tenho, nem sequer um rosto.
Aqui, nesta sala de restaurante, vocês vêem as hastes dos veados que estão penduradas na parede e também os copos; os saleiros; as manchas amarelas que enchem a toalha. “Criado!” exclama o Bernard. “Pão!”, grita a Susan. E o certo é que o criado nos vem trazer o pão. Mas eu encaro os contornos do copo como se pertencessem a uma montanha, e vejo apenas alguns galhos das hastes, e até mesmo aquele jarro se me apresenta como uma fenda na escuridão. Não preciso dizer que tudo isto me fascina e horroriza. As vossas vozes lembram o som das árvores que se quebram na floresta. Sinto o mesmo em relação aos vossos rostos, com as suas saliências e covas. Como são belos quando vistos a uma certa distância e no escuro, imóveis, recortando-se contra a vedação de uma praça qualquer! Atrás de vocês existe um crescente de espuma branca, e os pescadores que trabalham na beira do mundo lançam as redes para depois as recolherem. O vento agita as folhas mais altas das árvores primordiais. (Contudo, estamos sentados em Hampton Court.) Os gritos dos papagaios quebram o silêncio da selva. (É neste ponto que os eléctricos arrancam.) A andorinha mergulha as asas nos lagos nocturnos. (Aqui fala-se.) É esta a circunferência que tento agarrar assim que nos sentamos. É por isso que tenho de me penitenciar em Hampton Court, e precisamente às sete e meia.
Mas, e dado que necessito destes pães e das garrafas de vinho, que os vossos rostos, mesmo com as covas e saliências que lhes são características, são belos, e não é permitido à mancha amarela existente na toalha que alastre os seus círculos de compreensão (pelo menos é isso que sonho durante a noite, quando o leito onde durmo flutua, acabando por cair sempre na terra) de forma a que estes possam abarcar todo o mundo, tenho de me sujeitar a todas as farsas do ser. Vejo-me obrigada a fazê-lo quando me atiram com os filhos, os poemas, as frieiras, ou seja lá aquilo que fazem e de que têm de aceitar as consequências. Contudo, ainda não me desfiz. Depois de todos estes chamamentos, destes ataques e buscas, deixar-me-ei cair no meio das chamas, passando primeiro por esta gaze muito suave. E vocês não me ajudarão. Mais cruéis que qualquer torturador, deixar-me-ão cair, desfazendo-me em mil pedaços durante a queda. Mesmo assim, há momentos em que as paredes da mente se tornam menos espessas; em que nada fica por absorver, de tal forma que seria capaz de imaginar que temos capacidade para soprar uma bola de sabão de tais dimensões que o Sol nela se poderia pôr e nascer, e que poderíamos roubar o azul do meio-dia e o negro da meia-noite, e escaparmo-nos daqui de uma vez por todas.
– O silêncio vai caindo gota a gota – disse Bernard. – Forma-se no ponto mais alto da mente e vai-se acumulando em poças. Só, só, para sempre só, escutar o silêncio cair e estender-se em círculos até aos limites extremos. Saciado e farto, sólido devido à felicidade característica da meia-idade, eu, a quem a solidão destrói, deixo cair o silêncio, gota a gota.
Porém, os pingos de silêncio cavam-me abismos no rosto, desgastam-me o nariz, tal como acontece com os bonecos de neve quando apanham chuva. À medida que o silêncio cai, vou-me dissolvendo, perco as feições, e mal me consigo distinguir dos outros. O facto também não interessa. Ao fim e ao cabo que é que interessa? Jantamos bem. O peixe, as costeletas de veado e o vinho, tudo isto contribuiu para tornar rombo o dente afiado do egotismo. A ansiedade repousa. O mais vaidoso de todos nós, talvez o Louis, já não se importa com o que as pessoas pensam. Cessaram as tonturas características do Neville. Os outros que prosperem – é isso que ele pensa. A Susan escuta a respiração regular dos filhos, agora adormecidos. “Durmam, durmam”, murmura. A Rhoda inclinou os barcos na direcção da praia. Não lhe interessa saber se se afundaram ou estão a salvo. Estamos prontos a aceitar de forma quase que imparcial toda e qualquer sugestão que o mundo nos possa oferecer. Reflicto agora sobre a possibilidade de a Terra ser apenas uma pedrinha arrancada à superfície do Sol, e de não existir vida em lugar algum nos abismos do espaço.
– Neste silêncio – disse Susan –, parece que nenhuma folha vai cair, nem nenhuma ave levantar voo.
– Tal como se o milagre tivesse acontecido – disse Jinny –, e a vida se condensasse aqui e agora.
– E – disse Rhoda –, já não mais houvesse para viver.
– Mas – disse Louis –, escutem como o mundo se move nos abismos do espaço infinito. Ouçam-no rugir; a faixa iluminada da história deixou de existir, e com ela os nossos reis e rainhas; deixamos de ser; a nossa civilização; o Nilo; a vida. Dissolveram-se as gotas que nos conferiam individualidade; extinguimo-nos; estamos perdidos no abismo do tempo, na escuridão.
– O silêncio cai; o silêncio cai – disse Bernard. – Mas agora escutem: tiquetaque; silvo após silvo; o mundo fez-nos de novo regressar a ele. Durante breves instantes, quando passamos para lá da vida, ouvi rugir os ventos da escuridão. Foi então que tiquetaque (o relógio); então, os silvos (os automóveis). Aportamos, estamos na praia; somos seis indivíduos sentados à mesa. É a imagem do meu nariz que mo lembra. Levanto-me. Luta! Luta!, grito, lembrando-me da forma do nariz que tenho, e acabo por bater com a colher na mesa.
– Temos de nos opor a este caos ilimitado – disse Neville –, a esta imbecilidade informe. Pelo simples facto de estar a fazer amor com uma qualquer criadita debaixo de uma árvore, aquele soldado é mais digno de admiração que todas as estrelas. Porém, há momentos em que uma simples estrela a brilhar no céu me faz pensar que o mundo é belo, e que nós, vermes, deformamos as árvores com a nossa luxúria.
– E contudo, Louis – disse Rhoda –, o silêncio dura pouco. Já começaram a alisar os guardanapos que estão junto aos pratos. “Quem lá vem?”, pergunta a Jinny, e o Neville suspira, pois sabe que não pode ser o Percival. A Jinny tirou o espelho da bolsa. Observando o rosto com o olhar de um artista, passa a borla de pó-de-arroz pelo nariz, e dá aos lábios o tom de vermelho que eles precisam. A Susan, a quem a visão destes preparativos provoca um sentimento onde o medo e o desprezo se misturam, aperta o botão superior do casaco, de novo o desapertando. Para que se estará ela a preparar? Sim, para alguma coisa, mas para alguma coisa diferente.
– Estão a falar uns com os outros – disse Louis. – Dizem: Está na hora. Continuo vigoroso. O meu rosto sobressairá contra a escuridão do espaço infinito. Não concluem as frases. Não param de repetir que está na hora. Os jardins fecharão. E, Rhoda, ao irmos com eles, ao nos deixarmos arrastar pela sua corrente, talvez nos deixemos ficar um pouco para trás.
– Quais conspiradores, temos segredos a partilhar – disse Rhoda.
– É verdade – disse Bernard –, sinto-o cada vez com mais segurança à medida que vamos descendo a avenida, que houve um rei que caiu do cavalo precisamente neste ponto, depois de o animal ter tropeçado num montículo de terra.
Contudo, não deixa de ser estranho situar nos abismos do espaço infinito uma figurinha com um bule dourado na cabeça. É com facilidade que se recupera a crença nas figuras, mas não naquilo que elas colocam na cabeça. O nosso passado inglês, uma réstia de luz. É então que as pessoas colocam um bule na cabeça e dizem: “Sou Rei”. Não pode ser. Enquanto caminho, tento recuperar o sentido do tempo, mas o fluxo de escuridão que me passa frente aos olhos impede-me de o fazer.
Este palácio parece ser tão leve como uma nuvem. Colocar reis em tronos e pôr-lhes coroas na cabeça – isso são apenas ilusões. E nós, caminhando os seis lado a lado, que podemos opor a esta inundação, nós, que só temos uma pequena chama a que chamamos cérebro e sentimentos? Afinal, que é que permanece. As nossas vidas também vão escorrendo pelas avenidas mal iluminadas, para lá do tempo, sem que sejam identificadas.
Certa vez, o Neville atirou-me um poema. Ao sentir uma súbita convicção de imortalidade, disse: “Também sei o que Shakespeare sabia”. Mas até isso desapareceu.
– De forma ridícula, injustificável, o tempo regressa à medida que avançamos – disse Neville. – A máquina funciona. O tempo fez com que o portão se tornasse velho. Quando comparados com aquele cão que, todo empertigado, satisfaz as suas necessidades, trezentos anos nada parecem ser. O rei Guilherme, usando uma peruca, monta a cavalo, e as damas da corte varrem o solo com as suas saias bordadas. Começo a convencer-me que o destino da Europa é de importância vital, e que, por muito ridículo que possa parecer, tudo depende da batalha de Blenheim. Sim, declaro eu no momento em que atravessamos este portão, estamos no momento presente. De súbito, transformei-me no rei Jorge.
– À medida que descemos a avenida – disse Louis –, eu apoiando-me suavemente na Jinny, o Bernard de braço dado com o Neville, e a Susan de mão dada comigo, sinto dificuldade em não chorar, em não imaginar que somos crianças e que rezamos para que Deus vele por nós durante o sono. É tão doce cantar em conjunto, de mãos dadas e com medo do escuro, enquanto a Miss Curry toca harmônica!
– Os portões de ferro recuaram – disse Jinny. – As mandíbulas do tempo pararam. Graças ao pó-de-arroz, ao rouge, e aos lenços finos, conseguimos derrotar os abismos do espaço.
– Prendo, seguro-me com força – disse Susan. – Não largo esta mão, não importa de quem ela seja, e sinto amor, sinto ódio; não interessa saber qual ao certo.
– Somos possuídos por um sentimento de calma, da dissipação – disse Rhoda – e todos desfrutamos deste alívio momentâneo (não é muito frequente deixarmos de sentir ansiedade), quando as paredes da mente se tornam transparentes. O palácio de Wren, semelhante ao quarteto que foi tocado por todas aquelas pessoas secas que se encontravam nos assentos, é um rectângulo. Coloca-se um quadrado em cima do rectângulo e diz-se: É aqui que moramos. A estrutura é agora visível. Pouco ficou de fora.
– A flor – disse Bernard –, o cravo vermelho que estava em cima da mesa do restaurante na noite em que jantamos com o Percival, transformou-se numa flor composta de seis lados, de seis vidas.
– Numa luz misteriosa – disse Louis –, reflectida contra esses teixos.
– Construída com muita dor, com muitas pinceladas – disse Jinny.
– Casamentos, mortes, viagens, amizades – disse Bernard –, campo e cidade; filhos e tudo o mais; uma substância composta por muitos ângulos, feita a partir desta escuridão; uma flor multifacetada. O melhor será pararmos por alguns instantes e contemplarmos o que fizemos. A nossa obra que brilhe, que incida nos teixos. Uma vida. Ali. Acabou. Desapareceu.
– Foram-se todos embora – disse Louis. – A Susan com o Bernard. O Neville com a Jinny. Tu e eu, Rhoda, paramos por instantes junto a esta urna de pedra. Que tipo de canto iremos escutar, agora que estes casais se embrenharam nos bosques e a Jinny, gesticulando com as mãos cobertas pela pele das luvas, tenta fazer crer que está a reparar nos nenúfares, e a Susan, que sempre amou o Bernard, lhe diz: A minha vida arruinada, desperdiçada. E o Neville, segurando a pequena mão da Jinny, a mão cujas unhas têm a cor das cerejas, grita, talvez que influenciado pelo lago e pelo luar: Amor, amor, ao que ela responde imitando a ave: Amor, amor. Que tipo de canto escutamos.
– E lá desaparecem eles em direcção ao lago – disse Rhoda. – Avançam por sobre a relva com passos furtivos, se bem que com a segurança de quem nos pedem um antigo privilégio que lhes é devido, o de não serem perturbados. A corrente da alma escoa-se naquela direcção; não podem fazer outra coisa senão partir, deixando-nos sós. A escuridão envolveu-lhes os corpos. Que canto estaremos a ouvir, o do mocho, o do rouxinol, ou o da carriça? O barco a vapor assobia; brilham os fios dos eléctricos; as árvores vergam-se e baloiçam com gravidade. Há um fulgor a pairar sobre Londres. Vê-se uma mulher idosa a caminhar devagar nesta direcção, e também um homem, um pescador que se atrasou, e que desce o terraço com a cana de pesca. Nada nos pode escapar, quer seja som ou movimento.
– Uma ave regressa ao ninho – disse Louis. – A noite fê-la abrir os olhos, e ela examina os arbustos mais uma vez antes de adormecer. Como a deveremos montar, a mensagem confusa e complexa que nos enviam, e não apenas eles, mas também os mortos, rapazes e raparigas, mulheres e homens adultos, que, sob o reinado deste ou daquele rei, por aqui passaram.
– Caiu um peso na noite – disse Rhoda –, o que a fez afundar. As árvores parecem maiores devido a uma sombra que não é a que lhes está atrás. Ouvimos os ruídos que nos chegam de uma cidade cercada quando os turcos estão esfomeados e de mau humor. Ouvimo-los gritar num tom agudo: Abram, abram.
Ouçam como os eléctricos chiam e os fios de electricidade brilham. Escutamos as faias e os vidoeiros a elevar os ramos, tal como se a noiva tivesse deixado cair a camisa de noite e chegasse à porta dizendo: Abre, abre.
– Tudo parece estar vivo – disse Louis. – Esta noite não consigo ouvir a morte em parte alguma. Poder-se-ia pensar que a estupidez estampada no rosto daquele homem e a idade daquela mulher teriam força suficiente para resistir ao feitiço e trazer a morte. Mas onde é que ela está esta noite? Toda a crueza, contratempos e fins, se estilhaçaram contra esta corrente azul, orlada a vermelho, a qual, depois de ter arrastado o maior número possível de peixes até à praia, acaba por se quebrar aos nossos pés.
– Se pudéssemos formar uma torre humana, se pudéssemos avistar as coisas de um ponto suficientemente alto – disse Rhoda –, se pudéssemos permanecer intocáveis e sem qualquer apoio, mas tu, perturbado por toda uma série de sons distantes onde se misturam elogios e gargalhadas, e eu, que me ressinto das noções de compromisso, de bem e de mal, confiamos apenas na violência e na solidão da morte, e é isso que nos divide.
– Estamos divididos para sempre – disse Louis. – Sacrificamos os abraços por entre os fetos e o amor, o amor, o amor junto ao rio. Fizemo-lo quando, semelhantes a conspiradores que se afastam para partilhar um segredo, nos juntamos ao lado da urna. Mas olha, repara, há uma onda a rasgar o horizonte. A rede vai-se levantando cada vez mais. Está quase à superfície. As águas são salpicadas por pequenos peixes, trêmulos e prateados. Vejo aproximarem-se algumas figuras. Serão homens ou mulheres? Trazem ainda as vestes bordadas características da corrente onde estiveram mergulhadas.
– Agora – disse Rhoda –, ao passarem por aquela árvore, recuperam o tamanho natural. Trata-se apenas de homens e de mulheres. O fascínio e o encanto desaparecem à medida que despem os brocados. A piedade regressa quando os vejo emergir ao luar, semelhantes às relíquias de um exército que, todas as noites (aqui ou na Grécia), sai para lutar, regressando sempre com os rostos desolados e cobertos de feridas. A luz acaba por incidir sobre eles. Têm faces. Transformam-se na Susan e no Bernard, na Jinny e no Neville, em gente que conhecemos. Como as coisas encolhem! Como tudo se encarquilha! Que humilhação! Sou percorrida pelos velhos arrepios, ódios e tremores, ao sentir que os anzóis que nos lançam me prendem a um único ponto. Contudo, basta-lhes falar para que as primeiras palavras por eles pronunciadas e os gestos que as acompanham me desviem do objectivo a que me propusera inicialmente.
– Algo tremeluz e dança – disse Louis. – A ilusão regressa, à medida que vão descendo a avenida. Volto-me a interrogar.
Que será que penso de vós? Que pensarão vocês de mim? Quem sois vós? Quem sou eu? – tudo isto faz com que sobre nós volte a pairar um ar algo constrangido, e o pulso volta a bater mais depressa, os olhos iluminam-se, e toda a insanidade da existência pessoal, sem a qual a vida cairia redonda e morreria, tudo isto recomeça. Eles estão sobre nós. O sol poente paira por sobre esta urna; abrimos caminho até à corrente característica do mar, violenta e cruel. O Senhor ajuda-nos a representar o papel que nos compete quando saudamos a sua volta, a volta da Susan e do Bernard, a volta do Neville e da Jinny.
– Destruímos algo com a nossa presença – disse Bernard. – Talvez um mundo.
– E contudo, mal podemos respirar de cansados que estamos – disse Neville. – Encontramo-nos naquele estado mental exausto e passivo, quando apenas nos apetece voltar ao corpo da mãe, do qual fomos separados. Tudo o resto é desagradável, forçado e cansativo. A esta luz, o lenço amarelo da Jinny adquire uma coloração parda. A Susan tem os olhos mortiços. É quase impossível distinguirem-nos do rio. A ponta de um cigarro é a única coisa que nos confere algum ênfase. A tristeza mancha o nosso contentamento por vos termos abandonado, por termos rasgado o tecido; possuídos pelo desejo de espremer um sumo ainda mais negro e amargo, mas igualmente doce. No entanto, agora estamos estoirados.
– Depois do fogo – disse Jinny –, nada mais temos para guardar.
– Mesmo assim – disse Susan –, continuo de boca aberta, como uma qualquer jovem ave insatisfeita à qual algo tenha escapado.
– Antes de partirmos – disse Bernard –, talvez seja melhor ficarmos juntos por mais um momento. Vamos passear junto ao rio na mais completa solidão. Está quase na hora de deitar. As pessoas já foram para casa. É bastante reconfortante observar as luzes apagarem-se nos quartos dos pequenos comerciantes que vivem do outro lado do rio. Ali está uma, ali outra. Quais terão sido os lucros por eles hoje obtidos? Apenas o suficiente para pagar a renda, a electricidade, a comida e a roupa dos filhos. Mas apenas o suficiente. Como é grande a sensação de que a vida é tolerável que nos é dada pelas luzes dos quartos dos pequenos lojistas! Quando chega o sábado, o mais provável é terem apenas dinheiro para pagar quatro entradas de cinema. Talvez que antes de apagarem as luzes se dirijam até ao pequeno jardim que possuem para olhar o coelho gigante que se encontra dentro da capoeira de madeira. Trata-se do coelho que comerão ao jantar de sábado. Depois apagam as luzes. Depois adormecem. E, para milhares de pessoas, dormir não passa de algo quente e silencioso, de um prazer momentâneo composto por um qualquer sonho fantástico. Enviei a carta para o jornal de domingo, pensa o merceeiro. Suponhamos que ganho quinhentas libras no jogo de futebol. E, claro, mataremos o coelho. A vida é agradável. A vida é boa. Enviei a carta. Vamos matar o coelho. Só então adormece.
E este tipo de coisas continua. Ouço um som semelhante ao deslizar de vagões nos carris. Trata-se da ligação feliz que existe entre os acontecimentos que se sucedem na vida de cada um. Toque, toque, toque. Dever, dever, dever. Deve-se partir, deve-se dormir, deve-se levantar – trata-se daquela palavra sóbria e piedosa que pretendemos insultar, que apertamos com força contra o coração, e sem a qual não existiríamos. Como adoramos o som dos vagões que vão batendo uns contra os outros ao deslizar nos carris!
Não muito longe do rio, ouço pessoas cantar. Trata-se dos rapazes gabarolas que regressam em grandes grupos depois de terem passado o dia no convés de um vapor apinhado. Continuam a cantar da mesma forma de sempre quando atravessam o pátio nas noites de Inverno, ou quando as janelas se abrem durante o Verão, embebedando-se, partindo a mobília, vestidos com pequenas capas às riscas, olhando na mesma direcção sempre que o eléctrico contorna a esquina. E eu que tanto queria estar com eles!
Vamo-nos desintegrando com o coro, com o som da água a correr, e com o murmúrio suave da brisa. Vão ruindo pequenos pedaços de nós. Ah! Alguma coisa de muito importante caiu ali. Já não me consigo manter inteiro. Gostaria de dormir. Todavia, temos de partir; de apanhar o comboio; de voltar para a estação – temos, temos, temos. Somos apenas corpos que avançam lado a lado aos solavancos. Existo apenas na sola dos pés e nos músculos cansados das coxas. Parece que caminho há já várias horas. Mas por onde? Não me consigo lembrar. Sou como um tronco que desliza suavemente por sobre uma qualquer queda de água. Não sou juiz. Ninguém me pede para dar a minha opinião. A esta luz cinzenta, as casas e as árvores parecem todas a mesma coisa. Será aquilo um poste? Uma mulher a andar? Aqui é a estação, e se o comboio me cortasse em dois, acabaria por voltar a me transformar num ser uno, indivisível. Porém, não deixa de ser estranho o facto de continuar a agarrar com firmeza o bilhete de regresso de Waterloo, mesmo agora, mesmo quando estou a dormir.
O Sol acabara de se pôr. Era impossível distinguir o céu e o mar. Ao rebentar, as ondas espalhavam os seus leques brancos por sobre a praia, enviavam sombras brancas para os recantos das grutas, e acabavam por recuar, sussurrando por sobre o cascalho.
As árvores abanavam os ramos, enchendo o chão de folhas. Estas assentavam com a maior das composturas no local exacto onde acabariam por apodrecer. O barco partido que antes lançara raios vermelhos projectava agora sombras negras e cinzentas no jardim. Manchas negras escureciam os túneis entre os caules. O tordo calou-se e o verme voltou ao buraco estreito onde habitava. De vez em quando, uma palha esbranquiçada e vazia era soprada de um qualquer velho ninho e caía nas ervas escuras, por entre as maçãs podres. A luz deixara de incidir na parede da arrecadação, e a pele da cobra continuava a abanar, presa por um prego. Dentro de casa, todas as cores haviam alagado as margens que as continham. Até mesmo as pinceladas mais definidas estavam como que inchadas; armários e cadeiras fundiam as respectivas massas castanhas até estas constituírem uma enorme obscuridade. A distância que separava o tecto do chão estava coberta por vastas cortinas escuras. O espelho estava tão pálido como a entrada de uma gruta oculta por trepadeiras.
Esvaíra-se a solidez das montanhas. Luzes passageiras projectavam feixes triangulares por entre estradas invisíveis e afundadas, mas aquelas não encontravam eco entre as asas dobradas das montanhas, e não se escutava qualquer outro som para além do grito de uma qualquer ave procurando uma árvore solitária. Na margem do rochedo, sentia-se tanto o murmúrio do vento que passava por entre as florestas, como o das águas, arrefecidas em pleno oceano em milhares de copos cristalinos.
Tal como se o ar estivesse coberto de ondas sombrias, a escuridão alastrava, cobrindo casas, montanhas e árvores, da mesma forma que as vagas circulam em torno de um navio afundado. A escuridão descia as ruas, rodopiando em volta de algumas figuras isoladas, envolvendo-as; apagando os casais agarrados à sombra dos ulmeiros exuberantes na sua folhagem estival. As ondas de negrume rolavam pelos caminhos cobertos de erva e pela pele enrugada da turfa, envolvendo o espinheiro solitário e as conchas de caracol vazias. Mais acima, a escuridão soprava ao longo das vertentes nuas das terras altas, chegando mesmo a alcançar os píncaros da montanha onde a rocha dura está sempre coberta de neve, mesmo quando os vales se enchem de riachos, de folhas de videira, e também de raparigas que, sentadas em terraços e cobrindo os rostos com leques, elevam os olhos para a neve. A escuridão tudo cobriu.
– Está na hora de resumir – disse Bernard. – Chegou a hora de te explicar o sentido da minha vida. Dado não nos conhecermos (se bem que me pareça já te ter encontrado antes, a bordo de um navio que seguia para África), podemos falar com franqueza. Sinto-me possuído pela ilusão de que existe algo que adere durante alguns instantes, é redondo, tem peso, profundidade, está completo. Pelo menos por agora, é assim que sinto a minha vida. Se fosse possível, seria este o presente que te gostaria de oferecer. Arrancá-la-ia como quem arranca um cacho de uvas. Diria: “Toma. É a minha vida”.
Mas, infelizmente, não vês aquilo que vejo (este globo, cheio de figuras). Sentado à tua frente está um homem idoso bastante pesado, cheio de cabelos brancos. Vês-me pegar no guardanapo e desdobrá-lo. Vês-me encher um copo de vinho.
E, atrás de mim, vês uma porta por onde as pessoas vão passando. Mas, para te dar a minha vida, para que a possas entender, tenho de te contar uma história – e se elas são tantas, tantas –, histórias de infância, histórias do tempo da escola, de amores, casamentos, mortes, e assim por diante. Contudo, nenhuma é verdadeira. Mesmo assim, iguais a crianças, vamos contando histórias uns aos outros, e, para as conseguirmos decorar, inventamos estas frases ridículas, rebuscadas, belas.
Estou tão cansado de histórias, tão cansado de frases que assentam tão bem! Para mais, detesto projectos de vida concebidos em folhas de blocos de apontamentos! Começo a sentir saudades de um tipo de linguagem semelhante à que é usada pelos amantes, composta por palavras soltas e inarticuladas, semelhantes a pés arrastando-se no caminho. Começo a procurar um conceito que esteja mais de acordo com os momentos de humilhação e triunfo com que sempre acabamos por nos deparar de vez em quando. Deitado numa vala durante um dia de tempestade depois de ter estado a chover, vejo marcharem no céu nuvens grandes e pequenas. Nesses momentos, o que me delicia é a confusão, o peso, a fúria e a indiferença. São nuvens que não param de mover e de se transformar; qualquer coisa de sulfuroso e sinistro, arqueado; ameaçador até ao momento em que se estilhaça e desaparece, e lá estou eu, minúsculo, esquecido, na valeta. É nesses momentos que não consigo encontrar quaisquer vestígios de história, de conceito.
Mas entretanto, enquanto comemos, o melhor será irmos virando estas cenas, tal como as crianças viram as páginas de um livro de gravuras e escutam a ama dizer, ao mesmo tempo que aponta: “Aquilo é uma vaca. Aquilo é um barco”. Vamos virar as páginas, e, para tua alegria, acrescentarei alguns comentários nas margens.
No princípio, havia o quarto das crianças, com janelas que davam para um jardim, e, mais além, para o mar. Via qualquer coisa brilhante – sem dúvida que o puxador dourado de um armário. Era então que Mrs. Constable elevava a esponja acima da cabeça, espremia-a, e tanto à esquerda como à direita da minha coluna se espalhavam picadas de sensação. É por isso que, e desde que contenhamos a respiração, não mais deixamos de sentir estas picadas sempre que batemos contra uma cadeira, uma mesa, uma mulher – ou mesmo se caminharmos pelo jardim e bebermos este vinho. De facto, sempre que passo por uma casa de campo onde a luz da janela indica que aí nasceu uma criança, quase me sinto tentado a implorar que não espremam a esponja por sobre aquele novo corpo. Depois, havia o jardim e toda uma vasta panóplia de folhas que pareciam tudo rodear; flores ardendo como chamas nas profundezas verdes; um rato escondido atrás de uma folha de ruibarbo; a mosca que não parava de zumbir junto ao tecto do quarto, e um amontoado inocente de pratos com pão com manteiga. Todas estas coisas acontecem num segundo e duram para sempre. As faces começam por surgir de forma indefinida. Saem como que dos cantos. “Olá”, diz uma delas, “aquela é a Jinny, Aquele o Neville. Lá está o Louis vestido com um fato de flanela azul e um cinto de pele de cobra. Aquela é a Rhoda”. Esta tinha uma taça na qual fazia flutuar pétalas de flores brancas. Foi a Susan quem chorou no dia em que eu e o Neville estávamos na arrecadação. O facto derreteu a minha indiferença. O mesmo não se passou com o Neville. “Sendo assim”, disse, “eu sou eu, e não o Neville”, o que foi uma descoberta maravilhosa. A Susan chorou e eu segui-a. O lenço molhado e a visão das suas pequenas costas a subir e a descer como se de a alavanca de uma bomba se tratasse, soluçando pelo que lhe fora negado, deixou-me com os nervos arrasados. “Não é para isso que nascemos”, disse, e sentei-me junto dela em cima de umas raízes tão duras como esqueletos. Foi aí que me apercebi da presença daqueles inimigos que mudam, mas que estão sempre ali; as forças contra as quais lutamos. É impensável deixarmo-nos levar de forma passiva. “É esse o teu curso, mundo”, diz alguém, “o meu é este”. Sendo assim, “o melhor é explorarmos tudo” gritei, e, levantando-me de um salto, desci a encosta a correr junto com a Susan, tendo visto o rapaz que trabalhava nos estábulos andar de um lado para o outro com um enorme par de botas. Mais abaixo, através das profundezas das folhas, os jardineiros varriam as folhas com as suas grandes vassouras.
Sentada, a dama escrevia. Fulminados, deixamo-nos ficar quietos como se estivéssemos mortos. Pensei: “Não posso interferir com o mais pequeno movimento destas vassouras. Elas não param de varrer. Não se comparam à rigidez com que aquela mulher escreve. É estranho como não somos capazes de impedir os jardineiros de varrer nem de desalojar uma mulher. Ficaram comigo toda a vida. É como se tivéssemos acordado em Stonehenge, rodeados por um círculo de pedras enormes, estes inimigos, estas presenças. Foi então que um pardal levantou voo de uma árvore. E, dado estar apaixonado pela primeira vez na vida, construí uma frase – um poema a respeito de um pardal – uma única frase, pois na minha mente havia-se aberto uma fenda, uma daquelas súbitas transparências através das quais tudo se vê. Era então que surgiam mais travessas de pão com manteiga e mais moscas voando em círculos junto ao tecto, onde se amontoavam ilhas de luz, tremulas, opalinas enquanto os pingentes do lustre pingavam gotas azuis, que se amontoavam a um canto da lareira. Dia após dia, sempre que nos sentávamos para lanchar, observávamos estes sinais.
Mas éramos todos muito diferentes. A cera – a cera virgem que cobre a espinha dorsal –, fundiu-se em caminhos diferentes para cada um de nós. Os grunhidos do rapaz das botas a fazer amor com a criada por entre os arbustos; as roupas a secar estendidas na corda; o homem morto na valeta; a macieira iluminada pelo luar; o rato coberto de vermes; o lustre a pingar azul – a nossa cera branca foi moldada e manchada de forma diferente por cada uma destas coisas. O Louis desgostou-se com a natureza da carne humana; a Rhoda com a nossa crueldade; a Susan era incapaz de partilhar fosse o que fosse; o Neville queria ordem; a Susan amor; e assim sucessivamente. Sofremos imenso quando nos tivemos de separar no plano físico.
Contudo, fui poupado a estes excessos e sobrevivi a muitos dos meus amigos (se bem que agora esteja gordo, grisalho, e tenha o peito um pouco atrofiado) precisamente porque o que me delicia não é a imagem da vida vista a partir do telhado, mas sim da janela do terceiro andar. Não me interessa o que uma mulher pode dizer a um homem, mesmo que ele seja eu. Assim sendo, por que razão me incomodavam na escola? Por que razão se metiam comigo? Havia o director, marchando na direcção da capela como se comandasse um navio de guerra através de uma tempestade, dando ordens através de um megafone, pois as pessoas que ocupam lugares onde tenham de exercer autoridade acabam sempre por se tornar melodramáticas – ao contrário do Neville e do Louis, não o odiava nem o venerava. Sempre que nos sentávamos na capela, eu tomava notas. Viam-se ali pilares, sombras, placas de bronze invocando os mortos, rapazes passando cromos uns aos outros servindo-se do livro de orações como capa; o som de uma bomba ferrugenta; o director a trovejar a respeito da imortalidade e do facto de termos de dali sair como homens; e o Percival a coçar a coxa. Tomei toda uma série de notas para depois usar nas minhas histórias; desenhei quadros nas margens do bloco-notas, e assim me fui separando cada vez mais. Seguem-se duas ou três figuras que vi.
Naquele dia, sentado na capela, o Percival não parava de olhar em frente. Tinha também o hábito de levar a mão à nuca. Todos os movimentos que fazia eram dignos de nota. Todos levávamos as mãos às respectivas nucas – mas sem qualquer sucesso. Ele possuía o tipo de beleza que se defende de qualquer carícia. Dado não ser minimamente precoce, lia tudo o que existia da nossa edificação sem fazer qualquer comentário, e pensava com aquela equanimidade (as palavras latinas surgem com naturalidade) que só o podia preservar de tantos actos mesquinhos e humilhações, e também de pensar que os laçarotes que a Lucy usava no cabelo e as suas faces rosadas eram o expoente da beleza feminina. Devido a estas defesas, o seu gosto acabou por se tornar requintadíssimo. Mas o melhor seria haver música, um qualquer canto feroz. Devia entrar agora pela janela uma canção de caça, entoada por uma forma de vida rápida e impossível de apreender – um som que fizesse eco por entre as colinas, acabando por esmorecer. Aqui o que é surpreendente, o que não podemos justificar, o que transforma a simetria em disparate – é isso que me vem à mente sempre que penso nele. O pequeno instrumento de observação é desmontado. Os pilares desmoronam-se; o director desaparece; sou possuído por uma estranha exaltação. Encontrou a morte numa corrida de cavalos, e, esta noite, enquanto descia Shaftesbury Avenue, aqueles rostos insignificantes e de contornos mal definidos que surgiam nas saídas do metropolitano, muitos indianos obscuros, as pessoas que morrem devido à fome e à doença, as mulheres enganadas, os cães espancados e as crianças chorosas – todos me pareciam ter sido roubados. Ele teria feito justiça. Tê-los-ia protegido. Por certo que aos quarenta anos teria chocado as autoridades. Nunca me ocorreu uma canção de embalar que fosse capaz de o sossegar.
Mas o melhor será voltar a mergulhar a colher num outro objecto minucioso a que chamamos de forma optimista “a Personalidade de um amigo” – o Louis. Não tirava os olhos do pregador. Parecia que todo o ser se lhe concentrava no aro das sobrancelhas. Tinha os lábios comprimidos; o olhar não se movia, mas era capaz de se iluminar subitamente com uma gargalhada. Sofria de frieiras, um dos castigos para quem tem problemas de circulação. Infeliz, sem amigos, mesmo apesar de exilado, por vezes, em momentos de confiança, era capaz de descrever o modo como as ondas varriam as praias da sua terra. O olho impiedoso da juventude fixava-se nas suas articulações inchadas. Mesmo assim, não tínhamos qualquer problema em perceber o quanto ele era severo e capaz. Eram muitas as vezes em que, deitados à sombra dos ulmeiros, a fingir que estávamos a ver o jogo de críquete, esperávamos a sua aparição, a qual raramente nos era concedida. Ressentíamo-nos do seu poder e adorávamos o Percival. Formal, desconfiado, levantando os pés como se fosse um grou, mesmo assim corria a história de que partira uma porta ao murro. Porém, o cume da sua montanha era demasiado despido, demasiado pedregoso para que este tipo de nevoeiro a ele aderisse. Não possuía aquelas ramificações que nos ligam aos outros. Permanecia isolado; enigmático ; um erudito capaz daquela minuciosidade inspirada que tem em si qualquer coisa de formidável. As minhas frases (o modo como descrevia a Lua) não mereciam a sua aprovação. Por outro lado, invejava-me quase até ao desespero pela facilidade por mim demonstrada em lidar com os criados. Não que não fosse capaz de se aperceber das suas próprias falhas. Era qualquer coisa que andava a par com o seu respeito pela disciplina. Daí ter conseguido obter sucesso. Apesar de tudo, não teve uma vida feliz. Mas reparem – os seus olhos vão-se tornando brancos, aqui, poisados na palma da minha mão. De súbito, a noção daquilo que as pessoas representam abandona-nos. Devolvo-o ao lago, onde por certo adquirirá algum brilho.
Segue-se-lhe o Neville – deitado de costas, os olhos fitos no céu estival. Flutuava à nossa volta um pedaço de lanugem de cardo, assombrando de forma indolente o recanto cheio de sol do pátio, e, se bem que nos escutasse, não estava totalmente longe. Foi graças a ele que aprendi algumas coisas sobre os clássicos latinos sem nunca os ter lido, tendo também ganho o hábito de pensar – por exemplo, a respeito de crucifixos e de estes serem marcas do diabo – o que nos leva a ter uma visão distorcida das coisas. Os nossos meios-amores e meios-ódios, e a ambiguidade por nós revelada a respeito de tudo isto, eram para ele insignificantes. O director palavroso e baloiçante, o qual fiz sentar frente à lareira a abanar os braços, para ele nada mais era que um instrumento da inquisição. O facto espevitava-o com um ardor que compensava a indolência característica dos homens que lêem Catulo, Horácio e Lucrécio, e, muito embora parecesse estar a dormitar sempre que assistia a um jogo de críquete, o seu cérebro, semelhante à língua de um papa-formigas, rápida, hábil, pegajosa, vasculhava todas as curvas e contra-curvas daquelas frases romanas, e nunca parava de procurar uma pessoa ao lado de quem se sentar.
E as saias compridas das mulheres dos professores passavam por nós com aquele ar ameaçador, e as mãos voavam-nos para os bonés. Éramos tomados por um enorme aborrecimento, uma monotonia incrível. Nada, mas mesmo nada, quebrava com a barbatana o deserto plúmbeo das águas. Nunca acontecia nada capaz de levantar o peso de uma monotonia tão intolerável. Os períodos sucediam-se. Crescíamos e mudávamos, pois o certo é que não passávamos de animais. Nem sempre estamos conscientes; comemos e bebemos de forma automática. Não só existimos em separado mas também em bolhas de matéria impossíveis de diferenciar entre si. Como um todo, um grupo de rapazes levanta-se e vai jogar críquete ou futebol.
Um exército marcha através da Europa. Reunimo-nos em parques e salões e opomo-nos a qualquer renegado (ao Neville, ao Louis e à Rhoda) que se atreve a ter uma existência separada.
Sou feito de maneira tal, que, mesmo quando ouço uma ou duas melodias, por exemplo, quando o Neville ou o Louis cantam, não deixo de me sentir irresistivelmente atraído pelo som do coro que entoa uma canção antiga, sem palavras e quase que despojada de sentido, a qual percorre todas as salas durante a noite; a que continuamos a ouvir ribombar junto a nós à medida que os automóveis e os autocarros transportam as pessoas para os teatros. (Escutem; os carros precipitam-se para lá deste restaurante; de vez em quando, no rio, há uma sirene que apita, o que indica a existência de um vapor dirigindo-se para o mar.) Se fosse num comboio e um caixeiro me oferecesse um pouco de rapé, por certo que aceitaria. Gosto do aspecto copioso, uniforme, quente, não muito esperto mas extremamente fácil e bastante duro das coisas; do modo como conversam os homens que frequentam os clubes e os bares; dos mineiros seminus – de tudo o que é directo e não tem outro fim em vista senão jantar, amar, fazer dinheiro e dar-se mais ou menos bem com os outros; de tudo o que não acalenta grandes esperanças, ideias, ou qualquer coisa do gênero; de tudo o que só pretende tirar bom proveito de si mesmo. Gosto de tudo isto. Era por isso que me juntava aos outros sempre que o Neville ou o Louis amuavam, virando-me as costas.
E foi assim, nem sempre da mesma forma ou seguindo uma ordem precisa, que a minha cobertura de cera se foi derretendo, gota a gota. Através desta transparência tudo se tornou visível, até mesmo aqueles campos maravilhosos onde nunca ninguém esteve e que a princípio só o luar iluminava; prados cobertos de rosas e crocos, e também de rochas e cabras; de coisas manchadas e escuras; do que está embaraçado, ligado, e ainda do que trepa. Levantamo-nos da cama de um salto, abrimos a janela, e com que barulho as aves levantam voo! Todos conhecemos aquele súbito bater de asas, aqueles gritos de espanto, canções e confusão; a mistura de vozes; e todas as gotas brilham e tremem, como se o jardim fosse um mosaico composto por muitos fragmentos, sumindo, chispando; sem contudo se ter transformado numa só coisa; e um pássaro canta junto à janela. Escutei essas canções. Segui esses fantasmas. Vi uma série de Joans, Dorothys e Miriams (já não me lembro como se chamavam) descer as avenidas e pararem nos pontos mais altos das pontes para olhar o rio. E de entre elas elevam-se uma ou duas figuras distintas, aves que cantavam junto à janela com o egoísmo próprio da juventude; que quebravam as cascas nas pedras e enterravam os bicos na matéria pegajosa; duras, ávidas, sem possuírem qualquer tipo de remorsos; são elas a Jinny, a Susan e a Rhoda. Penso terem sido educadas ou na costa leste ou no sul. Deixaram crescer o cabelo, prenderam-no em rabos-de-cavalo, e adquiriram o ar de éguas espantadas próprio da adolescência.
A Jinny foi a primeira a deslizar até junto ao portão só para comer açúcar. Revelando grande esperteza, roubava os torrões aos que os tinham, mas as suas orelhas estavam sempre puxadas para trás, o que indicava encontrar-se sempre pronta a morder. A Rhoda era arisca – nunca ninguém a conseguiu apanhar. Tinha tanto de medrosa como de desastrada. Foi a Susan quem primeiro se tornou mulher, um ser puramente feminino. Foi ela quem derramou no meu rosto aquelas lágrimas escaldantes que tanto têm de belo como de terrível; de tudo ou nada. Dado necessitarem estes de segurança, nasceu para ser adorada pelos poetas, pois trata-se de seres que gostam de quem se sente a coser e diga: “Amo, odeio”; de quem não seja próspero nem se sinta confortável, mas que possua uma qualquer qualidade em sintonia com a elevada (se bem que pouco simpática) beleza característica do estilo puro, a qual é particularmente admirada por aqueles que criam poesia. O pai dela percorria os quartos e descia os corredores com uma camisa de dormir bastante larga e um par de chinelos velhos. Nas noites calmas, podia-se escutar claramente o ruído das quedas d'água que ficavam a mais de uma milha de distância. O velho cão mal tinha forças para se pôr de pé. Para mais, ainda havia uma criada louca que não parava de rir e de fazer girar a roda da máquina de costura.
Constatei o facto até mesmo em plena angústia, quando, torcendo o lenço entre as mãos, a Susan gritou: “Amo, odeio”.
Pensei: “Há uma criatura inútil a rir no sótão”, e este pequeno exemplo serve para mostrar o modo incompleto como mergulhamos nas nossas próprias experiências. No limite de toda a agonia senta-se um qualquer sujeito que observa e aponta; que murmura coisas, exactamente do mesmo modo como me murmurou uma frase naquela manhã de Verão, na casa onde o milho chega até à janela: “E foi assim que me dirigiu para aquilo que transcende as nossas capacidades; para o que é simbólico e assim talvez que permanente, isto se houver alguma permanência no facto de comermos, dormirmos e respirarmos; como se houvesse algo de permanente nestas vidas tão animais, tão espirituais e tumultuosas”.
O salgueiro crescia junto ao rio. Sentava-me na relva macia junto com o Larpent, o Neville, o Baker, o Romsey, o Hughes, o Percival e a Jinny. Através das suas pequenas plumas manchadas de pequenos fios que ora eram verdes na Primavera ora alaranjados no Outono, via passar os barcos; via edifícios e mulheres decrépitas a tentar andar depressa. Foram muitos os fósforos que enterrei no solo, todos eles destinados a marcar este ou aquele estádio do processo de compreensão (poderia ter sido filosófico; científico; até mesmo pessoal). Enquanto isso, os limites da minha inteligência captavam todas as sensações, até mesmo as mais distantes; o soar dos sinos; murmúrios gerais; figuras que se esbatiam; uma rapariga a andar de bicicleta que, e à medida que avançava, parecia levantar a ponta do véu que ocultava todo o caos da vida existente para lá dos contornos dos meus amigos e do salgueiro.
Só a árvore resistia ao eterno fluxo de mudança. Pois o certo é que eu mandava; era Hamlet, era Shelley, era o herói (cujo nome já me esqueci) de um romance de Dostoievsky; e, por muito incrível que pareça, cheguei mesmo a ser Napoleão. Claro que esta fase só durou um período lectivo. O certo é que, e na maior parte do tempo, julgava ser Byron. Durante semanas a fio nada mais fiz senão andar pelos quartos a atirar luvas e casacos para as costas das cadeiras. Não parava de caminhar para a estante para beber mais um gole de água da nascente. Assim, deixei cair todas as frases que possuía em alguém pouco apropriado – uma rapariga que já casou e morreu –; em todos os livros, em todos os assentos colocados junto às janelas, se viam excertos das cartas que nunca cheguei a acabar e que tinham como destinatário a mulher que me transformava em Byron. O certo é que é difícil acabar a escrita no estilo de outra pessoa. Chegava todo transpirado à casa dela; trocávamos juras. Contudo, e dado não me encontrar suficientemente maduro para tamanha intensidade, acabei por me casar com outra pessoa. Mais uma vez, aqui devia haver música. Nada que se comparasse ao canto de caça do Percival; mas sim qualquer coisa de doloroso, gutural, amargo, algo parecido com o canto da cotovia e que conseguisse substituir estes escritos idiotas – demasiado evidentes! demasiado razoáveis! – através dos quais tento descrever o momento esvoaçante característico do primeiro amor. O dia está coberto por uma película vermelha. Olhem bem para o mesmo quarto antes e depois de ela ter entrado. Olhem para os inocentes que, cá fora, vão seguindo o seu caminho. Nada vêem nem escutam; contudo, prosseguem. Ao nos movermos nesta atmosfera brilhante e pegajosa, sentimo-nos conscientes de todos os movimentos – algo adere, algo se cola à nossa mão, impedindo-nos de deixar cair o jornal. Existe ainda um ser esventado – colocado no exterior, posto a rodopiar, contorcendo-se em torno de um galho. Segue-se então o trovão da mais completa indiferença; a luz do relâmpago. Assiste-se depois ao regresso de uma certa dose de irresponsabilidade; certos campos dão a sensação de que ficarão verdes para sempre – por exemplo, aquele canteiro em Hampstead –; e todas as faces se iluminam, todos conspiram num burburinho de alegre ternura; e depois aquele sentido místico de realização, ao que se segue o reverso da medalha – aquelas feridas provocadas por aguilhões negros e que se sentem sempre que ela não vem. É então que nos ares se elevam toda a espécie de suspeitas; horror, horror, horror – mas qual a necessidade de elaborar dolorosamente estas frases consecutivas quando aquilo que é realmente necessário nada tem de contínuo, assemelhando-se mais a um latido, a um gemido? E tudo para, anos mais tarde, ver uma senhora de meia-idade a despir o casaco no restaurante., Mas o melhor será regressarmos. Vamos voltar a fingir que a vida é uma substância sólida, com a forma de um globo, e que a podemos fazer girar por entre os dedos. Vamos fingir ser capazes de elaborar uma história simples e lógica, de forma a que, uma vez encerrado um assunto – por exemplo, o amor – possamos avançar de forma ordenada para o ponto seguinte. Dizia eu que havia um salgueiro. Os seus ramos caídos e a sua casca grossa e rugosa tinham o mesmo efeito daquilo que permanece fora das nossas ilusões e que não as pode parar, chegando mesmo a sofrer as influências destas por alguns instantes, mas que permanece estável, no mesmo sítio, com a gravidade que falta às nossas vidas. Daí o comentário que produz; o padrão que apóia, e a razão pela qual, à medida que fluímos e mudamos, nos parece medir e avaliar. Por exemplo, o Neville sentou-se ao meu lado, na relva. Mas, ao seguir-lhe o olhar através dos ramos até este poisar numa barca onde se encontrava um jovem a comer uma banana, perguntou-me se as coisas podem ser assim tão claras. A cena recortava-se com tanta intensidade e estava tão impregnada pela qualidade da sua visão, que durante alguns instantes também eu a consegui ver através dos ramos do salgueiro: a barca, as bananas, o jovem. Só então se desvaneceu. A Rhoda aparecia sempre com ar de quem anda a vaguear. Considerava úteis todos os encontros que tivesse, desde os eruditos de capa a esvoaçar, aos burros que andavam pelos campos. Que medo se pressentia, escondia e acabava por se transformar em chamas nas profundezas daqueles olhos cinzentos, espantados, sonhadores? Apesar de cruéis e vingativos, não somos tão maus a esse ponto. Por certo que temos uma certa dose de bondade, ou seria impossível falar de forma aberta como o faço com alguém que mal conheço. Na sua mente, o salgueiro crescia no limiar de um deserto onde pássaro algum cantava. Quando as olhava, as folhas encarquilhavam, agonizando sempre que por elas passava. Os eléctricos e os autocarros rugiam ainda com mais força, passando por cima de pedras e seguindo em frente a grande velocidade. Talvez que no seu deserto existisse uma coluna iluminada pelo sol, junto a um lago onde os animais selvagens se aproximam para beber. Seguia-se então a Jinny. Era ela quem incendiava a árvore. Era como uma papoila, febril, dominada pelo desejo de beber a terra seca. Esguia, angulosa, sem nada ter de impulsivo, aproximava-se sempre preparada. São tão poucas as chamas que percorrem a terra seca. Ela fazia dançar os salgueiros, mas não com a imaginação, pois só via o que ali estava. Isto era uma árvore; aquilo um rio; era de tarde; estávamos ali; eu com um fato de sarja; ela vestida de verde. Não havia passado nem futuro; apenas o momento condensado num anel luminoso; os nossos corpos; e o êxtase e o clímax inevitáveis., Sempre que se deitava na erva, o Louis estendia um impermeável quadrado, tornando assim a sua presença notada. Tratava-se de algo formidável. Eu possuía a inteligência suficiente para saudar a sua integridade; a pesquisa que levava a cabo com os dedos ossudos que, e devido às frieiras, era obrigado a enrolar em farrapos, em busca de um qualquer diamante formado pela verdade indissolúvel. Enterrei caixas de fósforos a arder nos buraquinhos que se encontravam junto à relva que pisava. O seu sorriso e língua afiada reprovavam a minha indolência. A sua imaginação sórdida fascinava-me. Os seus heróis eram chapéus de coco, e dizia querer trocar pianos por notas de dez libras. Os eléctricos gemiam e as fábricas exalavam toda a espécie de fumos ácidos na paisagem que construía. Vagueava por ruas e cidades secundárias onde, no dia de Natal, as mulheres vagueiam, bêbedas e nuas. As suas palavras eram como que disparadas do alto de uma torre; atingiam a água e faziam-na erguer-se. Descobriu uma palavra, apenas uma, para descrever a Lua. Foi então que se levantou e partiu; todos se levantaram e partiram. Porém, parei, fitei as árvores, e, tal como acontecia no Outono quando olhava para os seus ramos vermelhos e amarelos, formou-se um qualquer sedimento; eu mesmo me formei; caiu uma gota; eu mesmo caí – ou seja, acabara de emergir de uma experiência recém-completada.
Levantei-me e parti – eu, eu, eu; não Byron, Shelley ou Dostoievsky, mas sim eu, Bernard. Cheguei mesmo a repetir o meu nome uma ou duas vezes. Sempre a abanar a bengala, dirigi-me a uma loja e comprei – não que goste de música – um quadro de Beethoven rodeado por uma moldura de prata. Não que goste de música, mas na altura todos os vultos importantes da história, mestres e aventureiros, seres humanos magníficos, pareciam estar atrás de mim. Claro que eu era o herdeiro; o continuador; a pessoa a quem por milagre haviam ordenado que seguisse em frente. Assim, sempre a abanar a bengala e com os olhos úmidos, não devido ao orgulho, note-se, mas antes à humildade, lá fui descendo a rua. O primeiro bater de asas desaparecera, o mesmo se passando com o primeiro cântico e exclamação. Está na hora de entrar em casa, numa casa seca, habitada, descomprometida, um local carregado de tradições, objectos, montanhas de lixo, e tesouros espalhados pelas mesas. Passei a frequentar o alfaiate da família, que me lembrava o meu tio. As pessoas começaram a surgir em grandes quantidades, mas não de forma tão precisa como os primeiros rostos (o Neville, o Louis, a Jinny, a Susan e a Rhoda), mas antes revelando possuírem contornos confusos. Não tinham feições, ou, quando as possuíam, estas mudavam com tanta rapidez que era como se não as tivessem. E, cheio de desprezo e ao mesmo tempo sempre a corar, sempre em situações misturadas; tudo isto sem estar preparado para aceitar os choques da vida, os quais acontecem sempre à mesma hora e em todos os locais. Que aborrecido! Que humilhante nunca se estar certo do que dizer a seguir, passar por todos aqueles silêncios dolorosos, tão brilhantes como desertos secos onde todas as pedras são visíveis; e depois, claro, dizer o que não se devia ter dito e aperceber-se da existência de um fio de sinceridade que de boa vontade qualquer um trocaria por dinheiro, mas que, pelo menos naquela festa, com a Jinny sentada na sua cadeira dourada, era impossível fazê-lo. É então que, com um gesto grandioso, uma dama pronuncia as seguintes palavras: “Venha comigo”. Leva-nos para uma alcova privada e concede-nos a honra da sua intimidade. Os apelidos transformam-se em nomes próprios; estes em alcunhas.
Qual o comportamento a seguir em relação à Índia, à Irlanda ou a Marrocos? São os cavaleiros idosos que respondem a esta questão à luz dos candelabros. Descobrimos com bastante surpresa que possuímos informações a mais. Lá fora, forças indistintas rugem; cá dentro, somos muito íntimos, muito explícitos, possuímos a noção de que é aqui, neste quartinho, que construímos um determinado dia da semana. Sexta ou sábado. Uma espécie de concha nacarada, brilhante, forma-se por sobre a alma, e é contra ela que as sensações investem, se bem que em vão. No que me diz respeito, esta carapaça formou-se mais cedo do que na maior parte das pessoas. Enquanto os outros preferiam comer bolos, eu já descascava a minha pera. Podia pronunciar qualquer frase no mais completo silêncio. É nesta fase que a perfeição tem o seu fascínio. Imaginamos poder aprender castelhano se atarmos um fio ao dedo grande do pé direito e acordarmos cedo. Enchemos os pequenos compartimentos da agenda com marcações para jantares às oito e almoços à uma e meia. Espalhamos camisas, meias e gravatas em cima da cama. Contudo, esta precisão externa, esta progressão militar e ordeira, não passa de um engano, de uma conveniência, de uma mentira. Lá bem no fundo, mesmo quando chegamos à hora aprazada ao local combinado, de coletes brancos e fazendo uso de todo o tipo de delicadezas formais, existe sempre uma corrente de sonhos destroçados, canções infantis, gritos que se elevam nas ruas, frases e visões por concluir – ulmeiros e salgueiros, jardineiros a varrer e senhoras a escrever – corrente esta que não pára de subir e descer, mesmo quando conduzimos uma senhora pela mão até à mesa. No preciso momento em que endireitamos a faca, são milhares os rostos que se agitam de um lado para o outro. Nada existe que possamos apontar com a colher; nada que possamos chamar um acontecimento. Todavia, esta corrente é também ela viva e profunda. Nela submerso, parava a meio de duas garfadas e fitava com toda a atenção uma jarra onde se encontrava uma flor vermelha, enquanto era como que iluminado por uma súbita revelação. Ou, ao descer o Strand, dizia: “É esta frase que quero”, pois acabara de ver uma qualquer coisa fantasmagórica ave, pássaro ou nuvem, elevar-se e abarcar de uma vez por todas a ideia que até então não parava de me atormentar, e atrás da qual me mantivera, mesmo quando olhava para as gravatas e outras coisas bonitas existentes nas montras. O vidro, o globo da vida como alguém lhe chamou, longe de ser duro e frio, tem paredes feitas do mais fino ar. Se as apertarmos, rebentam. Seja qual for a frase que tiro deste caldeirão, ela não passa de um conjunto de seis pequenos peixes que se deixaram apanhar, enquanto milhões de outros continuam a nadar e a saltar, fazendo com que o caldeirão pareça um banho de prata incandescente, muito embora se escapem por entre os meus dedos. Há rostos que não cessam de aparecer, rostos e rostos – pressionam a sua beleza contra as paredes da minha bolha. Trata-se do Neville, da Susan, do Louis, da Jinny, da Rhoda, e de mil outras pessoas. Tal como acontece com a música, é impossível ordená-las de forma correcta, isolá-las umas das outras, ou conferir-lhes um efeito global. A sinfonia por elas construída é tão estranha, com as suas concordâncias e discordâncias, as suas notas agudas e graves! Cada uma toca o seu instrumento: rabeca, flauta, clarim, percussão, e assim por diante. Com o Neville discutia o Hamlet. Com o Louis, ciência. Com a Jinny, amor. Então, sem que nada o fizesse esperar, parti para Cumberland com um homem bastante pacato, disposto a passar uma semana numa pousada onde a chuva não parava de bater contra as vidraças e ao jantar só se comia carneiro. Contudo, essa semana permanece um marco bastante sólido num turbilhão de sensações não registradas. Foi aí que jogamos dominó; foi aí que discutimos a respeito da carne rija dos carneiros. Foi aí que passeamos pelas charnecas. E uma menina, receosa de abrir a porta e entrar, entregou-me uma carta escrita em papel azul, através da qual fiquei a saber que a rapariga que fizera de mim Byron casara com um rico proprietário rural, um homem de polainas e chicote, que durante o jantar discursava a respeito da melhor maneira de engordar bois. Gritei tudo isto aos quatro ventos, olhei para as nuvens que não paravam de correr pelos céus, e senti o meu fracasso; o desejo de ser livre; de escapar; de me prender; de ter um objectivo; de prosseguir; de ser o Louis; de ser eu mesmo; e saí para a rua sozinho, de impermeável vestido, e as montanhas eternas fizeram-me sentir enjoado e nada sublime. Acabei por regressar, culpar a carne por tudo o que acontecera, fazer as malas e regressar à confusão; à tortura. Apesar de tudo, a vida é agradável, tolera-se. À segunda, segue-se a terça e depois a quarta. A mente constrói anéis; a identidade torna-se mais robusta; a dor é absorvida no processo de crescimento. Sempre a abrir-se e a fechar-se, zumbindo cada vez mais, a velocidade e a febre da juventude são aproveitadas para o trabalho, até o ser nada mais parecer do que o mecanismo de um relógio. Com que velocidade a corrente segue de Janeiro a Dezembro! Somos arrastados por tudo aquilo que se nos tornou tão familiar que não chega a projectar sombra. Flutuamos, flutuamos... Porém, e dado ter de saltar para te contar esta história, lá vou deixando ficar para trás este ponto ou aquele, acabando por fazer a luz incidir num qualquer objecto perfeitamente vulgar – digamos, o atiçador e a tenaz – tal como o vi passado algum tempo, depois do casamento da rapariga que me fazia sentir Byron, e agora, sob a influência de uma pessoa a quem chamarei a terceira Miss Jones. Trata-se da rapariga que usa um determinado vestido quando espera alguém para jantar, que colhe uma certa rosa, que, no momento em que nos barbeamos, nos faz sentir que precisamos ter calma, pois estamos perante um assunto de grande importância. É então que se pensa: “Como se comportará ela em relação às crianças?”. Reparamos que é um pouco desajeitada com o chapéu de chuva; mas que se revelou ponderada quando a toupeira foi apanhada na armadilha; e, finalmente, que não tomaria o pequeno-almoço (pensava nos intermináveis pequenos-almoços da vida de casado) num momento demasiado prosaico – ninguém que se sentasse frente a esta rapariga ficaria surpreendido por ver uma borboleta poisar no pão que se encontrava na mesa. Para mais, inspirava-me o desejo de subir na vida; para mais, fez-me olhar com curiosidade para os rostos até então algo repulsivos dos bebés recém-nascidos. E o pequeno bater compassado – tiquetaque, tiquetaque – do coração da mente ganhou um ritmo majestoso. Desci Oxford Street. “Somos os continuadores, os herdeiros”, disse, lembrando-me dos meus filhos e filhas; e se se trata de um sentimento tão grandioso a ponto de se tornar absurdo e de o termos de ocultar saltando para um eléctrico ou comprando o jornal da tarde, continua a contribuir bastante para o ardor com que apertamos os atacadores das botas e com que nos dirigimos aos velhos amigos, agora ocupados com carreiras diferentes.
Louis, o habitante do sótão; Rhoda, a ninfa da fonte sempre úmida; ambos contradiziam tudo o que então considerava positivo; ambos me transmitiam a outra face daquilo que me parecia tão evidente (o facto de nos casarmos, de nos tornarmos domesticados); e era por isso que os amava, lamentava e invejava profundamente o facto de serem tão diferentes de mim. Tive em tempos um biógrafo. O indivíduo já morreu há muito, mas se ainda seguisse os meus passos com a mesma intensidade lisonjeira, comentaria da seguinte maneira o que então aconteceu: “Por esta altura, Bernard contraiu matrimónio e comprou casa... Os amigos constatavam um aumento da sua necessidade de estar em casa... O nascimento dos filhos explicou a vontade por ele demonstrada em aumentar os seus rendimentos”. Estamos em presença daquilo a que se chama estilo biográfico, o qual nada mais é do que juntar estilhaços de coisas que nada têm a ver umas com as outras. Ao fim e ao cabo, não podemos encontrar defeitos neste tipo de estilo se começamos as cartas com “Caro Senhor”, e as terminamos com “Atenciosamente”; não podemos desprezar estas frases dispostas como estradas romanas no tumulto das nossas vidas, pois são elas que nos fazem andar ao ritmo das pessoas civilizadas; com o passo lento e comedido dos polícias, isto apesar de, ao mesmo tempo, podermos estar a trautear os maiores disparates em voz baixa – “Escuta, escuta, os cães afinal sempre ladram”. “Vai-te embora, vai-te embora morte”, “Não me entregues ao casamento das mentes verdadeiras”, e assim por diante. “Foi bem sucedido em termos profissionais... O tio deixou-lhe uma pequena soma de dinheiro” – é assim que o biógrafo continua, e é assim que tem de o fazer, mesmo que de vez em quando se sinta tentado a brincar com todas estas frases. Mesmo assim, há que as dizer.
Transformei-me num determinado tipo de homens, percorrendo o caminho que me foi traçado na vida como alguns percorrem os carreiros existentes nos campos. As botas que uso gastaram-se um pouco mais no lado esquerdo. Quando entro, procedem-se a determinados arranjos. “Cá está o Bernard!” As pessoas pronunciam esta frase de forma tão diferente! Existem muitas salas, muitos Bernards. Havia aquele que era encantador mas fraco; o forte mas arrogante; o brilhante mas inexorável; o simpático mas frio; o descuidado mas também – e era apenas preciso mudar para a outra sala – o aperaltado, o mundano, o demasiado bem vestido. Aquilo que eu representava para mim mesmo era completamente diferente, nada tinha a ver com isto. Sinto-me inclinado para me ver com isto. Sinto-me inclinado para me ver melhor representado frente ao cesto do pão, enquanto tomava o pequeno-almoço com a minha mulher, que, sendo agora casada comigo, deixara de ser a rapariga que usava uma certa rosa sempre que esperava encontrar-se comigo. Tudo isto me dava a sensação de estar vivo, de existir no meio do nevoeiro, mais ou menos como um sapo que se oculta à sombra de uma folha verde. “Passa-me...” dizia eu. Ela respondia “o leite”, ou dizia coisas como “a Mary está a chegar”... – palavras simples para aqueles que herdaram os despojos de todas as eras, mas não quando ditas naquele contexto quotidiano, na maré cheia da vida, quando, à mesa do pequeno-almoço, nos sentíamos completos, inteiros. Músculos, nervos, intestinos, vasos sanguíneos, tudo o que constituía o revestimento e a mola do nosso ser, o zumbido inconsciente do motor, bem assim como o dardo e o chicote da língua, tudo isto funcionava de forma soberba. Abrindo, fechando; fechando, abrindo; comendo, bebendo; por vezes falando – todo o mecanismo parecia expandir-se e contrair-se, semelhante à mola principal de um relógio. Pão torrado e manteiga, café e bacon, o The Times e as cartas – de súbito o telefone tocava com urgência e eu levantava-me de propósito para o atender. Pegava no bucal preto. Repara na facilidade com que a minha mente se ajustava com vista a assimilar a mensagem – podia ser (tem-se sempre destas fantasias) um convite para assumir o comando do império britânico; observava a minha compostura; reparava na vitalidade magnífica com que os átomos da minha atenção se dispersavam, rodeavam o hiato, assimilavam a mensagem, se adaptavam ao novo estado de coisas, e, quando voltava a poisar o auscultador, criavam então um mundo mais rico, forte e complicado, no qual era chamado a desempenhar o papel que me competia sem nunca duvidar de que era capaz de o fazer. Enfiando o chapéu na cabeça, saía para um mundo habitado por multidões de homens e mulheres que também haviam enfiado os chapéus nas cabeças, e, sempre que nos encontrávamos nos comboios e metropolitanos, trocávamos o olhar característico de adversários e camaradas que têm de enfrentar toda a espécie de dificuldades para atingir o mesmo objectivo – ganhar a vida. A vida é agradável. A vida é boa. O simples processo segundo o qual decorre é satisfatório. Pensemos no cidadão comum e saudável. Trata-se de alguém que gosta de comer e dormir.
Gosta de sentir o cheiro fresco do ar e de descer o Strand com um passo apressado. No campo, há um galo empoleirado num portão; há uma égua galopando num prado. Há sempre algo que tem de ser feito a seguir. À segunda segue-se a terça, depois a quarta e a quinta. Cada dia espalha a mesma onda de bem-estar, repete a mesma curva de ritmo; cobre a areia fresca com um arrepio, ou constrói uma pequena teia de espuma. E é assim que o ser começa a deixar crescer anéis; a identidade torna-se mais robusta. Aquilo que antes era furtivo como um pequeno grão lançado ao ar e soprado de um lado para o outro pelas rajadas fortes da vida, passa a ser agora atirado de forma metódica numa direcção precisa, obedecendo a um objectivo – pelo menos é o que parece. Meu Deus, que agradável! Meu Deus, que bom! Como é tolerável a vida dos donos das pequenas lojas! Pelo menos, é essa a impressão com que fico à medida que o comboio vai atravessando os subúrbios e vejo as luzes que estão acesas nas salas. Activos, enérgicos como formigas, dizia, quando à janela via os operários dirigirem-se para a cidade de lancheira na mão. Quanta dureza, energia e violência, pensava, ao ver um grupo de homens de calções brancos correrem atrás de uma bola de futebol num campo cheio de neve, em pleno Janeiro. Muito embora me deixasse perturbar por qualquer ninharia - podia ser a carne – parecia-me ser um enorme luxo deixar que uma pequena onda abalasse a enorme estabilidade e toda a felicidade da nossa vida de casados, mais ainda quando o nosso filho estava prestes a nascer. Jantei rapidamente. Falei de forma pouco razoável, como se fosse milionário e me pudesse dar ao luxo de esbanjar dinheiro; ou ainda, qual faz-tudo, tropeçasse de propósito. Quando íamos para a cama, resolvíamos as nossas questiúnculas nas escadas, e, deixando-me ficar junto à janela a olhar para um céu tão límpido como o interior de uma pedra azul, dizia: “Deus seja louvado por não termos de transformar esta prosa em poesia. Bastam-nos algumas palavras”. O espaço e a claridade da paisagem não ofereciam grandes impedimentos, permitindo-nos antes alargar as nossas vidas para lá dos telhados e das chaminés, até atingirmos o limite imaculado. Foi contra este pano de fundo que a morte se abateu – a morte do Percival. “Qual o significado da felicidade?”, (o nosso filho acabara de nascer), “qual o significado da dor?”, disse, à medida que descia as escadas e constatava um fenômeno puramente físico: a divisão do meu corpo em duas partes iguais. Anotei também o estado da casa; o modo como a cortina ondulava; a cozinheira a cantar; o guarda-fatos aparecendo através da porta entreaberta. Disse: “Dêem-lhe (a mim) um outro momento de descanso”. Ia a subir as escadas. “Agora, nesta sala, ele vai sofrer. Não há outra saída.” Todavia, não há palavras que cheguem para definir a dor. Devia haver choros, gritos, fissuras, espaços em branco cobrindo as colchas de chita, interferências com o sentido de tempo e espaço; a sensação de que os objectos em movimento haviam adquirido uma enorme fixidez; e toda a espécie de sons, ora distantes ora próximos; de carne a ser rasgada e de sangue a escorrer, de uma articulação quebrando-se com violência – por baixo de tudo aparece agora algo muito importante, se bem que remoto, algo que só a solidão pode manter. E lá continuei a existir. Vi a primeira manhã que ele nunca veria – os pardais lembravam brinquedos dispostos em cima de uma corda puxada por crianças. Vejo as coisas com desprendimento, do lado de fora, e é tão estranho aperceber-me do quanto são belas em si mesmas! Segue-se a impressão de que me tiraram um peso dos ombros; de que toda a irrealidade e faz-de-conta desapareceram, de que a suavidade chegou junto com uma espécie de transparência, tornando-nos invisíveis e fazendo com que as coisas nos surjam frente aos olhos à medida que caminhamos – como tudo isto é estranho. “E agora, que outras descobertas nos restam?” e, perguntei, para não perder a compostura, ignorei os títulos dos jornais prestando apenas atenção às imagens. Madonas e pilares, arcos e laranjeiras, tudo semelhante ao que fora no dia da criação (se bem que tocado pelo desgosto), estava ali, à espera do meu olhar. “Aqui”, disse, “estamos juntos sem qualquer interrupção.” Esta liberdade, esta exaltação, mexeram tanto comigo que, por vezes, ainda hoje lá vou, à procura do mesmo estado de espírito e também o Percival. Todavia, não durou muito. O que nos atormenta é a terrível actividade do olho da mente – a forma como caiu, o aspecto que devia ter quando o transportaram, os homens com as ancas cobertas por um pano que não paravam de puxar as cordas; as ligaduras e a lama. É então que surge aquela terrível garra da memória – que não o acompanhei a Hampton Court. Trata-se de uma garra que arranha, de uma mandíbula que desfaz; não fui. Apesar de todos os protestos impacientes por ele apresentados de que não interessava; para quê estragar e interromper o nosso momento de comunhão? Apesar da vergonha que sentia, não parava de repetir que não o acompanhara, e, expulso do santuário por estes demônios diligentes, fui até à casa da Jinny porque ela tinha uma sala; uma sala cheia de pequenas mesas em cima das quais se encontrava toda a espécie de ornamentos. Foi lá que, por entre lágrimas, confessei não ter ido a Hampton Court. E ela, por seu turno, lembrando-se de coisas que para mim não passavam de ninharias, mas que tinham o poder de a torturar, revelou-me que a vida murcha sempre que existem factos que não podemos partilhar. Não demorou muito para que uma criada entrasse na sala, transportando um bilhete, e, quando ela se virou para responder senti-me tomado por uma grande vontade de saber o que estaria ela a escrever e a quem a mensagem se dirigia. Foi precisamente isto que me fez ver a primeira folha cair na campa do morto. Vi-nos ultrapassar este momento e deixá-lo a sós para sempre. E, sentados lado a lado no sofá acabamos por nos lembrar do que já fora dito por outros; “os lírios são muito mais belos em Maio”; comparamos o Percival a um lírio – o Percival, a quem eu queria ver cair o cabelo, chocar as autoridades, envelhecer junto comigo, estava agora coberto de lírios. E assim passou a serenidade do momento; e assim ela se tornou simbólica; e foi exactamente isso que não consegui suportar. Gritei que o melhor seria cometer a blasfêmia de troçar e criticar, e tentar não o cobrir com esta pasta adocicada, a cheirar a lírios. Acabei por partir e a Jinny, que não sabia o significado das palavras futuro ou especulação mas que respeitou o momento com a maior das integridades, moveu o corpo como se este fosse um chicote, empoou o rosto (era isso que me fazia amá-la), e, já à porta, despediu-se de mim com um aceno, enquanto levava a outra mão ao cabelo para que o vento não a despenteasse, gesto este que me levou a admirá-la ainda um pouco mais, como se fosse algo que confirmasse a nossa determinação de não deixar crescer os lírios. Observei com uma clareza desiludida a falta de identidade da rua; as suas varandas e cortinas; as roupas castanhas, a cupidez e a complacência das mulheres que trabalhavam nas lojas; os velhos passeando com as suas roupas de lã; a forma cautelosa como as pessoas atravessavam a rua; a determinação universal de se continuar a viver quando a verdade é que, seus idiotas, uma qualquer telha vos podia cair em cima e este ou aquele carro galgar o passeio, pois não existe qualquer espécie de lógica ou razão quando um homem embriagado caminha pela rua com um varapau na mão. Era como alguém a quem deixaram ver a peça por detrás das cortinas do palco; como alguém a quem se mostra a forma como os efeitos são produzidos. No entanto, acabei por voltar a casa, onde a criada me pediu para tirar os sapatos e subir a escada de meias. O bebê estava a dormir. Fui para o quarto. Não haveria então uma espada, qualquer coisa capaz de destruir estas paredes, esta protecção, este gerar filhos e viver atrás de cortinas, envolvendo-nos cada vez mais com livros e quadros? O melhor seria seguir o exemplo do Louis e consumir a vida na busca da perfeição; ou fazer como a Rhoda e passar por nós a voar, rumo ao deserto; ou, à semelhança do Neville, escolher apenas uma pessoa de entre os milhões de indivíduos existentes; talvez fosse melhor ainda fazer como a Susan e tanto amar como odiar quer o sol quer a erva coberta de geada; ou então ser como a Jinny, uma criatura honesta semelhante a um animal. Todos possuíam os seus êxtases, um fio que os ligava à morte; algo que os mantinha de pé. E assim lá os ia visitando à vez, tentando com os dedos trêmulos abrir os cofres onde guardavam os tesouros. Visitava-os transportando nas mãos a mágoa que sentia – não, não a mágoa, mas sim a natureza incompreensível desta nossa vida –, pedindo-lhes que a inspeccionassem. Há quem se vire para os padres, outros para a poesia; eu virava-me para os amigos, para o meu coração, e procurava encontrar algo intacto entre as frases e os fragmentos – eu, para quem não existe beleza suficiente na Lua e nas árvores; para quem basta o toque entre duas pessoas mas que nem sequer o soube aproveitar, eu que sou tão imperfeito, tão fraco, tão incrivelmente solitário. E lá ficava eu sentado. Poderia ser este o fim da história? Uma espécie de suspiro? O último estremecer de uma onda? Um fio de água na sarjeta onde, borbulhando, acaba por desaparecer? Deixem-me tocar na mesa – assim – para que possa recuperar o sentido do momento. Uma prateleira coberta por galheteiros; um cesto de pãezinhos; um prato de bananas – trata-se de visões reconfortantes. Mas, e se não existem histórias, será que se pode falar em começo e fim? Talvez que a vida não responda ao tratamento que lhe damos quando a seu respeito falamos. Ainda acordado mesmo quando a noite já vai alta, parece-me estranho não poder controlar mais as coisas. É então que os ninhos dos pardais não são de grande utilidade. É estranho como a força se infiltra numa qualquer fenda seca. Sentado sem ter ninguém para me fazer companhia, tenho a sensação de que estamos gastos; somos incapazes de avançar um pouco mais e umedecer a rocha. Acabou-se, chegamos ao fim. Mas espera – fiquei toda a noite sentado, à espera – sinto de novo um impulso que nos percorre; levantamo-nos, afastamos uma crista de espuma branca; alcançamos a praia; não nos deixamos limitar. Ou seja, lavei-me e fiz a barba; não acordei a minha mulher; tomei o pequeno-almoço; pus o chapéu e saí para ganhar a vida.