Com uma ponta de hesitação, Jamie estendeu um dedo e o bebé apressou-se a segurá-lo com ambas as mãos. Era forte como um touro! Naquele instante, o rosto da criança assumiu uma expressão tensa e ele notou um odor acre.
- Mistress Talley!
- Que… que foi? - balbuciou ela, alarmada, apoiando-se no cotovelo.
122
- O bébé necessita de atenção. Tenho de ser eu a fazer tudo, nesta casa?
E Jamie McGregor afastou-se com passos firmes.
- Percebe alguma coisa de bebés, David?
- Em que sentido? - perguntou David Blackwell.
- Com o que gostam de brincar e coisas do género.
- Julgo que gostam de guizos.
- Compre meia dúzia.
- Muito bem.
Nada de perguntas desnecessárias. Jamie gostava de semelhantes atitudes e estava convencido de que o jovem americano tinha um futuro prometedor à sua frente.
Naquela noite, quando Jamie chegou a casa, Mrs. Talley apressou-se a procurálo.
- Queria pedir desculpa por aquilo de ontem, Mister McGregor. Não compreendo como não acordei. O bebé deve ter gritado horrivelmente para que o ouvisse do seu quarto.
- Não se preocupe com isso - replicou Jamie, generosamente. - O essencial é que um de nós se apercebeu - estendeu o embrulho à governanta. - São guizos para ele se entreter. Não se deve divertir muito, prisioneiro no berço todo o dia.
- Não está prisioneiro. Levo -o a sair.
- Onde?
- Ao jardim. - Enrugou a fronte por um momento e observou:
- Ontem à noite, não me pareceu com bom aspecto. Não covinha nada que adoecesse antes de a mãe o vir buscar.
- Decerto que não.
- Talvez não fosse má ideia eu dar-lhe outra olhadela.
- Quer que o traga?
- Se não se importa, Mistress Talley!
A mulher afastou-se, para reaparecer decorridos uns minutos, com o bébé nos braços.
- Não lhe noto nada de anormal.
- Bem, é possível que me enganasse. Dê-mo cá. Jamie pegou no filho pela primeira vez e a sensação que o invadiu colheu-o totalmente despreve nido. Dir-seia que aguardava aquele momento desde longa data, sem se aperceber
123
conscientemente do facto. Era carne da sua carne que tinha nos braços, o seu filho, Jamie McGregor, Jr. Para que servia construir um império, uma dinastia, possuir diamantes, ouro e caminhos-de-ferro, se não existia alguém a quem transmiti-los? “Tenho sido um insensato!” Só agora se inteirava daquilo que lhe faltava. O ódio cegara-o ao ponto de ignorar os verdadeiros valores da vida. Ao contemplar o minúsculo rosto e as mãos delicadas que seguravam um guizo azul, sentiu dissipar-se uma dureza que até então se lhe alojara no âmago da alma.
- Leve o berço de Jamie para o meu quarto, Mistress Talley.
Três dias mais tarde, quando Margaret se apresentou à entrada da moradia de Jamie, a governanta anunciou:
- Mister McGregor encontra -se no escritório da firma, mas pediu-me que o mandasse chamar quando viesse reclamar o bebé. Deseja falar-lhe.
A rapariga aguardou na sala, com o pequeno Jamie nos braços, do qual sentira saudades quase excruciantes. Durante aqueles oito dias, por várias vezes estivera prestes a perder a coragem e a regressar a Klipdrift, receando que tivesse acontecido alguma coisa ao filho, vítima de uma doença grave ou acidente. Não obstante, conseguira resistir e o seu plano resultara. Jamie desejava falar-lhe!
Tudo se harmonizaria. Passariam a viver juntos os três.
No instante em que ele apareceu, Margaret voltou a experimentar o acesso de emoção familiar. “Amo-o tanto, meu Deus!” - Olá, Maggie.
- Olá, Jamie - murmurou, com um sorriso radioso de felicidade.
- Quero o meu filho.
- É natural - articulou, sentindo o coração cantar de alegria. - Nunca duvidei disso.
- Providenciarei para que receba uma educação esmerada. Desfrutará de todas as vantagens que lhe posso proporcionar, e, naturalmente, tomarei as medidas necessárias para que não te falte nada.
- Não… não compreendo - balbuciou, perplexa.
- Disse que quero o meu filho.
124
- Pensei… isto é… que tu e eu…
- Não. Só me interessa a criança.
- Muito bem - acudiu-lhe cólera repentina. - Não permitirei que mo roubes.
Jamie contemplou-a em silêncio por um momento e tomou uma resolução.
- Nesse caso, optaremos por uma situação de compromisso. Podes ficar aqui com Jamie. Serás a sua… preceptora - apercebendo-se da expressão irredutível da interlocutora, inquiriu: - Que pretendes, afinal?
- Que o meu filho tenha um nome - declarou Margaret, em tom de desafio. - O nome do pai.
- De acordo. Adopto-o.
- Adoptas o meu bebé? De modo algum. Não contes com isso. Fazes-me pena. O grande Jamie McGregor, com todo o seu dinheiro e poder, no fundo não tem nada.
És merecedor de compaixão.
Ele ficou como que petrificado, enquanto a rapariga rodava nos calcanhares e abandonava a moradia, com o filho nos braços.
Na manhã seguinte, Margaret iniciou os preparativos para partir rumo à América.
- A fuga não resolve nada - observou Mrs. Owens.
- Não fujo. Limito-me a seguir para um lugar onde eu e o meu filho possamos iniciar vida nova.
Margaret decidira que não podia sujeitar-se e ao bebé à humilhação que Jamie McGregor lhes oferecia.
- Quando tencionas partir?
- O mais depressa possível. Tomaremos a diligência de Worcester e depois o comboio para a Cidade do Cabo. Economizei dinheiro suficiente para ir até Nova Iorque.
- É uma viagem longa.
- A distância não me assusta. Não chamam à América a terra das grandes oportunidades? É precisamente do que necessitamos.
Jamie sempre se orgulhara de permanecer calmo nas situações difíceis, mas agora gritava com todos. O escritório da firma constituía um fulcro de rugidos quase permanentes. Nada do que o pessoal fazia lhe agradava. Vociferava e
125
protestava contra tudo, incapaz de se dominar. A breve conversa com Margaret não lhe abandonava o pensamento. “Maldita mulher!” Era de prever que tentaria forçá-lo a desposá-la. Revelava-se ardilosa como o pai. Ele não procedera como a situação exigia. Dissera que tomaria as medidas necessárias para que não lhe faltasse nada, mas não especificara. Devia ter-lhe oferecido dinheiro. Mil libras… dez mil… mais, se fosse caso disso.
Por fim, mandou chamar David Blackwell e informou:
- Vou confiar-lhe uma missão delicada.
- Perfeitamente.
- Quero que procure Miss Van der Merwe e lhe ofereça vinte mil libras em meu nome. Ela saberá o que pretendo em troca - Jamie preencheu um cheque, pois há muito que aprendera a vantagem de negociar com dinheiro à vista. - Entregue -lhe isto.
- Muito bem.
O rapaz regressou transcorridos quinze minutos e restituiu o cheque ao patrão, agora rasgado em dois.
- Obrigado, David - proferiu Jamie, sentindo um calor desagradável nas faces.
Era óbvio que Margaret desejava mais dinheiro. Pois bem, dar-lho-ia. No entanto, desta vez ele próprio se ocuparia do assunto.
Naquela tarde, dirigiu-se à pensão de Mrs. Owens e anunciou:
- Quero falar com Miss Van der Merwe.
- Não é possível. Vai a caminho da América.
- Que me diz? - sentiu uma impressão pungente, como se acabassem de o socar no estômago. - Quando partiu?
- Hoje ao meio-dia, na diligência de Worcester, com o filho.
O comboio na estação de Worcester achava-se superlotado, com os assentos e corredores repletos de passageiros ruidosos que se destinavam à Cidade do Cabo. Havia comerciantes com as esposas, caixeiros-viajantes, pesquisadores, cafres, soldados e marinheiros que regressavam às suas unidades após períodos de licença. Muitos viajavam de comboio pela primeira vez, o que constituía mais um motivo para exteriorizarem a euforia. Margaret conseguira obter lugar junto de
126
uma janela, onde o pequeno Jamie não corria o perigo de ser esmagado pela multidão. Sabia que teria de enfrentar privações e mesmo perigos antes de obter uma situação estável. Onde quer que se instalasse, seria uma mãe solteira, um ultraje à sociedade. Apesar disso, encontraria um meio de assegurar uma vida decente ao filho. Por fim, ouviu o empregado da estação anunciar a partida e, quase no mesmo instante, ergueu os olhos e deparou-se-lhe Jamie no compartimento.
- Qual é a tua bagagem? - perguntou em tom peremptório. - Vais desembarcar imediatamente.
“Continua convencido de que me pode comprar…”, reflectiu ela, que redarguiu:
- Quanto me ofereces, desta vez?
Ele contemplou o filho, que dormia tranquilamente nos braços da mãe, e articulou com serenidade:
- Ofereço-te o casamento.
Capítulo nono Casaram três dias depois, numa cerimónia rápida e íntima, tendo David Blackwell como única testemunha.
Durante a execução das formalidades, Jamie McGregor sentia-se dominado por emoções estranhas. Habituara-se a dominar e manipular os outros, mas desta vez o manipulado fora ele. Lançou um olhar fugaz a Margaret, a seu lado, quase bela, e recordou a sua paixão e abandono. No entanto, tratava-se apenas de um facto do passado, nada mais, sem ardor nem emoção. Ele utilizara-a como um instrumento de vingança e ela proporcionara-lhe um herdeiro.
Por último, o sacerdote proferiu:
- Declaro-os marido e mulher - voltou-se para Jamie. - Pode beijar a noiva.
Ele inclinou-se e pousou levemente os lábios na face de Margaret, após o que murmurou:
- Vamos para casa.
Uma vez na moradia, conduziu-a a um quarto de uma das alas e explicou:
- Os teus aposentos.
127
- Compreendo.
- Admitirei outra governanta e Mistress Talley ocupar-se-á de Jamie. Se necessitares de alguma coisa, entende-te com David Blackwell.
Ela vacilou ligeiramente, como se acabasse de ser esbofeteada. Tratava -a como uma criada. Todavia, isso carecia de importância. “Meu filho tem um nome. Não ambiciono nada mais.”
Jamie não jantou em casa. Margaret esperou demoradamente, até que se sentou à mesa, só. Naquela noite, conservou-se acordada na cama, consciente de todos os sons, até que, às quatro da madrugada, acabou por adormecer. O seu último pensamento consistiu em especular acerca de qual das pequenas de Madame Agnes teria sido preferida por Jamie.
Se as relações dela com o marido não se alteraram após o casamento, a atitude dos habitantes de Klipdrift sofreu uma transformação radical. De um dia para o outro, Margaret passou de pária a árbitro social. A maioria da população dependia, de uma maneira ou de outra, de Jamie McGregor e da Kruger-Brent, Ltd. Por conseguinte, foi decidido por unanimidade que, se ele aceitara Margaret van der Merwe, o exemplo devia ser seguido. Agora, cada vez que ela levava o filho a passear, deparavam-se-lhe sorrisos e saudações cordiais. Por outro lado, os convites afluíam com abundância - para participar em reuniões de beneficiência e incorporar-se em comissões cívicas. Quando mudava de penteado, dezenas de mulheres se apressavam a imitá -la. Se comprava um vestido amarelo, essa cor adquiria preferência geral imediata. Ela, porém, encarava as adulações do mesmo modo que resistira à hostilidade: com dignidade.
Jamie aparecia em casa unicamente para passar o tempo com o filho, enquanto a sua atitude para com Margaret se mantinha distante e polida. Todas as manhãs, ao pequeno-al-moço, ela desempenhava as funções de esposa feliz perante o pessoal doméstico, apesar da indiferença glacial do homem sentado à sua frente.
Todavia, quando ele saía, recolhia ao quarto alagada em transpiração, furiosa consigo mesma. Que acontecera ao seu amor-próprio? No fundo, sabia que continuava a amar Jamie. “Amá-lo-ei sempre, e que Deus me ajude.”
128
Jamie encontrava-se na Cidade do Cabo em visita de negócios, quando, ao sair do Royal Hotel, um cocheiro negro ofereceu:
- Carruagem, senhor?
- Não, obrigado. Irei a pé.
- Banda pensava que aceitaria o convite.
- Banda? - ecoou Jamie, detendo-se e fitando o homem com intensidade.
- Exactamente, Mister McGregor.
Decidiu subir para a carruagem, que o cocheiro pôs em movimento com prontidão, e reclinou-se no assento, evocando Banda, a sua coragem e amizade. Tentara localizá -lo por várias vezes nos últimos dois anos, sem resultado, e agora acudia ao seu encontro.
O negro conduziu a viatura na direcção das docas, e Jamie compreendeu imediatamente aonde se dirigiam. Quinze minutos depois, detiveram-se diante de um armazém deserto, onde ele e Banda outrora haviam planeado a sua a ventura na Namíbia. “Éramos uns jovens intrépidos”, reconheceu, com uma ponta de saudade, enquanto se apeava e aproximava da entrada. Banda encontrava-se à sua espera. Parecia exactamente o mesmo, com a diferença de que se achava vestido de forma irrepreensível.
Conservaram-se imóveis por um momento, sorrindo, até que se abraçaram.
- Tens um ar próspero - observou Jamie.
- A vida não me tem corrido mal - admitiu o outro. - Comprei aquela herdade que tinha mencionado, casei, nasceram-nos dois filhos e cultivo trigo e avestruzes.
- Avestruzes?
- As penas dão muito dinheiro.
- Efectuei numerosas diligências para te encontrar.
- Tenho estado muito ocupado - o negro assumiu um tom confidencial. - Queria preveni-lo de uma coisa. Vai enfrentar problemas.
- De que género?
- O capataz do campo da Namíbia, Hans Zimmerman, não é boa rês. Os operários odeiam-no e falam em abandonar o trabalho. Se o fizerem, os guardas tentarão impedi-los e haverá tumultos - Banda fez uma pausa, sem desviar os olhos do interlocutor. - Lembra-se de me referir a John Tengo Javabu?
129
- Sim, um dirigente político. Li algumas coisas a seu respeito. Parece que anda a levantar uma donderstorm.
- Sou um dos seus seguidores.
- Compreendo - Jamie inclinou a cabeça e prometeu: - Verei o que é possível fazer.
- Óptimo. Tornou-se um homem poderoso. Congratulo-me com isso.
- Obrigado, Banda.
- E tem um belo rapaz.
- Como sabe? - inquiriu, surpreendido.
- Gosto de estar ao corrente da vida dos meus amigos - o negro estendeu a mão. - Tenho de comparecer a uma reunião. Direi aos meus correligionários que a situação será rectificada na Namíbia.
- Sim, providenciarei nesse sentido sem demora - os dois homens despediram-se com cordialidade. - Quando voltarei a ver-te?
- Irei aparecendo. Não se livra de mim com facilidade - declarou Banda, sorrindo.
Quando regressou a Klipdrift, Jamie mandou chamar David Blackwell e perguntou:
- Tem havido problemas no campo da Namíbia?
- Não, Mister McGregor. No entanto, constou-me que talvez haja em breve.
- O capataz de lá é Hans Zimmerman. Averigue se maltrata os operários e, em caso afirmativo, ponha cobro a isso. Trate do assunto pessoalmente.
- Partirei de manhã.
Quando chegou ao campo de diamantes da Namíbia, David dedicou duas horas a troca de impressões com os guardas e operários e o que apurou enfureceu-o. Por fim, inteirado do que lhe interessava, procurou Hans Zimmerman.
O capataz era um indivíduo gigantesco que decerto não pesava menos de cento e vinte quilos, com expressão porcina e olhar congestionado. Por o utro lado, tratava - se de um dos funcionários mais eficientes da Kruger-Brent, Ltd.
Quando David entrou no seu gabinete, Zimmerman sentava -se atrás da secretária, que parecia minúscula em comparação com o seu arcaboiço.
130
- Tenho muito gosto em vê-lo, Mister Blackwell. Devia ter-me prevenido da sua vinda - observou, embora o recém-chegado estivesse convencido de que o haviam prevenido. - Uísque?
- Não, obrigado.
- Em que lhe posso ser útil? - o capataz reclinou-se na cadeira rotativa. - Não extraímos diamantes em quantidade suficiente para satisfazer o patrão? - ninguém ignorava que a produção do campo da Namíbia era excelente. - Nenhum dos meus colegas obtém resultados tão avultados dos seus cafres.
- Recebemos queixas acerca das condições que vigoram aqui.
- Queixas de que espécie? - a expressão de Zimmerman toldou-se.
- O pessoal é maltratado e…
- São cafres! - pôs-se de pé de um salto, com agilidade surpreendente. - Vocês passam a vida a polir os fundos das cadeiras com o rabo e…
- Escute - atalhou David. - Não há…
- Escute você! Produzo mais diamantes que ninguém, e por uma razão de peso.
Insuflo o temor a Deus nesses bastardos.
- Nas outras minas, pagamos cinquenta e nove xelins e alimentação, enquanto você lhes dá apenas cinquenta.
- Critica-me porque reduzo as despesas? A única coisa que conta é o lucro.
- Jamie McGregor não concorda. Aumente os salários.
- Como queira - Zimmerman assumiu uma expressão compungida. - O dinheiro é dele.
- Ouvi dizer que o chicote desenvolve grande actividade.
- As chicotadas não lhes doem. Têm a pele muito dura. Só servem para os assustar.
- Nesse caso, já matou vários de susto.
- Há muitos mais donde estes vieram - alegou, com um encolher de ombros.
“É um animal sanguinário e perigoso”, reflectiu David, que cravou o olhar no gigante e advertiu:
- Se houver mais problemas do género, será substituído. Habitue-se a tratar os seus homens como seres humanos. Os castigos corporais devem ser suspensos imediatamente.
131
Inspeccionei os alojamentos e c onsidero-os autênticas pocilgas. Mande limpá-los.
- Mais alguma coisa? - articulou o capataz, esforçando-se por dominar a cólera.
- Sim. Voltarei dentro de três meses. Se o que então vir não me agradar, terá de procurar trabalho noutra companhia. Bom dia - e, rodando nos calcanhares, David encaminhou-se para a porta.
Hans Zimmerman conservou-se imóvel por vários minutos, assolado por fúria quase indomável. Os imbecis não passam de uitlanders. Ele era bóer, à semelhança do pai. A terra pertencia-lhes, e Deus colocara os negros nela para os servir. Se tivesse em mente que fossem tratados como seres humanos, não tornaria a sua pele escura. Jamie McGregor não compreendia isso. Todavia, que se podia esperar de um uitlander, um amigo dos nativos? O capataz reconheceu que necessitava de usar de maior prudência, no futuro. Não obstante, mostrar- Lhes-ia quem mandava na Namíbia.
A Kruger-Brent, Ltd., expandia-se e Jamie McGregor era forçado a ausentar-se com frequência. Entretanto, adquirira uma fábrica de papel no Canadá e um estaleiro na Austrália. Quando se encontrava em casa, passava todo o tempo com o filho, que cada vez se parecia mais com ele. Jamie sentia um orgulho desmedido e desejava levar a criança nas suas longas viagens, mas Margaret opunha-se.
- É muito pequeno para viajar. Quando for mais crescido, poderá acompanhar-te.
Quase sem que ele se desse conta, o filho completou o primeiro ano de vida e depois o segundo, o que o assombrava pela rapidez com que o tempo se escoava. Decorria então o ano de 1887.
Contudo, para Margaret, os dias sucediam-se com lentidão. Uma vez por semana, o marido convidava amigos para jantar e ela fazia as honras da casa. Os homens consideravam-na simpática e inteligente e sentiam prazer com as conversas que travavam. Sabia que alguns a achavam particularmente atraente, mas abstinhamse de o deixar transparecer de forma óbvia, porque se tratava da esposa de Jamie McGregor.
Quando se encontravam sós, Margaret perguntava:
- O serão correu-te bem?
E ele respondia invariavelmente:
132
- O melhor possível. Boa noite!
E afastava-se em direcção ao quarto do filho, para se certificar de que estava bem. Momentos depois, ouvia-se a porta da rua bater, indicando que acabava de sair.
Noite após noite, Margaret McGregor permanecia deitada na cama entregue a reflexões sobre a sua vida. Não ignorava que as outras mulheres a invejavam, o que lhe contraía o coração, consciente do pouco que havia para invejar. Vivia uma farsa com um marido que a tratava pior do que a um estranho. Se ao menos reparasse nela! Perguntava a si mesma como reagiria se, uma manhã, ao pequeno-almoço, pegasse no prato que continha flocos de aveia importados especialmente da Escócia e lho vertesse na estúpida cabeça. Não lhe era difícil imaginar a expressão de assombro, o que a obrigou a soltar uma risada em surdina que se converteu num soluço. “Não quero continuar a amá-lo. Não quero.
Hei-de pôr termo a isto, de uma maneira ou de outra, antes que me destrua…”
Em 1890, Klipdrift correspondia às previsões de Jamie. Ao longo dos sete anos da sua permanência, convertera -se numa trepidante boom -town à qual afluíam pesquisadores de todos os recantos do mundo. Era a velha história. Chegavam na diligência, em transportes de carga e mesmo a pé, acompanhados apenas pelos andrajos que vestiam. Necessitavam de comida, equipamento, alojamento e dinheiro para o sustento, e Jamie McGregor estava sempre pronto a auxiliá-los.
Tinha acções de dezenas de minas de diamantes e ouro em laboração, e o seu nome e reputação aumentavam de importância. Certa manhã, recebeu a visita de um advogado da De Beers, gigantesco grupo que controlava as vastas minas de diamantes de Kimberley.
- Em que o posso servir? - perguntou Jamie.
- Incumbiram-me de lhe apresentar uma proposta, Mister McGregor. A De Beers gostava de adquirir a sua companhia. Indique o seu preço.
Era um momento culminante, e ele sorriu antes de replicar:
- Indique você o seu!
David Blackwell tornava -se cada vez mais importante para Jamie, que via no jovem americano a imagem daquilo que ele
133
próprio fora. O rapaz era honesto, inteligente e leal, pelo que o tornou sucessivamente seu secretário, consultor pessoal e, por último, quando David completou vinte e sete anos, director-geral.
Quanto a este, considerava Jamie McGregor um segundo pai. Nos cinco anos de permanência na Kruger-Brent International, habituara-se a admirá-lo mais do que a qualquer outro homem que até então conhecera. Achava-se ao corrente do problema entre Jamie e Margaret e deplorava -o profundamente, porque estimava ambos. “Mas não é de minha conta”, reconhecia. “A minha obrigação consiste em auxiliar Jamie em tudo o que puder.”
Jamie consagrava cada vez mais tempo ao filho, que tinha agora cinco anos, e, na primeira vez que o levou a visitar as minas, o garoto não falou noutra coisa durante uma semana. Ausentavam-se para acampar e dormiam numa tenda sob a estrelas. Jamie estava habituado aos céus da Escócia, onde as estrelas conheciam os seus lugares apropriados no firmamento. Na África do Sul, porém, as constelações eram confusas. Em Janeiro, Canopo brilhava com intensidade sobre a cabeça do observador, ao passo que em Maio era o Cruzeiro do Sul que se situava perto do zénite. Em Junho, estação invernosa no Hemisfério Sul, Escorpião constituía a glória da abóbada celeste. De qualquer modo, agradava-lhe particularmente permanecer deitado na terra morna e contemplar o céu intemporal, com o filho a seu lado, consciente de que faziam parte da mesma eternidade.
Levantavam-se ao romper do dia e caçavam para comer. O pequeno Jamie possuía um pónei, e pai e filho cavalgavam na savana, evitando cautelosamente as covas de dois metros produzidas pelo urso-formigueiro, suficientemente profundas para tragarem um cavalo e respectivo cavaleiro, e as outras de menores dimensões feitas pelo gato dos pântanos.
Com efeito, pairava o perigo na savana. Numa das suas excursões, Jamie e o filho encontravam-se acampados na margem de um rio, quando quase foram mortos por uma manada de springboks. O primeiro sinal de perigo consistiu numa ténue nuvem de poeira no horizonte. As lebres, os chacais e os gatos dos pântanos principiaram a fugir espavoridos e serpentes de largas dimensões surgiam da vegetação em
134
busca de pedras para se ocultarem. Quando voltou a observar o horizonte, Jamie verificou que a nuvem se aproximava.
- Saiamos daqui - indicou ao filho.
- A tenda…
- Não há tempo para a levantar!
Subiram rapidamente para as montadas e seguiram para o topo de uma colina.
Entretanto, ouviam o rugido surdo de cascos e avistaram a linha da frente dos springboks, que se estendia por mais de quatro quilómetros. Eram pelo menos quinhentos mil e arrasavam tudo o que se lhes deparava no caminho. Derrubavam árvores e pulverizavam os arbustos e na esteira da vaga irresistível ficavam os corpos de centenas de pequenos animais. Lebres, serpentes, chacais e galinhasda- índia eram esmagados pelos casos implacáveis. A atmosfera achava-se impregnada de poeira e de um rugido contínuo, e, quando finalmente o pandemónio terminou, Jamie calculou que se prolongara por mais de três horas.
No dia do sexto aniversário do filho, anunciou:
- Para a semana, levo-te à Cidade do Cabo, para que vejas como é uma autêntica cidade.
- A mãe não pode vir connosco? Não gosta de caçar, mas as cidades agradamlhe.
- Tem muito que fazer aqui - disse Jamie, acariciando-Lhe a cabeça. - É uma viagem só para nós, homens, hem?
A criança sentia-se preocupada com o facto de a mãe e o pai parecerem tão distantes um do outro, sobretudo porque não compreendia o motivo.
Viajaram na carruagem ferroviária pessoal de Jamie. Em 1891, o caminho-de-ferro representava o meio de transporte proeminente na África do Sul, pois os comboios eram pouco dispendiosos, cómodos e rápidos. A carruagem que ele mandara construir expressamente para as suas deslocações tinha vinte e cinco metros de comprimento e continha quatro compartimentos luxuosos com acomodações para doze pessoas, uma sala que podia funcionar como gabinete de trabalho, outra para as refeições, um bar e uma cozinha totalmente equipada. Os aposentos dispunham de camas metálicas, candeeiros a gás e janelas panorâmicas.
- Onde estão os outros passageiros? - perguntou o garoto.
135
- Somos só nós - explicou Jamie, rindo. - O comboio é teu, filho.
O pequeno Jamie passou a maior parte da viagem voltado para a janela, de olhos arregalados, maravilhado com a vasta paisagem que deslizava velozmente.
- É a terra de Deus - observou o pai. - Encheu-a de minerais preciosos para nós, enterrados no solo à espera que os recolhamos. Aquilo que encontrámos até agora não passa do começo.
Quando chegaram à Cidade do Cabo, o garoto ficou assombrado com as multidões e os edifíc ios imponentes. Jamie levou-o à McGregor Shipping Line e indicou-lhe meia dúzia de navios que carregavam e descarregavam no porto.
- Pertencem-nos.
No regresso a Klipdrift, o jovem Jamie ansiava por revelar tudo o que vira.
- O pai é dono de toda a cidade! Havias de gostar, mãe. Virás connosco, na próxima vez.
- Com certeza, querido - murmurou Margaret, abraçando-o.
Jamie passava muitas noites fora de casa e ela sabia que visitava o bordel de Madame Agnes. Constara-lhe que adquirira um apartamento para uma das mulheres, a fim de a poder procurar quando entendesse, com maior discrição.
Embora não tivesse a certeza da veracidade da afirmação, Margaret só sabia que lhe apetecia matar a prostituta, se porventura se confirmasse.
No intuito de manter o equilíbrio mental, ela resolveu interessar-se pela cidade.
Assim, recolheu fundos para a construção de uma igreja e inaugurou uma missão destinada a auxiliar as famílias dos pesquisadores necessitadas. Quando pediu ao marido que utilizasse uma das suas carruagens pessoais para os transportar gratuitamente de regresso à Cidade do Cabo, nos casos em que se lhes esgotava o dinheiro e a esperança, ele protestou:
- Propões que desperdice dinheiro? Que recorram ao mesmo meio de transporte da vinda: a pé.
- Não estão em condições de efectuar grandes caminhadas -
136
argumentou Margaret. - E se ficarem, a cidade terá de lhes custear a alimentação e o vestuário.
- Está bem - capitulou ele, finalmente. - Mas é uma ideia insensata.
- Obrigada, Jamie.
Acompanhando-a com a vista enquanto se afastava, não pôde evitar uma ponta de orgulho nela. “Dava uma esposa excelente para alguém…”, cogitou.
A prostituta à qual Jamie montara um apartamento era Mag-gie, a que se sentara ao lado de Margaret, no dia em q ue esta fora convidada por Madame Agnes. Ele considerava irónico o facto de a mulher ter o mesmo nome de sua esposa, sobretudo porque não possuíam qualquer ponto comum. Maggie era uma loura de vinte e um anos, rosto atraente e corpo sensual, que se movimentava na cama com a voracidade e a sofreguidão de uma pantera. Jamie entregara uma quantia substancial a Madame Agnes para que lha dispensasse e a prostituta recebia uma mesada generosa. Por outro lado, ele usava da maior discreção quando a visitava, quase sempre à noite e depois de se certificar de que não o observavam. Na realidade, porém, numerosas pessoas estavam ao corrente da situação, mas abstinham-se de tecer comentários. Tratava-se da cidade de Jamie McGregor e assistia-lhe o direito de proceder como quisesse.
Naquela noite, não experimentava o mínimo prazer. Deslocara-se ao apartamento animado da perspectiva de longas horas inebriantes e deparara -se-lhe Maggie dominada por acentuado mau humor. Encontrou-a estendida na cama ampla, o roupão cor-de-rosa insuficiente para encobrir os recantos sinuosos e excitantes, e foi acolhido pelo desabafo:
- Estou farta de me manter fechada entre estas malditas quatro paredes. Não passo de uma escrava ou prisioneira! Em casa de Madame Agnes, ao menos, divertia-me um pouco. Porque não me levas contigo, nas tuas viagens?
- Já to expliquei. Não posso…
- Tretas! - saltou da cama e postou-se diante dele, numa atitude de desafio. - Levas o teu catraio a toda a parte. Sou menos que ele?
- És - articulou Jamie, em reflexão perigosamente calma, dirigindo-se ao bar e pegando na garrafa de brande para encher o quarto cálice da noite, quantidade muito superior àquela a que se achava habituado.
137
- Não significo absolutamente nada para ti! - vociferou ela. - Sou um mero monte de estrume - e inclinou a cabeça para trás, soltando uma risada desagradável. -·· O escocês moralão!
- Vê se te acalmas!
- Estás sempre a criticar-me. Nunca digo nem faço nada acertado. Julgas -te meu pai, porventura?
- Voltas para a casa de Madame Agnes amanhã mesmo - decidiu Jamie, cansado do desafio de palavras. - Vou preveni-la do teu regresso - e, pegando no chapéu, encaminhou-se para a porta.
- Não te livras de mim com essa facilidade, bastardo! - rugiu Maggie, seguindo-o, enfurecida.
- Acabo de o fazer.
Quando se encontrou na rua, ele descobriu que vacilava e sentia o espírito enevoado. Talvez tivesse emborcado mais de quatro brandes. Na verdade, perdera-lhes a conta. Lembrou-se do corpo capitoso de Maggie e experimentou uma erecção.
Uma vez em casa, no momento em que passava diante da porta fechada do quarto de Margaret, lobrigou um clarão amarelado através da frincha inferior. De súbito, imaginou-a deitada, envolta apenas na camisa de dormir. Ou talvez em coisa nenhuma. Recordou-se de como o seu corpo apetitoso se contorcera debaixo dele entre o arvoredo da margem do rio Orange. Por fim, impelido pelos vapores do álcool, abriu a porta e entrou.
Margaret estava de facto deitada, lendo ao clarão de um candeeiro de petróleo, e ergueu os olhos com uma e xpressão de surpresa.
- Há alguma novidade?
- Já um homem não pode visitar a esposa sem provocar estranheza? - retorquiu ele em voz arrastada.
Ela usava um roupão transparente, e Jamie descortinou os seios túrgidos aparentemente empenhados em perfurar o tecido. “Tem um corpo admirável”, admitiu. E principiou a despir-se.
- Que fazes? - balbuciou Margaret, saindo da cama de olhar arregalado.
Sem responder, ele obrigou-a a deitar-se de novo e estendeu-se a seu lado, completamente desnudo.
- Como te desejo, Maggie!
138
Na confusão de ébrio, não estava muito seguro de qual das duas Maggies desejava. Travou-se breve luta, cuja vitória não oferecia dúvidas desde o início.
Finalmente, já rendida, Margaret puxou-o para si e sussurrou:
- Oh, Jamie querido! Necessito tanto de ti…
Por seu turno, ele reflectia: “Não te devia ter tratado tão mal. De manhã, dir-te-ei que não voltas para casa da Madame Agnes…”
Quando acordou, Margaret descobriu que estava só. No entanto, ainda sentia o corpo vigoroso do marido no seu íntimo e evocava as suas palavras: “Como te desejo, Maggie!” Afinal, não se equivocara desde o princípio. Ele amava-a.
Merecera a pena esperar, ao longo de todos aqueles anos de dor, solidão e humilhação.
Permaneceu o resto do dia num estado de êxtase. Tomou banho, lavou o cabelo e mudou várias vezes de ideias acerca do vestido que mais agradaria a Jamie.
Dispensou a cozinheira, a fim de poder preparar as iguarias preferidas do marido.
Por último, pôs a mesa para o jantar com requintes extremos, empenhada em que fosse um serão memorável.
No entanto, Jamie não foi comer a casa, nem apareceu em toda a noite. Margaret esperou-o na biblioteca até às três horas da madrugada e acabou por se ir deitar.
Quando ele chegou, na noite seguinte, cumprimentou-a polidamente e dirigiu-se ao quarto do filho. Ela enrugou a fronte, perplexa, e em seguida voltou-se para o espelho, o qual lhe revelou que nunca estivera tão atraente. Todavia, no momento em que se aproximou para observar os olhos, não os reconheceu. Eram os de uma estranha.
Capítulo X - Tenho uma notícia maravilhosa para si, Mistress McGregor - declarou o Dr.
Tecger, com um sorriso. - Vai ter um filho.
Margaret sentiu o choque da revelação, sem saber se devia rir ou chorar. “Uma notícia maravilhosa?” Era impensável contribuir com mais um filho num matrimónio sem amor.
139
A humilhação afigurava -se-lhe insustentável. Impunha-se que encontrasse uma saída e, enquanto pensava nisso, acudiu-lhe uma vaga de náusea que a inundou de transpiração.
- A indisposição matinal? - observou o médico.
- Acho que sim.
- Tome estes comprimidos - recomendou, entregando-Lhe uma pequena embalagem. - Atenuam um pouco o enjoo. Está em condição excelente, Mistress McGregor. Não tem nada que se preocupar. Vá para casa e comunique a boa nova ao seu marido.
- Tem razão. É o que vou fazer.
Encontravam-se à mesa do jantar, quando resolveu anunciar:
- Fui hoje ao médico. Vou ter um filho.
Sem proferir palavra, Jamie atirou o guardanapo para o lado, levantou-se e abandonou a sala. Foi naquele momento que Margaret compreendeu que o podia odiar tão profundamente como o amava.
Foi uma gravidez difícil e ela passava grande parte do tempo na cama, fatigada e fraca. Permanecia deitada, hora após hora, imaginando Jamie a seus pés, empenhado em que lhe perdoasse, e voltando a praticar o amor furiosamente.
Mas não passava de fantasias. A realidade consistia em que se encontrava encurralada. Não tinha para onde ir e, de qualquer modo, ele nunca permitiria que levasse o filho consigo.
Jamie completara sete anos e tornara-se um rapaz bem-parecido, de espírito vivo e sentido de humor. Entretanto, aproximara-se mais da mãe, como se pressentisse a infelicidade que a assolava. Preparava pequenos presentes para ela na escola e oferecia-lhos, enquanto Margaret sorria com gratidão, tentando emergir da depressão. Quando o filho perguntava o motivo pelo qual o pai passava as noites fora de casa e nunca a convidava para sair, limitava-se a responder:
- Teu pai é um homem muito importante. Está sempre muito ocupado.
“As nossas relações são um problema apenas meu e não permitirei que Jamie o odeie por isso.”
A gravidez tornava -se cada vez mais visível e, quando Margaret saía, pessoas conhecidas abordavam-na e observavam:
140
- Já não falta muito, Mistress McGregor. Aposto que será outro belo rapaz como o Jamie. Seu marido deve sentir-se muito contente.
Todavia, nas suas costas, comentavam:
- Coitada. Está com um aspecto doentio. Deve ter descoberto que ele mobilou um apartamento para a amante.
Por seu turno, ela tentava preparar o filho para o acontecimento.
- Vais ter um irmão ou irmã para brincar. Não te parece estupendo?
- E tu mais alguém para te fazer companhia - replicou o garoto, abraçando-a.
Margaret teve de desenvolver esforços para dominar as lágrimas.
As dores de parto principiaram às quatro da madrugada. Mrs. Talley apressou-se a mandar chamar Hannah e a criança nasceu ao meio-dia. Era uma rapariga saudável, com a boca da mãe e o queixo do pai, num rosto avermelhado encimado por cabelos pretos anelados. Margaret decidiu chamar-lhe Kate, reflectindo: “É um nome vigoroso e ela vai precisar de energias. Tenho de levar os meus filhos daqui. Ainda não sei como, mas hei-de descobrir um meio.”
David Blackwell irrompeu no gabinete de Jamie McGregor sem bater e este ergueu os olhos, surpreendido.
- Que se passa?
- Há tumultos na Namíbia!
- O quê? - levantou-se com brusquidão. - Que aconteceu?
- Um dos rapazes negros foi surpreendido quando tentava roubar um diamante.
Produziu uma incisão no sovaco e ocultou-o lá. Para lhe dar uma lição, Zimmerman mandou-o chicotear diante dos outros operários. Por fim, o rapaz morreu. Tinha doze anos.
- Santo Deus! - a expressão de Jamie era de cólera intensa. - Determinei que fosse suspenso o emprego do chicote em todas as minas.
- Eu próprio adverti Zimmerman.
- Despeça esse bastardo.
- Não conseguimos localizá -lo.
141
- Porquê?
- Foi levado pelos negros. A situação está fora do nosso domínio.
- Fique aqui e oriente os assuntos correntes até ao meu regresso - indicou, pegando no chapéu.
- Não me parece prudente visitar o local, Mister McGregor. O nativo que Zimmerman matou era da tribo Baralong. Os seus membros não perdoam nem esquecem. Eu podia…
Todavia, Jamie já se afastava.
Quando se encontrava a quinze quilómetros do campo de diamantes, Jamie McGregor avistou o fumo. Todas as cabanas da Namíbia tinham sido incendiadas.
“Os imprudentes! Destroem as suas próprias casas!” À medida que a carruagem se acercava, chegou-lhe aos ouvidos o som de detonações e gritos. Por entre a confusão geral, agentes da autoridade alvejavam os indivíduos de cor que tentavam desesperadamente pôr-se em fuga. Os brancos estavam numa minoria de um para dez, mas possuíam armas de fogo.
Quando o chefe da Polícia, Bernard Sothey, avistou Jamie, acudiu ao seu encontro e asseverou:
- Não se preocupe, Mister McGregor. Havemos de exterminar todos esses bastardos.
- De modo algum! Ordene aos seus homens que suspendam o tiroteio.
- O quê? Se…
- Faça o que lhe digo! - rugiu Jamie, vendo, com profunda consternação, uma negra tombar sob uma chuva de balas. - Mande suspender o fogo!
- Muito bem.
O homem transmitiu as indicações necessárias a um graduado e, em poucos minutos, os estampidos extinguiram-se por completo; mas já havia corpos estendidos por todos os lados.
- Se quer ouvir a minha opinião… - começou.
- Não estou interessado. Vá buscar o chefe deles.
Dois polícias levaram à sua presença um jovem negro algemado e coberto de sangue, mas sem vestígios de medo, o qual se postou diante de Jamie, alto e empertigado, de olhos flamejantes, e este recordou-se do termo que Banda empregara para se referir ao orgulho no dialecto banto: isiko.
142
- Sou Jamie McGregor - fez uma pausa, mas o outro limitou-se a cuspir no chão. - O que acaba de acontecer não foi da minha responsabilidade, mas quero compensá-los dos prejuízos.
- Diga isso às viúvas deles!
- Onde está Zimmerman? - inquiriu, virando-se para Sothey.
- Ainda não o descobrimos.
Jamie apercebeu-se do clarão no olhar do negro e compreendeu que o capataz não seria encontrado.
- Vou fechar o campo de diamantes por três dias - comunicou ao homem na sua frente. Conversa com os teus companheiros, elabora uma lista das suas reivindicações e analisá-la-ei atentamente. Prometo agir com a maior imparcialidade. Alterarei tudo o que não estiver certo - fez nova pausa, enquanto o outro o olhava com uma expressão de cepticismo. - Nomearei um novo capataz e mandarei estabelecer condições de trabalho decentes. No entanto, espero que os teus homens retomem a actividade dentro de três dias.
- Quer dizer que o deixa partir em liberdade? - exclamou o chefe da Polícia. - Matou alguns dos meus subordinados.
- Haverá um inquérito rigoroso e…
Jamie foi interrompido pelo ruído de um cavalo a galope, montado por David Blackwell, cuja expressão angustiada lhe provocou um pressentimento de alarme.
- Seu filho desapareceu, mister McGregor!
O mundo pareceu tornar-se subitamente gelado.
Metade da população de Klipdrift prontificou-se a participar nas pesquisas, explorando os arrabaldes, ravinas e bosques, mas não havia o mínimo indício do garoto.
Jamie parecia um alucinado, enquanto reflectia: “Afastou-se demasiado de casa e perdeu-se. Estou certo de que não tardará a aparecer…”
Entrou no quarto de Margaret, que se encontrava deitada, com o bebé nos braços, a qual perguntou:
- Há alguma novidade?
- Não, mas hei-de encontrá-lo.
Ele fixou o olhar na filha por um momento e retirou-se em silêncio.
143
Mrs. Talley surgiu pouco depois, torcendo as mãos com desespero.
- Não se apoquente, Mistress McGregor. Jamie já é crescido e sabe cuidar de si - inclinou-se para a frente e retirou Kate dos braços da mãe. - Tente dormir um pouco.
Levou-a para o quarto em que se encontrava o berço, aconchegou a roupa e afastou-se.
À meia-noite, a janela foi aberta silenciosamente para dar passagem a um homem, que se aproximou do berço, envolveu a criança num cobertor e ergueu-a nos braços.
Em seguida, Banda retirou-se tão discretamente como surgira.
Foi Mrs. Talley quem descobriu que Kate desaparecera, e começou por pensar que Mrs. McGregor a fora buscar durante a noite. Por conseguinte, dirigiu-se ao quarto desta última e perguntou:
- Onde está o bebé?
A expressão do rosto de Margaret indicou-lhe instantaneamente o que acontecera.
Quando passou mais um dia sem vestígios do filho, Jamie sentiu-se na iminência de um colapso. Por fim, procurou David Blackwell e murmurou em voz trémula:
- Acha que lhe terá acontecido alguma coisa?
- Não sei, Mistress McGregor - foi a resposta, num tom que tentava revelar-se convincente.
No entanto, sabia. Prevenira o patrão de que os bantos nunca esqueciam nem perdoavam, e um indivíduo daquela casta fora cruelmente assassinado. De uma coisa não tinha a mínima dúvida: se eles tinham levado o pequeno Jamie, este sofrera uma morte horrível, pois costumavam vingar-se ao mesmo nível do mal sofrido.
Jamie regressou a casa ao amanhecer, esgotado. Chefiara uma equipa de busca composta por habitantes da cidade, pesquisadores e polícias e haviam passado a noite à procura do garoto em todos os lugares concebíveis.
David aguardava-o na biblioteca e não perdeu tempo com rodeios:
- Sua filha foi raptada, Mister McGregor.
Jamie olhou-o em silêncio, o rosto dominado por profunda palidez. Por último, rodou nos calcanhares e afastou-se.
144
Havia quarenta e oito horas que não se deitava, pelo que se afundou na cama e adormeceu quase imediatamente. Encontrava -se estendido à sombra de uma gigantesca árvore frondosa e, ao longe, através da savana, um leão movia-se na sua direcção, enquanto o filho o sacudia. “Acorda, pai. Vem aí um leão!” O animal movia-se agora mais rapidamente e o garoto sacudia-o com mais força. “Acorda!”
Jamie abriu os olhos e viu Banda na sua frente. Preparava-se para falar, mas o negro cobriu-lhe a boca com a mão.
- Nem uma palavra! - murmurou, permitindo que se soerguesse.
- Onde está o meu filho?
- Morreu - Banda fez uma pausa, enquanto Jamie via o quarto oscilar à sua volta. - Lastimo profundamente, mas nã o cheguei a tempo de o evitar. Os brancos derramaram sangue dos bantos, que resolveram vingar-se.
- Meu Deus! - Jamie ocultou o rosto nas mãos. - Que lhe fizeram?
- Abandonaram-no no deserto - Banda exprimia-se numa inflexão amargurada. - Encontrei o corpo e sepultei-o.
- Não é possível!
- Tentei salvá-lo.
Jamie inclinou a cabeça com lentidão, aceitando a realidade pungente.
- E minha filha? - inquiriu em voz átona.
- Levei-a antes que eles viessem buscá-la. Agora, encontra -se de novo no quarto, adormecida. Não corre perigo, se você cumprir o que prometeu.
- Cumprirei - afirmou, o rosto convertido numa máscara de ódio. - Mas quero apanhar os homens que mataram meu filho, para que expiem o crime.
- Nesse caso, terá de mandar executar toda a minha tribo - declarou Banda, com uma expressão impenetrável.
Não passava de um pesadelo, mas ela mantinha os olhos fechados com firmeza, pois sabia que se os abrisse tudo se tornaria real e os filhos estariam mortos. Por conseguinte, entregava -se a um jogo. Conservaria as pálpebras cerradas, até que sentisse a mão do pequeno Jamie pousada na sua e o ouvisse dizer:
- Estamos aqui, mãe. Não corremos perigo.
145
Havia três dias que se achava na cama, recusando falar ou ver pessoa alguma. O Dr. Teeger visitara -a várias vezes, sem que Margaret se apercebesse. A meio da noite, ouviu um ruído no quarto do filho e apurou os ouvidos. Pouco depois, registou-se novo som. O pequeno Jamie voltara!
Levantou-se com prontidão e atravessou apressadamente o corredor em direcção ao quarto do garoto. Através da porta, apercebeu-se de gemidos abafados, e, alarmada, fez rodar o puxador.
O marido encontrava-se estendido no chão, o rosto e o corpo contraídos, com um dos olhos fechado, ao passo que o outro a fitava grotescamente. Tentava falar, mas as palavras brotavam como sons animais incoerentes.
- Oh, Jamie… Jamie! - balbuciou Margaret.
- As notícias são más, Mistress McGregor - declarou o Dr. Teeger. - Seu marido sofreu um colapso grave. Tem cinquenta por cento de probabilidades de sobreviver, mas se tal acontecer não passará de um vegetal. Tomarei as providências necessárias para que dê entrada numa clínica particular, onde receberá a assistência apropriada.
- Não!
- Não, quê? - articulou, fitando Margaret com perplexidade.
- Quero-o aqui comigo.
Reflectiu por um momento e aquiesceu.
- Muito bem. Procurarei uma enfermeira para…
- Não é necessário. Eu própria cuidarei dele.
- Desconhece a situação, Mistress McGregor. Seu marido deixou de ser uma pessoa em funcionamento normal. Está completamente paralisado e manter-se-á assim para sempre.
- Cuidarei dele - reiterou Margaret, com obstinação. Jamie pertencia-lhe finalmente.
Capítulo décimo primeiro Jamie McGregor viveu exactamente mais um ano desde o dia em que sofreu o colapso, e foi o período mais feliz da vida de Margaret. O marido achava -se totalmente incapacitado,
146
sem poder mover-se ou falar. Ela preocupava -se com todas as suas necessidades e conservava-se a seu lado, dia e noite. Durante o dia, conduzia-o à sala de costura numa cadeira de rodas e não parava de lhe falar, ao mesmo tempo que se entretinha fazendo malha. Abordava todos os pequenos problemas domésticos pelos quais ele nunca se interessara por falta de tempo e revelava-lhe o desenvolvimento da pequena Kate. À noite, transferia o corpo esquelético de Jamie para o quarto e depositava-o suavemente na cama, a seu lado.
Entretanto, David Blackwell dirigia a Kruger-Brent, Ltd., e, de vez em quando, procurava Margaret para que assinasse documentos. Nessas ocasiões, experimentava uma sensação pungente ao observar a incapacidade física e mental de Jamie, ao qual considerava que devia tudo o que era.
- Escolheste bem, querido - comentou ela ao marido. - David é um colaborador excepcional - pousou o trabalho e sorriu. - Parece-se um pouco contigo. Não receavas sonhar os projectos mais arrojados e todos se concretizaram. A companhia não pára de se expandir - voltou a pegar nas agulhas. - Kate começa a falar. Pareceu-me ouvir-lhe dizer “mamã”, esta manhã.
Jamie mantinha-se imóvel, como que petrificado, o olhar fixando um ponto indefinido na sua frente.
Na manhã seguinte, quando acordou, Margaret descobriu que ele morrera.
- Repousa, meu amor, repousa… - murmurou, estreitando-o nos braços. - Sempre te amei, profundamente. Espero que chegasses a compreendê-lo. Adeus, querido.
Agora, encontrava-se só. O marido e o filho tinham-na deixado. Restavam apenas ela e a filha. Dirigiu-se ao quarto contíguo e contemplou a criança que dormia no berço. Katherine. Kate. O nome derivava do grego e significava límpida ou pura, costumando atribuir-se às santas, freiras e rainhas.
- Qual das três coisas serás? - proferiu em voz alta. Decorria uma época de grande expansão na África do Sul, mas também de agitação crescente. Registava-se uma fricção de longa data no Transval entre os Bóeres e os Ingleses, que culminou com o conflito aberto. Na quinta-feira, 12 de Outubro de 1899, data do sétimo aniversário de Kate, foi declarada a guerra e, três dias mais tarde, o Estado Livre de Orange sofria o primeiro ataque. David tentou convencer Margaret a
147
abandonar a África do Sul com a filha, mas ela negou-se a partir.
- Meu marido encontra-se aqui - alegou com firmeza. Reconhecendo a incapacidade para a demover da decisão, ele limitou-se a anunciar:
- Vou juntar-me aos Bóeres. Acha que pode cuidar das coisas?
- Sem dúvida. Farei o possível para que a companhia funcione normalmente.
David alistou-se na manhã seguinte.
Os Ingleses contavam com uma guerra fácil e rápida, pouco mais do que uma operação de limpeza, pelo que se lançaram nela confiantes. No aquartelamento em Hyde Park, Londres, realizou-se um jantar de despedida, com uma ementa especial em que se via um soldado britânico segurando a cabeça de um javali numa bandeja e a seguinte descrição:
JANTAR DE DESPEDIDA Ao ESQUADRÃO DO CABO 27 de Novembro de 1899
EMENTA
Ostras de Pintas Azuis Sopa de Estuque
Sapo na Toca
Cabrito à Mafeking
Nabos do Transval. Molho do Cabo
Faisões de Pretória
Molho Branco Pudim da Paz. Gelados Maciços Queijo Holandês Sobremesa (E, favor não atirar cascas para debaixo das mesas) Gemidos Bóeres - Long Tom Holandeses Esfolados Vinho de Laranjeira No entanto, estava -lhes reservada uma surpresa. Os Bóeres encontravam-se no seu território e eram duros e resolutos. ~* Jogo de palavras entre boar (javali) e bóer (bur).
148
A primeira batalha da guerra foi travada em Mafeking, pouco mais que uma aldeia, e pela primeira vez os Ingleses começaram a vislumbrar o que se lhes erguia pela frente. Acto contínuo, seguiram mais tropas de Inglaterra, que cercaram Kimberley, e só conseguiram avançar em direcção a Ladysmith, que tomaram, após luta encarniçada. Os canhões dos locais tinham maior alcance que os dos agressores, pelo que se tornou necessário recorrer à artilharia dos navios de guerra britânicos. Assim, as peças foram desembarcadas e utilizadas pelos marinheiros a centenas de quilómetros das suas unidades.
Em Klipdrift, Margaret mantinha-se ansiosamente ao corrente de cada batalha, e ela e as pessoas à sua volta viviam dos rumores, variando o seu estado de espírito da euforia ao desespero, consoante a natureza das notícias. Até que, uma manhã, um dos empregados entrou no gabinete da companhia e comunicou:
- Consta que os Ingleses avançam para aqui. Vão matar-nos a todos!
- Que ideia! - redarguiu Margaret. - Não se atrevem a tocar-nos.
Cinco dias depois, achava-se convertida em prisioneira de guerra. Ela e Kate foram transferidas para Paardeberg, uma das centenas de campos de prisioneiros que haviam surgido na África do Sul. Os detidos mantinham -se num vasto campo aberto rodeado por arame farpado, guardados por soldados britânicos, em condições deploráveis.
- Não te preocupes, querida - murmurou Margaret, apertando Kate nos braços. - Não te há-de acontecer nada.
Todavia, nenhuma delas acreditava nestas palavras. Cada dia que passava constituía um catálogo de horrores. Viam os companheiros de infortúnio morrer às dezenas, centenas e finalmente milhares, à medida que a febre grassava no campo. Não havia médicos nem medicamentos para os feridos e a comida escasseava. Foi um pesadelo constante, que se prolongou por cerca de três anos lancinantes. O que mais custava a suportar era a sensação de desamparo absoluto. Margaret e Kate encontravam-se à inteira mercê dos captores.
Dependiam deles para as refeições e para o alojamento e até para a conservação da vida. A garota vivia imersa em terror, vendo as outras crianças morrer e receando que não tardasse a
149
suceder-lhe o mesmo. Não dispunha de meios para se proteger e à mãe, e tudo aquilo representou uma lição que jamais esqueceria. Poder. Quem o possuía, tinha comida, medicamentos, liberdade. Enquanto assistia à morte dos que a rodeavam, identificava o poder com a vida. “Hei-de tê-lo, um dia. Ninguém poderá voltar a tratar-me assim.”
As batalhas violentas prosseguiam - Belmont, Graspan, Stormberg, Spioenkop -, mas os destemidos Bóeres acabaram por se revelar incapazes de resistir ao poderio do Império Britânico. Em 1902, após quase três anos de guerra sangrenta, tiveram de capitular. Combateram cinquenta e cinco mil bóeres e perderam a vida trinta e quatro mil dos seus soldados, mulheres e crianças. Mas o que encheu os sobreviventes de indignação quase selvagem foi o conhecimento de que vinte e oito mil deles morreram em campos de concentração britânicos.
No dia em que as portas foram abertas, Margaret e Kate regressaram a Klipdrift.
Poucas semanas mais tarde, num domingo cálido e sereno, foi a vez de David Blackwell se apresentar. A guerra amadurecera-o, mas continuava a ser o mesmo homem ponderado no qual Margaret se habituara a confiar.
- Lamento não as ter podido proteger - declarou, amargurado, quando se inteirou das vicissitudes que ela e filha tinham sofrido.
- Isso pertence ao passado, David. Temos de pensar apenas no futuro.
E o futuro era a Kruger-Brent, Ltd.
Para o mundo, o ano de 1900 representava uma ardósia limpa em que se escreveria História, uma nova era que prometia paz e esperança ilimitadas para todos. Principiara um novo século, que trazia consigo uma série de inventos surpreendentes e revolucionadores da vida em todo o Globo. Os automóveis a vapor e os eléctricos foram substituídos pelo motor de combustão. Surgiram os submarinos e os aeroplanos. A população mundial explodiu para um bilião e meio de almas. Era o período próprio para o crescimento e a expansão e, durante os seis anos imediatos, Margaret e David aproveitaram devidamente todas as oportunidades.
150
Entretanto, Kate desenvolvia-se quase sem assistência, pois a mãe achava-se muito ocupada com a d irecção da companhia, coadjuvada por David, para poder preocupar-se com ela. Assim, tornara-se uma criança irreprimível, obstinada, e intratável. Certa tarde, quando regressava a casa de uma reunião de negócios, Margaret surpreendeu a filha de catorze anos no pátio enlameado, envolvida em renhida luta com dois rapazes.
- Valha-me Deus! - murmurou, abismada. - É esta a rapariga que um dia dirigirá os destinos da Kruger-Brent! Bem podemos rogar à Providência para que não nos desampare!
SEGUNDA PARTE
Kate e David 1906-1914
Capítulo décimo segundo Kate McGregor trabalhava, à noite, no seu gabinete da sede da Kruger-Brent International, em Joanesburgo, quando ouviu o som de sereias da Polícia. Pousou os documentos que examinava, aproximou-se da janela e espre itou. Três carrospatrulhas e uma furgoneta detiveram-se à entrada do edifício com um chiar de pneus no asfalto e uma dezena de homens uniformizados apeou-se com prontidão para cobrir as portas de acesso. Era meia-noite e as ruas achavam-se desertas.
Kate lançou uma olhadela ao seu reflexo na vidraça. Com vinte e dois anos, era uma mulher atraente, possuidora dos olhos cinzentos do pai e o corpo torneado da mãe.
Momentos depois, bateram à porta e ela proferiu:
- Entre - declarou, após o que viu surgir dois polícias, um dos quais exibia a insígnia de superintendente. - Que aconteceu? - inquiriu.
- Peço desculpa por a importunarmos a esta hora tardia, Miss McGregor. Sou o superintendente Cominsky.
- Qual é o problema, superintendente?
- Fomos informados de que um assassino evadido entrou neste edifício, há poucos minutos.
- Neste edifício? - repetiu ela, com uma expressão chocada.
- Exacto. Está armado e é perigoso.
- Nesse caso, agradecia-lhe que o encontrasse e levasse - observou, com uma ponta de impaciência.
- É precisamente a minha intenção. Apercebeu-se de algum ruído suspeito?
- Não. No entanto, encontrava-me só e há muitos lugares onde uma pessoa se pode esconder. Recomende aos seus homens que revistem tudo minuciosamente.
- Sem dúvida, Miss McGregor - e o superintendente voltou-se para o corredor, ordenando: - Principiem na cave e sigam até ao terraço - e dirigindo-se de novo a Kate: - Há algum gabinete fechado à chave?
- Penso que não, de contrário tratarei de o abrir. Verificou que ela se achava enervada e, no fundo, não a
155
censurava por isso. Ainda ficaria mais apreensiva se soubesse como o homem que perseguiam estava desesperado.
- Havemos de o encontrar - prometeu com firmeza. Kate tornou a pegar nos documentos que estudava, mas descobriu que não conseguia concentrar-se, ouvindo os polícias moverem-se por todo o edifício, de um gabinete para o outro. “Conseguirão descobri -lo?” A ideia fêla estremecer.
Entretanto, eles actuavam com lentidão, metodicamente, esquadrinhando todos os esconderijos possíveis. Quarenta e cinco minutos mais tarde, o superintendente Cominsky reapareceu e ela leu-lhe a expressão correctamente.
- Não o encontraram!
- Ainda não, mas não se apoquente…
- Lamento, mas estou apoquentada. Se há um assassino no edifício, quero que o descubram.
- Consegui-lo-emos. Restam os cães.
Soaram latidos no corredor e, no momento imediato, apareceu um polícia com dois corpulentos pastores-alemães.
- Os cães percorreram todo o prédio, superintendente. Farejaram tudo excepto este gabinete.
Cominsky virou-se para Kate.
- Ausentou-se daqui recentemente?
- Fui ao arquivo buscar uns documentos. Parece-lhe que ele pode?… - e ela interrompeu-se com um estremecimento. - É melhor não descurar nenhuma possibilidade.
O superintendente fez um sinal ao subordinado, que soltou os animais da trela e indicou:
- Busquem.
Acto contínuo, os cães pareceram alucinados. Precipitaram-se para uma porta fechada e puseram-se a ladrar com excitação.
- Valha-me Deus! - balbuciou Kate. - Está ali!
- Abre a porta - ordenou Cominsky, puxando da pistola. O polícia acercou-se, empunhando igualmente a arma, e fez rodar o puxador. O compartimento, sem dúvida destinado a arrecadação, achava-se deserto. Todavia, um dos cães correu para outra porta, diante da qual estacou, rosnando.
- Que há do outro lado? - perguntou o superintendente.
- Uma casa de banho.
O polícia apressou-se a abri-la, mas não avistaram vivalma no interior.
156
- Nunca os vi comportarem-se assim - articulou, meneando a cabeça, enquanto os cães se moviam em redor freneticamente. - Captaram o rasto, mas ele não aparece.
Por fim, os animais aproximaram-se de uma gaveta da secretária e continuaram a ladrar com persistência - Está solucionado o mistério - observou Kate, com um sorriso forçado. - Escondeu-se na gaveta.
- Lastimo tê-la incomodado, Miss McGregor - disse Cominsky, embaraçado.
Voltou-se para o polícia e ordenou: - Leve-os daqui para fora.
- Retiram-se? - perguntou ela, numa inflexão apreensiva.
- Garanto-lhe que não corre o menor perigo. Os meus homens passaram o edifício a pente fino. Posso assegurar-lhe que ele não se encontra aqui. Foi um falso alarme. As minhas desculpas.
- Não haja dúvida de que vocês sabem tornar excitante o serão de uma mulher - comentou ela, secamente.
Kate conservou-se junto da janela até que as três viaturas da Polícia se afastaram, após o que abriu a gaveta da secretária e extraiu um par de sapatos de lona manchados de sangue. Em seguida dirigiu-se a uma porta com a indicação Entrada Proibida a Pessoas Não Autorizadas, no fundo do corredor, e entrou. A sala continha apenas um cofre-forte enorme embutido na parede, onde a Kruger- Brent, Ltd. guardava os diamantes antes de serem expedidos para os diferentes destinos. Em movi mentos rápidos, compôs as letras do segredo e puxou a porta gigantesca. Nas paredes, alinhavam-se dezenas de pequenos cofres repletos de pedras preciosas e, no centro, via-se Banda, semiconsciente.
- Já se foram - informou Kate, ajoelhando a seu lado. O negro descerrou as pálpebras com lentidão e conseguiu esboçar um sorriso. Permitiu que ela o ajudasse a levantar e comprimiu os lábios no momento em que moveu o braço envolto numa ligadura manchada de sangue.
- Podes calçar os sapatos? - Kate retirara -lhos antes e, para confundir os cães que decerto apareceriam, utilizara-os para se deslocar em torno do seu gabinete, acabando por os ocultar na gaveta da secretária. - Vem. Tens de sair daqui.
- Eu desenrasco-me sozinho - declarou ele abanando
157
a cabeça com veemência. - Se descobrem que me ajudou, fazem-lhe passar um mau bocado.
- Não te preocupes com isso - e vendo-o lançar uma olhadela em torno do cofre, sugeriu: - Se queres levar algum diamante, serve-te à vontade.
- Seu pai fez-me uma oferta semelhante, há muito tempo.
- Eu sei.
- Não preciso de dinheiro. Tenho apenas de abandonar a cidade por uns tempos.
- Como tencionas sair de Joanesburgo?
- Hei-de descobrir um meio.
- A Polícia bloqueou todas as saídas. Não tens a mínima hipótese, sem ajuda.
- Já me auxiliou mais do que devia - persistiu Banda, calçando os sapatos.
- Se te apanham, matam-te. Vens comigo.
Kate sabia que não se equivocava acerca do bloqueio das saídas da cidade. A captura do negro constituía uma prioridade suprema, e as autoridades tinham recebido ordens para o apanhar, vivo ou morto.
- Espero que tenha em vista um plano melhor do que o de seu pai - comentou Banda em voz débil, em resultado da perda de sangue.
- Não fales. Poupa as energias. Deixa tudo a meu cargo - e ela revelava uma confiança que não sentia totalmente, mas ele encontrava-se nas suas mãos e não permitiria que lhe acontecesse coisa alguma. Deplorava que David estivesse ausente, mas teria de se desembaraçar da crítica situação sem o seu auxílio. - Vou levar o carro para a porta das traseiras - anunciou após breve pausa. - Deixa passar dez minutos e segue para lá. Estará a porta da retaguarda aberta, para que subas e te estendas no chão. Há uma manta para te cobrires.
- Mas eles hão-de revistar todos os carros que abando nem a cidade.
- Não utilizaremos esse meio de transporte. Parte um comboio para a Cidade do Cabo às oito da manhã, ao qual mandei atrelar a minha carruagem pessoal.
- Vai levar-me aí?
- Precisamente.
- Vocês, os McGregor, adoram realmente a excitação - murmurou o negro, com um sorriso.
158
Meia hora mais tarde, Kate conduzia o carro em direcção à estação de caminhode- ferro, com Banda deitado no solo da retaguarda, dissimulado por uma manta.
Não experimentou qualquer dificuldade em transpor as barreiras levantadas pelas autoridades, mas agora, no momento em que entrava no parque de estacionamento perto da linha, avistou um clarão à sua frente e verificou que o caminho se achava bloqueado por vários polícias, um dos quais se acercou no instante em que travou.
- Superintendente Cominsky?
- Miss McGregor! Que faz aqui?
- Talvez me julgue pateta, mas o que aconteceu há pouco assustou-me - declarou Kate, fingindo-se apreensiva. - Resolvi, portanto, ausentar-me da cidade até que capturem o assassino. Ou já o encontraram?
- Não, infelizmente, embora não me restem dúvidas de que o conseguiremos.
Palpita-me que tentará escapar-se no comboio. Não lhe servirá de nada, claro.
- Oxalá não se engane.
- Aonde vai?
- A minha carruagem pessoal encontra-se num desvio aí adiante. Penso seguir nela até à Cidade do Cabo.
- Quer que um dos meus homens a acompanhe?
- Obrigada, superintendente, mas não vejo necessidade. Agora que sei que estão na pista do homem, posso respirar melhor.
Cinco minutos depois, Kate e Banda achavam -se em segurança na carruagem, imersa na escuridão.
- Não convém acender a luz - referiu ela, enquanto o ajudava a instalar-se numa das camas. - Aqui, não corres perigo até de manhã. Quando o comboio principiar a andar, escondes-te na casa de banho.
- Entendido.
- Conheces algum médico que te possa observar, quando chegarmos à Cidade do Cabo?
- Chegarmos? -ecoou ele, arqueando as sobrancelhas.
- Julgavas que te deixava ir só e perdia a parte mais excitante da aventura?
Inclinou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada: “Não pode negar de quem é filha.”
159
Quando amanheceu, uma locomotiva conduziu a carruagem particular para a retaguarda do comboio que partiria com destino à Cidade do Cabo.
Às oito horas em ponto, a composição abandonou a estação. Entretanto, Kate comunicara ao pessoal que não queria ser incomodada, pois o ferimento de Banda voltava a sangrar e ela necessitava proceder à substituição da ligadura. Por outro lado, não tivera ensejo de conversar com ele desde o serão anterior, quando irrompera, exausto, no seu gabinete.
- Explica-me o que aconteceu, Banda.
O negro olhou-a e reflectiu: “Por onde hei-de principiar?” Como poderia fazer-lhe compreender a existência dos trek-boers, bóeres nómadas que expulsavam os bantos das suas terras ancestrais? Ou teria porventura principiado tudo com o gigantesco Oom Paul Kruger, presidente do Transval, o qual afirmara, num discurso pronunciado no Parlamento sul-africano, que “temos de mandar nos pretos e permitir-lhes apenas que sejam uma raça dominada”? Ou ainda na época do grande construtor do império Cecil Rhodes, cuja máxima consistia em “a África para os brancos”? Como lhe seria possível resumir a história do seu povo numa frase? Por fim, acudiu-lhe uma maneira:
- A Polícia assassinou o meu filho.
A descrição foi surgindo, embora com certa dificuldade. O filho mais velho de Banda, Ntombenthle, participava num comício, quando as autoridades surgiram para o dispersar. Em resultado disso, foram disparados alguns tiros e registaramse tumultos. Ntombenthle figurava entre os presos e, na manhã seguinte, apareceu enforcado na cela.
- Garantiram que se suicidou, mas sei que o assassinaram.
- Tão jovem, meu Deus! - exclamou Kate, lembrando-se das inúmeras vezes que tinham brincado juntos. - Lastimo profundamente. Mas porque te perseguem?
- Quando o mataram, comecei a agrupar os negros para me vingar. Não podia ficar de braços cruzados. A Polícia chamou-me inimigo do Estado, prendeu-me por um roubo que não pratiquei e condenaram-me a vinte anos de prisão. Eu e mais três conseguimos evadir-nos. Um guarda foi atingido mortalmente a tiro e atribuem-me a culpa, embora nunca possuísse uma arma de fogo em toda a minha vida.
160
- Acredito. A primeira coisa a fazer é levar-te para um lugar seguro.
- Lamento envolvê-la nisto.
- Não me envolveste em nada. És meu amigo.
- O primeiro branco que me chamou amigo foi seu pai. - Banda exibiu um sorriso de nostalgia. - Como tenciona fazer-me sair do comboio, na Cidade do Cabo?
- Não é para aí que vamos.
- Mas disse…
- Como mulher, assiste -me o direito de mudar de ideias. A meio da noite, quando o comboio se deteve na estação de Worcester, Rate mandou desatrelar a carruagem e conduzi -la para um desvio. Ao amanhecer, dirigiu-se à cama de Banda, e encontrou-a vazia. O negro desaparecera, disposto a não a comprometer mais profundamente. Apesar de deplorar o facto, ela estava persuadida de que não se deixaria apanhar pelas autoridades, pois dispunha de muitos amigos. “David há-de orgulhar-se de mim”, foi o seu pensamento imediato.
- Não percebo como pudeste ser tão estúpida! - vociferou ele, quando Kate regressou a Joanesburgo e lhe descreveu o episódio. - Não só arriscaste a tua segurança pessoal como colocaste a companhia em perigo. Sabes o que a Polícia faria se encontrasse Banda aqui?
- Sei - replicou ela, com uma expressão de desafio. - Matava-o.
- Será possível que não compreendas nada? - David passou a mão pela fronte, num gesto de frustração.
- Enganas-te. Compreendo que és um homem frio, sem sentimentos.
- Não passas de uma criança.
Kate ergueu a mão para o esbofetear, mas ele apressou-se a segurar-lha.
- Tens de aprender a dominar-te.
Estas palavras ecoaram-lhe na cabeça: “Tens de aprender a dominar-te.”
Ela tinha quatro anos e achava-se no auge de uma troca de socos com um rapaz que se atrevera a importuná -la, quando David surgiu e afugentou este último. No momento em que Kate pretendia correr no seu encalço, ele segurou-a pelo braço e recomendou:
161
- Tens de aprender a dominar-te. As meninas bem-com-portadas não se entregam a cenas de pugilismo.
- Não sou uma menina bem-comportada. Larga-me.
- Vai mudar de roupa e lavar-te, antes que tua mãe te veja.
- Aplicava -lhe um correctivo, se não interviesses - asseverou Kate, lançando um olhar pesaroso na direcção tomada pelo antagonista.
David olhou-a em silêncio por um momento e inclinou a cabeça com lentidão.
- Provavelmente, aplicavas mesmo.
Mais serena, permitiu que lhe pegasse ao colo e a levasse para casa. Gostava de estar nos braços dele. Na realidade, agra dava -lhe tudo a seu respeito. Era o único adulto que a compreendia e, sempre que se encontrava na cidade, consagrava-lhe algum tempo. Em momento de descontracção, Ja-mie descrevera a David as suas aventuras com Banda e agora o rapaz repetia-lhas.
- Fala-me outra vez da jangada que construíram. E ele comprazia-a com prontidão.
- E os tubarões… Conta-me aquilo do mis do mar… Daquele dia em que…
Kate tinha poucas oportunidades de ver a mãe, sempre ocupada com os assuntos da Kruger-Brent, Ltd.
Margaret conversava com o marido todas as noites, como acontecera ao longo do ano que precedera a sua morte.
- David é de uma utilidade extraordinária, Jamie, e ainda cá estará quando a companhia passar para as mãos de Kate. Embora me custe afligir-te, confesso que não sei o que fazer com essa rapariga…
Kate era obstinada, irrequieta e impossível de dominar, recusando-se a obedecer à mãe ou a Mrs. Talley. Se lhe escolhiam um vestido, trocava-o imediatamente por outro. Também não se alimentava convenientemente. Comia o que e quando lhe apetecia, indiferente a rogos ou ameaças. Se a obrigavam a comparecer a uma festa de aniversário, encontrava sempre uma maneira para provocar distúrbios.
Não tinha amigas. Negava-se a frequentar as aulas de bailado, preferindo praticar o râguebi com adolescentes. A partir do momento em que começou a frequentar a escola, Margaret era convocada pela directora pelo menos uma vez por mês e
162
necessitava de empregar todos os meios de persuasão para que Kate não fosse expulsa.
- Não a compreendo - desabafava a mulher. - Apesar de invulgarmente inteligente, revolta-se contra tudo. Não sei o que faça com ela.
E Margaret via-se forçada a partilhar da sua opinião.
A única pessoa capaz de manter Kate na linha era David.
- Ouvi dizer que te convidaram para uma festa de anos, esta tarde - observou ele.
- Detesto essas coisas.
- Eu sei - agachou-se até ficar ao nível dela. - Mas o pai da festejada é meu amigo, e fico mal situado se não compareceres e te portares como uma senhora.
- É um bom amigo?
- Sim.
- Então, vou.
E as suas maneiras naquela tarde foram impecáveis.
- Não compreendo como o consegue - comentava Margaret. - É um autêntico acto de ilusionismo.
- Trata-se de uma fase passageira - afirmava ele, rindo. - Há-de livrar-se dela. O essencial é não lhe quebrar a voluntariedade.
- Aqui para nós, em certas ocasiões eu gostava de lhe quebrar o pescoço - era, com frequência, o comentário final dela, com um sorriso malicioso.
Quando tinha dez anos, Kate anunciou, um dia:
- Quero conhecer Banda.
- Não é possível - redarguiu David, surpreendido. - A herdade dele fica muito longe.
- Acompanhas-me, ou tenho de fazer a viagem sozinha? Na semana seguinte, partiram. A herdade tinha dimensões apreciáveis e Banda cultivava nela trigo, dedicando-se igualmente à criação de carneiros e avestruzes. Os alojamentos consistiam em cabanas circulares com paredes de barro, enquanto postes suportavam o tecto cónico coberto com colmo.
O negro encontrava-se à entrada, observando-os, enquanto Kate e David se apeavam da carruagem.
- Adivinhava que era filha de Jamie McGregor, mesmo
163
que não mo dissessem - declarou, contemplando a rapariga com gravidade.
- E eu reconhecia-te imediatamente - replicou ela. - Vim agradecer-te por salvares a vida a meu pai.
- Desconfio que exageraram - Banda soltou uma gargalhada. - Entre, para conhecer a família.
A esposa era uma banto atraente chamada Ntame e havia dois filhos:
Ntombenthle, de dezassete anos, e Magena, de dezasseis. O primeiro podia considerar-se uma miniatura do pai, com os mesmos traços fisionómicos regulares e porte empertigado.
Kate passou toda a tarde a brincar com os dois rapazes e, por fim, jantaram na cozinha da pequena mas imaculada cabana. Por seu turno, David sentia uma ponta de desconforto por se sentar à mesa com uma família de negros.
Respeitava Banda, mas, em obediência à tradição, não devia haver confraternização entre as duas raças. Além disso, preocupavam -no as actividades políticas do anfitrião, pois constava que era discípulo de John Tenga Javabu, o qual pugnava por mudanças sociais drásticas. Como os proprietários das minas não conseguiam recrutar nativos em número suficiente, o Governo impusera uma taxa de dez xelins a quem não trabalhasse nelas, o que suscitava tumultos por toda a África do Sul.
Ao fim da tarde, David propôs:
- É melhor iniciarmos o regresso, Kate. Aguarda-nos uma longa tirada.
- Ainda é cedo - e a rapariga voltou-se para Banda. - Conta-me aquilo dos tubarões.
A partir de então, sempre que David se encontrava na cidade, obrigava-o a acompanhá-la à herdade do negro.
A convicção de David de que Kate se libertaria da fase de obstinação tardava em se concretizar. Ao invés, parecia acentuar-se cada dia que passava. Recusava-se terminantemente a participar nas actividades próprias das raparigas da sua idade e insistia em que ele o levasse às minas, quando não preferia a pesca, a caça ou o campismo. Um dia em que pescavam no Vaal e ela capturou uma truta de dimensões apreciáveis, David comentou:
- Devias ter nascido rapaz.
- Não digas disparates. Depois, não podia casar contigo - e
164
vendo-o soltar uma gargalhada divertida, ela persistiu: - Não tenhas a mínima dúvida de que havemos de nos casar um com o outro.
- Duvido. Para já, sou vinte e dois anos mais velho, o suficiente para ser teu pai.
Um dia, encontrarás um rapaz bem-parecido…
- Não me interessa encontrar nenhum rapaz bem-parecido. Há muito que te escolhi.
- Se falas a sério, vou revelar-te o segredo para conquistares o coração de um homem.
- Qual é? - quis saber, ansiosa.
- Através do estômago. Limpa essa truta e almocemos.
Uma vez por semana, Margaret convidava David para jantar na espaçosa moradia. Em regra, Kate preferia comer na cozinha com o pessoal, onde não necessita va de se preocupar com as maneiras à mesa, mas naquele dia optava pela companhia da mãe, unicamente porque ele também comparecia. Na maioria das vezes, David ia só, conquanto ocasionalmente levasse uma mulher, que Kate ficava a detestar desde o primeiro instante.
Mais tarde, conseguiu dirigir-se-lhe discretamente e observava:
- Aposto que desencantaste a tua companheira numa visita a casa de Madame Agnes.
Quando Kate contava catorze anos, a directora do colégio mandou chamar Margaret mais uma vez.
- Orgulho-me de dirigir um estabelecimento respeitável e receio que sua filha exerça uma influência maligna.
- Que fez ela, agora? - perguntou Margaret, com um suspiro de resignação.
- Ensina às colegas expressões que nunca tinham ouvido. Devo mesmo acrescentar que nem eu própria as conhecia. Não compreendo onde as aprendeu.
“Mas compreendo eu. Na rua, com os seus companheiros de brincadeira. É altura de pôr ponto final nisto”.
- Agradecia que falasse com sua filha a sério, Mistress McGregor. Fecharei os olhos por mais esta vez, mas…
- Deixe. Tenho uma ideia melhor. Enviá-la-ei para um colégio interno.
165
Quando Margaret comunicou a ideia a David, este esboçou um sorriso malicioso.
- Duvido que ela fique contente.
- Não há outra solução. Agora, a directora queixa-se da sua linguagem. Ouve -a aos pesquisadores, com os quais convive constantemente. Kate começa a parecer-se com eles em tudo, incluindo o cheiro. Para ser franca, não a compreendo. Não vislumbro porque procede assim. É bonita, inteligente e…
- Talvez seja inteligente de mais.
- De qualquer modo, vou interná -la num colégio. Quando chegou a casa naquela tarde e se inteirou da decisão materna, a rapariga enfureceu-se.
- Queres livrar-te de mim!
- Evidentemente que não, querida. Penso apenas que estarás melhor.
- Em parte alguma posso estar melhor do que aqui, onde tenho todos os amigos.
Pretendes separar-me deles.
- Se te referes a esses maltrapilhos…
- Não são maltrapilhos. Valem tanto como as outras pessoas.
- Evitemos as discussões inúteis. Vais para um internato e acabou-se.
- Antes a morte!
- Como queiras. Encontrarás uma tesoura aguçada na sala de costura e, se procurares bem, creio que descobrirás veneno algures.
- Não me faças isso, por favor, mãe! - balbuciou Kate, rompendo em lágrimas.
- É para teu bem, minha filha - murmurou Margaret, apertando-a nos braços. - Em breve terás idade para casar e nenhum homem escolherá uma moça que fala e se veste como tu.
- É falso. David não se importa.
- Que tem ele a ver com isto?
- Vamos casar.
Exalou um suspiro de frustração.
- Vou dizer a Mistress Talley que prepare as tuas coisas.
Dentre a meia dúzia de internatos para raparigas existentes em Inglaterra, Margaret decidiu que o de Cheltenham, em Gloucestershire, era o mais indicado para Kate. Situava -se
166
numa propriedade espaçosa rodeada por muros elevados e, segundo o prospecto publicitário, fora fundado para as filhas de nobres. David tinha relações profissionais com o marido da directora, Mrs. Keaton, pelo que não encontrou dificuldades para obter a admissão da rapariga.
Quando tomou conhecimento do local que lhe fora destinado, Kate explodiu uma vez mais.
- Ouvi falar desse antro! É um horror. Voltarei de lá como uma daquelas bonecas inglesas presunçosas. Tens essa ideia em vista?
- A minha única ideia é que aprendas boas maneiras - assegurou-lhe Margaret.
- Não preciso delas para nada. Bastam-me os miolos para suprir todas as insuficiências.
- Não é isso que interessa mais aos homens nas mulheres - volveu, secamente. - E não esqueças que te estás a tornar uma mulher.
- Não me interessa. Por que raio não me deixas sossegada?
- Proíbo-te que empregues essa linguagem na minha presença.
E os duelos verbais entre mãe e filha repetiram -se com in-termitências até ao dia em que Kate teve de partir. Como David necessitava de se deslocar a Londres em viagem de negócios, Margaret solicitou-lhe:
- Importa-se de a acompanhar? Só Deus sabe onde iria parar, se ninguém a escoltasse.
- Com o maior prazer - afirmou ele.
- És como a minha mãe! - vociferou Kate. - Estás em pulgas para te livrares de mim!
- Enganas-te - corrigiu David. - Posso esperar.
Viajaram numa carruagem privada de Klipdrift à Cidade do Cabo e daí de barco até Southampton, ao longo de quatro semanas. Embora o amor-próprio não lhe permitisse confessá-lo, Kate sentia-se encantada com a companhia de David. “É como uma lua-de-mel, com a diferença de que não estamos casados. Por enquanto!”
A bordo do navio, ele passava grande parte do tempo a trabalhar no seu camarote, enquanto ela se enroscava no sofá e o observava em silêncio, contente por se achar a seu lado.
Um dia perguntou:
167
- Não te chateias com tantos números?
- Não se trata apenas de números - redarguiu David, pousando a caneta e erguendo os olhos. - São histórias.
- De que espécie?
- Para quem os souber interpretar, são histórias de companhias que compram ou vendem, pessoas que trabalham para nós. Milhares de indivíduos por todo o mundo ganham a vida através da companhia que o teu pai fundou.
- Pareço-me com ele?
- Sim, em vários aspectos. Era um homem obstinado, independente.
- E eu sou uma mulher obstinada e independente?
- Digamos, antes, uma turbulenta mimada. O homem que casar contigo não conhecerá um momento de descanso.
“Pobre David…”, cismou ela, com um sorriso sonhador. Na sala de jantar, na sua derradeira noite no mar, ele perguntou:
- Porque te mostras tão difícil?
- Achas que sou?
- Bem sabes que sim. Enlouqueces tua mãe.
- A ti também? - sussurrou Kate, pousando a mão na dele.
- Pára com isso - e David sentiu-se corar. - Não te entendo.
- Entendes perfeitamente.
- Porque não és como as outras jovens da tua idade?
- Preferia morrer. Não me quero parecer com ninguém.
- Nisso, tens conseguido o teu objectivo!
- Juras não casar com ninguém até eu ser suficientemente adulta para ti? Prometo desenvolver-me o mais depressa possível. Limita-te a não conhecer ninguém que possas amar, por favor.
Enternecido pelo tom subitamente grave da interlocutora, ele pegou-lhe na mão e proferiu:
- Quando casar, desejarei que minha filha seja exactamente como tu.
Todavia, Kate levantou-se com brusquidão e, num tom que vibrou em toda a sala de jantar, vociferou:
- Vai para o raio que te parta, David Blackwell!
E encaminhou-se apressadamente para a saída, acompanhada pelos olhares assombrados de todos.
168
Passaram três dias juntos em Londres e ela adorou cada minuto de que se compuseram.
- Reservo -te uma surpresa - anunciou ele. - Consegui bilhetes para a peça Mistress Wiggs of lhe Cabbage Patch.
- Agradeço-te a atenção, mas prefiro ir ao Gaiety.
- Aí levam uma revista musical imprópria para a tua idade.
- Depois de a ver te direi se tens razão - insistiu Kate, com obstinação.
Por conseguinte, foram ao Gaiety.
Kate adorava o aspecto de Londres: a mistura de automóveis e tipóias, as mulheres com os seus trajos dispendiosos e elegantes e os homens de smoking ou sobrecasaca. Jantaram no Ritz, mais tarde cearam no Savoy e, no momento de se retirarem, ela reflectiu: “Havemos de voltar aqui juntos.”
Uma vez em Cheltenham, foram introduzidos no gabinete de Mrs. Keaton, à qual, após as saudações iniciais, David disse:
- Quero agradecer-lhe por admitir Kate.
- Estou certa de que gostaremos de a ter connosco. De resto, é com prazer que satisfaço um pedido de um amigo de meu marido.
Naquele momento, Kate compreendeu que fora ludibriada. Era David que a queria longe de casa e providenciara para que ficasse ali.
Sentia-se tão revoltada e amargurada que não quis despedir-se dele.
Capítulo décimo terceiro O colégio de Cheltenham era insuportável. Havia regras para tudo. As raparigas tinham de usar uniformes idênticos, que se prolongavam até aos tornozelos. O dia escolar durava dez horas e cada minuto estava rigidamente estruturado. Mrs.
Keaton dirigia as alunas e o pessoal com mão de ferro. Elas encontravam-se ali para aprender boas maneiras, disciplina,
169
etiqueta e decoro, a fim de, um dia, atraírem maridos convenientes.
Numa das cartas à mãe, Kate escreveu: “É uma autêntica prisão. As minhas companheiras são horríveis. Só sabem falar de vestidos e rapazes, e as professoras não passam de monstros. Não conseguirão manter-me cá. Hei-de fugir!”
Conseguiu escapar à vigilância por três vezes, mas acabou sempre por ser encontrada e remetida à procedência.
Numa reunião semanal do pessoal docente, quando o nome dela foi mencionado, uma das professoras afirmou:
- Esta rapariga é indomável. Penso que a devíamos recambiar para a África do Sul.
No entanto, Mrs. Keaton replicou:
- Concordo consigo, mas encaremos o caso como um desafio. Se conseguirmos disciplinar Kate McGregor, não voltaremos a ter problemas com qualquer internada.
Por conseguinte, a rapariga continuou no colégio.
Ante o assombro das professoras, Kate manifestou interesse pela herdade pertencente ao colégio, onde se cultivavam legumes e criavam galinhas e porcos, havendo igualmente algumas vacas e cavalos. Passava lá todo o tempo que podia e, quando se inteirou, Mrs. Keaton ficou profundamente satisfeita.
- Afinal, era uma simples questão de paciência - declarou numa reunião. - Ela encontrou finalmente o seu interesse na vida. Um dia, casará com um proprietário rural, ao qual será extremamente útil.
Na manhã seguinte, Oscar Denker, encarregado da herdade, procurou a directora e informou:
- Uma das raparigas, Kate McGregor, precisa ser afastada de lá.
- Porquê? - estranhou Mrs. Keaton. - Constou-me que se interessa muito pelos trabalhos.
- Sabe em que consiste o seu único interesse? Em ver os animais fornicar, se me permite a expressão.
- O quê?
- É como lhe digo. Observa-os com um prazer doentio.
- Com mil raios!
Kate ainda não perdoara a David por a ter enviado para o
170
exílio, mas sentia muito a sua falta. “O meu destino determinou que me apaixonasse por um homem que odeio”, reflectia com amargura. Contava os dias da separação como uma prisioneira ansiosa por chegar à data da libertação.
Entretanto, receava que ele cometesse algum acto irreparável, como, por exemplo, casar com outra mulher enquanto ela permanecia desterrada no maldito colégio. “Se o fizer, mato os dois. Não. Só a ela. Hão-de prender-me e enforcarme, mas, quando me encontrar no cadafalso, ele compreenderá que me ama. Mas será demasiado tarde e suplicará que lhe perdoe. "Sim, David querido. Estás perdoado. Foste cego ao ponto de não ver que tinhas um amor profundo na palma da mão, e deixaste -o voar como se fosse uma avezinha, que vai agora ser executada. Adeus, David." Todavia, no derradeiro instante, serei indultada e ele tomar-me-á nos braços e levar-me-á para um país exótico, onde a comida não se compare à horrível mistela servida em Cheltenham.”
Um dia, recebeu uma carta dele comunicando que visitaria Londres e a procuraria.
Acto contínuo, deu largas à imaginação e descobriu uma dezena de subentendidos nas linhas que acabava de ler. “Porque vem a Inglaterra? Para estar comigo, claro. Porque me visita? Porque compreendeu finalmente que me ama e não pode continuar longe de mim. Vai arrebatar-me deste antro insuportável.” Por conseguinte, continha a alegria com dificuldade, e a sua fantasia era tão real que no dia da chegada dele começou a despedir-se das colegas, com a explicação:
- O meu namorado vem buscar-me.
Elas olhavam-na com incredulidade, sem todavia se pronunciarem, à excepção de Georgina Christy, que fungou desdenhosamente e acusou:
- É mais uma das tuas mentiras.
- Espera e verás. Ele é alto e simpático e está louco por mim.
Quando chegou, David ficou intrigado com a curiosidade de que era alvo por parte das raparigas, que o observavam, sorriam maliciosamente e murmuravam umas às outras.
- Parece que nunca viram um homem - comentou, quando se encontrou a sós com Kate. Olhando-a com desconfiança, perguntou: - Disseste alguma coisa a meu respeito?
171
- Que ideia! Porque faria uma coisa dessas? Almoçaram na ampla sala de jantar do colégio e David pô-la ao corrente do que se passava em casa.
- Tua mãe manda-te beijos e aguarda com ansiedade as férias grandes para voltar a ver-te.
- Como está ela?
- Bem, mas trabalha muito.
- Qual a situação da companhia?
- A melhor possível - asseverou, surpreendido com a pergunta. - Porquê? · Porque um dia me pertencerá e compartilhá-la-emos juntos”, pensou ela, ao mesmo tempo que respondia:
- Por mera curiosidade.
- Não comes? - estranhou David, vendo que ela conservava o prato intacto.
Na verdade, Kate não estava interessada na comida, pois aguardava com ansiedade o momento mágico em que ele diria: “Vem comigo, Kate. Já és uma mulher e desejo-te. Casaremos imediatamente.”
Todavia, a refeição chegou ao fim sem que a ansiada declaração se produzisse.
Só no instante em que consultou o relógio e anunciou que tinha de se retirar, sob pena de perder o comboio, ela compreendeu, com uma sensação de horror, que não tencionava levá -la consigo. O bastardo deixá-la-ia apodrecer naquela prisão infecta!
Por seu turno, ele ficara satisfeito com a visita. Kate mostrava-se uma rapariga inteligente e comunicativa, e a rebelião que outrora manifestava parecia dominada. Antes de se despedirem, pousou a mão na dela com afecto e inquiriu:
- Precisas de alguma coisa?
- Sim, podes fazer-me um grande favor - retorquiu ela, com um olhar incendiário. - Desaparece da minha vida para sempre!
E afastou-se com notável dignidade, de cabeça erguida, deixando-o boquiaberto.
Margaret não podia negar que tinha saudades de Kate. Apesar de se tratar de uma rapariga irrequieta e rebelde, reconhecia que era o único ser vivo que estimava. “Será uma mulher importante”, admitia com orgulho, “mas quero que tenha as maneiras de uma senhora.”
172
Quando a filha se apresentou, nas fé rias grandes, perguntou-Lhe:
- Que tal te dás no colégio?
- Detesto-o! É como se estivesse rodeada por uma centena de amas.
- As tuas colegas pensam da mesma maneira?
- Ora! - articulou Kate, com uma expressão de desdém. - Gostava que as visses.
Estiveram sempre metidas em redomas. Não sabem nada da vida.
- Nesse caso, deves ter um ambiente horrível - observou Margaret, com uma ponta de sarcasmo.
- Não faças pouco de mim, por favor. Nunca estiveram na África do Sul. Os únicos animais selvagens que viram foi no parque zoológico. Não fazem a mínima ideia do que seja uma mina de diamantes ou de ouro.
- Não tiveram a tua sorte.
- Ri-te, mas quando me tornar como elas, hás-de arrepender-te.
- Achas possível?
- De modo algum - Kate exibiu um sorriso malicioso. - Julgas que endoideci?
Ainda não havia uma hora que chegara e já se encontrava no pátio jogando râguebi com os filhos do pessoal doméstico, enquanto Margaret a observava da janela e reflectia: “Estou a desperdiçar dinheiro. Nunca mudará.”
Naquela noite, dura nte o jantar, a rapariga perguntou:
- David está na cidade?
- Creio que regressa amanhã da Austrália.
- Então, vem jantar na sexta -feira?
- É provável - Margaret estudou o semblante da filha e aventurou: - Gostas dele, hem?
- Suporto-o - foi a resposta seca, com um encolher de ombros. - Simpatizo com ele como ser humano, mas detesto-o como homem.
Na sexta-feira, quando David se apresentou para jantar, Kate precipitou-se para a porta, a fim de o abraçar, e murmurou-lhe ao ouvido:
- Perdoo-te. Tive tantas saudades tuas! Sentiste a minha falta?
173
Ele respondeu afirmativamente, ao mesmo tempo que pensava: “Na verdade, senti muito a sua ausência!” Nunca conhecera ninguém como aquela rapariga.
Apesar de a ver crescer com escassas ausências, cada reencontro constituía uma revelação. Estava prestes a completar dezasseis anos e principiava a apresentar a configuração de adulta. Podia mesmo considerar-se uma beldade, com espírito acutilante e voluntariosa. “Será um quebra-cabeças para o homem que a levar…”, não pôde deixar de admitir.
Enquanto comiam, ele perguntou:
- Como vão as coisas no colégio?
- O melhor possível. Estou a aprender muito. As professoras são maravilhosas e tenho muitas amigas - e Kate fez uma pausa, ignorando a expressão perplexa da mãe. - Deixas-me ir contigo às minas?
- É assim que queres passar as férias?
- Exacto.
A deslocação às minas exigia um dia inteiro, o que significava que estaria ao lado de David durante todo esse tempo.
- Se tua mãe aprova…
- Por favor, mãe!
- Pois sim, q uerida. Indo com ele, sei que estarás em segurança.
Ao mesmo tempo, Margaret reflectia que não podia sentir-se tão tranquila quanto à segurança de David.
A mina de diamantes da Kruger-Brent, nas proximidades de Bloemfontein, era um complexo gigantesco, com centenas de operários entregues às diversas operações.
- É uma das mais lucrativas da companhia - explicou David, quando se achavam no gabinete do capataz, aguardando alguém que os acompanhasse às profundezas do solo. Numa das paredes, via-se uma vitrina cheia de diamantes de todas as cores e dimensões. - Cada pedra tem uma característica distinta. As provenientes das margens do Vaal são de aluvião e têm as faces polidas pela erosão de séculos.
“Está mais atraente que nunca”, reflectia Kate. “Adoro as suas sobrancelhas!” - Apesar de procederem de diferentes minas, podem identificar-se pelo aspecto - prosseguiu ele. - Repara nesta. O tamanho e a tonalidade amarelada indicam que veio de
174
Paardspan. As De Beer têm uma superfície oleosa e a forma de dodecaedros.
“É brilhante. Sabe tudo.” - Esta outra veio da mina de Kimberley, porque é um oc-taedro.
“O capataz pensará que somos amantes? Oxalá que sim!” - A cor de um diamante serve para lhe determinar o valor e refere -se segundo uma escala que vai de um a dez. Em primeiro lugar, figura o azul-esbranquiçado e, em último, o castanho.
“E cheira tão bem! É um odor másculo. Adoro os seus braços e ombros. Quem dera…” - Kate!
- Sim, David? - articulou com embaraço.
- Estás a prestar atenção?
- Com certeza - afirmou, indignada. - Não me escapou uma única palavra do que disseste.
Passaram as duas horas seguintes nas entranhas da mina, após o que foram almoçar, o que constituía a ideia dela de um dia divinal.
Quando a filha regressou, ao fim da tarde, Margaret perguntou:
- Divertiste-te?
- Imenso! O trabalho nas minas é realmente fascinante. Meia hora depois, espreitou casualmente pela janela e viu-a lutar com o filho de um dos jardineiros.
Na época escolar subsequente, as cartas de Kate do colégio revelaram-se prudentemente optimistas. Fora nomeada capitã das equipas de hóquei e lacrasse ' e figurava no quadro de honra. O colégio não era tão mau como supusera ao princípio e até havia algumas colegas realmente simpáticas. Pedia autorização para levar duas delas nas férias grandes, ideia que agradou a Margaret. Agora, os seus sonhos concentravam-se apenas em Kate. “Jamie e eu pertencemos ao passado. Ela é o futuro. E que belo futuro será!” ' Jogo de origem canadiana, no qual a bola é jogada com uma raqueta em forma de L. (N. do T.)
175
Quando Kate regressou a casa nas férias, todos os rapazes a assediavam em busca do privilégio da sua companhia, mas ela não se mostrava interessada.
David encontrava-se na América, e aguardava com impaciência que voltasse. No dia em que se apresentou, a rapariga foi recebê-lo à entrada, e ele sentiu-se surpreendido com o calor da reacção que se lhe deparou no momento em que a abraçou. Em seguida, retrocedeu um passo e contemplou-a. Havia algo de diferente nela, uma expressão no olhar que não conseguia definir e o embaraçava vagamente.
Nas poucas vezes em que as viu naquelas férias, achava-se rodeada por rapazes e especulava involuntariamente acerca de qual seria o felizardo. Dias depois, necessitou de se deslocar uma vez mais à Austrália e, quando regressou a Klipdrift, Kate já seguia a caminho da Inglaterra.
No último ano no colégio, David surgiu inesperadamente, uma tarde. Em regra fazia-se preceder de uma carta ou telegrama, mas desta vez não houvera qualquer advertência prévia.
- Que surpresa maravilhosa! - exclamou Kate. - Devias ter-me prevenido, para…
- Venho buscar-te - anunciou ele com gravidade.
- Há alguma novidade?
- Tua mãe está muito mal.
Ela conservou-se como que petrificada por um momento e murmurou:
- Vou fazer as malas.
Kate ficou chocada com o aspecto da mãe, pois vira-a poucos meses antes e parecera-lhe de excelente saúde. Agora, apresentava-se pálida e magra e o clarão voluntarioso dissipara-se do olhar. Dir-se-ia que o cancro que lhe devorava a carne também consumira a alma.
- Oh, mãe… - proferiu a rapariga, sentando-se na borda da cama e pegando na mão de Margaret. - Não sei como exprimir…
- Estou preparada, minha filha. No fundo, creio que o tenho estado desde a morte de teu pai. Queres ouvir um disparate? Sempre me preocupei com a possibilidade de ninguém cuidar dele como devia. Agora, posso fazê -lo eu.
176
Margaret foi sepultada três dias depois, e a sua morte abalou Kate profundamente.
Perdera o pai e o irmão sem os conhecer, meras personagens obscuras do passado. O passamento da mãe, porém, era real e doloroso. Tinha dezoito anos e achava-se repentinamente só no mundo, perspectiva que se lhe afigurava assustadora.
No cemitério, diante da sepultura, resistiu corajosamente às lágrimas que pretendiam jorrar, mas uma vez em casa sentiu-se incapaz de as conter e rompeu em soluços.
- Foi sempre maravilhosa para mim e eu não passei de uma filha ingrata.
- Também foste uma filha maravilhosa - murmurou David, numa tentativa para a consolar.
- Só lhe causei preocupações. Daria tudo para me poder redimir. Eu não queria que ela morresse.
Ele aguardou que desabafasse por completo e, quando a viu mais calma, disse:
- Embora te custe a crer, essa dor desaparecerá, um dia. E sabes o que restará?
Recordações gratas. Lembrar-te-ás de todas as coisas agradáveis que tu e ela partilharam.
- É possível. Mas neste momento sofro horrivelmente. Na manhã seguinte, discutiram o futuro dela.
- Tens família na Escócia - recordou David.
- Não! Não é a minha família. São parentes - comentou Kate, numa inflexão de amargura. - Quando meu pai quis partir para aqui, zombaram dele. Ninguém o ajudou, à parte a mãe, que já morreu. Não tenho nada de comum com aquela gente.
- Tencionas completar os estudos? - e sem dar ensejo a que ela respondesse, acrescentou: - Penso que tua mãe o desejaria.
- Nesse caso, voltarei para lá - e baixou os olhos para o chão, articulando entre dentes: - Raios partissem o colégio.
- Também, já não falta muito.
Kate concluiu o curso com uma classificação elevada e David esteve presente na festa de encerramento.
Quando se encontravam na carruagem privada, no trajecto de Joanesburgo para Klipdrift, ele observou:
- Tudo isto será teu dentro de poucos anos: esta carruagem,
177
as minas, a companhia. Podes considerar-te uma mulher extremamente rica. Se resolveres vender tudo, obterás muitos milhões de libras - olhou-a com curiosidade e concluiu: - A menos que prefiras ficar à testa das operações. Em breve terás de tomar uma decisão.
- Já ponderei o assunto - redarguiu Kate, com um sorriso. - Meu pai era um pirata.
Um velho pirata maravilhoso. Lamento não o ter conhecido. Não venderei a companhia. E queres saber porquê? Porque o pirata lhe deu os nomes de dois guardas que tentaram matá -lo. Não te parece uma ideia extraordinária? Às vezes, de noite, quando não consigo dormir, penso em meu pai e em Banda rastejando através do mis do mar e julgo ouvir as vozes dos guardas: Kruger- Brent… - meneou a cabeça. - Nunca a venderei. Pelo menos, enquanto te mantiveres nela e velares por tudo.
- Ficarei até deixares de precisar de mim - prometeu David, com uma expressão solene.
- Decidi matricular-me numa escola comercial.
- Numa escola comercial? - ecoou ele, surpreendido.
- Estamos em 1910 - lembrou Kate. - Há várias em Joanesburgo que admitem raparigas.
- Mas…
- Perguntaste o que faria com o meu dinheiro. Quero merecê-lo.
Capítulo décimo quarto A escola comercial constituiu uma aventura nova e excitante. Quando frequentara Cheltenham, Kate encarara o facto como uma obrigação, um mal necessário.
Agora, era diferente. Em todas as aulas aprendia algo que lhe seria útil quando dirigisse a companhia. O curso incluía contabilidade, gestão, comércio internacional e administração de empresas. Uma vez por semana, David telefo nava, a fim de se inteirar de como corriam as coisas, e ela respondia:
- Maravilhosamente. É uma experiência excitante.
Um dia, trabalharia ao lado dele, até altas horas da noite, e, quando menos esperasse, David voltar-se-ia para ela e
178
confessar-lhe-ia: “Tenho sido um pateta, querida. Queres casar comigo?” No instante imediato, estariam nos braços um do outro.
Mas isso ainda vinha longe. Para já, tinha muito que aprender, pelo que se concentrava firmemente nos estudos.
O curso comercial prolongou-se por dois anos, e Kate regressou a Klipdrift a tempo de celebrar o seu vigésimo aniversário. David foi esperá-la à estação e ela lançou-lhe os braços ao pescoço num gesto impulsivo.
- Estou tão contente de te ver!
- Alegra-me que voltasses finalmente - articulou ele, mas arrependendo-se com prontidão.
- Que tens?
- Nada. Simplesmente, as jovens não abraçam os homens em público.
- Compreendo - murmurou Kate, depois de o olhar em silêncio por um momento. - Prometo não tornar a embaraçar-te.
No percurso para casa, David observou-a dissimuladamente. Na verdade, convertera-se numa mulher atraente, inocente e vulnerável, e prometeu a si próprio nunca se aproveitar disso.
Na manhã de segunda-feira, Kate instalou-se no seu novo gabinete na Kruger- Brent, Ltd. Afigurava-se-lhe que mergulhara subitamente num universo exótico e bizarro, com costumes e linguagem próprios. Havia um surpreendente estendal de divisões, subsidiários, departamentos regionais, insenções alfandegárias e sucursais no estrangeiro. Os produtos que a companhia manufacturava ou possuía pareciam intermináveis. Existiam igualmente fábricas, ranchos de gado, uma via-férrea, uma linha de navegação e, evidentemente, a fundação da fortuna da família: diamantes, ouro, zinco, platina e magnésio extraídos sem interrupção, que ingressavam nos cofres da companhia.
Poder.
Era quase excessivo para se poder abarcar na totalidade. Kate, sentada no gabinete de David, assistia atentamente, enquanto ele tomava decisões que afectavam milhares de pessoas dispersas pelo mundo. Os responsáveis das várias divisões apresentavam sugestões, mas estas eram refutadas com frequência.
179
- Porque discordas deles? - quis saber Kate. - Não cumprem a sua obrigação?
- Claro que cumprem, mas não é essa a questão. Cada um e ncara o seu departamento como o centro do mundo, como convém. No entanto, alguém tem de formar uma visão global e decidir o que interessa mais à companhia. Anda daí.
Vamos almoçar com uma pessoa que precisas de conhecer.
David conduziu-a à espaçosa sala de jantar contígua ao gabinete dela, onde os aguardava um rapaz de rosto esguio e olhar incisivo.
- Este é Brad Rogers - informou David. - Brad, aqui tem a sua nova patroa, Kate McGregor.
- Tenho muito gosto em conhecê-la, Miss McGregor - disse o rapaz, este ndendo a mão.
- É a tua arma secreta - explicou David a Kate. - Sabe tanto acerca da Kruger- Brent, Ltd. como eu. Se alguma vez me afastar, ele suprirá a minha falta. · Se alguma vez me afastar…”. A possibilidade obrigou a rapariga a estremecer involuntariamente. “Ele nunca abandonaria a companhia”. Não obstante, só pensou nisso ao longo da refeição e, no final, não conseguiu recordar-se do que comera.
Após o almoço, trocaram impressões sobre a África do Sul.
- Teremos problemas em breve - advertiu David. - O Governo acaba de promulgar o imposto individual.
- Em que consiste, exactamente? - perguntou Brad Rogers.