SIDNEY SHELDON

O PREÇO DO PODER

Título original; MASTER OF THE GAME

Tradução de: EDUARDO SALÓ

Impresso e encadernado por Printer Portuguesa. Ind. (Gráfica. no mês de Fevereiro de 1984 Número de edição: 1352 Segunda edição: 2000 exemplares Depósito legal número 3879 84 Só é permitida a venda aos Sócios do Círculo de Leitores

A meu irmão Richard, Coração de Leão A minha gratidão vai para Miss Geraldine Hunter, pela sua paciência infinita e auxílio na preparação deste manuscrito.

“E eis que uma paixão dominante no peito, Como a serpente de Aarão, devora o resto.”

Papa Alexandre,

Ensaio sobre o Homem, Epístola II “Os diamantes resistem às pancadas numa tal extensão que um martelo de ferro se pode partir em dois e até a bigorna se pode deslocar. Esta força invencível, que desafia as duas forças mais violentas da Natureza, o ferro e o fogo, pode dominar-se com sangue de cordeiro. Mas deve embeber-se em sangue novo e quente e, mesmo assim, são necessárias muitas pancadas.”

Plínio, o Antigo

PRÓLOGO

Kate 1982 O vasto salão de baile estava cheio de fantasmas familiares que tinham acudido para ajudar a celebrar o aniversário dela. Kate Blackwe ll via-os misturarem-se com as pessoas de carne e osso e, no seu espírito, a cena constituía uma fantasia de sonho, enquanto os visitantes de outra época e lugar deslizavam em torno da área de dança com os convidados, despreocupados, de gravata preta e vaporosos vestidos de noite. Havia uma centena de pessoas na festa em Cedar Hill, Dark Harbor, Maine. “Sem contar com os fantasmas”, reflectia Kate Blackwell, com uma ponta de malícia.

Era uma mulher esguia, de estatura mediana e porte majestoso, que a fazia parecer mais alta. Possuía um rosto que perdurava na memória das pessoas com as quais convivia: traços faciais irrepreensíveis, olhos cinzento-alvorada e queixo voluntarioso, fusão de antepassados holandeses e escoceses. Tinha cabelos brancos, acetinados, que outrora deviam ter sido uma cascata negra exuberante, e, em contraste com as pregas graciosas do vestido de veludo-marfim, a pele apresentava a translucidez suave que a velhice por vezes proporciona.

“Não me sinto com noventa”, pensava ela. “Para onde foram todos os anos? Eles sabem”, prosseguiu, contemplando os fantasmas que dançavam. “Estavam presentes. Fizeram parte daqueles anos, da minha vida.” Avistou Banda, o rosto negro altivo e sorridente. E lá estava também o seu David, o David querido, alto, jovem e bem-parecido, com o aspecto que tinha quando se enamorara dele. Ao vê-lo sorrir-lhe, ela pensou: “Já falta pouco, meu amor!” E deplorava que não tivesse vivido o suficiente para conhecer o bisneto.

Os olhos de Kate esquadrinharam o salão até que o localizaram. Encontrava-se perto da orquestra, entretido a observar os músicos. Era um garoto, que se podia considerar bonito, quase com oito anos, cabelos louros, envergando casaco de veludo preto e calça de tartã. Robert era uma réplica do trisavô, Jamie McGregor, que se achava representado na tela por cima da lareira de mármore. Como se pressentisse os olhos da bisavó pousados nele, Robert voltou-se e Kate chamou-o com um movimento ondulatório dos dedos, em que cintilava o diamante de vinte quilates que o pai retirara de uma praia arenosa, havia quase cem anos, agora realçado pelo clarão do candelabro de cristal. Enquanto o petiz abria caminho por entre os pares de dançarinos, ela observava-o com prazer.

“Sou o passado”, admitia para consigo. “Ele é o futuro. O meu bisneto assumirá, um dia, a direcção da Kruger-Brent International.” Por fim, Robert encontrou-se a seu lado e Kate desviou-se um pouco para que ele pudesse sentar-se.

- Estás a gostar da tua festa de aniversário, bisavó?

- Muito. Obrigada, Robert.

- É uma orquestra formidável. Acho o chefe mesmo “mau”…

Ela olhou-o em confusão momentânea e acabou por sorrir.

- Isso deve querer dizer que é bom.

- Exacto - e o garoto sorriu igualmente. - Ninguém te dá noventa anos.

- Aqui para nós - replicou Kate, com uma risada -, não os sinto.

Ele pegou-lhe na mão e conservaram-se imersos em silêncio de felicidade, em que a diferença de oitenta e dois anos nas idades lhes proporcionava uma afinidade reconfortante. Kate moveu a cabeça para ver a neta dançar. Ela e o marido eram, sem dúvida, o par mais atraente que se movia ao ritmo da orquestra.

A mãe de Robert viu este e sua avó sentados juntos e pensou: “É uma mulher incrível. Parece intemporal. Ninguém diria as vicissitudes que conheceu.”

A orquestra interrompeu a actuação e o chefe anunciou:

- Minhas senhoras e meus senhores, tenho o prazer de lhes apresentar o menino Robert.

Este apertou a mão da bisavó, levantou-se e aproximou-se do piano. Após breve hesitação, sentou-se de expressão grave e concentrada, e os dedos principiaram a mover-se rapidamente no teclado. Tocava Scriabin e dir-se-ia o ondular do luar na água.

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A mãe escutava e reflectia: “É um génio. Há-de tornar-se um grande músico.” Já não era o seu bebé. Pertenceria ao mundo. Quando Robert chegou ao fim, os aplausos foram entusiásticos e sinceros.

Algumas horas antes, o jantar fora servido ao ar livre. O jardim espaçoso e formal apresentava uma decoração festiva, com lanternas, fitas e balões. Os músicos tocavam no terraço, enquanto empregados de libré se moviam em torno das mesas, silenciosos e eficientes, para se certificarem de que os copos de Baccarat e os pratos de Limoges se mantinham cheios. Foi lido um telegrama do presidente dos Estados Unidos. Um juiz do Supremo Tribunal propôs um brinde a Kate.

O governador enalteceu-a: “…Uma das mulheres mais notáveis da história desta nação. Os donativos de Kate Black-well a centenas de instituições de caridade de todo o mundo são lendários. A Fundação Blackwell contribuiu para a saúde e o bem-estar de pessoas de mais cinquenta países. Parafraseando o falecido Winston Churchill, "Nunca tantos deveram tanto a tão poucos." Tive o privilégio de conhecer Kate Blackwell…”

“Lérias!”, cogitava Kate. “Ninguém me conhece. O fulano parece que se refere a uma santa. Que diria toda esta gente se conhecesse a verdadeira Kate Blackwell?

Concebida por um ladrão e raptada quando ainda não tinha um ano de idade. Que pensariam se lhes mostrasse as cicatrizes de balas no meu corpo?”

Moveu a cabeça e fixou o olhar no homem que outrora tentara matá-la. Os seus olhos deslocaram-se para além dele e cravaram-se num vulto na sombra, que usava véu para encobrir o rosto. Tendo um trovão distante como contraponto, Kate ouviu o governador terminar a alocução e apresentá-la. Ela levantou-se com lentidão e, em voz firme e grave, proferiu:

- Vivi mais que qualquer dos presentes. Como diria um jovem de hoje, “grande avaria!”. No entanto, alegra-me ter chegado a esta idade, porque de contrário não estaria entre tantos amigos. Sei que alguns de vós vieram de países distantes para se encontrarem junto de mim, esta noite, e devem sentir-se fatigados da viagem. Não posso esperar que todos possuam a minha energia.

Registou-se uma gargalhada geral e aplausos.

- Estou-lhes profundamente grata por este memorável

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serão. Jamais o esquecerei. Os aposentos encontram-se preparados, se alguém deseja ir descansar. Quanto aos outros, segue-se baile no salão.

Soou novo trovão, agora mais próximo.

- Sugiro que entremos, antes que sejamos surpreendidos por uma das nossas famosas tormentas do Maine.

Agora, o jantar e o baile tinham terminado, os convidados achavam-se nos quartos e Kate ficara só com os seus fantasmas. Estava sentada na biblioteca, mergulhada gradualmente no passado, e, de súbito, sentiu-se deprimida. “Já não há ninguém para me chamar Kate. Partiram todos.” O seu mundo mirrara. Não fora Longfellow quem dissera: “As folhas das recordações produzem um sussurro lúgubre nas trevas”? Ela penetraria nas trevas dentro em breve, mas não imediatamente. “Ainda tenho de executar o acto mais importante da minha vida.

Sê paciente, David. Não tardarei a estar a teu lado.” - Bisavó…

Kate estremeceu e descerrou as pálpebras. A família entrara na sala. Ela contemplou-os, um a um, os olhos convertidos numa objectiva implacável, sem perder um pormenor. “A minha família. A minha imortalidade. Uma assassina, um ser grotesco e um psicopata. Os esqueletos Blackwell. Foi nisto que redundaram todos os anos de esperança, dor e sofrimento?” - Não te sentes bem, avó? - a neta encontrava-se na sua frente.

- Apenas um pouco cansada. Vou-me deitar.

Kate levantou-se e principiou a mover-se para a porta, no momento em que explodia um trovão violento e a tormenta irrompia espectacularmente, a chuva incidindo nas janelas com a impetuosidade de rajadas de metralhadora. A família observava, enquanto a anciã alcançava o topo da escada com o aprumo habitual.

Um relâmpago rasgou a atmosfera e soou novo trovão. Kate Blackwell voltou-se para os contemplar e, quando falou, empregou o sotaque dos antepassados:

- Na África do Sul, chamávamos a isto uma donderstorm. O passado e o presente começaram a fundir-se uma vez mais, e ela atravessou o corredor em direcção aos seus aposentos, rodeada pelos fantasmas familiares confortá veis.

PRIMEIRA PARTE

Jamie 1883-1906 primeiro - Isto é mesmo uma donderstorm, meu Deus! - exclamou Jamie McGregor.

Crescera entre as violentas tempestades das Terras Altas escocesas, mas nunca presenciara um espectáculo tão impressionante como aquele. O céu da tarde fora repentinamente obliterado por densas nuvens de areia que transformaram o dia em noite de um momento para o outro. Ao mesmo tempo, o espaço era iluminado pelos clarões dos relâmpagos, weer-lif›, segundo a denominação dos Africânderes - que queimavam a atmosfera, seguidos do donderslag, trovão. Em seguida, o dilúvio. Lençóis de chuva que esmagavam o exército de tendas e cabanas de estanho e convertiam as ruas de terra batida de Klipdrift em torrentes impetuosas de lama. O céu estava transformado num pandemónio com o ribombar quase incessante, como o troar da artilharia numa guerra espacial.

Jamie McGregor deu um salto rápido para o lado, no instante em que uma casa de tijolos crus se dissolveu em lama, e perguntou a si próprio se a cidade de Klipdrift sobreviveria.

No fundo, não se tratava de uma cidade, mas de uma aldeia de lona, uma massa compacta de tendas, cabanas e carroças que se acumulavam ao longo das margens do rio Vaal, habitada por sonhadores alucinados atraídos à África do Sul de todos os recantos do mundo pela mesma obsessão: diamantes.

Jamie McGregor era um dos sonhadores. Acabava de completar dezoito anos, um rapaz bem-parecido, alto, de cabelos louros e olhos cinzento-claro. Deixava transparecer uma candura atraente, uma ansiedade por agradar que resultava cativante. Tinha um temperamento despreocupado e uma alma repleta de optimismo.

Viajara quase doze mil quilómetros, desde a herdade do pai, nas Terras Altas da Escócia, até Edimburgo, Londres, Cidade do Cabo e agora Klipdrift. Renunciara à sua parte na propriedade que ele e os irmãos haviam cultivado com o pai, mas não estava arrependido. Sabia que obteria a recompensa largamente. Trocara a segurança da única vida que sempre conhecera por aquele lugar distante e desolador, porque estava

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disposto a enriquecer. O trabalho duro não o assustava, mas o produto do cultivo da herdade ao norte de Aberdeen era escasso. Mourejara do nascer ao pôr-do- Sol, com os irmãos, a irmã, Mary, e os pais, e não se podiam vangloriar de haverem arrecadado proventos dignos de menção. Uma vez, visitara uma feira em Edimburgo e contemplara as coisas extraordinárias que o dinheiro permitia comprar. Na verdade, tornava a vida fácil, quando se possuía com abundância.

Ja-mie assistira à vida e morte na miséria de demasiados amigos para duvidar disso.

Recordava-se da sua excitação quando se inteirara da última corrida aos diamantes na África do Sul. Fora encontrada na areia a maior pedra preciosa que se conhecia, e constava que a área constituía uma vasta arca de tesouros à espera que a abrissem.

Comunicou a notícia à família numa noite de sábado, após o jantar, quando se sentavam em torno da mesa da cozinha.

- Vou partir para a África do Sul, à procura de diamantes… - anunciou com um misto de timidez e o rgulho.

Cinco pares de olhos fixaram -se nele, como se acabasse de dar provas irrefutáveis de loucura incurável.

- À procura de diamantes? - ecoou finalmente o pai. - Não deves regular bem.

Tudo isso que contam são balelas, uma tentação do demónio para impedir os homens de ganhar a vida honestamente.

- Porque não nos explicas onde vais arranjar o dinheiro para a viagem? - interpôs o irmão lan. - Isso fica do outro lado do mundo e não tens vintém.

- Se tivesse dinheiro não precisava de procurar diamantes - retorquiu Jamie. - Nenhum dos homens que lá estão é rico. Serei igual aos outros. Tenho miolos e braços fortes. Hei-de alcançar o meu objectivo.

- Annie Cord vai ficar desapontada - lembrou Mary. - Espera casar contigo um dia.

Jamie adorava a irmã, que era mais velha, aparentando quarenta anos, embora acabasse de completar vinte e quatro, e nunca possuíra uma coisa bela na sua vida. “Hei-de alterar isso”, prometeu a si próprio.

A mãe, por seu turno, sem proferir palavra, pegou na caçarola que continha o estufado que sobrara e afastou-se para o fogão.

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Mais tarde, naquela noite, procurou Jamie, quando se encontrava deitado.

Pousou-lhe a mão no ombro, e a sua voluntariedade transmitiu-se ao filho.

- Faz o que te parecer justo. Não sei se há diamantes lá em baixo, mas se houver hás-de descobri-los - introduziu a mão no avental e puxou de uma pequena bolsa de cabedal. - Consegui economizar umas libras, apesar de tudo. Não digas nada aos outros. Que Deus te abençoe, Jamie.

Quando partiu para Edimburgo, ele levava cinquenta libras na algibeira.

A viagem até à África do Sul não foi agradável, e Jamie McGregor necessitou de quase um ano para a completar. Arranjou um emprego como criado de mesa de um restaurante de Edimburgo, até juntar mais cinquenta libras ao seu pecúlio. A seguir, transferiu-se para Londres, cujas dimensões e movimento o deixaram boquiaberto. Havia cabrioles por toda a parte, que transportavam belas mulheres de chapéus de abas largas, saias de fole e sapatos reluzentes. Ele observava-as com admiração, quando se apeavam para fazer compras na Burlington Árcade, onde se achavam expostos os artigos mais atraentes e dispendiosos.

Encontrou alojamento numa casa de Fitzroy Street, 32, onde lhe cobravam dez xelins por semana, mas e ra o mais barato que conseguira descobrir. Passava os dias nas docas, em busca de um navio que o levasse à África do Sul, e as noites nas artérias londrinas, para admirar a vida nocturna de longe. Certa vez, divisou Eduardo, o príncipe de Gales, quando este entrava para um restaurante perto de Covent Gar-dens pela porta lateral, com uma mulher vistosa pelo braço, a qual usava um chapéu florido, que James pensou que assentaria bem na cabeça da irmã.

Assistiu a um concerto no Crystal Palace, construído especialmente para a Grande Exposição de 1851. Visitou Drury Lane e, no intervalo, introduziu-se no Teatro Savoy, onde haviam instalado a primeira iluminação eléctrica num edifício público britânico. Algumas ruas eram iluminadas por electricidade, e James ouviu dizer que havia possibilidade de falar com alguém do outro lado da cidade através de uma nova máquina maravilhosa a que chamavam telefone. Ao contemplar tudo aquilo, afigurava-se-lhe que se debruçava sobre o futuro.

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Apesar de todas as inovações e acti vidades, a Inglaterra atravessava uma crise económica crescente, naquele Inverno. As ruas achavam-se repletas de desempregados e pessoas famintas e registavam-se manifestações e recontros com as autoridades. “Tenho de sair daqui”, decidiu Jamie. “Vim para fugir à pobreza.” No dia seguinte, foi admitido como criado de bordo no Walmer Castle, que partia para a Cidade do Cabo, na África do Sul.

A viagem pelo mar durou três semanas, com paragens na Madeira e em Santa Helena, para reabastecimento de carvão. Foi um percurso duro, no auge do Inverno, e Jamie enjoou virtualmente a partir do momento em que subiu para bordo. Não obstante, nunca perdeu a coragem, pois cada dia que passava colocava-o mais próximo da sua arca de tesouros. A medida que o navio se acercava do Equador, o clima modificava -se. Miraculosamente, o Inverno começou a ceder gradualmente o lugar ao Verão e, com a proximidade da costa africana, os dias e as noites tornaram-se mais quentes e húmidos.

O Walmer Castle chegou à Cidade do Cabo ao amanhecer, movendo-se prudentemente ao longo do estreito canal que dividia o vasto e leproso aglomerado populacional de Robben Island do continente, até que fundeou em Table Bay.

Jamie surgiu na coberta antes do nascer do Sol, para observar, mesmerizado, a dissipação lenta da neblina matinal e o espectáculo admirável de Table Mountain, sobranceira à cidade. Chegara ao seu destino.

Assim que o navio acostou ao cais, as cobertas fora invadidas por uma horda de pessoas de aspecto estranho. Havia cor-retores de todos o s hotéis - indivíduos negros, amarelos, castanhos e vermelhos, que se ofereciam freneticamente para transportar a bagagem - e garotos que corriam de um lado para o outro com jornais, doces e fruta para vender. Condutores de cabrioles que eram mestiços; parses ou negros vociferavam a ansiedade por que contratassem os seus serviços. Vendedores impelindo pequenos carros de mão apregoavam os artigos mais variados. A atmosfera estava cheia de moscas enormes. Marinheiros e empregados de bordo abriam caminho por entre a multidão com dificuldade, enquanto os passageiros desenvolviam esforços desesperados para manter a

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bagagem junta e sob as suas vistas. Imperava uma babel de vozes e ruídos. As pessoas falavam umas com as outras num idioma que Jamie nunca ouvira.

- Yulle kom van de Kaap, neh?

- H et julle mine papa zyn wagen gezien?

- Wat bedui'di?

- Huistoe!

Não conseguia entender uma palavra.

A Cidade do Cabo era totalmente diferente de tudo o que Jamie vira até então.

Não havia duas casas iguais. Ao lado de um largo armazém de dois ou três pisos, de tijolos ou alvenaria, viam-se uma pequena cantina de ferro galvanizado, uma ourivesaria, uma mercearia e uma tabacaria.

Sentia-se impressionado com os homens, mulheres e crianças que percorriam as ruas. Viu um cafre, de calças de xadrez e casaco de um tecido que parecia serapilheira, que se movia atrás de dois chineses, de mãos dadas, trajados de uma forma não menos exótica. Agricultores bóeres conduzindo carroças carregadas de batatas, milho e legumes vários. Homens de casacos de veludo e chapéus de feltro, caminhando, altivos, ao lado de mulheres ataviadas de forma mais modesta. Lavadeiras parses com volumosas trouxas de roupa à cabeça abriam caminho por entre militares de uniforme vermelho e capacete. Na realidade, era um espectáculo fascinante.

A primeira coisa que ele fez foi procurar uma pensão pouco dispendiosa que lhe fora recomendada por um marinheiro do navio em que viajara. A proprietária, uma mulher de meia-idade, busto avultado e faces rechonchudas, examinou-o dos pés à cabeça e inquiriu:

- Zoek yulle goud?

- Desculpe, mas não compreendo - balbuciou ele, corando.

- Ah, é inglês? Veio à procura de ouro? Diamantes?

- Sim, diamantes.

- Vai gostar disto - afirmou ela, convidando-o a entrar. - Tenho todas as comodidades para jovens como você - e fez uma pausa, enquanto Jamie perguntava a si próprio se se trataria de uma comerciante de prazeres de alcova. - Sou Mistress Venster, mas os amigos tratam-me por Dee-Dee - e sorriu, revelando um dente de ouro. -

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Pressinto que nos vamos entender muito bem. Peça tudo o que quiser.

- É muito amável. Onde posso obter um mapa da cidade?

Munido do mapa, Jamie iniciou as explorações. Num dos lados da cidade, encontravam-se os subúrbios de Ronde-bosch, Claremont e Wynberg, que se estendiam ao longo de quilómetros de plantações e vinhedos. No outro, situavamse os arrabaldes marítimos de Sea Point e Green Point. Ele percorreu a zona residencial dos ricos, por Strand Street e Bree Street, admirando as imponentes construções de dois pisos que exsudavam opulência por todos os poros. A excursão foi terminada prematuramente pelos densos enxames de moscas que povoavam as ruas e lhe pareceram reproduzidos no momento em que entrou no quarto da pensão, onde cobriam as paredes, a mesa e a cama.

Abismado com o que se lhe deparava, resolveu procurar a dona da pensão.

- Mistress Venster, pode fazer alguma coisa acerca das moscas no meu quarto?

São positivamente…

No entanto, ela interrompeu-o com uma risada e uma palmada cordial no ombro.

- Myn magtib. Há-de habituar-se, verá.

O saneamento básico da Cidade do Cabo era primitivo e inadequado e, quando o Sol se punha, um vapor odorífero envolvia a atmosfera como um cobertor nocivo, insuportável. Não obstante, Jamie sabia que o suportaria. Necessitava de mais dinheiro antes de iniciar a etapa seguinte, pois tinham-no advertido de que não sobreviveria nos campos de diamantes sem o mínimo de fundos, em virtude de os preços e a exploração praticados excederem tudo o que se podia conceber.

No seu segundo dia na Cidade do Cabo, encontrou trabalho sob a forma de condução de uma parelha de cavalos para uma firma de transportes. No terceiro, começou a lavar loiça num restaurante, após o jantar. Alimentava -se dos restos que conseguia pôr de parte e levava para a pensão, embora tivessem um sabor estranho que o levava a sentir saudades dos petiscos da mãe. De qualquer modo, não se lamentava, mesmo a si próprio, enquanto sacrificava a alimentação e o conforto para

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aumentar as suas economias. Tomara uma decisão inabalável, da qual nada o desviaria. Entretanto, sentia-se profundamente só. Não conhecia ninguém naquela cidade estranha e custava-lhe suportar a ausência da família e dos amigos.

Conquanto gostasse da solidão, a sensação de isolamento constituía uma amargura constante.

Por fim, chegou o dia mágico. A sua bolsa continha a magnífica quantia de duzentas libras. Estava, pois, preparado para o empreendimento supremo. Partiria da Cidade do Cabo na manhã seguinte, rumo aos campos de diamantes.

As reservas de lugares para as carruagens de passageiros com destino aos campos de diamantes de Klipdrift eram asseguradas pela Inland Transport Company, num pequeno barracão perto das docas. Quando Jamie chegou, às sete da manhã, havia tanta gente em volta que nem sequer conseguiu aproximarse.

Calculou estarem reunidas várias centenas de pesquisadores de fortunas, empenhados em obter lugar num dos próximos transportes. Provinham de pontos distantes como a Rússia, a América, a Austrália, a Alemanha e a Inglaterra e vociferavam numa dezena de idiomas diferentes, implorando aos vendedores de passagens que encontrassem espaço para cies. Jamie avistou um corpulento irlandês que acabava de transpor a saída e abordou-o.

- Desculpe, mas que se passa lá dentro?

- Nada - grunhiu o outro, em voz rouca. - As malditas carruagens têm a lotação esgotada para as próximas seis semanas - e apercebendo-se da expressão de desalento do interlocutor, acrescentou: - O pior não é isso, amigo. Os bandidos exigem cinquenta libras por cabeça.

Era incrível!

- Deve haver outra maneira de chegar aos campos de diamantes.

- Há duas: o Expresso holandês ou a pé.

- O que é o Expresso holandês?

- Um transporte de gado, que se desloca a três quilómetros horá rios. Quando se chega lá, já não há diamantes.

Jamie McGregor não estava disposto a aguardar até que as pedras preciosas desaparecessem, pelo que passou o resto da manhã à procura de um transporte alternativo. E encontrou-o, pouco antes do meio-dia. Passava diante de uma cocheira de

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aluguer que ostentava uma tabuleta com a indicação “Depósito do Correio”, quando, obedecendo a um impulso, entrou, para enfrentar o homem mais magro que jamais vira entretido a arrumar malas postais numa carruagem de duas rodas.

Depois de observar a operação por um momento, resolveu interpelá -lo:

- Transportam correio para Klipdrift?

- Sim, é este que estou a carregar.

- E passageiros? - inquiriu, dominado por uma súbita réstia de esperança.

- Às vezes - o outro voltou-se e observou Jamie. - Que idade tem?

- Dezoito. Porquê?

- Não costumamos levar pessoas com menos de vinte e um ou vinte e dois anos.

É saudável?

- Sem dúvida.

- Então, fica combinado. Parto dentro de uma hora. A passagem são vinte libras.

- Estupendo! - Jamie quase não queria acreditar. - Vou buscar a mala e…

- Nada de bagagem. Só há espaço para uma camisa e escova de dentes.

Examinou a carruagem com curiosidade. Era pequena e de construção rudimentar, e o corpo formava uma espécie de poço onde a correspondência ficava acondicionada. A um nível superior a este último, havia um espaço estreito em que uma pessoa se podia sentar de costas para o condutor. Seria uma viagem a todos os títulos desconfortável; no entanto, declarou:

- De acordo. Vou buscar a camisa e a escova de dentes.

Quando regressou, o condutor engatava um cavalo à carruagem aberta, ao lado da qual se viam dois jovens corpulentos - um baixo e moreno e o outro alto e louro -, que entregavam dinheiro ao homem.

- Um momento - protestou Jamie. - Você disse que eu podia ir.

- Vão todos - anunciou o condutor. - Subam.

- Os três?

- Exacto!

Jamie não fazia a mínima ideia de como o outro esperava que coubessem no pequeno espaço, mas sabia que se encontraria

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lá no momento da partida. Por fim, com um encolher de ombros de resignação, apresentou-se aos companheiros de viagem:

- Chamo-me Jamie McGregor.

- Wallach - informou o moreno.

- Pederson - disse, por sua vez, o louro.

- Tivemos sorte em descobrir isto, nem? Ainda bem que nem toda a gente o conhece.

- Conhece - replicou Pederson. - O que acontece é que poucos reúnem condições físicas e desespero suficiente para se aventurarem num transporte destes.

Antes que Jamie pudesse pedir-lhe que se explicasse melhor, o condutor disse:

- Estamos a perder tempo!

Os três homens, com Jamie no meio, espremeram-se no assento, as costas exercendo forte pressão no espaldar do banco do condutor. Não havia espaço para se moverem ou respirar. Em todo o caso, Jamie tentou convencer-se de que podia ser pior.

- Segurem-se bem! - advertiu o condutor.

No momento imediato, atravessavam as ruas da Cidade do Cabo velozmente, rumo aos campos de diamantes de Klip-drift.

Nos transportes normais, a viagem era relativamente confortável. As carruagens que conduziam passageiros da Cidade do Cabo aos campos de diamantes dispunham de espaço suficiente, com cobertura de lona para protecção do sol escaldante de Inverno. Cada uma comportava doze passageiros e era puxada por parelhas de cavalos ou mulas, além de que, em paragens regulares, havia bebidas e refeições ligeiras, o que amenizava o percurso de dez dias.

O transporte do correio era diferente. Nunca parava, excepto para mudar de cavalo e condutor. O andamento desenrolava -se em pleno galope, num piso a que nem o mais optimista chamaria regular. Como se isso não bastasse, a carruagem não dispunha de molas, pelo que cada solavanco se transmitia aos passageiros como o coice de uma mula caprichosa. Entretanto, Jamie rangia os dentes e pensava: “Hei-de aguentar até à noite, quando pararmos para dormir. De manhã, após o sono reparador e uma boa refeição, estarei como novo!” Todavia, ao anoitecer, registou-se uma pausa de dez minutos

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para a substituição do cavalo e do condutor, após o que o galope foi reatado, o que o levou a perguntar:

- Quando paramos para comer?

- Não há paragem nenhuma para isso - informou o novo condutor. - O correio tem de chegar a horas ao seu destino.

A corrida prosseguiu ao longo da noite, através de estradas sulcadas de buracos, curvas apertadas e desníveis quase constantes. Jamie sentia cada centímetro quadrado do corpo maltratado, como se acabasse de sofrer a tortura medieval mais maquiavélica, estava exausto e não conseguia adormecer. Cada vez que o sono parecia na iminência de o dominar, era chamado à realidade por um dos solavancos excruciantes. Por outro lado, assolavam-no cãibras dolorosas e não havia o mínimo espaço para se espreguiçar. Esforçava -se por não ponderar quantos dias decorreriam antes da sua próxima refeição, tratava -se de uma viagem de quase mil quilómetros e ninguém lhe garantia que a completaria vivo.

E, à medida que o tempo passava, começava a duvidar que lhe interessasse que tal acontecesse.

No final do segundo dia o tormento convertera -se em agonia e os companheiros achavam-se no mesmo estado, incapazes de se lamentar por escassez de energias. Jamie compreendia agora a razão pela qual se insistia em que os passageiros fossem jovens e robustos.

Na terceira alvorada, imergiram no Great Karroo1, onde principiava a verdadeira desolação. Prolongando-se até ao infinito, a monstruosa savana apresentava um aspecto hostil sob o sol inclemente. Os passageiros não tardaram a ser flagelados pelo calor, a poeira densa e as moscas.

Ocasionalmente, por entre um véu miasmático, Jamie descortinava grupos de homens que avançavam penosamente a pé. Havia também cavaleiros solitários e dezenas de carros puxados por bois, que transportavam produtos hortícolas, tendas, apetrechos para escavar, fogões de lenha, sacos de farinha e carvão e lanternas de petróleo. Constituíam a fonte de abastecimento dos pesquisadores de fortunas instalados em Klipdrift. * Planalto elevado na África do Sul, estéril e seco quando não há chuvas. (N. do T.)

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Só quando a carruagem cruzou o rio Orange se registou uma modificação na monotonia letal da savana. A vegetação começou a apresentar-se mais alta e trocou a tonalidade parda pela verdejante. O solo era mais vermelho e principiaram a surgir árvores frondosas.

“Hei-de chegar lá”, prometia Jamie a si próprio. “Hei-de chegar lá!”

E, ao mesmo tempo, sentia a esperança infiltrar-se no corpo extenuado.

Havia quatro dias e noites consecutivos que tinham partido da Cidade do Cabo, quando finalmente atingiram os arrabaldes de Klipdrift.

Jamie não sabia exactamente o que se lhe depararia, mas o cenário em que fixou os olhos fatigados e congestionados não se assemelhava a coisa alguma que o espírito lhe pudesse sugerir. Klipdrift era um vasto panorama de tendas e carruagens alinhadas nas ruas principais e nas margens do rio Vaal. A estrada de acesso estava repleta de cafres, de casacos curtos como única indumentária, e pesquisadores barbudos, além de carniceiros, padeiros, ladrões e professores. No centro da povoação, fiadas de barracões de madeira e ferro serviam de instalações a lojas, cantinas, salas de bilhares, restaurantes, departamentos de compra de diamantes e escritórios de advogados. Numa esquina, erguia-se o Hotel Royal Arch, que continha uma longa sequência de quartos sem janelas.

Jamie saltou da carruagem e não conseguiu aguentar-se nas pernas. Conservouse reclinado no chão por uns minutos, até que se sentiu com vigor suficiente para se levantar. Em seguida, cambaleou até ao hotel, abrindo caminho com dificuldade por entre a multidão que enchia os passeios. O quarto que obteve era pequeno, escaldante e repleto de moscas. No entanto, dispunha de um catre, no qual ele se deixou cair, para adormecer instantaneamente.

Quando acordou, após dezoito horas de sono ininterrupto, tinha o corpo dorido, mas a alma em festa. Chegara ao ambicionado destino! Em seguida, loucamente faminto, procurou um lugar para comer. O hotel não servia refeições, mas havia um pequeno e concorrido restaurante do outro lado da rua, onde Jamie proporcionou ao estômago motivos mais que suficientes para não continuar a protestar.

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No entanto, fez uma pausa a meio, ao notar uma reacção desagradável, devida à ausência de alimento durante tanto tempo, e aproveitou o ensejo para olhar em volta. Nas mesas que o circundavam, pesquisadores discutiam febrilmente o tópico que dominava os espíritos de todos: diamantes. -…Ainda há alguns para os lados de Hopetown, mas o maior filão encontra-se em New Rust1-… Kimberley tem mais habitantes que Jofurg… -… Quanto à descoberta da semana passada em Dutoits -pan, dizem que há mais diamantes ao que um homem pode transportar… -…Descobriu-se um filão em Christiana e tenciono partir para lá amanhã.

Então, sempre era verdade. Havia diamantes por toda a parte! Jamie sentia-se tão excitado que quase não conseguiu terminar a refeição. A conta deixou-o assombrado: duas libras e três xelins por um almoço! “Tenho de ser cauteloso…”, reflectiu, enquanto se encaminhava de novo para a rua.

- Continuas empenhado em enriquecer, McGregor? - proferiu uma voz atrás dele.

Voltou-se e avistou Pederson, o louro que fora seu companheiro de viagem.

- Com certeza - replicou, sem vacilar.

- Então, vamos para onde estão os diamantes - declarou Pederson indicando uma direcção. O rio Vaal fica para aqueles lados.

E começaram a caminhar juntos.

Klipdrift situava-se numa bacia, rodeada por colinas, e até onde a vista alcançava tudo era árido, sem uma folha de relva ou um arbusto. Por outro lado, levantavase constantemente uma poeira vermelha, que dificultava a respiração. O rio Vaal distava quinhentos metros dali e, à medida que eles se aproximavam, o ar tornava-se mais fresco. Centenas de pesquisadores alinhavam-se ao longo das duas margens, uns à procura de diamantes, outros peneirando pequenas pedras e outros ainda procedendo à sua escolha em mesas improvisadas. O equipamento variava de aparelhos de lavar terra científicos a caixas metálicas e pás. Os homens apresentavam-se crestados pelo sol, barbudos e quase andrajosos, sendo notório que o banho não era uma das operações que lhes tomava mais tempo durante o dia.

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Jamie e Pederson acercaram-se da orla da margem e viram um rapaz e um homem mais velho esforçando-se por afastar um rochedo, para poderem explorar a terra em volta. Perto deles, dois outros carregavam com terra um carro de mão, a fim de a peneirarem.

- Parece fácil - comentou Jamie, com um sorriso.

- Não te fies nisso. Conversei com alguns pesquisadores que se encontram aqui há mais tempo. Desconfio que fomos levados.

- Que queres dizer?

- Sabes quantos pesquisadores há nestas redondezas, todos esperançados em enriquecer? Vinte mil! Não existem diamantes que cheguem para todos e, de qualquer modo, duvido que mereça a pena o trabalho. Uma pessoa coze no Inverno, gela no Verão, fica alagado até aos ossos com as malditas donderstorms e, ainda por cima, tem de enfrentar o pó, as moscas e a porcaria. Não se consegue um banho ou uma cama decente e não há esgotos nesta malfadada cidade. Contam-se às dezenas os casos de afogamento no rio Vaal, todas as semanas. Alguns são acidentes, mas confidenciaram-me que, para outros, tratase da única fuga possível a este inferno. Confesso que não compreendo por que motivo esta gente continua aqui.

- Compreendo eu - e Jamie fez uma pausa, fitando o interlocutor com uma expressão enigmática. - Nunca se sabe o que a próxima recolha de terra poderá conter.

Não obstante, enquanto regressavam à cidade, via-se forçado a reconhecer intimamente que Pederson tinha razão. Passavam diante de carcaças de bois, ovelhas e cabras imolados que apodreciam à entrada das tendas, ao lado de trincheiras abertas que serviam de instalações sanitárias. De facto, o local tresandava quase insuportavelmente.

- Que pensas fazer? - inquiriu o louro, que o observava com c uriosidade.

- Comprar alguns apetrechos de prospecção.

No centro da cidade, havia uma loja com uma tabuleta metálica oxidada que indicava: “Salomon van der Merwe - Armazém de Artigos Gerais”. Um negro alto, de idade aproximada à de Jamie, descarregava uma galera diante da porta. Tinha ombros largos, músculos turgentes e o semblante mais

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bem-parecido que Jamie vira até então. Os olhos eram negro-fuligem, o nariz aquilino e o queixo voluntarioso. Levantou um pesado caixote com espingardas, colocou-o ao ombro e, quando se voltou, escorregou numa folha que caíra de um cabaz de hortaliça. Jamie estendeu os braços instintivamente para lhe valer, mas o outro ignorou-o e entrou na loja. Um pesquisador bóer, que engatava uma mula a uma carroça, cuspiu desdenhosamente e disse:

- É Banda, da tribo Barolong, que trabalha para Van der Merwe. Não percebo porque mantém o escarumba ao seu serviço. Esses danados Bantos julgam que a Terra lhes pertence.

No interior da loja, a temperatura era agradável, constituindo um alívio em contraste com a rua quente e ruidosa, impregnada de odores exóticos. Jamie ficou com a impressão de que cada centímetro quadrado de espaço estava superlotado de mercadoria. Havia alfaias agrícolas, latas de cerveja e leite condensado, pacotes de manteiga, sacos de cimento, dinamite e pólvora juntamente com rastilhos, peças de olaria, mobiliário, armas, tintas e vernizes, presunto e fruta seca, artigos de perfumaria, bebidas alcoólicas, papel de carta, açúcar, chá, tabaco, rapé, etc. Umas dez prateleiras achavam-se cheias de camisas de flanela, cobertores, sapatos, bonés, chapéus, alforges e selas. “O dono disto é rico, sem dúvida”, cogitou.

- Em que lhe posso ser útil? - articulou uma voz suave.

Jamie virou-se e deparou-se-lhe uma jovem que não aparentava mais de quinze anos. Tinha um rosto interessante, de traços regulares, em forma de coração, nariz arrebitado e olhos verdes.

- Sou pesquisador - anunciou, por fim. - Queria comprar algum equipamento.

- De que necessita?

Por razões que não conseguia determinar, sentia que precisava de impressionar a rapariga, pelo que replicou, hesitante:

- Bem… o costume.

- Importa-se de explicar o que considera o costume? - insistiu ela, com uma ponta de malícia.

- Uma pá, por exemplo.

- Nada mais?

Compreendendo que pretendia desfrutá-lo, Jamie sorriu e confessou:

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- Para ser franco, não tenho calo disto. Não sei do que necessito…

- Depende de que pretende pesquisar, Mister…?

- McGregor, Jamie McGregor.

- Chamo-me Margaret van der Merwe - esclareceu ela, lanç ando um olhar apreensivo para o fundo da loja.

- Tenho muito prazer em conhecê-la, Miss Van der Merwe.

- Chegou há pouco?

- Ontem. No transporte do correio.

- Deviam tê-lo prevenido, antes de partir - a expressão dela era agora a de uma adulta. - Houve quem morresse durante a viagem - acrescentou, com uma expressão indignada.

- Não me surpreende nada - redarguiu ele, com novo sorriso. - Mas continuo bem vivo, felizmente.

- E disposto a procurar mooi klippe.

- Mooi klippe?

- É a nossa expressão holandesa para diamantes. Pedras bonitas.

- É holandesa?

- A minha família veio da Holanda.

- Eu sou da Escócia.

- Vê-se logo - redarguiu a rapariga olhando de novo para o fundo da loja. - Há por aí muitos diamantes, Mister McGregor, mas deve ter cuidado onde os procura. A maior parte dos pesquisadores anda às voltas, perseguindo a sua própria cauda.

Quando algum faz uma descoberta, os outros exploram os restos. Se pretende enriquecer, deve encontrar um local virgem.

- Como se faz para conseguir isso?

- Meu pai pode ajudá-lo. Conhece todos os truques. Está livre dentro de uma hora.

- Nesse caso, voltarei depois - prometeu Jamie. - Obrigado, Miss van der Merwe.

Regressou à rua escaldante, dominado por profunda euforia e esquecido das dores e dos tormentos da recente viagem. Se Salomon van der Merwe lhe indicasse onde devia procurar diamantes, nada o impediria de os descobrir. E soltou uma gargalhada, dominado pela alegria de ser jovem, estar vivo e prestes a enriquecer.

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Jamie percorreu a rua principal, passando diante de um ferreiro, de uma sala de bilhares e de meia dúzia de saloons. Quando avistou uma tabuleta à entrada de um hotel de aspecto decrépito, deteve-se e leu: “R.-D. MILLER, BANHOS FRIOS E QUENTES. ABERTO DIARIAMENTE DAS 6

ÀS 20. TODO O CONFORTO DE UMA SALA ESMERADA E LIMPA”.

“Quando tomei banho pela última vez?”, perguntou-se. “Cederam-me um balde de água para o efeito no navio. Isso foi…” Apercebeu-se repentinamente de que exalava um cheiro quase nauseabundo. Recordou-se dos banhos semanais na cozinha de sua casa e da recomendação da mãe: “Não te esqueças de lavar as extremidades, Jamie!”

Decidiu entrar e descortinou duas portas no pequeno vestíbulo: uma para as mulheres e a outra para os homens. Transpôs esta última e abordou o empregado idoso, para perg untar:

- Que preço tem o banho?

- Dez xelins frio e quinze quente.

Hesitou por um momento. A ideia de um banho quente após a longa viagem era quase irresistível.

- Frio - resolveu finalmente, reflectindo que não podia desperdiçar dinheiro em luxos, pois necessitava -o para o equipamento.

O empregado estendeu-lhe uma pequena barra de sabão amarelado e uma roalha quase transparente e apontou para uma porta.

- Pode entrar.

Jamie viu-se num pequeno cubículo que continha apenas uma banheira de ferro galvanizado e alguns ganchos na parede, em vez de cabides. O homem, com um balde, começou a encher a banheira de água fria e, por último, anunciou:

- Pronto, amigo. Pendure a roupa nesses ganchos. Jamie aguardou que ele saísse e principiou a despir-se. Em seguida, baixou os olhos para o corpo quase imundo e introduziu um pé na banheira. A água estava de facto fria, como fora prometido, e ele rangeu os dentes enquanto mergulhava até à cintura, a fim de se ensaboar furiosamente. Quando se considerou satisfeito, a água encontrava-se negra. Secou-se o

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melhor possível com a toalha e começou a vestir-se. As calças e a camisa achavam-se quase rígidas de tanta porcaria acumulada e foi com relutância que voltou a vesti-las. Precisava de comprar uma muda de roupa, o que lhe recordou uma vez mais o escasso dinheiro que possuía. E a fome tornava a atormentá -lo.

Quando se encontrou na rua, olhou em volta por um momento e encaminhou-se para um saloon denominado Sun-downer, onde pediu a ementa do dia e uma cerveja. Serviram-lhe costeletas de carneiro com molho de tomate, puré de batata, salada e picles e, enquanto comia, Jamie prestava atenção ao que diziam em redor. -…Consta que encontraram uma pedra com o peso de vinte e um quilates, perto de Colesberg. Portanto, deve haver muitas mais nas redondezas… -…Apareceram muitos diamantes em Heborn. Estou a pensar ir até lá…

- Não sejas parvo. Os diamantes grandes estão no rio Orange…

No bar, um indivíduo barbudo, de camisa de flanela listrada e calça de belbutina, fixava o olhar melancólico numa caneca de cerveja e murmurava:

- Fiquei limpo em Heborn. Preciso de arranjar uma fonte de subsistência.

- Quem é que não precisa? - grunhiu o bartender, um homem calvo, de faces rubicundas. - Assim que juntar dinheiro suficiente nesta espelunca, sigo para o rio Orange - continuou ele, fazendo circular um pano húmido ao longo da superfície do balcão. - Se quer um conselho de amigo, procure Salomon van der Merwe. É o dono do armazém de artigos gerais e de metade da cidade.

- Que ganho com isso?

- Se simpatizar consigo, talvez o apoie.

- Parece-lhe? - o barbudo exibiu uma expressão de esperança.

- Já o fez a vários fulanos que conheço. Você entra com o trabalho e ele com o dinheiro. No fim, dividem o resultado a meias.

Os pensamentos de Jamie McGregor adquiriram um ritmo mais acelerado.

Chegara com a convicção de que as cento e vinte libras que lhe restavam bastariam para adquirir o

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equipamento e a comida de que necessitava para sobreviver, mas os preços praticados em Klipdrift eram incríveis. Na loja de Van der Merwe, observara que uma saca de cinquenta quilogramas de farinha da Austrália custava cinco libras.

Meio quilograma de açúcar, um xelim. Uma cerveja, cinco xelins. As bolachas, seis xelins o quilograma, e os ovos, sete, a dúzia. Portanto, o seu dinheiro não tardaria a esgotar-se. “Na Escócia, podíamos alimentar-nos durante um ano com o preço de três refeições daqui”, reflectiu, apavorado. No entanto, se conseguisse o apoio de alguém endinheirado, como Van der Merwe… Apressou-se a pagar a conta e a visitar de novo o armazém de artigos gerais.

Salomon van der Merwe encontrava-se atrás do balcão, retirando as espingardas de um caixote de madeira. Era um homem pequeno, de rosto esguio e patilhas abundantes, com cabelos cor de areia, olhos negros minúsculos, nariz bolboso e lábios comprimidos. “A filha deve parecer-se com a mãe”, deduziu Jamie para consigo.

- Desculpe… - aventurou, hesitante.

- Já? - inquiriu o outro, erguendo a cabeça.

- Mister Van der Merwe? Chamo-me Jamie McGregor. Vim da Escócia para procurar diamantes.

- Ah, sim?

- Ouvi dizer que, às vezes, ajuda os pesquisadores.

- Myn Magtig - grunhiu o homem. - Quem espalhará essas coisas? Bastou-me estender a mão a dois ou três para me julgarem um Mecenas.

- Economizei cento e vinte libras - prosseguiu Jamie, com ansiedade. - Mas acabo de descobrir que não chegam para ir muito longe. Irei para o mato só com uma pá, se for necessário, embora reconheça que terei melhores possibilidades se dispuser de uma mula e equipamento apropriado.

- Wat denk ye? - Van der Merwe observava-o com uma ponta de curiosidade. - Quem lhe meteu na cabeça que era capaz de enc ontrar diamantes?

- Percorri metade do mundo e não saio daqui sem ter enriquecido. Se há diamantes na região, hei-de descobri-los. Caso queira ajudar-me, ficaremos ambos ricos.

O holandês voltou a emitir um grunhido, virou as costas a Jamie e recomeçou a retirar as espingardas do caixote. Transcorrido um longo momento, perguntou de chofre:

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- Veio num transporte de gado?

- Não. No do correio.

Fitou-o novamente e acabou por inclinar a cabeça, como se tomasse uma decisão.

- Vamos trocar impressões sobre o assunto.

Na verdade, trocaram impressões, naquela noite, na dependência ao fundo da loja, que constituía o local de habitação de Van der Merwe e acumulava as funções de cozinha, sala de estar e quarto, com um reposteiro que separava dois catres. A parte inferior das paredes era de barro e pedra e o resto forrado com cartão de caixas que haviam contido provisões. Uma abertura rectangular numa delas exercia as funções de janela e, em caso de chuva, podia ser encerrada por meio de uma tábua. A mesa das refeições consistia numa longa prancha apoiada em dois caixotes. Uma caixa empinada funcionava como aparador. Ao abarcar todos estes pormenores, Jamie reflectiu que Van der Merwe não devia sentir inclinação para as despesas, ainda que necessárias.

A rapariga movia-se em silêncio de um lado para o outro, preparando o jantar. De vez em quando, lançava uma olhadela ao pai, mas evitava Jamie ostensivamente.

“Porque estará tão assustada?”, perguntava-se ele.

Por fim, sentaram-se à mesa e Van der Merwe principiou:

- Oremos. Agradecemos-Te, Senhor, a bondade que recebemos de Tuas mãos.

Estamos-Te gratos por nos perdoares os pecados, indicares o bom caminho e livrares das tentações. Manifestamos -Te a nossa gratidão por uma vida longa e frutuosa e por semeares a morte entre todos os que Te ofendem. Amém! - e, quase sem uma pausa nem mudança de tom, pediu à filha: - Passa-me a carne.

A refeição era frugal: carne de porco assada em quantidade reduzida, três batatas cozidas e salada. Os dois homens conversaram enquanto comiam e Margaret mantinha-se silenciosa.

Quando consumiram tudo o que tinham nos pratos, para o que não foi necessário muito tempo, o holandês proferiu com uma ponta de orgulho:

- O jantar estava excelente, filha - e em seguida, virando-se para Jamie: - Vamos então tratar de negócios?

- Perfeitamente.

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Retirou um longo cachimbo de barro de cima do aparador improvisado, encheu-o do tabaco aromático contido numa pequena bolsa e aproximou-lhe um fósforo aceso, ao mesmo tempo que observava o rapaz com intensidade.

- Os pesquisadores daqui são imbecis. Os diamantes escasseiam e eles abundam. Uma pessoa pode quebrar as costas durante um ano e obter apenas chlenters.

- Desculpe, mas não estou familiarizado com esse termo.

- Diamantes falsos. Sem valor. Está a compreender?

- Sim, senhor. Mas qual é o caminho a seguir?

- Os Grícuas.

- Perdão…

- É uma tribo africana do Norte. Esses fulanos costumam encontrar diamantes enormes e às vezes trazem-mos, para negociarmos - e Van der Merwe baixou a voz em tom cons-piratório. - Sei onde há muitos.

- Porque não vai o senhor mesmo buscá-los?

- Infelizmente, não posso abandonar a loja. Roubavam-me tudo. Preciso de alguém da minha confiança para ir até lá. Quando enco ntrar esse homem, fornecer-lhe-ei todo o equipamento necessário - e fez uma pausa para chupar o cachimbo.

- E hei-de indicar-lhe a localização dos diamantes.

Jamie pôs-se de pé num salto, sentindo o coração palpitar com intensidade.

- Não precisa de procurar mais longe. Sou a pessoa indicada. Garanto-lhe que trabalharei dia e noite - declarou o rapaz com a voz alterada pela excitação. - Heide trazer-lhe mais diamantes do que os que poderá contar.

O holandês estudou-o em silêncio, demoradamente, e, por último, inclinou a cabeça, limitando-se a pronunciar uma palavra:

- Já!

Jamie assinou o contrato na manhã seguinte e verificou que estava redigido em africânder.

- Vou explicar-lhe o conteúdo - disse Van der Merwe.

- Somos sócios e eu contribuo com o capital e você com o trabalho. Partilharemos tudo em partes iguais.

O rapaz fixou o olhar na folha de papel e, no meio do arrazoado de palavras estrangeiras, reconheceu apenas as que indicavam uma quantia: “duas libras”.

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- O que é isto? - perguntou, apontando-as.

- Significa que, além de ficar com metade dos diamantes que encontrar, ganhará duas libras por cada semana de trabalho. Apesar de eu ter a certeza de que estão lá, existe a possibilidade de não os encontrar. Assim, obterá alguma coisa pelo que fizer.

Não havia dúvida de que o homem se mostrava de uma lealdade a toda a prova, e Jamie não pôde deixar de lhe agradecer.

- Agora, tratemos do equipamento - propôs Van der Merwe.

Foram necessárias duas horas para escolher os apetrechos que acompanhariam Jamie: uma pequena tenda, um saco-cama, utensílios para cozinhar, dois crivos, uma picareta, duas pás, três baldes e uma muda de roupa. Também não faltavam um machado, uma lanterna, óleo de parafina, fósforos, sabão, alimentos enlatados, fruta, açúcar, café e sal. Por fim, ficou tudo preparado. O criado negro, Banda, sem proferir palavra, ajudou Jamie a acondicionar tudo, e este último depreendeu que não falava inglês. Margaret, por seu turno, encontrava-se na loja para atender os clientes, sem parecer interessada na presença do rapaz.

- A mula já se encontra lá fora - anunciou Van der Merwe. - Banda ajuda-o a carregar as coisas.

- Muito obrigado.

Consultou um pedaço de papel coberto de algarismos e informou:

- Deve-me cento e vinte libras.

- Como? - Jamie arregalou os olhos, incrédulo. - Mas assinámos um contrato e…

- Wat bedui'di? - a expressão do holandês toldou-se de cólera. - Pensava que lhe oferecia o equipamento e uma mula estupenda, o fazia meu sócio e ainda por cima lhe pagava duas libras por semana? Se tinha em vista obter alguma coisa em troca de nada, bateu à porta errada - e fez menção de começar a recolher os artigos.

- Não, por favor, Mister Van der Merwe! - suplicou o rapaz. - É que não tinha compreendido. Vou dar-lhe o dinheiro! - abriu a bolsa e colocou as economias que lhe restavam em cima do balcão.

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- Assim, está bem - concedeu o outro, após breve hesitação. - Foi um malentendido, hem? Esta cidade está cheia de vigaristas e preciso de conservar os olhos bem abertos.

- Com certeza. Faz muito bem.

Jamie reconhecia que a excitação o impedira de abarcar as cláusulas do contrato, mas agora estava tudo esclarecido. “Tenho sorte em ele me conceder nova oportunidade”, admitiu para consigo.

Van der Merwe levou a mão à algibeira e puxou de um pequeno mapa amarfanhado.

- É nesta região que encontrará as mooi klippe - indicou. - A norte daqui, em Magerdam, na margem setentrional do Vaal.

- Quantos quilómetros são? - perguntou Jamie, sentindo o coração voltar a palpitar com intensidade.

- Aqui, costumamos medir a distância em tempo. Com a mula, deve cobrir o percurso em quatro ou cinco dias. O regresso deve demorar mais, por causa do peso dos diamantes.

- Já! - concordou, com um sorriso.

Quando voltou a encontrar-se nas ruas de Klipdrift, já não era um turista, mas um pesquisador, um prospector a caminho da fortuna. Entretanto, Banda acabara de acondicionar o equipamento e provisões no dorso de uma mula de aspecto frágil e Jamie agradeceu-lhe.

O negro olhou-o fixamente por um momento e afastou-se sem proferir palavra, enquanto o rapaz pegava nas rédeas e murmurava:

- Vamos, companheira. Abriu a caça às mooi klippe para nós. E rumaram ao norte.

Jamie montou o acampamento junto de um ribeiro, ao anoitecer, deu de comer à mula e preparou uma refeição modesta para ele. A noite estava repleta de ruídos estranhos. Soavam grunhidos, uivos e passos de animais selvagens nas imediações. Achava -se desprotegido para os enfrentar, o que lhe provocava um sobressalto cada vez que detectava um som ominoso. Esperava ser atacado a todo o momento e pensou involuntariamente no conforto e na segurança de que desfrutava em casa. Por fim, dormiu sem repousar, os sonhos povoados por leões, elefantes e selvagens empenhados em lhe arrancar das mãos um diamante gigantesco que encontrara.

Ao amanhecer, quando acordou, a mula estava morta.

Capítulo segundo Jamie não conseguia acreditar no que os olhos lhe revelavam e procurou um ferimento no corpo do animal, convencido de que fora atacado durante o sono, mas em vão. Morrera enquanto dormia. “Mr. Van der Merwe vai responsabilizarme pela sua morte”, reflectiu, apreensivo. “Mas quando vir os diamantes, esquecese do resto.”

Não podia voltar para trás. Prosseguiria em direcção a Magerdam, sem a mula. De súbito, ouviu um som no ar e ergueu a cabeça. Abutres gigantescos começavam a descrever círculos no local, o que lhe provocou um estremecimento. Agindo com a maior rapidez possível, recolheu tudo o que se lhe afigurava indispensável e partiu. Cinco minutos depois, quando olhou para trás, viu o animal morto coberto por numerosos abutres e estugou o passo.

Era Dezembro, Verão na África do Sul, e o percurso através da savana, sob o Sol alaranjado, constituía um pesadelo. Jamie iniciara a marcha em Klipdrift dominado por pensamentos eufóricos, mas, à medida que os minutos se convertiam em horas e estas em dias, começava a surgir o espectro do desânimo. Até onde a vista alcançava, a savana monótona estendia-se sob o sol escaldante, parecendo infinita.

Acampava onde descobria um pouco de água e dormia rodeado pelos sons mais sinistros, que todavia já não o aterrorizavam. Representavam a prova de que havia vida naquele inferno tórrido e contribuíam para que se sentisse menos só.

Certa madrugada, deparou-se-lhe um grupo de leões. Postado à distância, viu a leoa mover-se ao lado do companheiro e das crias, com uma jovem impala na boca. Um pouco adiante, depositou-a aos pés do leão e só principiou a comer depois de ele se considerar saciado.

Jamie necessitou de duas semanas para atravessar o Karroo e esteve prestes a desistir por mais de uma vez, quase convencido de que não chegaria ao fim da viagem. “Fui estúpido. Devia ter voltado para trás e pedido outra mula a Mr. Van der Merwe. Mas ele podia rescindir o contrato. Não, procedi bem assim.”

E continuou em frente, com o passo cada vez mais pesado. Um dia, avistou quatro vultos à distância, que avançavam na

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sua direcção, e o coração principiou a palpitar-lhe com a nsiedade. “Estou a delirar”, pensou. “É uma miragem!” Não obstante, os vultos continuavam a aproximar-se, e a excitação acentuou-se. “Homens! Há vida humana, aqui!”

Perguntou a si próprio se ainda saberia falar, após tantos dias sem pronunciar uma palavra. Tentou pronunciar algumas palavras e quase não reconheceu a voz.

Por fim, os quatro homens - pesquisadores que regressavam a Klipdrift, exaustos e decepcionados - encontraram-se na sua frente e Jamie articulou:

- Olá!

Inclinaram as cabeças e um deles declarou em inflexão átona:

- Não há nada, lá adiante. Podemos garanti-lo, porque nos fartámos de procurar.

Não perca tempo. Volte para trás.

E prosseguiram o seu caminho.

Jamie isolou o espírito de tudo, excepto da vastidão árida à sua frente. Os raios solares e as moscas eram insuportáveis e não havia lugar algum para se refugiar.

A folhagem das escassas árvores dispersas tinha sido devorada pelos elefantes.

O sol cegava-o quase por completo. A pele clara achava -se avermelhada pelas queimaduras e acudiam-lhe tonturas constantes. Cada vez que respirava fundo, os pulmões pareciam na iminência de explodir. Já não caminhava: arrastava os pés, colocando um à frente do outro, sem a consciência exacta do que fazia. Uma tarde, quando o Sol se encontrava quase na vertical, tirou a mochila das costas e estendeu-se no chão, demasiado cansado para continuar. Fechou os olhos e sonhou que estava num cadinho gigantesco e um diamante enorme emitia raios cintilantes que o queimavam e derretiam. Acordou a meio da noite, tremendo de frio, e esforçou-se por tragar alguma coisa das parcas reservas que lhe restavam.

Sabia que tinha de se levantar e reatar a marcha antes do nascer do Sol, enquanto a temperatura permanecia suportável. Tentou, mas o esforço era excessivo. Resultava mais fácil manter-se deitado no chão e não voltar a dar nem mais um passo. No entanto, uma voz segredava-lhe que a sua missão no mundo ainda não se completara. Ainda nem sequer começara. Por último, logrou pôr-se de pé e avançar com extrema lentidão, arrastando a mochila atrás dele. Mais tarde, não conseguiu determinar quantas vezes caiu na areia escaldante e tornou a levantar-se. Uma ocasião, gritou em voz rouca: “Sou Jamie

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McGregor e hei-de viver! Ouves-me, Deus? Hei-de viver!…” Entretanto, explodiamlhe na cabeça palavras do passado: “- À procura de diamantes? Não deves regular bem. Tudo isso que contam são balelas, uma tentação do Demónio para impedir os homens de ganhar a vida honestamente.

“- Porque não nos explicas onde vais arranjar o dinheiro para a viagem? Isso fica do outro lado do mundo, e não tens vintém.

“- Sou a pessoa indicada. Garanto-lhe que trabalharei dia e noite. Hei-de trazer-lhe mais diamantes do que os que poderá contar.”

Afinal, perdera a partida quase antes de a iniciar. “Tens dua s alternativas”, disse para si mesmo. “Podes continuar em frente ou ficar aqui e morrer… morrer… morrer…”

As palavras ecoavam-lhe no espírito interminavelmente. “Ainda podes dar mais um passo. Vá, coragem, rapaz. Só mais um… mais um…”

Dois dias depois, chegou à povoação de Magerdam. As queimaduras solares tinham infectado e o corpo convertera-se numa chaga, enquanto os olhos estavam inchados, quase impossibilitados de se abrir. Caiu pesadamente no meio da rua, um monte de andrajos que o mantinha consolidado. Quando alguns pesquisadores, solícitos, tentaram aliviá-lo do peso da mochila, Jamie resistiu com as energias que lhe restavam, vociferando em delírio:

- Afastem-se dos meus diamantes! Deixem-me em paz!… Despertou num quarto pequeno, sem móveis, três dias mais tarde, tendo como única indumentária as ligaduras que lhe envolviam o corpo. A primeira coisa que viu quando descerrou as pálpebras foi uma mulher de meiaidade e busto opulento sentada na borda da tarimba.

- Que?!… - exclamou, impossibilitado de formar uma frase coerente.

- Calma, rapaz. Esteve muito mal.

Ela levantou-lhe a cabeça com suavidade e fê-lo ingerir um gole de água de um púcaro de estanho.

Jamie conseguiu soerguer-se, apoiado no cotovelo, e perguntar:

- Onde… onde estou?

- Em Magerdam. Chamo-me Alice Jardine e encontra-se na minha pensão. Não se preocupe, que vai ficar bom. Precisa apenas de repouso. Volte a deitar-se.

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Recordou-se dos desconhecidos que tinham tentado tirar-lhe a mochila e sentiu-se invadido por uma vaga de pânico.

- As minhas coisas?

Tentou endireitar-se de novo, mas a mulher impediu-o com um gesto.

- Estão em lugar seguro - e apontou para um volume no chão, ao canto do quarto.

Jamie reclinou-se, mais tranquilo: “Cheguei. Agora, tudo correrá bem.”

Alice Jardine era uma autêntica bênção personificada, não só para Jamie McGregor como para metade de Magerdam. Na povoação mineira, cheia de aventureiros unidos por um sonho comum, fornecia-lhes alimento e coragem. Era uma inglesa que chegara à África do Sul com o marido, o qual abandonara a ocupação de professor em Leeds para se incorporar na febre dos diamantes. Ele morrera de doença, cinco semanas mais tarde, mas ela decidira continuar ali, e os mineiros converteram-se nos filhos que nunca tivera.

Obrigou Jamie a permanecer na cama mais quatro dias, dando-lhe de comer, procedendo à substituição das ligaduras e encorajando-o, até que ele se reconheceu com forças para se levantar.

- Estou-lhe profundamente grato, Mistress Jardine. Não disponho de fundos para lhe pagar. Por enquanto. Mas tenciono oferecer-lhe um diamante, num futuro não muito distante. É uma promessa solene de Jamie McGregor.

Ela sorriu ante o fervor do rapaz. Ainda estava muito magro e os olhos cinzentos conservavam parte do horror que conhecera, mas irradiava uma voluntariedade que impressionava. “É diferente dos outros…”, admitiu para consigo.

Jamie saiu para explorar a povoação, que era Klipdrift numa escala mais reduzida.

Havia as mesmas tendas, galeras e ruas poeirentas, lojas modestas e multidões de pesquisadores. Quando passava diante de um saloon, ouviu um clamor e entrou, verificando que numerosos homens rodeavam um irlandês de camisa vermelha.

- Que se passa? - perguntou a um.

- O tipo vai molhar o achado.

- Vai quê?

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- Ficou rico, hoje, pelo que paga bebidas a toda a gente. A quantidade correspondente à que trinta homens sedentos puderem emborcar.

Acabou por se sentar a uma mesa redonda ocupada por vários pesquisadores de expressões desencorajadas e não tardou a entabular conversa.

- De onde é você, McGregor?

- Da Escócia.

- Não sei que patranhas lhe contaram na sua terra, mas não há diamantes nesta região em quantidade suficiente para custear as despesas.

Em seguida, trocaram impressões acerca de outros lugares de prospecção: Gong Gong, Forlorn Hope, Delports, Poor-mans Kopje, Sixpenny Rush…

Os pesquisadores contavam todos a mesma história - de meses empenhados na esgotante actividade de remover rochas, escavar o solo duro e passar horas agachados na margem do rio com o crivo nas mãos. Todos os dias eram encontrados alguns diamantes, insuficientes para enriquecer, mas em quantidade bastante para manter os sonhos vivos. O estado de espírito que predominava consistia numa mescla de optimismo e pessimismo. Os optimistas eram os que chegavam, os pessimistas os que partiam.

Jamie não teve dificuldade em determinar a que grupo pertencia.

Por fim, acercou-se do irlandês de camisa vermelha, agora de olhar congestionado pela bebida, e mostrou-lhe o mapa de Van der Merwe.

O homem lançou-lhe uma olhadela superficial e restituiu-o.

- Não vale nada. Toda a área aí indicada já foi explorada. No seu lugar, eu tentava a sorte em Bad Hope.

Jamie não conseguia acreditar no que ouvia. Fora o mapa do holandês que o atraíra àquela região, a estrela que lhe prometia a riqueza.

- Experimente em Colesberg - sugeriu outro pesquisador. - É aí que aparecem os diamantes grandes.

No entanto, as opiniões não pareciam unânimes.

- Quanto a mim, não há como Gilfillans Kop.

- Procure em Moonlight Rush, se quer encontrar os mais valiosos.

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Após uma noite em claro de debate consigo próprio, Jamie decidiu ignorar o mapa de Van der Merwe e, contra todos os concelhos, seguir para leste, ao longo do rio Moder. Assim, na manhã seguinte, despediu-se de Mrs. Jardine e partiu.

Caminhou durante três dias e duas noites e, quando se lhe deparou um local satisfatório, montou a pequena tenda. Erguiam-se pesadas rochas em ambas as margens do rio, e ele, servindo-se de ramos nodosos como alavancas, principiou a removê-las penosamente, a fim de explorar o solo por baixo.

Escavava da alvorada até ao anoitecer, em busca do barro amarelo ou do solo diamantífero azulado indicativo de que descobrira um filão. No entanto, a terra apresentava-se estéril. Ao cabo de uma semana de pesquisas, não encontrara uma única pedra, pelo que resolveu mudar de poiso.

Um dia, avistou ao longe algo que parecia uma casa de prata que refulgia ao sol e receou ser vítima de uma ilusão de óptica resultante do calor. Mas à medida que se aproximava, verificou que se tratava de uma povoação, cujas casas tinham todo o aspecto de ser de prata. Multidões de homens, mulheres e crianças indianos andrajosos enchiam as ruas, ante o olhar atónito de Jamie. As casas que reflectiam os raios solares eram feitas de latas de compota espalmadas e pregadas, lado a lado, a pranchas. Prosseguiu em frente e, uma hora mais tarde, quando olhou para trás, ainda conseguia divisar o clarão da aldeia. Era uma cena que jamais esqueceria.

Continuou a rumar para norte, acompanhando a margem do rio, onde os diamantes se poderiam encontrar, e escavando até os braços se recusarem a erguer a pesada picareta. À noite, dormia profundamente, como que drogado.

No final da segunda semana, passou por uma pequena colónia de pesquisadores denominada Paardspan e, um pouco ao norte, deteve-se junto de uma curva do rio. Em seguida, preparou uma das refeições frugais a que se habituara e sentouse à entrada da tenda, para contemplar as estrelas no vasto firmamento. Havia duas semanas que não via um ser humano e assolava -o uma vaga de solidão.

“Que diabo faço aqui?”, perguntava-se. “Passo os dias a escavar e a peneirar terra para quê? Estava muito melhor na herdade. Se não encontrar um diamante até sábado, volto para casa.” Fixou os olhos nas estrelas, como se pretendesse tomálas como testemunhas, e bradou:

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- Ouviram? “Estou a perder o juízo”, receou quase imediatamente.

Jamie notou uma pedra de dimensões apreciáveis entre a terra que explorava, olhou-a por um momento e deitou-a fora. Haviam-se-lhe deparado milhares como aquela, sem qualquer valor, nas últimas semanas. Como lhe chamara Van der Mer-we? Schlenters. No entanto, a de agora tinha algo que acabou por lhe despertar a atenção. Voltou a pegar-lhe e submeteu-a a um exame minucioso. Era muito maior do que as anteriores e apresentava uma configuração diferente.

Friccionou-a na perna da calça para remover parte da terra que a cobria e tornou a observá-la. De facto, parecia um diamante. A única coisa que o levava a duvidar era o tamanho, quase igual ao de um ovo de galinha. “Se fosse mesmo, meu Deus…” De repente, sentiu dificuldade em respirar. Dominado por uma ansiedade febril, pegou na lanterna e pôs-se a esquadrinhar o solo à sua volta. Decorridos quinze minutos, encontrara mais quatro semelhantes. Embora não fossem tão grandes, tinham dimensões suficientes para o excitar.

Levantou-se antes de amanhecer e recomeçou a escavar como um desesperado.

Ao meio-dia, descobrira mais meia dúzia. Consumiu a semana seguinte em pesquisas frenéticas, das quais redundou uma quantidade apreciável, que enterrava à noite num local seguro onde ninguém os poderia encontrar por acaso.

À medida que se acumulavam, reflectia que, apesar de apenas metade do tesouro lhe pertencer, segundo as cláusulas do contrato, isso bastava para o tornar mais rico do que jamais se atrevera a imaginar.

No final da semana, Jamie inscreveu uma anotação no mapa e demarcou a área que tencionava legalizar em seu nome, servindo-se da picareta para o efeito. Por fim, desenterrou os diamantes, ocultou-os no fundo da mochila e regressou a Magerdam.

A tabuleta à entrada da pequena construção indicava: “Diamant Kooper”.

O rapaz entrou num pequeno gabinete sem ventilação e sentiu-se invadido por tremores irresistíveis. Ouvira falar de dezenas de casos de pesquisadores convencidos de terem encontrado diamantes que na realidade não passavam de pedras sem qualquer valor. “E s e estiver enganado?”

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O avaliador encontrava -se sentado atrás de uma secretária que conhecera melhores dias e, quando viu Jamie aproximar-se, inquiriu:

- Em que posso ser-lhe útil?

- Gostava que avaliasse estas pedras.

E, ante o olhar do homem, Jamie começou a colocá-las em cima da secretária.

Quando terminou, havia um total de vinte e sete, que o avaliador contemplava com assombro.

- Onde… onde as encontrou?

- Explico-lhe depois de me dizer se são diamantes.

O exame não se prolongou muito e foi concluído com uma exclamação de incredulidade.

- São os maiores que vi em toda a minha vida. Afinal, onde os descobriu?

- Vá ter comigo à cantina dentro de um quarto de hora e informo-o - prometeu Jamie, com um sorriso.

Recolheu as pedras, guardou-as nas algibeiras e retirou-se em direcção ao departamento de registos.

- Quero registar um terreno nos nomes de Salomon van der Merwe e Jamie McGregor - anunciou, esforçando-se por conservar a voz firme.

O avaliador já se encontrava na cantina quando ele entrou, e tudo indicava que divulgara a novidade, porque se verificou um silêncio de respeito no momento em que Jamie transpôs a porta. Pairava uma única interrogação não formulada nos espíritos de todos. Após breve hesitação, acercou-se do balcão do bar e comunicou ao empregado:

- Quero molhar um achado - e voltando-se para os outros, informou: - Em Paardspan.

Alice Jardine tomava chá, quando Jamie entrou na cozinha, e o rosto iluminou-selhe ao vê-lo.

- Voltou são e salvo, graças a Deus! - exclamou, mas, apercebendo-se da indumentária andrajosa do rapaz, assumiu uma expressão de pesar. - As coisas não correram bem, aposto. Não se preocupe. Tome chá comigo e vai sentir-se melhor.

Sem uma palavra, ele introduziu a mão na algibeira e exibiu um diamante de dimensões apreciáveis, que colocou na mão dela.

- Cumpri a promessa, como vê.

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Mrs. Jardine fixou o olhar na pedra por um longo momento e sentiu-se comovida.

- Não, Jamie - articulou em voz baixa. - Não o quero. Se o aceitasse, estragava tudo. Procure compreender.

Quando Jamie regressou a Klipdrift, apresentou-se de forma condigna à nova situação. Trocou um dos diamantes mais pequenos por um cavalo e uma carruagem e anotou meticulosamente o que gastara, para que o sócio não ficasse prejudicado. O percurso foi fácil e confortável, e ele não pôde deixar de recordar as condições insólitas em que efectuara a viagem no sentido inverso. “É a diferença entre os ricos e os pobres”, reflectiu. “Os pobres andam a pé e os ricos de carruagem.”

Capítulo terceiro Klipdrift não mudara, mas não se podia dizer o mesmo de Jamie McGregor. As pessoas contemplaram-no de olhos arregalados, quando se deteve diante do armazém de artigos gerais de Van der Merwe. Não eram os dispendiosos cavalos e a carruagem que atraíam a atenção dos transeuntes, mas a expressão de júbilo do rapaz. Haviam-na notado anteriormente noutros pesquisadores que tinham enriquecido, o que sempre lhes incutia nova esperança.

Achava-se à entrada o mesmo negro corpulento e bem-parccido, e Jamie saudouo cordialmente:

- Viva! Estou de volta.

Banda atou as rédeas a um poste, sem responder, e entrou na loja, seguido por Jamie.

Salomon van der Merwe atendia um cliente, mas ergueu os olhos e sorriu, e o rapaz compreendeu que já se inteirara da boa nova. Ninguém o podia explicar, mas as descobertas de diamantes propagavam-se com a velocidade da luz.

Quando se desembaraçou do cliente, o holandês inclinou a cabeça na direcção do fundo da loja e proferiu:

- Vamos tratar de negócios, McGregor.

Jamie acompanhou-o e avistou a rapariga ocupada diante do fogão, preparando o almoço.

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- Olá, Margaret.

Todavia, ela corou e desviou os olhos.

- Constou-me que foi bem sucedido - disse Van der Merwe, com um largo sorriso, ao mesmo tempo que se sentava à mesa e abria espaço à sua frente.

- É verdade - assentiu Jamie, orgulhosamente.

Extraiu uma bolsa de cabedal da algibeira do casaco e sacudiu-a, para fazer brotar os diamantes refulgentes. Van der Merwe olhava -os, como que hipnotizado, até que pegou num, para o examinar com incredulidade. Por fim, guardou-os numa bolsa de camurça, que encerrou num cofre de ferro a um canto da sala.

Quando falou, havia uma nota de profunda satisfação na sua voz.

- Portou-se às mil maravilhas, McGregor.

- Obrigado. E isto é só o princípio. Há centenas de out ros no mesmo local. Nem sequer posso fazer uma estimativa do seu valor.

- Registou o terreno?

- Sem dúvida - e Jamie tornou a levar a mão à algibeira e exibiu o talão respectivo.

- Nos nomes de ambos.

O holandês estudou-o por um momento e guardou-o, dizendo:

- Merece uma gratificação. Aguarde um pouco - pediu, e começou a mover-se para a porta de comunicação com a loja. - Vem, Margaret.

Ela seguiu-o docilmente e Jamie pensou: “Parece uma gatinha aterrorizada!”

Transcorridos uns minutos, Van der Merwe reapareceu só e abriu uma bolsa de cabedal, da qual retirou cinquenta libras.

- Aqui tem.

- Para que é isso? - perguntou Jamie, intrigado.

- Para si.

- Não compreendo.

- Esteve ausente vinte e quatro semanas. As duas libras por semana, são quarenta e oito, além de que lhe dou duas de gratificação.

- Não é necessário dar-me gratificações. Contento -me com a minha parte dos diamantes.

- A sua parte?

- Os meus cinquenta por cento. Somos sócios.

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- Sócios? - Van der Merwe fitou o interlocutor com estranheza. - Quem lhe meteu essa ideia na cabeça?

- Quem?… - a perplexidade do rapaz começava a converter-se em alarme. - Assinámos um contrato.

- Precisamente. Leu as cláusulas?

- Não, porque está redigido em africânder, mas o senhor disse que éramos sócios em partes iguais.

- Compreendeu mal, Mister McGregor - Van der Merwe abanou a cabeça com veemência. - Não preciso de sócios para nada. Limitou-se a trabalhar para mim, segundo o nosso acordo. Forneci-lhe o equipamento e os géneros para que descobrisse diamantes para mim.

- Forneceu-me tudo isso em troca do dinheiro que lhe dei! - retorquiu Jamie, sentindo uma indignação crescente. - Paguei-Lhe cento e vinte libras.

- Não posso perder tempo com conversa fiada. Olhe, proponho o seguinte. Doulhe mais cinco libras e não se volta a falar no assunto. Parece-me uma oferta generosa.

- Volta a falar-se no assunto e até que o resolvamos como deve ser! - explodiu com voz trémula. - Tenho direito a metade do que se encontrar na propriedade que registei. E hei-de obtê-la. No registo figuram os nomes de ambos.

- Nesse caso, tentou vigarizar-me - observou Van der Merwe, com um sorriso malicioso. - Se quisesse, podia mandá-lo prender - ameaçou, atirando as moedas para cima da mesa. - Pegue no seu dinheiro e desapareça.

- Vou processá-lo!

- Tem recursos para pagar a um advogado? De resto, estão todos ao meu serviço.

“Isto não está a acontecer”, reflectia Jamie. “É um pesadelo!” A agonia que sofrera, as semanas e os meses de exposição à inclemência do deserto, o trabalho esgotante do nascer ao pôr-do-Sol, acudiram-lhe ao pensamento em vagas avassaladoras. Quase perdera a vida, e agora aquele homem tentava privá - lo daquilo que lhe pertencia por direito próprio.

Por fim, encarou o holandês com uma expressão ominosa, antes de advertir:

- Não julgue que se safa com isto. Continuarei em Klip-drift e direi a toda a gente o que fez. Hei-de conseguir a minha parte dos diamantes, custe o que custar.

- Aconselho-o a consultar o médico - grunhiu o outro,

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desviando os olhos. - Desconfio que o sol lhe alterou as faculdades mentais.

Num segundo, Jamie segurou-o pela gola do casaco e ergueu-o no ar.

- Há-de arrepender-se de me ter conhecido - prometeu. Em seguida, largou-o abruptamente, recolheu o dinheiro de cima da mesa e afastou-se em passos pesados.

Quando entrou no Sundowner Saloon, encontrou a sala quase deserta, pois a maioria dos pesquisadores já se achava a caminho de Paardspan. Jamie sentia-se assolado pela cólera e pelo desespero. “É incrível. De um momento para o outro, passei de rico como Creso a pobre como Job. Van der Merwe é um ladrão e heide arranjar um meio de me vingar. Mas como?” O holandês tinha razão. Não possuía fundos para recorrer a um advogado. De qualquer modo, deviam encontrar-se todos por sua conta, como ele próprio declarara. A única arma de que Jamie dispunha era a verdade. Assim, faria com que todos os habitantes da África do Sul se inteirassem da acção hedionda de Van der Merwe.

- Seja bem-vindo - saudou Smit, o bartender. - Pode tomar o que lhe apetecer por conta da casa, Mister McGregor. Que prefere?

- Uísque.

O homem serviu uma dose dupla, que o rapaz fez desaparecer de um trago. No entanto, não estava habituado às bebidas alcoólicas e sentiu um ardor intenso na garganta e no estômago.

- Pode voltar a encher.

- É para já. Sempre afirmei que ninguém vence os escoceses, quando se trata de beber.

A segunda dose deslizou mais facilmente. Ao mesmo tempo, Jamie recordou-se de que procurara o holandês por recomendação do bartender e articulou:

- Sabia que o velho Van der Merwe é um escroque? Quer privar-me dos meus diamantes.

- Não me diga - Smit mostrou-se compadecido. - Isso é horrível. Nunca esperei uma coisa dessas dele.

- Mas não se safa - e a voz de Jamie começava a tornar-se pastosa. - Metade dos diamantes pertence-me. É um ladrão e vou providenciar para que toda a gente o saiba.

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- Veja lá no que se mete, pois trata -se de uma pessoa importante - advertiu o bartendcr. - Antes de tomar qualquer decisão, precisa de procurar auxílio. Por acaso, conheço o homem indicado. Odeia Van der Merwe tanto como você - olhou em volta, para se certificar de que ninguém ouvia. - Eu ocupo-me dos preparativos. Dirija -se a um velho celeiro ao fundo da rua, às dez horas.

- Obrigado - proferiu Jamie, com sinceridade. - Não me esquecerei da sua atitude.

- No celeiro, às dez.

O celeiro consistia numa estrutura rudimentar de chapa ondulada, para lá da rua principal, nos arrabaldes da cidade, e Jamie apresentou-se à hora indicada.

Impeliu a porta e avanç ou um passo, mas não descortinou vivalma na escuridão.

Aventurou-se um pouco mais e, de súbito, detectou um som atrás dele. No momento em que principiava a voltar-se, uma barra de ferro atingiu-o na clavícula, obrigando-o a cair. Acto contínuo, um bastão fracturou-lhe a cabeça e uma mão gigantesca ergueu-o e segurou-o, ao mesmo tempo que punhos e botas cardadas lhe flagelavam o corpo impiedosamente. A agressão pareceu prolongar-se de forma interminável. Quando a dor se tornava insuportável e ele principiava a perder os sentidos, vertiam-lhe água fria no rosto para o espevitar. Num dado instante, afigurou-se-lhe descortinar o semblante do criado de Van der Merwe, Banda, mas a punição que lhe aplicavam obrigou-o a esquecer o pormenor.

Por último, nem a água fria conseguiu fazê -lo emergir da inconsciência.

Sentia o corpo em brasa. Alguém lhe raspava as faces com lixa e Jamie tentou em vão erguer a mão para protestar. Efectuou um esforço para abrir os olhos, mas o inchaço não lho permitiu. Conservava-se estendido, todas as fibras do corpo uivando de dor, ao mesmo tempo que tentava recordar-se onde estava. Moveu-se e a sensação desagradável repetiu-se. Estendeu a mão cegamente e sentiu o contacto de areia. O rosto encontrava-se pousado na areia quente. Com extrema lentidão, cada movimento traduzido numa agonia individual, conseguiu erguer-se de joelhos. Tentou enxergar por entre as pálpebras inchadas, mas só logrou divisar imagens confusas.

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Encontrava-se algures no meio do estéril Karroo, completa-mente despido. Apesar da hora matutina, os raios solares começavam a flagelar-lhe o corpo. Olhou em volta com desespero, em busca de comida e um pouco de água, mas não havia coisa alguma. Haviam-no deixado ali para que morresse. “Salomon van der Merwe e, evidentemente, o bartender, Smit”. Jamie ameaçara o holandês, que o castigara com a mesma facilidade como se se tratasse de uma criança. “Há-de descobrir que não sou um garoto”, prometeu Jamie a si próprio. “Deixei de o ser.

Transformei-me num vingador. Hão-de pagar o que fizeram!” O ódio que o percorria incutiu-Lhe forças para se pôr de pé. O simples acto de respirar constituía uma verdadeira tortura. Quantas vértebras lhe tinham fracturado? “É preciso cuidado, para que não perfurem os pulmões.” Tentou pôr-se de pé, mas caiu com um grito. A perna direita achava -se partida e conservava-se num ângulo inverosímil. Era -lhe impossível caminhar. Mas podia rastejar.

Jamie McGregor não fazia a mínima ideia de onde se encontrava. Deviam tê-lo levado para longe do caminho normalmente percorrido, para que só fosse localizado por hienas e aves de rapina. O deserto constituía um vasto ossário. Ele vira os esqueletos de corpos humanos após a passagem dos abutres. De repente, ouviu sobre a sua cabeça o bater sinistro de asas e acudiu-lhe uma onda de terror.

Estava impossibilitado de ver, mas notava o cheiro nauseabundo que exalavam.

Começou a rastejar.

Esforçou-se por concentrar o pensamento na dor. Difundia-se por todo o corpo e cada pequeno movimento originava torrentes de agonia. Se se deslocava de determinada maneira, a perna fracturada protestava de forma pungente. Se mudava de posição para não a sobrecarregar, eram as vértebras que lhe recordavam a sua condição precária. Não podia suportar a tortura de permanecer imóvel, nem a agonia de se movimentar.

Continuou a rastejar.

O bater das asas prosseguia sobre a sua cabeça, indicando que os abutres aguardavam pacientemente o momento propício

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para atacar. O seu espírito começou a vaguear. Encontrava -se na igreja de Aberdeen, com o trajo domingueiro, sentado entre os dois irmãos. A irmã, Mary, e Annie Cord usavam belos vestidos de Verão brancos, e a segunda olhava-o, sorridente. Jamie fez menção de se levantar para lhe ir falar, mas os irmãos impeliram-no para trás e principiaram a beliscá-lo. Os beliscos converteram-se em espasmos de dor excruciantes e ele voltou a encontrar-se no deserto, o corpo estropiado rastejando com lentidão. Entretanto, os abutres voavam cada vez mais baixo, impacientes.

Jamie tentou abrir os olhos, para ver se estavam perto, mas apenas conseguiu vislumbrar objectos indefinidos, que a imaginação febril convertia em hienas e chacais vorazes.

Recomeçou a rastejar, consciente de que no instante em que se detivesse lhe cairiam em cima. Ardia de febre e dor e o corpo era causticado pela areia escaldante. Apesar disso, não podia renunciar à luta enquanto Van der Merwe continuasse impune… enquanto estivesse vivo.

Acabou por perder toda a noção do tempo. Afigurava-se-Lhe que percorrera cerca de dois quilómetros, embora na realidade não tivesse avançado mais de dez metros, rastejando num círculo. Não podia ver onde estivera ou para onde se dirigia. O espírito concentrava-se numa única ideia: Salomon van der Merwe.

Terminou por imergir em inconsciência e foi acordado por uma agonia irresistível.

Alguém lhe tocava na perna, e ele necessitou de um momento para se recordar de onde estava e o que se passava. Por último, descerrou levemente um dos olhos inchados. Um abutre enorme atacava-lhe a perna, dilacerando a carne e comendo-a sem aguardar que morresse. Jamie tentou gritar, mas não conseguiu emitir o mínimo som. Arrastou-se freneticamente para a frente e sentiu o sangue morno brotar da perna, enquanto os vultos sombrios das aves de rapina o circundavam, na expectativa do momento final. Pressentiu que na próxima vez que perdesse o conhecimento não tornaria a acordar. No entanto, as forças esvaíam-se gradualmente, até que se imobilizou na areia.

Os abutres prepararam-se então para o festim.

Capítulo quarto Sábado era dia de mercado na Cidade do Cabo e as ruas achavam-se apinhadas de comerciantes em busca de negócios vantajosos, uma troca de impressões com amigos ou encontros de natureza romântica. Bóeres e franceses, soldados de uniformes coloridos e damas inglesas de saias em balão e blusas de pregas confraternizavam diante dos bazares montados nos largos de Braameonstein, Park Town e Burgersdorp. Havia de tudo à venda: mobiliário, cavalos e carruagens e fruta. Uma pessoa podia comprar vestidos e tabuleiros de xadrez, carne ou livros numa dezena de idiomas diferentes. Aos sábados, a Cidade do Cabo era uma feira ruidosa e animada.

Banda abria caminho por entre a multidão, sem pressa, preocupando-se em não estabelecer contacto visual com os brancos. Era muito perigoso. As ruas estavam pejadas de negros, indianos e mestiços, mas o predomínio pertencia à minoria branca, que Banda detestava. Aquela era a sua terra e os brancos os uillanders.

Havia muitas tribos na África Austral - Basutos, Zulos, Bechuanas e Matabele -, todas elas Bantos. O próprio termo “banto” derivava de abantu - “o povo”. Porém os Barolongs, a tribo de Banda, constituíam a aristocracia. Ele recordava -se das histórias que a avó lhe contava acerca do vasto reino negro que outrora dominara a África do Sul. O seu reino, a sua terra. E agora eram escravizados por um punhado de chacais. Os brancos tinham-nos impelido para territórios cada ve z mais exíguos, até que a sua liberdade fora corroída. A única maneira de um negro poder existir era mostrar-se astucioso e subserviente à superfície e alerta no íntimo.

Banda ignorava a idade que tinha, porque os nativos não dispunham de certificado de nascimento. A sua idade era medida pelos factos históricos conhecidos: guerras e batalhas, nascimento e morte de chefes importantes, cometas, tempestades e tremores de terra, migração de Adam Kok, morte de Chaka e revolução do abate de gado. Mas o número dos anos dele não interessava. Banda sabia que era filho de um chefe e estava destinado a fazer algo pelo seu povo. Os Bantos voltariam a erguer-se e a dominar. A ideia da sua missão fê-lo caminhar mais empertigado por um momento, até que se apercebeu do olhar de um branco cravado nele.

Banda encaminhou-se apressadamente para os arrabaldes da cidade, a zona atribuída aos negros. As residências espaçosas e as lojas atraentes não tardaram a ceder o lugar a cabanas de chapa metálica e choças humildes. Avançou por uma rua de terra batida, olhando com frequência por cima do ombro para se certificar de que não o seguiam. Por último, imobilizou-se diante de uma barraca de madeira, lançou uma derradeira olhadela em volta e entrou. Uma negra esquálida sentava-se numa cadeira ao canto, cerzindo um vestido, e Banda saudou-a com uma inclinação de cabeça, após o que prosseguiu em direcção ao quarto ao fundo.

Uma vez aí, contemplou o vulto deitado no catre.

Seis semanas antes, Jamie McGregor recuperara o conhecimento e vira-se estendido num catre desconhecido. As recordações foram reaparecendo gradualmente: o Karroo, o corpo estropiado, os abutres…

De súbito, Banda entrou no quarto e Jamie compreendeu que tencionava matá-lo.

Van der Merwe inteirara-se de que escapara com vida à agressão e enviara o criado para lhe aplicar o golpe de misericórdia.

- Porque não veio o teu dono pessoalmente? - articulou em voz rouca.

- Não tenho dono.

- Van der Merwe. Não foi ele quem te enviou?

- Não. Matava a ambos, se soubesse.

- Onde estou? - a situação parecia insensata a Jamie. - Quero saber onde estou.

- Na Cidade do Cabo.

- O quê?! Como vim cá parar?

- Trouxe-o eu.

Fixou os olhos negros por um momento, antes de inquirir:

- Porquê?

- Preciso de si. Quero vingar-me.

- Mas que?…

- Não é por mim - e Banda acercou-se uns passos, e continuando a meia voz: - Na verdade, Van der Merwe violou minha irmã. Ela morreu no momento do parto e tinha apenas onze anos.

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- Santo Deus! - balbuciou Jamie, horrorizado.

- Desde o dia da sua morte que procuro um branco para me ajudar. Encontrei-o naquele velho celeiro, na noite em que participei no seu espancamento, Mister McGregor. Levámo-lo para o Karroo e recebi instruções para o matar. Comuniquei aos outros que estava morto e fui buscá-lo assim que pude. Ia chegando demasiado tarde.

Jamie não conseguiu evitar um estremecimento de terror ao recordar-se das sinistras aves de rapina esvoaçando à sua volta.

- Quando apareci, os abutres preparavam -se para o devorar. Levei-o para a galera e escondi-o na cabana dos meus familiares. Um dos nossos médicos ligou-lhe o tronco por causa das vértebras fracturadas, cuidou da perna e dos outros ferimentos.

- E depois?

- Uma carruagem de familiares meus ia partir para a Cidade do Cabo e pedi-lhes que nos levassem. Delirou durante quase todo o caminho. Cada vez que adormecia, eu receava que não tornasse a acordar.

Jamie contemplou o homem que quase o assassinara. Necessitava de reflectir.

Não confiava nele… apesar de lhe ter salvo a vida, Banda pretendia ati ngir Van der Merwe por seu intermédio. “Isso pode resultar vantajoso para mais de uma pessoa”, decidiu. Mais do que tudo o resto no mundo, Jamie desejava que o holandês expiasse o roubo que cometera.

- Muito bem - assentiu por fim. - Descobrirei uma maneira de obrigar Van der Merwe a arrepender-se do que nos fez.

- Vai morrer? - Banda deixou transparecer uma sugestão de sorriso pela primeira vez.

- Não - replicou Jamie, entre dentes. - Vou viver.

Lenvantou-se da cama pela primeira vez naquela tarde, aturdido e fraco. A perna ainda não sarara por completo e movia-se coxeando um pouco. Quando Banda tentou ajudá-lo, repeliu-o.

- Larga-me. Tenho de me habituar a singrar pelos meus próprios meios - e enquanto o negro o observava atentamente, cruzou o quarto com lentidão e pediu:

- Arranja-me um espelho.

Banda comprazeu-o e Jamie ergueu-o à altura do rosto.

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Deparou-se-lhe um desconhecido. Os cabelos tinham-se tornado brancos como a neve e exibia uma barba irregular da mesma cor. O nariz fora fracturado e a cartilagem atingida torcera-o. Por seu turno, o semblante envelhecera vinte anos.

Havia sulcos profundos nas faces encovadas e uma cicatriz lívida atravessava-lhe o queixo lateralmente. No entanto, a maior alteração situava-se nos olhos. Era um olhar que presenciara demasiada dor e sentira os seus efeitos. Por fim, com um suspiro, pousou o espelho.

- Vou dar uma volta - anunciou num murmúrio.

- Lamento, Mister McGregor, mas não é possível.

- Porquê?

- Os brancos não costumam visitar esta zona da cidade, assim como os pretos nunca vão aos lugares que eles frequentam. Os vizinhos não sabem que se encontra aqui, pois trouxemo-lo de noite.

- Então, como posso sair?

- Trataremos disso esta noite.

Jamie começou a aperceber-se pela primeira vez do risco a que Banda se expusera por ele e, embaraçado, disse:

- Não tenho dinheiro. Preciso de me empregar.

- Arranjarei trabalho na estiva. Estão sempre a admitir homens - declarou o negro puxando de algumas moedas da algibeira. - Tome.

- Hei-de pagar-te - prometeu Jamie, aceitando-as.

- Pagará vingando minha irmã.

Era meia-noite quando Banda conduziu Jamie para fora da cabana. Este olhou em volta e viu que se encontrava no meio de um aglomerado de barracas e choças rudimentares. O solo, lamacento em virtude de uma chuvada recente, exalava um odor desagradável, e Jamie perguntou-se como pessoas tão altivas como Banda conseguiam passar a vida em semelhante ambiente.

- Não haverá?… - começou.

- Esteja calado - recomendou o companheiro, a meia voz. - A vizinhança é muito desconfiada.

Encontravam-se na orla da aldeia, quando Banda estendeu o braço e apontou, dizendo:

- O centro da cidade fica para aquele lado. Voltaremos a ver-nos nas docas.

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Jamie dirigiu-se à pensão em que se instalara quando chegara de Inglaterra e avistou Mrs. Venster na recepção.

- Queria um quarto - anunciou ele.

- Perfeitamente - declarou ela sorrindo e expondo o dente de ouro. - Sou Mistress Venster.

- Eu sei.

- Como? - estranhou. - Falou com alguém que tivesse estado cá?

- Não se recorda de mim? Fui seu hóspede, o ano passado.

A mulher examinou o rosto sulcado de rugas, o nariz torcido e a barba branca e meneou a cabeça.

- Nunca esqueço uma cara, meu amigo, e tenho a certeza de que vejo a sua pela primeira vez. Mas isso não significa que não possamos dar-nos bem. Os amigos tratam-me por “Dee-Dee”. Como se chama?

E Jamie ouviu a sua voz responder:

- Travis, lan Travis.

Na manhã seguinte foi procurar trabalho nas docas e o capataz observou:

- Precisamos de costas resistentes e receio que você seja muito velho para este género de trabalho.

- Mas tenho só dezanove… - Jamie interrompeu-se ao recordar-se do rosto que vira no espelho. - Deixe-me experimentar - propôs.

Foi admitido com o salário de nove xelins diários, para a carga e descarga dos navios que entrassem no porto. Pouco depois, inteirou-se de que Banda e os outros homens de cor recebiam seis.

Na primeira oportunidade que se lhe deparou, levou o negro para um canto isolado e disse:

- Temos de conversar.

- Aqui não, Mister McGregor. Há um armazém abandonado na extremidade das docas. Encontramo-nos lá, quando terminarmos o trabalho.

Banda já o aguardava, quando Jamie se apresentou no local indicado, e este pediu:

- Fala-me de Salomon van der Merwe.

- Que quer saber?

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- Tudo.

- Veio directamente da Holanda e, segundo o que me constou, a mulher morreu pouco depois e ele utilizou o dinheiro que ela possuía para se estabelecer em Klipdrift, onde enriqueceu à custa de chicanas sobre os pesquisadores.

- Do género daquela de que fui vítima?

- Isso não passa de uma das suas facetas. Os pesquisadores que têm sorte procuram-no para obterem um empréstimo destinado a explorar a mina e, antes que consigam descobrir a verdade, já passou tudo para as mãos dele.

- Nunca ninguém tentou reagir?

- Como? O responsável pelos serviços de registo trabalha para Van der Merwe.

Em conformidade com a lei, se um terreno não começa a ser explorado quarenta e cinco dias após a sua declaração, fica à disposição de quem lá chegar primeiro.

Esse indivíduo avisa o patrão, que não perde tempo em o confiscar. Por outro lado, as estacas de demarcação do terreno devem ser cravadas verticalmente.

Assim, se se inclinam ou caem, qualquer oportunista pode tomar posse dele.

Quando Van der Merwe avista algum que lhe agrada, manda lá um sicário derrubar as estacas durante a noite.

- Santo Deus!

- Tem um acordo com o bartender, Smit, que lhe envia pesquisadores potenciais.

Assinam um contrato com o holandês, que fica com todos os diamantes encontrados. Se o lesado protesta, há um grupo de gorilas que tratam de o reduzir ao silêncio.

- Essa parte já era do meu conhecimento - murmurou Jamie, com uma ponta de amargura. - Que mais?

- É um religioso fanático. Passa a vida a rogar pelas almas dos pecadores.

- E a respeito da filha?

- Miss Margaret? Tem um medo mortal do pai. Se se atrevesse a olhar para um homem, Van der Merwe matava ambos.

Aproximou-se da porta do armazém e contemplou o porto pensativamente por um momento, consciente de que havia muita coisa em que pensar.

- Voltaremos a conversar amanhã - decidiu por fim.

Foi na Cidade do Cabo que se deu conta do profundo cisma entre negros e brancos. Os primeiros não tinham quaisquer

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direitos além dos escassos que os segundos lhes concediam. Eram reunidos em arrabaldes que constituíam guetos donde só podiam sair para trabalhar para os brancos.

- Como suportam a situação? - perguntou Jamie, um dia.

- O leão faminto dissimula as garras. Modificaremos tudo isso no momento apropriado. O branco aceita o preto porque precisa dos seus músculos, mas tem de se habituar a aceitar-Lhe também os miolos. Quanto mais nos empurra para um canto, maior o medo que lhe inspiramos, porque sabe que um dia poderá haver discriminação e humilhação de sinal contrário, perspectiva que se recusa a admitir. Em todo o caso, sobreviveremos por causa do isiko.

- De quem?

- Não é uma pessoa. Não se pode explicar com facilidade, Mister McGregor. Isiko são as nossas raízes, por assim dizer, a sensação de pertencer a uma nação que deu o nome ao grandioso rio Zambeze. Há muitas gerações, os meus antepassados penetraram nas suas águas, despidos, com o seu gado à frente. Os mais fracos perderam-se, arrastados pela corrente caudalosa ou devorados pelos crocodilos, mas os sobreviventes emergiram do rio mais fortes e viris. Quando um banto morre, isiko requer que os seus familiares se retirem para a floresta, a fim de que o resto da comunidade não tenha de partilhar do seu desgosto. Isiko é o rancor do escravo que sofre, a convicção de que um homem pode olhar qualquer pessoa de frente e vale o mesmo que ela. Já ouviu falar de John Tengo Jabavu? - Banda pronunciou o nome com profunda reverência.

- Não.

- Há-de ouvir, Mister McGregor - afirmou. - Há-de ouvir - e mudou de assunto.

Jamie começou a sentir uma admiração crescente pelo negro. Ao princípio, imperou certa desconfiança entre os dois homens. Jamie necessitava de se habituar a confiar em quem quase o matara e Banda tinha de se resignar a aceitar um representante da raça sua inimiga desde longa data. Ao contrário da maioria dos negros que Jamie conhecera, o seu novo amigo denunciava certa cultura.

- Onde estudaste?

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- Em parte alguma. Trabalho desde c riança. O que aprendi foi-me transmitido por minha avó, que estava ao serviço de um professor bóer. Devo-lhe tudo o que sei.

Foi ao fim da tarde de um sábado que Jamie se inteirou da existência do deserto da Namíbia, na Grande Namacualândia, quando se encontrava, com Banda, no armazém abandonado das docas, compartilhando um estufado cozinhado pela mãe do negro.

- Quando conheceste Van der Merwe?

- Na época em que trabalhava na praia dos diamantes do deserto da Namíbia, que lhe pertence de sociedade com dois outros indivíduos. Ele acabava de roubar a sua parte a um pesquisador inexperiente e tinha ido visitar o local.

- Se é tão rico, porque continua com a loja?

- É aí que atrai os novos pesquisadores, para os ludibriar. Jamie evocou intimamente a facilidade com que se deixara burlar. Na verdade, fora de uma ingenuidade incrível. Recordava-se da expressão do rosto oval de Margaret quando dissera: “Meu pai pode ajudá-lo. Conhece todos os truques.” Supusera-a uma criança até que lhe notara os seios e… De súbito, ergueu-se de um salto, com um sorriso malicioso.

- Explica-me pormenorizadamente como começaste a trabalhar para ele.

- Um dia, apareceu na praia com a filha (tinha uns onze anos, na altura), que a dado momento se aproximou demasiado da água e uma onda arrebatou-a.

Mergulhei imediatamente e trouxe-a para terra. Receei que Van der Merwe me matasse.

- Porquê?

- Não por ser negro, mas pela minha condição de homem a rodear-lhe a cintura com o braço. Não suporta a ideia de alguém tocar na filha. Um dos presentes acabou por o acalmar e explicar que eu tinha salvo a vida à rapariga. Em face disso, levou-me para Klipdrift como seu criado pessoal - Banda hesitou um momento e acrescentou: - Dois meses depois, recebi a visita de minha irmã, que era da mesma idade de Margaret.

Seguiu-se uma pausa, que Jamie respeitou por reconhecer que nada podia dizer para evitar as recordações pungentes do seu interlocutor.

Finalmente, este último quebrou o silêncio:

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- Mais valia que tivesse ficado no deserto da Namíbia. O trabalho era fácil.

Rastejávamos pela areia para recolher os diamantes e colocá-los em pequenas latas.

- Um momento. Queres dizer que estão espalhados na areia?

- Exacto. Mas não tenha ideias alucinadas. Ninguém se pode aproximar de lá. É no oceano e há vagas de dez metros de altura. Eles nem se dão ao trabalho de vigiar a costa. Todos os que tentaram entrar no local pelo mar perderam a vida nos recifes.

- Deve haver outra possibilidade de acesso.

- Não. O deserto prolonga-se por todo o litoral.

- E quanto à entrada no campo de diamantes?

- Há guardas postados numa torre e uma vedação de arame farpado. Em volta, abundam os homens armados e cães capazes de reduzir uma pessoa a pedaços.

Além disso, colocaram minas no solo que fazem ir pelos ares quem as pise por não conhecer a sua disposição.

- Que tamanho tem o campo?

- Uns sessenta quilómetros.

“Sessenta quilómetros de diamantes espalhados pela areia…” - Meu Deus!

- Não é o primeiro que fica excitado com os campos de diamantes na Namíbia.

Recolhi o q ue restava de indivíduos que se aproximaram de barco e foram dilacerados pelos recifes. Vi o que as minas podem fazer ao homem que as pisa inadvertidamente e o estado em que os cães deixam aqueles que ficam ao alcance dos seus dentes. Não pense nisso, Mister McGregor. Não existe qualquer entrada possível.

Naquela noite, Jamie não conseguiu dormir. Acudiam-lhe constantemente ao espírito imagens de um extenso areal coberto de diamantes enormes pertencentes a Van der Merwe. Pensava no mar, com os seus recifes aparentemente intransponíveis, nos cães vorazes, nos guardas e nas minas. Não temia o perigo nem a morte. Receava apenas perder a vida antes de se vingar de Salomon van der Merwe.

Na segunda-feira seguinte, Jamie dirigiu-se a uma livraria e comprou um mapa da região da Grande Namacualândia.

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Localizou sem dificuldade a praia na costa atlântica, entre Lude-ritz, ao norte, e o estuário do rio Orange, ao sul. A área achava-se assinalada com a advertência a vermelho: “Sperr-gebiet” (Interdita).

Examinou todos os pormenores repetidamente. Havia três mil milhas de oceano da América do Sul até à África do Sul, sem qualquer obstáculo que impedisse as vagas, pelo que toda a sua fúria se concentrava nos mortais recifes da costa do Atlântico Sul. Quarenta milhas mais abaixo, existia uma área acessível. “Deve ter sido daí que os pobres bastardos partiram nas suas embarcações em direcção à zona proibida”, deduziu Jamie. Ao analisar o mapa, compreendia sem dificuldade a razão pela qual a costa não se achava vigiada: os recifes tornavam impossível qualquer tentativa de desembarque.

Em seguida, concentrou-se no acesso interior ao campo de diamantes. Segundo Banda, encontrava -se protegido por vedação de arame farpado e patrulhado permanentemente por homens armados. Junto da entrada, havia uma torre de observação. Mesmo que uma pessoa conseguisse introduzir-se no local, restariam as minas e cães implacáveis.

No dia seguinte, Jamie perguntou a Banda:

- Há algum mapa do campo?

- Do deserto da Namíbia? Estão todos em poder dos proprietários, que transmitem instruções aos pesquisadores sobre os locais a explorar. Avançam em fila indiana, para que não pisem as minas - e a expressão do negro toldou-se por um momento. - Um dia, meu tio, que se encontrava à minha frente, tropeçou numa pedra e caiu em cima de uma mina. Não foi possível recolher o suficiente dele para entregar à família.

Fez uma pausa, enquanto Jamie estremecia involuntariamente.

- Além disso, há o mis do mar, Mister McGregor. Rola do oceano e varre o deserto até às montanhas, arrastando tudo à sua passagem. Quem é apanhado não se atreve a esboçar um movimento. Os mapas não servem então para nada, porque não se consegue enxergar um palmo diante do nariz. A única coisa a fazer é ficar sentado, muito quieto, até o mis passar.

- Quanto tempo dura?

- Depende - e Banda encolheu os ombros. - Por vezes, algumas horas, mas também se pode manter por dias.

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- Alguma vez viste um mapa das minas?

- Guardam-nos muito bem. Acredite que não é possível levar a cabo o que se lhe meteu na cabeça. De vez em quando, um trabalhador tenta escapar-se com um diamante. Há uma árvore especial para enforcar os imprudentes. Serve de aviso para quem se lembrar de roubar a companhia.

A situação parecia absolutamente desencorajadora. Jamie reco nhecia que, mesmo que conseguisse introduzir-se no campo de diamantes, não poderia sair.

Banda tinha razão. Era preferível não pensar mais no assunto.

Não obstante, no dia seguinte, perguntou:

- Como consegue Van der Merwe evitar que os trabalhadores roube m diamantes, no final dos turnos de serviço?

- São revistados - explicou o negro. - Têm de se despir por completo, para que os examinem minuciosamente. Vi alguns produzirem incisões nas pernas para os ocultar. Outros extraem um ou dois dentes e substituem-nos por diamantes - fixou um olhar grave em Jamie. - Se tem amor à vida, esqueça-se disso.

Todavia, por mais que se esforçasse, a ideia regressava -lhe ao espírito com insistência: os diamantes de Van der Merwe encontravam-se dispersos na areia, à espera que alguém os levasse. E esse alguém era ele.

A solução acudiu à mente de Jamie naquela noite e foi com dificuldade que conteve a impaciência até voltar a encontrar-se com Banda, ao qual pediu, sem qualquer preâmbulo:

- Fala-me das embarcações em que tentaram desembarcar.

- Que quer saber?

- Tudo o que te ocorrer. De que tipo eram?

- De todos, praticamente. Uma escuna. Um rebocador. Uma lancha motorizada.

Um veleiro. Houve mesmo quatro homens que tentaram a sorte num junco de remos. Quando eu trabalhava lá, houve meia dúzia de tentativas. Os recifes reduziram-nos a fragmentos e os tripulantes morreram afogados.

Jamie encheu os pulmões de ar antes de inquirir:

- Alguém experimentou numa jangada?

- Numa jangada? - ecoou Banda, arregalando os olhos.

- Sim. Até agora, ninguém conseguiu desembarcar

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porque o fundo das embarcações foi rasgado pelos recifes. Ora, uma jangada desliza na crista das ondas por cima deles.

O negro conservou-se silencioso por um longo momento e, quando voltou a falar, a voz continha uma inflexão diferente.

- Sabe uma coisa, Mister McGregor? Talvez seja uma ideia aproveitável.

Tudo principiou como um jogo, uma solução possível de um problema insolúvel.

No entanto, à medida que trocavam impressões, os dois homens sentiam-se dominados pelo entusiasmo. Assim, aquilo que começara como mero tópico de uma especulação ociosa passou a assumir a configuração concreta de um plano de acção. Como os diamantes se encontravam à superfície da areia, não se tornava necessário qualquer equipamento. Poderiam construir a jangada, munida de uma vela, na costa livre, sessenta quilómetros ao sul da Sperrge-biet, e utilizála à noite, a coberto de olhares indiscretos. Não havia minas na área desprotegida, e os guardas e patrulhas só actuavam no interior. Por conseguinte, os dois homens poderiam recolher os diamantes que quisessem, sem o perigo de serem interceptados.

- Podemos raspar-nos antes de amanhecer com as algibeiras cheias de diamantes de Van der Merwe - asseverou Jamie.

- Como saímos?

- Da mesma maneira que entrámos. Impelimos a jangada com remos sobre os recifes, até ao largo, içamos a vela e regressamos sem qualquer impedimento.

Em face dos argumentos persuasivos de Jamie, as dúvidas de Banda começaram a dissipar-se. Tentou descobrir óbices na ideia, mas via todas as objecções refutadas de forma convincente. O plano seria bem sucedido. A faceta mais atraente consistia na sua simplicidade e no facto de não exigir o mínimo investimento. Apenas uma dose elevada de coragem.

- Só precisamos de uma bolsa grande para trazer os diamantes - declarou Jamie.

- É melhor levarmos duas - opinou Banda, com um sorriso.

Na semana seguinte, abandonaram o trabalho nas docas

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e seguiram num transporte rudimentar para Port Nolloth, uma povoação costeira sessenta quilómetros ao sul da área proibida que lhes interessava.

Chegados, olharam em volta. A localidade era pequena e primitiva, com tendas, cabanas de chapa ondulada, algumas lojas e uma praia de aspecto primitivo que parecia estender-se interminavelmente. Não havia recifes naquela área e as ondas desfaziam-se suavemente na areia. Era o lugar ideal para lançar a jangada à água.

Não existia qualquer hotel, mas Jamie conseguiu que lhe alugassem um pequeno quarto particular, enquanto Banda se instalava na zona destinada aos negros.

- Temos de descobrir um local para construir a jangada em segredo - indicou Jamie. - Não convinha nada que nos denunciassem às autoridades.

Naquela tarde, descobriram uma velha arrecadação abandonada, que escolheram para o fim em vista.

- Antes de iniciarmos o trabalho, compre uma garrafa de uísque - aconselhou Banda.

- Para quê?

- Depois verá.

Na manhã seguinte, Jamie foi visitado pelo chefe da Polícia do distrito, um indivíduo de faces rubicundas, expressão grave e olhar congestionado, indicativo de inclinação para as bebidas alcoólicas.

- Bom dia! Ouvi dizer que tinha chegado um forasteiro e resolvi vir dar-lhe as boasvindas.

Sou o chefe Mundy. - lan Travis - replicou Jamie.

- Está de passagem para o Norte, Mister Travis?

- Não, para o Sul. Sigo com o meu empregado para a Cidade do Cabo.

- Estive lá, uma vez. Achei-a muito grande e barulhenta.

- Sou da mesma opinião. Aceita uma bebida?

- Não costumo beber em serviço - Mundy fez uma pausa e acrescentou: - Mas posso abrir uma excepção.

- Muito bem.

Jamie foi buscar a garrafa de uísque, perguntando a si próprio como conseguira Banda prever a situação. Em seguida, verteu um pouco num copo e este ndeu-o ao visitante.

- Obrigado, Mister Travis. Não me acompanha?

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- Estou proibido de beber por causa da malária. É por isso que sigo para a Cidade do Cabo. Tenho de consultar um especialista. Fiz uma pausa aqui, para recompor as forças. As viagens cansam-me com facilidade.

- Acho-o com aspecto saudável - disse Mundy, que observava o interlocutor atentamente.

- Havia de me ver quando tenho um ataque.

- Pode ser - aquiesceu, vendo Jamie pegar na garrafa, Em seguida, esvaziou o copo pela segunda vez e levantou-se: - Tenho de ir à vida. Disse que estava aqui apenas de passagem?

- Partirei assim que me sentir mais forte.

- Voltarei na sexta-feira, para trocarmos mais algumas palavras.

Naquela noite, Jamie e Banda iniciaram os trabalhos na arrecadação abandonada, e o primeiro perguntou:

- Alguma vez construíste uma jangada?

- Para ser franco, Mister McGregor, não.

- Nem eu - e os dois homens entreolharam-se, embaraçados. - Será muito difícil?

Apoderaram-se de quatro bidões de duzentos litros, vazios, das traseiras do mercado, e levaram -nos para a arrecadação. Depois de os reunirem, dispuseramnos num rectângulo e colocaram um caixote, também vazio, em cima de cada um.

- Não se parece muito com uma jangada - observou Banda, com uma expressão de dúvida.

- Ainda não está pronta - esclareceu Jamie.

Como não dispunham de tábuas, cobriram a parte de cima com o que se achava ao seu alcance, ramos e folhas de árvores, que prenderam fortemente com cordas.

No final, o negro contemplou o resultado e declarou: - Continua a não se parecer com uma jangada.

- Ficará com melhor aspecto quando montarmos a vela - garantiu Jamie.

Improvisaram um mastro com um tronco caído e aproveitaram dois ramos de extremidades largas para remos.

Foi Banda quem, ao fim da tarde, descobriu a vela, um pano azul enorme.

- Isto serve, Mister McGregor?

- Perfeitamente. Onde o arranjaste?

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- É melhor não querer saber. Bastam os riscos em que já nos envolvemos.

A montagem final desenrolou-se sem dificuldades e a jangada ficou pronta para enfrentar o mar.

- Partimos às duas da madrugada, quando estiverem todos a dormir - decidiu Jamie. - Até lá, convém que descansemos um pouco.

Contudo, nenhum deles conseguiu dormir, excitados com a aventura em perspectiva.

Encontraram-se na arrecadação à hora combinada, dominados por um misto de ansiedade e receio dissimulado. Preparavam-se para empreender uma operação que lhes proporcionaria a fortuna ou a morte. Não havia meio-termo.

- São horas - anunciou de súbito Jamie, em voz ligeiramente trémula.

Transpuseram a saída com prudência. Não se registava o mínimo ruído. Soprava uma brisa suave e o céu apresentava-se completamente limpo de nuvens, com a Lua em quarto crescente sobre as suas cabeças. “Óptimo…”, reflectiu Jamie. “Não há muita luz para que nos vejam.” O horário previsto era complicado pelo facto de necessitarem de abandonar a povoação durante a noite, para que ninguém se apercebesse da sua partida, e chegar ao campo de diamantes na noite seguinte, a fim de se introduzirem nele e regressarem ao mar, sem novidade, antes da alvorada.

- A corrente de Benguela deve conduzir-nos até aos campos de diamantes amanhã ao fim da tarde - calculou Jamie. - Mas não podemos viajar durante o dia.

Temos de nos manter ao largo até anoitecer.

- Podemos ocultar-nos numa das ilhotas ao longo da costa.

- Quais ilhotas?

- São às dezenas. Mercury, Ichabod, Plum Pudding…

- Plum Puddingl - ecoou com estranheza.

- Também há a Roast Beef.

- Não vêm no mapa - declarou, depois de o consultar.

- São formadas por guano. Os ingleses utilizam os excrementos das aves para adubo.

- Vive lá alguém?

- É impossível, por causa do mau cheiro. Há lugares em

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que o guano tem dezenas de metros de altura. O Governo recorre aos desertores do exército e presos para o recolher. Alguns morrem nas ilhotas e os corpos ficam lá a apodrecer.

- Então, é o lugar ideal para nos escondermos - decidiu Jamie.

Procedendo com prudência, os dois homens abriram a porta da arrecadação e principiaram a erguer a jangada. No entanto, era demasiado pesada para que a conseguissem mover. Tentaram empurrá-la, transpirando copiosamente, mas debalde.

- Volto já - anunciou Banda, subitamente.

Meia hora depois, reaparecia com um toro de dimensões apreciáveis.

- Vamos servir-nos disto. Quando eu levantar uma das extremidades, introduza -o por baixo.

Jamie surpreendeu-se com o vigor do companheiro, ao vê-lo erguer um dos lados da jangada. Acto contínuo, enfiou o toro no espaço e fizeram rolar o conjunto por cima. Era um trabalho árduo e quando alcançaram a beira-mar achavam-se ambos alagados em suor. Além disso, a operação tardara muito mais do que Jamie previra e estava prestes a amanhecer. Impunha-se que partissem, antes que os habitantes da aldeia os descobrissem e informassem as autoridades das suas actividades. Por conseguinte, Jamie apressou-se a montar a vela e inspeccionou tudo para se certificar de que podiam partir. Tinha a vaga impressão de que se esquecia de alguma coisa e, de repente, fez-se-lhe luz no espírito e soltou uma gargalhada.

- Que foi? - quis saber Banda, intrigado.

- Da outra vez que procurei diamantes, acompanhava-me uma tonelada de equipamento. Agora, só levo uma bússola. Parece fácil de mais.

- Não creio que o nosso problema seja esse, Mister McGregor.

- É altura de me tratares por Jamie.

- Não haja dúvida de que vem de um país distante - e o negro meneou a cabeça, admirado. - Enfim, ninguém me vai enforcar por experimentar uma vez - e tentou pronunciar o nome em surdina, antes de o fazer em voz alta: - Jamie.

- Vamos aos diamantes!

Impeliram a jangada para a água, saltaram para cima e começaram a remar.

Necessitaram de uns minutos para se

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adaptar às oscilações da estranha embarcação. Dir-se-ia que montavam uma rolha gigantesca, mas em breve dominavam a situação. A jangada respondia perfeitamente às manobras, deslocando-se para norte com a corrente impetuosa.

Por fim, Jamie içou a vela e afastaram -se para o largo. Quando os habitantes da aldeia principiaram a surgir das cabanas, os dois homens já se encontravam para além do horizonte.

- Conseguimos! - exclamou Jamie.

- Ainda é cedo para cantar vitória - e Banda mergulhou a mão na fria corrente de Benguela. - Estamos no início.

Continuaram a singrar para o Norte, passando ao largo da baía Alexander e da embocadura do rio Orange sem descortinarem sinais de vida, à parte bandos de corvos marinhos e alguns flamingos. Embora dispusessem de latas de carne e arroz, fruta e dois cantis de água, estavam demasiado nervosos para comer.

Jamie recusava-se a permitir que a imaginação se concentrasse nos perigos que os aguardavam, mas Banda não o podia evitar, sobretudo porque os conhecia por experiência própria. Recordava-se dos guardas brutais munidos de espingardas, dos cães e das minas e perguntava-se como fora possível que se tivesse deixado arrastar para aquela aventura. Lançando uma olhadela ao escocês, reflectiu: “Ainda é mais parvo que eu. Se as coisas correrrem mal, morrerei por minha irmã.

Que motivo o leva a sacrificar a vida?”

Os tubarões surgiram cerca do meio-dia. Eram uns seis, as barbatanas cortando a água à medida que se aproximavam da jangada.

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