- Tubarões de barbatana preta - anunciou Banda. - São devoradores de homens!

- Que fazemos? - articulou Jamie, conservando os olhos fixos nos terríveis esqualos.

- Para ser franco - redarguiu o negro, engolindo em seco -, é a minha primeira experiência desta natureza.

Um dos tubarões colidiu com a jangada e quase a fez voltar-se, obrigando os dois homens a segurarem-se ao mastro. Jamie pegou num dos ramos para atingir o agressor e, no instante imediato, viu-o cortado em dois pelos dentes aguçados. A seguir, os tubarões principiaram a circundar a jangada, sacudindo-a de vez em quando.

- Temos de nos livrar deles antes que voltem a jangada.

- Como? - quis saber Banda.

68

- Passa-me uma lata de carne.

- Deixe-se de brincadeiras. Eles não se satisfazem com tão pouco. Querem uma refeição suculenta. Nós, por exemplo!

Registou-se novo embate e a jangada inclinou-se.

- A carne, depressa! - bradou Jamie.

No instante imediato, o negro colocava-lhe uma lata na mão. Em seguida, puxou de um canivete e rasgou parte da tampa.

- Agora, segura -te bem. Banda!

Jamie acercou-se da borda da jangada e aguardou. Quase imediatamente, surgiu um tubarão que abria a boca ameaçadoramente. O rapaz visou-lhe os olhos com um movimento rápido. A folha metálica da tampa, aguçada como uma faca, retalhou a pele da cabeça do tubarão, que se agitou como um possesso, ao mesmo tempo que a água em volta se tingia de sangue. Os outros desinteressaram-se dos dois homens e concentraram-se no companheiro, que principiaram a devorar com ferocidade.

- Espero, um dia, poder contar isto aos meus netos - articulou Banda, com um suspiro de alívio, enquanto se afastavam. - Parece-lhe que acreditarão?

E riram até as lágrimas lhes rolarem pelas faces.

Mais tarde, Jamie consultou o relógio de bolso e declarou:

- Devemos estar ao largo da praia dos diamantes cerca da meia-noite. O Sol nasce às seis e um quarto. Portanto, dispomos de quatro horas para recolher o maior número possível de diamantes e duas para regressar ao mar alto. Achas que são suficientes?

- Nenhum ser humano viveria o tempo necessário para gastar.o que se pode apanhar naquela praia em quatro horas. Oxalá nós vivamos o suficiente para os levar.

Prosseguiram para o Norte durante o resto do dia, impelidos pelo vento e a corrente. Perto do anoitecer, descortinaram uma ilhota à sua frente, que parecia não ter um perímetro superior a duzentos metros. À medida que se aproximavam o odor acre a amoníaco intensificava -se, afectando-lhes os olhos. Jamie compreendeu sem dificuldade a razão pela qual ninguém vivia lá. Na verdade, o fedor era insuportável. No

69

entanto, constituiria um lugar excelente para se ocultarem até ao momento oportuno. Ele ajustou a vela devidamente e a jangada não tardou a acostar à superfície rochosa da ilhota. Em seguida, Banda tratou de a amarrar e saltaram para terra. Havia uma infinidade de aves: corvos marinhos, pelicanos, pinguins e flamingos.

Avançaram meia dúzia de passos e os pés afundaram-se em guano, pelo que Jamie sugeriu que regressassem à jangada.

No momento em que se preparavam para retroceder, um bando de pelicanos levantou voo e revelou um espaço no solo… ocupado por três homens estendidos.

Não havia possibilidade de determinar há quanto tempo estavam mortos, pois os corpos haviam sido preservados pelo amoníaco que saturava a atmosfera.

Instantes depois, Jamie e Banda encontravam -se de novo na jangada e afastavam-se para o largo.

Mantiveram-se distantes da costa, com a vela recolhida, na expectativa. Jamie decidiu permanecer ali até à meia-noite, após o que se acercariam de terra.

Conservaram-se sentados em silêncio, imersos em cogitações relacionadas com o que se avizinha va. O Sol principiou a mergulhar no horizonte e, de súbito, imperou a escuridão.

Deixaram transcorrer mais duas horas e Jamie içou a vela. Acto contínuo, a jangada começou a deslocar-se para a costa, cujos contornos não tardaram em descortinar ao luar pálido. O vento aumentou de intensidade e a velocidade da embarcação improvisada tornou-se quase assustadora. Em breve avistaram um gigantesco parapeito de rocha. Apesar da distância, era possível ver e ouvir a rebentação que explodia nos recifes. Constituía um espectáculo impressionante, observado de longe, e Jamie preferia não especular sobre o efeito que exerceria no seu espírito se admirado de perto.

- Tens a certeza de que o lado do mar não é vigiado? - perguntou de súbito.

Banda limitou-se a pontar para os recifes, mais desencora-jadores que qualquer obstáculo que o homem pudesse conceber. Eram os guardas do mar, e nunca dormiam nem descansavam. Mantinham-se imóveis, inabaláveis, à espera que os imprudentes se aproximassem. “Havemos de os ludibriar”, reflectiu Jamie.

“Passaremos por cima…”

70

A jangada levara-os até ali e continuaria a transportá-los até ao fim. A costa parecia acercar-se vertiginosamente e os dois homens começaram a sentir a ondulação das vagas gigantescas.

- Levamos uma velocidade enorme - advertiu Banda, segurando-se fortemente ao mastro.

- Não te preocupes. Quando estivermos mais perto, recolho a vela. Assim, passamos a ir mais devagar e ultrapassamos os recifes com facilidade.

Entretanto, o impulso do vento e das vagas aumentava, arrastando a jangada para os recifes fatais. Jamie calculou rapidamente a distância que faltava e decidiu que a ondulação os conduziria à praia sem o auxílio da vela, pelo que se apressou a arriá-la. Todavia, a velocidade não sofreu alteração. A embarcação achava-se totalmente nas garras das enormes vagas, descontrolada, lançada de uma crista para a seguinte. Os solavancos eram tão fortes que os dois tripulantes necessitavam de se segurar com ambas as mãos. Jamie previra que a etapa final se revelaria difícil, mas aquilo excedia todas as suas expectativas. Em dado momento, sentiram-se como que erguidos no espaço e propulsionados para a frente, e ele bradou:

- Segura-te bem, Banda, que vamos entrar!

As vagas “agarraram” a jangada como se fosse um simples fósforo e começaram a arrastá-la para terra, por cima dos recifes. De súbito, Jamie atreveu-se a olhar para baixo e avistou o gume cortante do obstáculo natural.

Ouviu-se um ruído seco, produzido pelo rasgar de metal no instante em que um dos barris contactou com os recifes e foi dilacerado implacavelmente.

- Salta para a água! - gritou Jamie.

Mergulhou para a frente e pareceu-lhe que uma mão gigantesca e irresistível o impelia como se fosse um mero boneco. Apesar de transcorrerem poucos segundos até ao instante em que experimentou o contacto da areia, afigurou-selhe que não sairia da aventura com vida.

Por fim, soergueu-se e olhou em volta. Banda achava-se agachado a uns dez metros de distância, vomitando água do mar. Sacudindo a cabeça para dissipar o leve aturdimento, Jamie pôs -se de pé e aproximou-se dele em passos hesitantes.

- Estás bem?

71

O negro inclinou a cabeça com lentidão e, erguendo os olhos, informou:

- Não sei nadar.

Jamie ajudou-o a levantar-se e viraram-se para contemplar o recife. Não havia vestígios da jangada. O oceano destruíra -a por completo. Tinham conseguido introduzir-se no campo de diamantes.

Mas não dispunham de qualquer meio para o abandonar.

Capítulo quinto Atrás deles encontrava-se o mar em fúria. À frente, o deserto, até ao sopé das distantes montanhas arroxeadas da cordilheira Richterveld, um mundo de ravinas, desfiladeiros e cristas, sob o luar pálido. Antecedia-os o vale Hexenkessel (“caldeirão da bruxa”), uma área fustigada por ventos fortes constantes. Era uma paisagem primitiva, desoladora, que remontava aos primórdios do Tempo. A única indicação de que o homem visitara o local consistia numa tabuleta rudimentar pregada a uma estaca imersa na areia: “VERBODE GEBIED SPERRGEBIET”

Zona interdita.

Não existia fuga possível na direcção do mar. O único caminho que lhes restava era o deserto da Namíbia.

- Vamos ter de tentar atravessá-lo e confiar na nossa boa estrela - admitiu Jamie.

- Os guardas abatem-nos ou enforcam-nos - replicou Banda, meneando a cabeça.

- E mesmo que conseguíssemos evitá -los e aos cães, restavam as minas.

Estamos virtualmente mortos.

Não deixava transparecer medo. Apenas uma aceitação resignada do seu destino.

Jamie olhou-o em silêncio e sentiu-se dominado por remorsos. Arrastara -o para aquela aventura e não se lamentara uma

72

única vez. Mesmo agora, consciente de que não existia salvação possível, não pronunciava uma palavra de censura.

Voltando-se em seguida para a muralha de vagas enfurecidas que se desfaziam na praia, reconheceu que só um milagre explicava que tivessem chegado até tão longe. Eram duas horas da madrugada, faltando quatro para a alvorada e a descoberta da sua presença por parte dos guardas, e continuavam inteiros.

“Demónios me levem se vou desistir!”, decidiu com firmeza.

- Vamos a isto, Banda.

- A quê? - inquiriu o negro, pestanejando de perplexidade.

- Não viemos à procura de diamantes? Então, vamos a eles.

Banda fixou o olhar arregalado no companheiro de cabelos brancos encharcados colados à cabeça e calças encharcadas e rasgadas e confessou:

- Não compreendo.

- Disseste que os guardas nos abatiam, não foi? Nesse caso, mais vale que nos matem ricos do que pobres. Um milagre fez com que chegássemos até aqui.

Talvez outro nos permita sair, e se tal acontecer não quero partir de mãos vazias.

- Endoideceu!

- Sem dúvida, de contrário não estávamos aqui.

- Muito bem - e Banda encolheu os ombros, num gesto de resignação. - Não tenho nada que fazer até que nos descubram.

Jamie despiu a camisa e o outro compreendeu e imitou-o.

- Ora bem. Onde estão esses diamantes enormes de que falaste?

- Em toda a parte - afirmou o negro. - Como os guardas e os cães.

- Preocupamo-nos com eles mais tarde. Quando vêm para aqui?

- Logo que amanhece.

Jamie reflectiu por um momento e perguntou:

- Há algum sector da praia que não frequentem e onde nos possamos esconder?

- Não.

- Bom, vamos ao trabalho.

73

Banda agachou-se e afundou os dedos na areia, fazendo-os deslizar como um ancinho. Ainda não haviam decorrido dois minutos, quando se imobilizou e extraiu uma pedra.

- O primeiro!

Jamie tratou de o imitar. As duas primeiras que encontrou eram pequenas, porém a terceira devia pesar uns quinze quilates e ele olhou-a pensativamente por uns momentos. Afigurava -se-lhe incrível que semelhante fortuna pudesse ser recolhida com tanta facilidade. E tudo aquilo pertencia a Salomon van der Merwe e seus associados.

Nas três horas seguintes, os dois homens encontraram mais de quarenta diamantes, que variavam entre os dois e trinta quilates. Entretanto, o céu começava a clarear a nascente, anunciando o momento em que Jamie projectara partir na jangada. Agora, porém, nem merecia a pena pensar nisso.

- Não tarda a amanhecer - murmurou. - Vejamos quantos mais recolhemos.

- Não viveremos para os desfrutar. Interessa-lhe morrer rico, pelo que vejo.

- Não me interessa morrer. Rico ou pobre.

Reataram as pesquisas, como que dominados por uma loucura irresistível. O monte foi-se avolumando, até que sessenta diamantes, que valiam o resgate de um rei, se reuniam nas camisas que haviam colocado na areia.

- Quer que os leve? - perguntou Banda.

- Não. Podemos repartir o peso e… - de súbito, Jamie apercebeu-se da ideia do companheiro: aquele que fosse apanhado com as pedras em seu poder teria uma morte mais lenta e dolorosa. - Levo-os eu.

Reuniu todos os diamantes na sua camisa e deu-lhe um nó cautelosamente. O horizonte apresentava-se mais claro e pairavam no firmamento tonalidades rubras prenunciadoras do aparecimento iminente do Sol.

Que deviam fazer a seguir? Permanecer ali e morrer ou aventurar-se no deserto e perder igualmente a vida?

- Toca a andar - resolveu, por fim.

Principiaram a afastar-se do mar com lentidão, olhando em volta repetidamente.

- Onde começam as minas?

- Uns cem metros à nossa frente - mas naquele momento soou um latido ao longe e Banda comentou: - Não creio

74

que mereça a pena preocuparmo-nos com elas. Os cães vêm já aí. O turno de guardas da manhã vai entrar de serviço.

- Quanto tempo demoram a chegar aqui?

- Quinze minutos. Talvez dez.

Entretanto, amanhecera por completo e os contornos da paisagem árida, com as montanhas ao fundo, destacavam-se com nitidez, revelando que não havia lugar algum para se ocultarem.

- De quantos homens se compõe cada turno?

- Cerca de dez - informou Banda, após um momento de reflexão.

- Não são muitos para uma praia destas dimensões.

- Bastava um. Lembre-se das armas e dos cães de que dispõem. Os guardas não são cegos nem nós invisíveis.

Os latidos aproximavam-se gradualmente e Jamie abanou a cabeça.

- Lastimo ter-te envolvido nisto.

- Não envolveu.

Alcançaram uma pequena duna e ele sugeriu:

- Porque não nos enterramos na areia?

- É um truque que já foi tentado. Os cães localizavam-nos e degolavam-nos.

Quero uma morte rápida. Vou deixar que me vejam e começo a correr. Assim, liquidam-me com um tiro. Não estou interessado em estabelecer contacto com os cães.

- Podemos morrer, mas macacos me mordam se consinto que nos lancemos nos braços da morte.

Começaram a distinguir vozes ao longe. “Movam-se, bastardos indolentes!”, rugia alguém em tom irritado. “Si-gam-me em fila indiana… Tiveram toda a noite para se recompor… São horas de trabalhar…”

Apesar das palavras de encorajamento que pronunciara, Jamie descobriu que tentava afastar-se da origem da voz. Voltou-se para contemplar o mar uma vez mais e perguntou-se se o afogamento constituiria uma maneira mais fácil de morrer. De súbito, descortinou algo para além da rebentação impetuosa e, sem compreender de que se tratava, consultou Banda.

Ao largo, uma muralha cinzenta impenetrável avançava para terra, impelida pelo poderoso vento oeste.

- É o mis do mar! - exclamou o negro. - Aparece duas ou três vezes por semana.

75

Entretanto, o mis continuava a acercar-se, como uma cortina cinzenta gigantesca, cobrindo o horizonte e ofuscando o céu.

Ao mesmo tempo, as vozes também se aproximavam: “Den Dousaní! Maldito misl Mais um atraso. Os patrões não vão.gostar disto…” - Temos uma possibilidade - gritou Jamie.

- Qual?

- O mis! Eles não poderão ver-nos.

- Não lucramos nada com isso. Acabará por se dissipar e nessa altura continuaremos aqui. Se os guardas não podem avançar entre as minas, nós muito menos. Por outro lado, se tentamos atravessar o deserto durante o mis, ficamos reduzidos a pedaços. Precisávamos de outro dos seus milagres.

- Talvez aconteça.

O céu tornava-se cada vez mais negro sobre as suas cabeças. O mis estava perto e cobria o mar, preparando-se para tragar a praia. Apresentava um aspecto tenebroso e ameaçador à medida que rolava na direcção dos dois homens, mas Jamie pensava que os salvaria.

De repente, uma voz rugiu:

- Que diabo fazem vocês aí?

Voltaram-se e, no topo de uma duna, a uns cem metros deles, avistaram um homem uniformizado munido de uma espingarda. Jamie virou-se para a praia e viu que o mis estava quase sobre eles.

- Vocês os dois! - volveu o guarda, erguendo a arma. - Venham cá!

- Torci o pé - anunciou Jamie, levantando os braços. - Não posso andar.

- Deixem-se estar aí - rectificou o homem, baixando a espingarda e começando a mover-se para eles.

Jamie voltou-se uma vez mais e verificou que o mis alcançara a orla da praia e prosseguia em frente rapidamente.

- Mexe-te! - indicou a Banda, e deu o exemplo principiando a correr para a praia.

- Alto!

No segundo imediato ouviram um estampido seco e a areia um pouco adiante deles pareceu explodir. No entanto, continuaram a correr ao encontro da enorme muralha

76

cinzenta de nevoeiro. Registou-se nova detonação, agora mais perto, logo seguida de outra, e os dois fugitivos viram -se imersos em escuridão absoluta. O mis do mar parecia envolvê-los, como em algodão. Tornava-se impossível enxergar coisa alguma.

As vozes soavam agora abafadas e distantes, infiltrando-se no mis, provenientes de todas as direcções.

- Kruger! Sou Brent… Ouves-me?

- Muito bem, Kruger!

- São dois - volveu a primeira voz. - Um branco e um preto. Fugiram para a praia.

Espalha os teus homens pelo areal. Skiet hom! Atirem a matar.

- Segura-te a mim - recomendou Jamie.

- Onde vamos? - quis saber Banda, rodeando-lhe o pulso com os dedos.

- Sair daqui! - Jamie aproximou a bússola dos olhos para conseguir distinguir o mostrador, após o que a moveu até que o ponteiro apontou para leste. - Para este lado.

- Espere! Se nos movemos e não esbarramos num guarda ou num cão, fazemos explodir uma mina.

- Disseste que estavam a uns cem metros. Afastemo-nos da praia.

Começaram a encaminhar-se para o deserto, em passos lentos e hesitantes, como cegos num local desconhecido. Jamie ia medindo a distância, detendo-se para consultar a bússola de vez em quando. Quando calculou que haviam percorrido cerca de uma centena de metros, deteve-se e disse:

- As minas devem principiar mais ou menos aqui. Sabes se estão dispostas segundo uma maneira definida? Ocorre-te alguma coisa que nos possa ser útil?

- Uma oração. Ninguém conseguiu transpor o campo de minas, até hoje. Estão dispersas por todos os lados, a uns quinze centímetros de profundidade. Vamos ter de ficar aqui até que o mis se dissipe e entregar-nos.

Entretanto, Jamie distinguia as vozes envoltas em algodão:

- Mantém o contacto vocal, Kruger!

- Entendido, Brent.

- Kruger…

- Brent…

Vozes sem corpos que se chamavam mutuamente no nevoeiro impenetrável. A mente de Jamie desenvolvia actividade

77

frenética, explorando todas as possibilidades de fuga possíveis. Se se mantivessem ali, seriam abatidos instantaneamente no momento em que o mis levantasse. Se tentassem aventurar-se no campo minado, voariam em pedaços.

- Alguma vez viste as minas? - perguntou a meia-voz.

- Ajudei a enterrar várias.

- O que as faz explodir?

- O peso de quem as pisa. Tudo o que pesa mais de quarenta quilos é suficiente.

É por isso que os cães não correm perigo.

- Talvez se arranje uma maneira de nos safarmos - murmurou, depois de encher os pulmões de ar. - O êxito não é garantido. Queres arriscar-te comigo?

- Que ideia se lhe meteu na cabeça?

- Vamos atravessar o campo de minas rastejando. Assim, distribuímos o peso do corpo por uma superfície mais ampla.

- Santo Deus!

- Que te parece?

- Parece-me que devia estar doido para o seguir até aqui.

- Vens ou não?

- Que remédio! - assentiu Banda, com um suspiro. Jamie deitou-se cautelosamente de bruços e, após um momento de hesitação, o companheiro imitou-o. Em seguida, principiaram a rastejar com a máxima prudência em direcção ao campo de minas.

- Não exerças pressão só com as mãos e as pernas - recomendou Jamie. - Distribui o peso por todo o corpo.

Banda não replicou, totalmente concentrado na suprema operação de permanecer vivo.

Encontravam-se num vácuo cinzento e sufocante que tornava impossível enxergar coisa alguma. Podiam colidir com um guarda, um cão ou uma mina a todo o instante, mas Jamie esforçava -se por afastar semelhante hipótese do pensamento. O avanço desenrolava-se com lentidão pungente. Achavam -se ambos de tronco nu e a areia roçava -lhes desagradavelmente no estômago enquanto rastejavam. Ele tinha plena consciência das reduzidas probabilidades de escaparem. Mesmo que lograssem atravessar o deserto sem serem alvejados ou voarem em pedaços, teriam de enfrentar a vedação de arame farpado e os guardas armados na torre de vigilância. E

78

tornava-se impossível prever a duração do mis, que podia dissipar-se a todo o momento e expô-los.

Continuaram a rastejar, até que perderam a noção do tempo. Os milímetros convertiam-se em centímetros e estes em metros. Além disso, viam-se forçados a conservar a cabeça junto do solo, pelo que os olhos, o nariz e as orelhas não tardaram a encher-se de areia e o acto de respirar representava um esforço penoso.

Entretanto, ao longe, as vozes dos guardas persistiam: “Kruger… Brent… Kruger…

Brent…”

Os dois homens detinham-se para descansar e consultar a bússola com frequência, após o que reatavam a marcha. Acudia-lhes uma tentação quase irresistível de progredir mais depressa, mas isso exigiria maior pressão no solo, e Jamie podia imaginar os fragmentos de metal explodindo debaixo dele e introduzindo-se-lhe no ventre. De vez em quando, detectavam outras vozes em redor, mas as palavras eram abafadas pelo nevoeiro e tornava-se impossível determinar a sua origem exacta. “É um deserto enorme”, reflectia. “Não vamos esbarrar em ninguém.”

De súbito, um vulto saltou-lhe em cima. O facto registou-se de modo tão abrupto que o colheu desprevenido e sentiu os dentes do possante lobo-da-alsácia cravarem-se-lhe no braço. Jamie largou os diamantes contidos na camisa e tentou abrir as mandíbulas do animal, mas apenas dispunha de uma das mãos livre.

Quase ao mesmo tempo, notou o sangue quente que deslizava pelo braço. Por fim, ouviu uma espécie de baque e a pressão dos dentes atenuou-se e acabou por se extinguir. Por entre a névoa de dor, Jamie viu Banda continuar a atingir a cabeça do cão com o saco de diamantes, até que este ficou imóvel.

- Como se sente? - sussurrou o negro, com ansiedade. Jamie não conseguiu responder, mantendo-se estendido de bruços, na expectativa de que as vagas de dor se atenuassem. Banda rasgou um pedaço de tecido das calças e improvisou um torniquete para que o sangue estancasse.

- Temos de prosseguir - advertiu. - Se apareceu um, deve haver mais nas proximidades.

Jamie concordou com um movimento de cabeça e, lentamente, moveu o corpo para a frente, esforçando-se por ignorar o intenso latejar no braço.

79

Mais tarde, não conseguiu evocar o mínimo pormenor do resto do percurso.

Estava semiconsciente, um autómato. Algo fora dele lhe orientava os movimentos: “Braços para diante… braços para diante… braços para diante…” Era uma odisseia de agonia interminável. A bússola achava -se agora em poder de Banda, e quando o companheiro começava a rastejar na direcção errada, apressava-se a modificarlhe o rumo com suavidade. Estavam rodeados por guardas, cães e minas, e só o mis lhes proporcionava segurança, ainda que precária. Continuaram a avançar até que as forças se lhes esgotaram, incapazes de cobrir sequer mais um centímetro.

Resolveram então dormir.

Quando Jamie abriu os olhos, registara -se uma modificação. Conservou-se estendido na areia, o corpo rígido e dorido, tentando recordar-se onde estava. Ao avistar Banda adormecido a dois metros dele, a situação reapareceu-lhe no espírito. A jangada desfeita contra os recifes… o mis proveniente do mar… Mas existia algo de insólito. Soergueu-se e tentou determinar de que se tratava. De súbito, sentiu uma contracção no estômago. “Conseguia ver Banda! O insólito era precisamente isso. O mis começava a dissipar-se!” Ouviu vozes nas proximidades e, esquadrinhando o nevoeiro, cada vez mais ténue, verificou que se achavam perto da entrada do campo de diamantes. Avistou a torre de vigia e a vedação de arame farpado mencionadas por Banda. Um grupo de cerca de seis dezenas de trabalhadores movia-se do campo para o portão. Tinha terminado o seu período de serviço e o turno seguinte preparava-se para entrar. Jamie ergueu-se de joelhos, acercou-se do companheiro e acordou-o, apontando a torre e o portão.

- Raios! - articulou entre dentes, incrédulo. - Quase conseguimos.

- Podes suprimir o quase. Passa-me os diamantes.

- Não compreendo - confessou, obedecendo.

- Segue-me.

- Os guardas armados do portão descobrem que não fazemos parte do pessoal.

- Estou a contar precisamente com isso.

Os dois homens avançaram em direcção aos guardas, movendo -se entre a fila de trabalhadores que saíam e a dos que chegavam, os quais trocavam frases sarcásticas.

80

- Vocês vão-se esfolar a trabalhar, enquanto nós dormimos por causa do mis…

- Como conseguiram mandar vir o mia, felizardos?

- Deus ouviu-nos, mas vocês escusam de contar com Ele. Jamie e Banda alcançaram o portão, onde se encontravam dois corpulentos guardas armados, que canalizavam os trabalhadores regressados do campo para um pequeno barracão, a fim de serem revistados.

Jamie segurou com mais força a camisa que tinha na mão, abriu caminho por entre a fila de trabalhadores e dirigiu-se a um dos guardas:

- Quem devemos procurar para obter trabalho?

- Que fazem aqui dentro? - rugiu o interpelado, enquanto Banda se esforçava por não deixar transparecer o assombro.

- Viemos procurar trabalho. Ouvi dizer que havia uma vaga para guarda e o meu criado pode escavar. Portanto…

- Toca a andar daqui para fora! - vociferou o guarda.

- Mas precisamos trabalhar, e garantiram-me… - volveu Jamie.

- Não leu a tabuleta em que se proíbe a entrada? Desapareçam! - e o homem apontou para um carro de bois que começava a encher-se de trabalhadores: - Dirijam-se a Port Nolloth. Se querem trabalho, têm de se inscrever nos escritórios da companhia.

- Está bem - aquiesceu Jamie, com um encolher de ombros de resignação.

E, com um sinal a Banda, transpôs a saída em direcção ao carro.

- Patetas - resmungou o guarda, meneando a cabeça.

Dez minutos depois, Jamie e Banda achavam-se a caminho de Port Nolloth, levando diamantes cujo valor não era inferior a meio milhão de libras.

Capítulo sexto A dispendiosa carruagem percorria a poeirenta artéria principal de Klipdrift, puxada por dois belos cavalos baios. Segurava as rédeas um homem de porte atlético, cabelos, barba e

81

bigode brancos como a neve, trajado com a máxima elegância. Usava chapéu alto cinzento e no dedo mindinho exibia um anel c om um brilhante reluzente. Parecia um forasteiro, mas não era.

Klipdrift mudara consideravelmente desde que Jamie McGregor partira, havia um ano. Decorria o ano de 1884 e transformara-se de um vasto acampamento numa pequena cidade. O caminho -de-ferro fora completado da Cidade do Cabo até Hopetown, com um ramal que servia Klipdrift, o que criara uma nova vaga de imigrantes. A localidade apresentava -se ainda mais povoada do que Jamie a recordava, mas os habitantes pareciam diferentes. Continuava a haver muitos pesquisadores, mas também se viam homens de trajos irrepreensíveis e mulheres elegantes entrando e saindo de lojas. Tudo indicava que Klipdrift adquirira uma patina de respeitabilidade.

Jamie passou diante de três novas salas de baile e meia dúzia de saloons de criação recente. Depois de deixar para trás a igreja, uma barbearia de luxo e um hotel sumptuoso chamado Grand, deteve a carruagem à entrada de um banco, apeou-se e confiou as rédeas a um garoto nativo.

- Dá-lhes de beber - e, em seguida, entrou, anunciando ao gerente em voz alta: - Quero depositar cem mil libras.

O facto difundiu-se com prontidão, como Jamie calculava, e quando abandonou o banco e entrou no saloon Sundowner era o fulcro da curiosidade geral. O interior do estabelecimento não se alterara. Encontrava-se repleto de gente, e olhos curiosos acompanharam-no quando se encaminhava para o bar.

- Que deseja tomar? - perguntou Smit, com uma inclinação de cabeça de deferência.

- Uísque - informou Jamie, satisfeito por verificar que o bartender não o reconhecia. - O melhor que tiver.

- Sim, senhor - e Smit apressou-se a comprazê -lo. - Acaba de chegar à cidade?

- Exacto.

- De passagem?

- Não. Constou-me que era propícia para efectuar investimentos.

- Não encontra melhor - e o olhar do homem

82

i luminou-se. - Uma pessoa com cem… com dinheiro pode safar-se muito satisfatoriamente. Talvez até lhe seja útil, se aceitar as minhas recomendações.

- Sim? Como?

- Conheço o homem que governa praticamente a cidade - inclinou-se para a frente e assumiu uma expressão conspiratória. - É presidente do Conselho da cidade e director da Comissão de Cidadãos. Chama-se Salomon van der Merwe.

- Não sei quem seja - declarou Jamie, depois de levar o copo aos lábios.

- É dono do armazém de artigos gerais do outro lado da rua. Pode indicar-lhe alguns investimentos vantajosos. Penso que não perdia nada em o procurar.

Voltou a servir-se do copo e indicou em voz átona:

- Mande-o chamar.

- Sim, senhor - assentiu o bartender, abarcando o anel e o alfinete de brilhantes na gravata do interlocutor. - Posso revelar-lhe o seu nome? - lan Travis.

- Muito bem, Mister Travis. Estou certo de que Mister Van der Merwe desejará conhecê-lo - e tornou a encher o copo. - Entretenha-se com isto, enquanto aguarda. Oferta da casa.

Jamie conservou-se sentado num dos bancos do balcão, consciente de que todos o observavam. Muitos homens tinham partido de Klipdrift ricos, mas nenhum tão obviamente abastado chegara até então. Tratava-se de uma experiência nova.

Transcorridos quinze minutos, Smit reaparecia, acompanhado por Salomon van der Merwe, o qual avançou de mão estendida para o desconhecido de barba e cabelos brancos.

- Tenho muito gosto em conhecê-lo, Mister Travis. Jamie estreitou-a, ao mesmo tempo que tentava detectar um indício de reconhecimento, que não se verificou. No fundo, não estava surpreendido, pois não restava coisa alguma do rapaz de dezoito anos ingénuo e idealista.

O bartender conduziu os dois homens para uma mesa isolada e, mal se sentaram, Van der Merwe proferiu:

- Segundo entendi, tenciona efectuar investimentos em Klipdrift, Mister Travis.

- É possível.

83

- Talvez lhe possa ser útil. É preciso muita cautela, pois anda por aí gente sem escrúpulos.

- Não duvido - aquiesceu Jamie, olhando o holandês com firmeza.

Afigurava-se-lhe irreal estar ali sentado, trocando impressões amenas com o homem que lhe roubara uma fortuna e depois tentara assassiná -lo. O ódio que Van der Merwe lhe inspirava consumira-o ao longo de um ano e a sede de vingança fora a única coisa que o mantivera vivo. Agora, o alvo das suas diligências encontrava-se na iminência de sentir os efeitos dessa vingança.

- Se me permite a indiscrição, Mister Travis, quanto pensa investir?

- Aí umas cem mil libras, para principiar - informou Jamie, com desprendimento, ao mesmo tempo que via Van der Merwe humedecer os lábios. - Mais tarde, talvez umas trezentas ou quatrocentas mil.

- É natural que consiga investimentos muito satisfatórios, com essas quantias.

Desde que obedeça a uma orientação apropriada - apressou-se o holandês a acrescentar. - Tem alguma ideia daquilo que prefere?

- Primeiro, gostava de lançar uma olhadela às oportunidades existentes.

- É uma atitude prudente. Se aceitar o convite para jantar comigo esta noite, poderemos discutir o assunto mais a fundo. Minha filha cozinha uns petiscos deliciosos.

- Com o maior prazer - acedeu Jamie, com um sorriso, enquanto reflectia: “Nem fazes uma ideia do prazer que vou sentir!”

A “operação vingança” principiara.

A viagem do campo de diamantes da Namíbia para a Cidade do Cabo decorrera sem problemas. Jamie e Banda tinham feito escala por uma pequena povoação do interior, onde um médico tratou o braço do primeiro, e daí prosseguiram até à Cidade do Cabo. O trajecto caracterizou-se pelo desconforto, mas a euforia que dominava os dois homens permitiu-lhes ignorá-lo. No final da viagem, Jamie instalou-se no luxuoso Royal Hotel de Plein Street (“preferido por sua excelência o duque de Edimburgo”), onde lhe concederam a suite real.

- Mande chamar o melhor barbeiro da cidade - indicou

84

ao recepcionista. - Depois, preciso de um alfaiate e um sapateiro.

- Imediatamente - prometeu o homem.

“É incrível e maravilhoso o que se consegue com o dinheiro!”, cogitou Jamie, com uma ponta de amargura.

A casa de banho da suite real era um autêntico paraíso, e ele conservou-se imerso em água tépida demoradamente, ao mesmo tempo que recapitulava os acontecimentos das últimas semanas. Tinham passado apenas semanas desde que construíra a jangada com Banda? Na realidade, pareciam-lhe anos. Evocou a viagem na frágil embarcação, assediada por tubarões e destruída pelos recifes, o mis do mar que os protegera dos guardas e dos cães, embora não evitasse que um dos animais lhe cravasse os dentes no braço, as vozes à sua volta, que lhe perdurariam nos ouvidos para sempre: Kruger… Brent… Kruger… Brent…

No entanto, acima de tudo, pensava em Banda. O seu amigo.

Quando desembarcaram na Cidade do Cabo, Jamie rogou-Lhe que continuasse com ele, mas o negro abanou a cabeça.

- A vida é muito monótona a seu lado. Quero ir para um lugar onde haja certa excitação.

- Que pensas fazer?

- Graças a si e ao seu maravilhoso plano para superar recifes numa jangada, tenciono comprar uma herdade, procurar uma esposa e ter muitos filhos.

- Como queiras. Vamos ao diamaní kooper, para que te entregue a tua parte.

- Não quero.

- Que estás aí a dizer? - Jamie enrugou a fronte. - Metade dos diamantes pertence-te. És milionário.

- Repare na minha pele. Se me tornasse milionário, a minha vida não valia um chavo,

- Podes esconder alguns dos diamantes.

- Só preciso dos suficientes para comprar uma herdade e dois bois para trocar por uma esposa. Dois ou três diamantes mais pequenos bastam para conseguir o que pretendo. Os restantes são seus.

- É impossível. Não podes prescindir da tua parte.

- Posso, sim, porque me vai entregar Salomon van der Merwe.

85

Jamie contemplou Banda em silêncio por um longo momento e assentiu:

- Prometo.

- Nesse caso, vamos despedir-nos, meu amigo - e apertaram a mão. - Voltaremos a encontrar-nos. Para a próxima vez, pense numa coisa realmente excitante para fazermos.

E o negro afastou-se com três pequenos diamantes na algibeira.

Jamie enviou à família uma ordem de pagamento no valor de vinte mil libras, comprou a melhor carruagem e a melhor parelha de cavalos que conseguiu encontrar e seguiu para Klipdrift.

Chegara o momento da vingança.

Naquela noite, quando entrou na loja do holandês, Jamie McGregor foi assolado por uma sensação tão desagradável e violenta que teve de fazer uma pausa para se dominar.

Van der Merwe surgiu da sala contígua e, quando viu quem era, o rosto iluminouse- lhe.

- Seja bem-vindo, Mister Travis!

- Obrigado, Mister… desculpe, não me recordo do seu nome.

- Salomon van der Merwe. Não necessita de se desculpar. Os nomes holandeses são difíceis de fixar. O jantar está pronto. Margaret!

Na verdade, nada se alterara. A rapariga encontrava-se junto do fogão, de costas para a entrada.

- Está aqui o convidado de que te falei - acrescentou o pai. - Mister Travis.

Ela voltou-se e murmurou a fórmula habitual em semelhantes circunstâncias, sem deixar transparecer o mínimo indício de reconhecimento.

Naquele momento, a campainha da entrada soou e Van der Merwe proferiu:

- Com licença. Não me demoro. Esteja como em sua casa, Mister Travis - e precipitou-se para a loja.

Margaret levou uma caçarola fumegante com legumes e carne para a mesa e em seguida foi buscar o pão, enquanto Jamie a observava em silêncio. Desenvolvera - se notavelmente desde a última vez que a vira. Tornara-se mulher, com uma sexualidade que outrora não possuía.

86

- Seu pai diz que é uma excelente cozinheira.

- Faço o possível - murmurou ela, corando.

- Há muito que não saboreio comida caseira e confesso que sinto o apetite aguçado.

Jamie tomou da mão da rapariga um prato com manteiga e pousou-o na mesa, provocando-lhe uma admiração que a deixou boquiaberta, pois nunca vira um homem colaborar nas actividades próprias das mulheres, e atreveu-se pela primeira vez a olhar o desconhecido de frente. O nariz deformado e uma cicatriz alteravam o aspecto geral do rosto, que se podia considerar bem-parecido. Os olhos eram cinzentos e brilhavam com inteligência e uma intensidade ardente. Os cabelos brancos indicavam que não se tratava de um jovem, apesar de haver algo de juvenil nele. Era alto e forte e… neste ponto das apreciações, Margaret desviou os olhos, perturbada.

Van der Merwe não tardou a reaparecer, esfregando as mãos de satisfação.

- Já fechei a loja. Sentemo-nos para apreciar uma boa refeição - e indicou o lugar de honra a Jamie, acrescentando: - Oremos.

Fecharam os olhos e Margaret voltou a abri-los quase imediatamente, a fim de poder prosseguir o exame ao elegante desconhecido, enquanto a voz do pai articulava, em inflexão monocórdica:

- Todos somos pecadores aos teus olhos, Senhor, e temos de ser castigados.

Concede-nos forças para suportar as provações na Terra, a fim de podermos desfrutar dos frutos do Céu, quando formos chamados. Agradecemos-te, Senhor, por auxiliares aqueles de nós que merecem prosperar. Amém! - e, em seguida, começou a servir, mas desta vez as doses de Jamie revelavam-se muito mais generosas. - É a sua primeira visita a estas paragens, Mister Travis?

- Sim - assentiu Jamie. - A primeira.

- Suponho que não o acompanha sua esposa?

- Não sou casado - declarou, com um sorriso. - Ainda não encontrei quem me quisesse.

“Só uma louca o rejeitaria”, pensou Margaret, baixando os olhos, com receio de que o forasteiro adivinhasse a natureza das suas cogitações.

- Klipdrift é uma cidade de grandes oportunidades - volveu Van der Merwe. - Extraordinárias, mesmo.

87

- Estou ansioso por que mas mostrem - disse Jamie, com um olhar a Margaret, que corou.

- Se não considera a pergunta impertinente, como obteve a sua fortuna?

A rapariga sentia-se embaraçada com a curiosidade excessiva do progenitor, mas Travis não parecia contrariado.

- Herdei-a de meu pai - explicou com naturalidade.

- Mas estou certo de que possui larga experiência de negócios.

- Nem por isso. Preciso que me orientem.

- Foi o destino que nos reuniu - proclamou Van der Merwe, com visível satisfação.

- Tenho muitos conhecimentos úteis. Quase lhe posso garantir que duplicarei o seu dinheiro em poucos meses - e inclinou-se para a frente, dando uma palmada amigável no braço de Jamie. - Palpita-me que este dia ficará gravado na nossa memória! - fez uma pausa, enquanto o interlocutor se limitava a esboçar um sorriso. - Instalou-se no Grande Hotel, claro?

- Exacto.

- É criminosamente dispendioso. No entanto, para uma pessoa com as suas posses…

- Ouvi dizer que o campo é muito bonito, nesta região. Posso pedir-lhe que consinta que sua filha me sirva de cicerone?

Margaret sentiu o coração palpitar-lhe desordenadamente, enquanto o pai enrugava a fronte e articulava:

- Bem, não sei…

Uma das regras imutáveis de Salomon van der Merwe consistia em não permitir que a rapariga estivesse a sós com um homem. Todavia, no caso de Mr. Travis, admitia-se perfeitamente uma excepção. Com tudo o que se achava em jogo, não convinha que se mostrasse pouco hospitaleiro. Assim, declarou:

- Posso dispensá-la da loja por uma ou duas horas. Acompanharás o nosso convidado, Margaret?

- Se o desejar, pai - murmurou ela.

- Então, fica combinado - disse Jamie. - Às dez horas, está bem?

Quando o convidado alto e elegantemente vestido se retirou, Margaret levantou a mesa e pôs-se a lavar a loiça, imersa num aturdimento aprazível. “Ele deve julgarme pateta!” Tentou recordar as suas intervenções na conversa desenrolada durante o jantar e não conseguiu encontrar uma única. Dir-se-ia que ficara com a língua imobilizada. Porquê? Porventura não atendera centenas de clientes do sexo masculino, na loja, sem se portar como uma imbecil? Em todo o caso, nenhum a olhava como lan Travis. “Todos os homens têm o mal no seu íntimo, Margaret. Não permitirei que te corrompam a inocência!” As advertências do pai nunca lhe abandonavam o pensamento. Seria essa a causa da sua atitude? Da debilidade e do tremor que experimentara sempre que o forasteiro a contemplara?

Pretenderia corromper-lhe a inocência? A possibilidade fez com que sentisse o corpo percorrido por uma emoção deliciosa. Baixou os olhos para o prato que acabava de lavar pela terceira vez e sentou-se à mesa. Jamais, como naquele momento, lamentava que a mãe já não vivesse.

Ela teria compreendido. Embora estimasse o pai, Margaret tinha por vezes a sensação opressiva de que era sua prisioneira. Preocupava -a o facto de não consentir que um homem se lhe acercasse. “Nunca casarei”, receou. “Pelo menos, enquanto ele vi ver.” Os pensamentos rebeldes suscitaram-lhe uma noção de culpa e, depois de dar as boas-noites a Van der Merwe apressadamente, recolheu ao quarto.

Estudou o rosto no pequeno espelho circular pendurado na parede e comprimiu os lábios num leve sorriso de amargura. Não acalentava ilusões quanto ao seu aspecto. Não era bonita, embora possuísse uma figura interessante, olhos atraentes e malares salientes. Que teria lan Travis visto quando a contemplara?

Começou a despir-se e imaginou-o na sua frente, admirando-lhe a nudez.

Margaret acariciou os seios, cujos bicos começavam a endurecer, e em seguida fez deslizar as mãos ao longo do corpo, até as imobilizar entre as pernas. Passou a agitá-las com rapidez crescente e assolou-a uma sensação quase frenética que a obrigou a estender-se na cama a balbuciar o nome dele.

Quando percorriam a cidade na carruagem de Jamie, este admirava -se uma vez mais com as modificações registadas. Onde outrora houvera apenas um mar de tendas, erguiam-se agora construções sólidas de madeira, com telhados de chapa ondulada ou colmo.

- Klipdrift parece muito próspera - observou no momento em que seguiam pela rua principal.

89

- Um recém-chegado deve achá -la interessante - admitiu Margaret, ao mesmo tempo que pensava: “Até agora, eu não a suportava.”

Por fim, abandonaram a cidade em direcção à zona mineira ao longo do rio Vaal.

As chuvas tinham convertido o campo num vasto jardim colorido repleto de plantas exóticas que não podiam ser admiradas em qualquer outra parte do mundo.

Quando passavam diante de um grupo de pesquisadores, Ja-mie perguntou:

- Têm encontrado diamantes grandes, ultimamente?

- Alguns. Cada vez que há notícia de um achado importante, aparecem centenas de novos pesquisadores. Na sua maioria, partem pobres e desiludidos - e a rapariga considerou que o devia prevenir do perigo. - Meu pai não gostaria de me ouvir dizer isto, mas penso que é uma ocupação horrível.

- Para alguns, provavelmente - admitiu ele. - Para alguns.

- Tenciona permanecer muito tempo entre nós?

- Sim.

- Óptimo - e ela sentiu o coração regozijar-se, mas tratou de acrescentar com prontidão: - Meu pai ficará satisfeito, quando souber.

Passearam durante toda a manhã e, de vez em quando, detinham-se, e Jamie trocava impressões com pesquisadores, muito dos quais reconheciam Margaret e se lhe dirigiam respeitosamente. Por seu turno, ela mostrava-se mais comunicativa do que na presença do pai.

- É muito conhecida - comentou ele, em dado momento.

- Recordam-se de me ver, quando aparecem na loja para negociar com meu pai - alegou Margaret, corando. - Ele fornece equipamento à maior parte dos pesquisadores.

Jamie não insistiu no assunto, mais interessado com o que se lhe deparava em redor. O caminho-de-ferro exercera uma influência decisiva na prosperidade de Klipdrift. Um novo consórcio, denominado De Beers, em homenagem ao agricultor em cujo terreno fora descoberto o primeiro diamante, absorvera a firma rival, pertencente a um indivíduo chamado Barney Barnato, e desenvolvia notável actividade para consolidar as centenas de pequenos lotes numa única organização.

90

Recentemente, fora descoberto ouro nas proximidades de Kimberley, além de manganésio e zinco, e Jamie estava convencido de que aquilo era apenas o começo, pois a África do Sul constituía um tesouro de minerais. Na verdade, deparavam-se oportunidades incríveis a um homem de visão.

Quando regressaram, principiava a anoitecer e, no momento em que imobilizou a carruagem à entrada da loja de Van der Merwe, Jamie declarou:

- Teria o maior prazer em que você e seu pai jantassem comigo no hotel, esta noite.

- Hei-de dizer-lhe - prometeu a rapariga, esforçando-se por dissimular a satisfação. - Oxalá concorde. Obrigada pelo dia encantador, Mister Travis!

E afastou-se apressadamente.

Jantaram os três na vasta sala do no vo Grande Hotel e, olhando em volta, Van der Merwe comentou:

- Não percebo como toda esta gente se pode permitir o luxo de comer aqui.

Jamie pegou na ementa e lançou-lhe uma olhadela superficial. Um bife custava uma libra e quatro xelins, uma única batata quatro xelins e uma fatia de tarte de maçã dez.

- São uns ladrões! - prosseguiu o holandês. - Meia dúzia de refeições aqui bastam para levar um homem à miséria.

Jamie perguntou-se a si mesmo o que seria necessário para conduzir Van der Merwe à miséria, e achava-se disposto a averiguá -lo. Quando encomendaram o jantar, notou que escolhia as iguarias mais dispendiosas da ementa. Por sua vez, Margaret contentou-se com uma sopa pouco espessa, pois sentia-se demasiado excitada para comer. Em dado momento, baixou os olhos para as mãos, recordouse do que fizera com elas na véspera e experimentou uma sensação de culpa.

- Não receie levar-me à bancarrota - ironizou Jamie. - Peça o que lhe apetecer.

- Obrigada, mas não tenho apetite - murmurou ela, corando.

O pai apercebeu-se da vermelhidão nas faces da rapariga e fixou nela o olhar, com uma expressão grave.

- Minha filha é uma rapariga invulgar, Mister Travis.

- Estou inteiramente de acordo.

91

Estas palavras tornaram Margaret tã o contente que nem a sopa conseguiu tragar.

O efeito que lan Travis exercia nela era incrível. Detectava insinuações encobertas em todas as suas palavras e gestos. Se lhe sorria, significava que a apreciava profundamente; se enrugava a fronte, nutria-lhe aversão. As sensações da rapariga eram um termómetro emocional cujo mercúrio não se fixava numa temperatura por muito tempo.

- Viu alguma coisa de interessante, hoje? - perguntou Van der Merwe.

- Não, nada de especial - replicou Jamie.

- Esta vai ser a região do mundo que se desenvolverá mais depressa - volveu o holandês, inclinando-se para a frente. - Uma pessoa de ideias lúcidas deve investir aqui imediatamente. O caminho-de-ferro há-de transformar Klip-drift numa segunda Cidade do Cabo.

- Não sei - disse Jamie, com uma expressão de dúvida. - Conheço muitos lugares como este que prosperaram de um dia para o outro e se afundaram com a mesma rapidez. Não estou interessado em investir dinheiro numa cidade-fantasma.

- Isso nunca acontecerá aqui. Aparecem diamantes em número cada vez mais elevado. E ouro.

- Mas por quanto tempo? - argumentou, com um encolher de ombros.

- É claro que ninguém pode fazer uma profecia dessa natureza, mas…

- Exactamente.

- Não tome uma decisão precipitada - advertiu Van der Merwe. - Custava-me vê-lo desperdiçar uma oportunidade como esta.

- Talvez precise de reflectir um pouco - admitiu Jamie, após um momento de ponderação. - Posso voltar a contar consigo amanhã, Margaret?

Van der Merwe abriu a boca para objectar, mas mudou de ideias ao recordar as palavras de Mr. Dhorensen, o banqueiro: “Ele apareceu no meu gabinete para depositar cem mil libras e disse que em breve se seguiriam outras!”

Por fim, a cobiça sobrepôs-se a todas as outras considerações e declarou:

- Com certeza que pode.

92

Na manhã seguinte, Margaret enfiou o vestido dos domingos, a fim de se encontrar com Jamie. No entanto, quando a viu, o pai corou de fúria e rugiu:

- Queres que ele te julgue uma depravada empenhada em lhe suscitar pensamentos inconfessáveis? Trata-se de negócios, rapariga. Despe isso e veste a roupa de todos os dias.

- Mas, pai…

- Já!

Ela meneou a cabeça, com uma expressão amargurada.

- Está bem, pai.

Van der Merwe viu-os partir, vinte minutos mais tarde, e perguntou a si próprio se não estaria a cometer um erro.

Desta vez, Jamie conduziu a carruagem no sentido oposto, onde havia sinais de desenvolvimento por toda a parte. “Se as descobertas de minerais continuam, uma pessoa pode ganhar mais dinheiro com a construção de imóveis do que com diamantes ou ouro. Klipdrift vai precisar de mais bancos, hotéis, saloons, lojas, bordéis…”

De súbito, apercebendo-se de que Margaret o olhava com uma expressão de curiosidade, perguntou:

- Aconteceu alguma coisa?

- Não, não… - murmurou ela, e apressou-se a desviar os olhos.

Ele observou-a atentamente e notou-lhe o esplendor, aliado a uma sensação de isolamento, de solidão. Era uma mulher sem homem.

Ao meio-dia, desviaram-se da estrada para uma área arborizada nas proximidades de um pequeno curso de água e detiveram-se debaixo de um baobabe. Faziam-se acompanhar de uma cesta de piquenique, cujo conteúdo Margaret colocou sobre uma toalha, que estendeu no relvado.

- É um banquete! - exclamou, ao ver a abundância de iguarias. - Não mereço isto, Mister Travis…

- Merece muito mais - asseverou Jamie. Segurou-lhe o rosto entre as mãos com ternura. - Olhe para mim, Margaret.

Ela obedeceu com relutância e, de repente, antes que o pudesse evitar, sentiu uns lábios vorazes colados aos seus. Transcorridos uns momentos, desprendeu-se e balbuciou:

- Não… não podemos… iríamos para o Inferno…

93

- Para o Céu!

- Tenho medo…

- Não há nada a recear. Vê os meus olhos? Podem espreitar para o interior dos seus. Há lá o desejo de fazer amor comigo. E não o podemos nem devemos evitar. Pertences-me, Margaret. Repete: pertenço a lan. Vá…

- Pertenço… a lan.

Os lábios voltaram a unir-se e Jamie principiou a desprender os botões das costas do vestido. Em poucos segundos, ela encontrava-se desnuda. A passagem trémula de adolescente para mulher constituiu uma experiência excitante, inebriante, que a levou a sentir-se mais viva que nunca. “Recordarei este momento para sempre”, pensou. “Nenhuma mulher pode amar tanto como eu este homem!”

Naquela noite, Jamie e Van der Merwe encontravam-se sentados a uma mesa do canto do Sundowner, e o primeiro anunciou:

- Você tinha razão. As possibilidades nesta terra talvez sejam maiores do que eu supunha.

- Sempre calculei que acabaria por se aperceber disso, Mister Travis - replicou o holandês, com um sorriso de satisfação.

- Que me aconselha?

Olhou em redor e baixou a voz:

- Chegou-me hoje ao conhecimento que descobriram uma nova jazida de diamantes ao norte de Pniel. Ainda há dez lotes disponíveis, que podemos dividir pelos dois. Eu entro com cinquenta mil libras por cinco e você com idêntica quantia pelos restantes. Garantiram-me que os diamantes são aos montes.

Podemos arrecadar milhões de um dia para o outro. Que acha?

Jamie abarcava a situação com a maior clareza. Van der Merwe ficaria com os lotes aproveitáveis e ele com os outros. Além disso, estava convencido de que o interlocutor não arriscaria um único xelim.

- Parece interessante. Quantos pesquisadores estão envolvidos?

- Apenas dois.

- Porque é necessário tanto dinheiro? - perguntou inocentemente.

94

- Eles conhecem o valor dos lotes, mas não dispõem de fundos para os explorar.

Assim, entregamos-lhes cem mil libras e deixamo-los conservar vinte por cento dos seus campos.

Van der Merwe introduziu os vinte por cento com tanta subtileza que quase passaram despercebidos. Jamie não duvidava de que os pesquisadores ficariam com os seus diamantes e o dinheiro, os quais iriam parar às mãos do holandês.

- Temos de agir rapidamente - advertiu este último. - Assim que a coisa transpirar…

- Não podemos deixar escapar a oportunidade - aquiesceu Jamie.

- Vou mandar redigir os contratos imediatamente. “Em afericânder, sem dúvida!”

Como lhe convinha manter o novo sócio satisfeito, Van der Merwe deixou de objectar a que Jamie saísse com Margaret. Entretanto, esta sentia-se cada vez mais apaixonada por ele. Era a última pessoa em que pensava antes de adormecer e a primeira que lhe acudia ao espírito quando, de manhã, abria os olhos. Jamie d espertara-lhe uma sensualidade de cuja existência ela nem suspeitava. Dir-se-ia que descobrira subitamente a verdadeira finalidade do seu corpo, e tudo aquilo que lhe haviam ensinado a considerar pecado tornava -se glorioso, destinado a proporcionar-lhe pra zer.

Nos arrabaldes arborizados da cidade, resultava fácil encontrar lugares isolados para se entregarem a actividades sexuais, e sempre que tal acontecia Margaret sentia-se tão excitada como na primeira vez.

Não obstante, a sombra ominosa do pai continuava a flagelar-lhe o pensamento.

Salomon van der Merwe era um membro importante da Igreja Presbiteriana holandesa, e a rapariga sabia que, se as suas relações com lan Travis fossem descobertas, não haveria perdão possível. Na comunidade em que viviam, só existiam dois tipos de mulheres, as sérias e as prostitutas, e as primeiras não permitiam que os homens lhes tocassem antes da noite de núpcias. Por conseguinte, considerá -la-iam prostituta. Assim, a preocupação crescente obrigoua a abordar a questão do casamento.

Seguiam na carruagem ao longo do rio Vaal, quando aventurou:

95

- Sabes como te amo, lan… - interrompeu-se, embaraçada. - Que pensas acerca do casamento?

- Sou a favor, sem dúvida - replicou ele, sorrindo. - Inteiramente.

Margaret sorriu e reflectiu que aquele momento era o mais feliz da sua vida.

Domingo de manhã, Van der Merwe convidou Jamie a acompanhá-lo e à filha à Igreja. A Nederduits Hervormde Kerk era um edifício impressionante de estilo vagamente gótico, com o púlpito numa das extremidades da sala e um órgão enorme na outra. Quando transpuseram a entrada, o holandês foi saudado com profundo respeito.

- Ajudei a construir este templo - confidenciou a Jamie, sem dissimular o orgulho. - Sou um diácono.

O sermão achava-se impregnado de enxofre e fogo do Inferno, e Van der Merwe escutou-o atentamente, inclinando a cabeça por diversas vezes, em silenciosa concordância com as palavras do orador.

“É um homem de Deus ao domingo e pertence ao Diabo durante o resto da semana…”, reflectiu Jamie.

Embora o pai se tivesse sentado entre ambos, Margaret tinha plena consciência da proximidade de Jamie e, com um leve sorriso trémulo, cogitava: “Ainda bem que o pastor desconhece o que tenho no ventre!”

Naquela noite, Jamie visitou o saloon Sundowner, e Smit acolheu-o com um sorriso.

- Boa noite, Mister Travis. Que toma: o costume?

- Hoje, não. Preciso falar-lhe. Lá atrás.

- Com certeza - acedeu o bartender com prontidão, pressentindo uma possibilidade de ganhar dinheiro.

Entraram num compartimento pouco maior que um cubículo, que continha uma mesa redonda com quatro cadeiras e um candeeiro de petróleo.

- Sentemo-nos - indicou Jamie.

- Sem dúvida. Em que lhe posso ser útil?

- Eu é que tenciono ser-lhe útil.

- Sim?

- Exacto - puxou de uma longa cigarrilha e acendeu-a. - Resolvi deixá-lo viver.

96

- Desculpe, mas não… - começou Smit, empalidecendo. - Que quer dizer, Mister Travis?

- O meu nome não é esse. Chamo-me Jamie McGregor. Há cerca de um ano, preparou o cenário para que me matassem, no celeiro. Recorda-se? Por conta de Van der Merwe.

- Confesso que…

- Cale-se e oiça - e a voz de Jamie vibrava como um chicote cortando o ar. - Continuo vivo e enriqueci o suficiente para mandar incendiar esta espelunca, consigo dentro. Está a acompanhar o meu raciocínio?

O bartender fez menção de manifestar ignorância, mas o perigo dimanado dos olhos do interlocutor obrigou-o a reconsiderar.

- Sim, senhor - articulou com prudência.

- Van der Merwe paga-lhe pelos pesquisadores que ludibria, enviados por si. É uma sociedade curiosa. Quanto recebe por isso?

- Bem, dois por cento.

- Dou-lhe cinco. A partir de agora, quando um pesquisador potencial o procurar, mandá-lo-á ter comigo. Financiá-lo-ei, mas ele obterá uma percentagem razoável e você também. Pensa que Van der Merwe lhe pagava realmente dois por cento do que arrecadava?

- Perfeitamente, Mister Tra… Mister McGregor. Compreendo.

- Talvez não por completo - Jamie levantou-se e, com uma expressão grave, acrescentou: - Está a pensar em procurá-lo e repetir-lhe esta nossa amena conversa, para poder receber dos dois lados. Vejo apenas um pequeno óbice nisso, Smit - baixou a voz até se converter num murmúrio. - Se o fizer, não viverá o suficiente para saborear o resultado.

Capítulo sétimo Jamie acabava de se vestir, quando bateram à porta levemente. Apurou os ouvidos e o som repetiu-se, pelo que foi abrir, deparando-se-lhe Margaret.

- Entra, Maggie. Há alguma novidade?

97

Era a primeira vez que o procurava no quarto do hotel, e agora que o enfrentava sentia dificuldade em falar. Permanecera acordada toda a noite em busca de uma maneira de lhe transmitir a notícia, pois receava que não quisesse voltar a vê -la.

De súbito, fitou-o nos olhos e anunciou:

- Vou ter um filho teu, lan.

A expressão dele mostrava-se tão tensa que a rapariga receou tê -lo perdido para sempre. De repente, porém, exibiu uma alegria tão grande que todas as suas dúvidas se dissiparam instantaneamente.

- É maravilhoso, Maggie! - exclamou Jamie, segurando-Lhe os braços. - Disseste a teu pai?

- Isso, não!… - ela desprendeu-se, alarmada, e retrocedeu até ao sofá vitoriano, no qual se sentou. - Não o conheces. Nunca… nunca compreenderia.

- Vamos anunciar-lhe a boa nova - decidiu ele, vestindo a camisa apressadamente.

- Tens a certeza de que correrá tudo bem?

- Nunca estive tão certo de uma coisa em toda a minha vida.

Salomon van der Merwe pesava carne salgada para um pesquisador, quando Jamie e Margaret entraram na loja.

- Olá, lan! Dou-lhe já atenção - terminou de atender o cliente rapidamente e aproximou-se dos recém-chegados. - Como lhe correm as coisas neste belo dia?

- Não podiam correr melhor - replicou Jamie, em tom jovial. - Sua filha está grávida.

Estabeleceu-se um silêncio ominoso, enquanto Van der Merwe os olhava alternadamente com perplexidade.

- Não… não compreendo.

- É muito simples. Engravidei-a.

- Não é possível! - a cor desapareceu por completo das faces do homem, assolado por um turbilhão d e emoções em conflito: o choque imprevisto da perda de virgindade da filha… da sua gravidez… Toda a cidade se riria dele. Por outro lado, lan Travis era um homem abastado e, se casassem sem demora… Por fim, voltou-se de novo para Jamie. - Vão casar imediatamente, claro.

- Casar? - o interpelado olhou-o com admiração. -

98

Consentia que Maggie se unisse a um maloio estúpido que o deixou privá-lo de tudo o que lhe pertencia?

- Que está para aí a dizer, lan? - o holandês sentia a cabeça rodopiar. - Eu nunca…

- Não me chamo lan. Sou Jamie McGregor. Não me reconheceu? É óbvio que não. Esse rapaz morreu. Você matou-o. Mas não sou um homem rancoroso, Mister Van der Merwe. Portanto, faço-lhe uma oferta. A minha semente no ventre de sua filha.

E, com estas palavras, Jamie rodou nos calcanhares e afastou-se, deixando pai e filha boquiabertos, impossibilitados de articular uma sílaba.

Margaret escutara-o estarrecida e chocada, incapaz de acreditar. Ele não podia falar a sério. Amava -a!

Por fim, Salomon van der Merwe concentrou-se nela, preparado para dar livre curso à cólera e à indignação.

- Rameira! Rua, sua prostituta! Fora desta casa!

A rapariga ficou petrificada, sem conseguir abarcar a enormidade do que acontecia. lan utilizara-a para se vingar de algo que o pai lhe fizera. Julgava-a envolvida numa manobra destinada a prejudicá-lo. Quem era Jamie McGregor?

Quem…

- Rua! - vociferou o holandês, esbofeteando-a com violência. - Não quero voltar a pôr-te a vista em cima!

Ela conservou-se imóvel por um momento, pregada ao chão, sentindo o coração palpitar fortemente e dificuldade em respirar. A expressão do pai era a de um louco. Por último, voltou-se e abandonou a loja correndo, sem olhar para trás.

Salomon van der Merwe viu-a afastar-se, dominado pelo desespero. Tinha bem presente no espírito o que sucedera às filhas de outros homens que se haviam desgraçado. Depois de verberadas publicamente na igreja, só lhes restara abandonar a comunidade. Era o castigo apropriado, exactamente a sorte que mereciam. Mas a sua Margaret recebera uma educação decente, temente a Deus.

“Como o pudera trair de semelhante maneira?” Imaginou a filha desnuda, em união sexual com aquele homem, contorcendo-se no cio como animais, e começou a sentir uma erecção.

Por fim, encerrou a loja e estendeu-se na cama, sem forças nem vontade de se mover. Quando o facto constasse na cidade, seria alvo de chacota. Compadecerse- iam dele ou

99

censurá-lo-iam pela depravação da filha. Em qualquer dos casos, tornar-se-ia insustentável. Tinha de enviar a prostituta para longe. Transcorridos uns minutos, ajoelhou e orou: “Como pudeste fazer isto a um teu servidor leal, meu Deus? Porque me abandonaste? Deixa-a morrer, Senhor. Que morram os dois…”

O sallon Sundowner estava repleto de clientes, quando Jamíe entrou e se aproximou do balcão. Em seguida, virou-se para a sala e proferiu em tom enérgico:

- Atenção, por favor! - o murmúrio das conversas extinguiu-se. - Pago bebidas a todos.

- Que foi? - quis saber Smit. - Uma nova descoberta de diamantes?

- Até certo ponto - admitiu Jamie, com uma gargalhada. - A filha de Salomon van der Merwe está grávida e ele quer que todos festejem o acontecimento.

- Santo Deus! - balbuciou o bartender.

- Deus não teve nada a ver com o assunto. Apenas Jamie Em menos de uma hora, todos os habitantes de Klipdrift estavam ao corrente do facto. lan Travis era na realidade Jamie McGregor e engravidara a filha de Van der Merwe. A sonsa da Margaret conseguira iludir toda a cidade.

- Ninguém diria, hem?

- As águas paradas são profundas, como diz o outro.

- Gostava de saber quantos outros homens da cidade terão embebido a torcida naquele poço.

- É uma moça bem feita. Não me importava nada de provar uma talhada.

- Porque não lhe pedes? Segundo parece, não se faz rogada.

E os homens soltavam gargalhadas divertidas.

Quando saiu da loja, naquela tarde, Salomon van der Mer-we adaptara-se à catástrofe que o assolara. Enviaria Margaret para a Cidade do Cabo no primeiro transporte. Teria lá o seu bastardo e ninguém de Klipdrift se inteiraria da vergonha que o invadia. Satisfeito com a decisão que tomara, deteve -se diante da porta, com um sorriso de alívio.

100

- Boa tarde, Mister Van der Merwe. Ouvi dizer que ia passar a vender artigos para bebé.

- Olá, Salomon! Constou-me que vai ter um pequeno ajudante.

- Como está, Salomon? Diz-se para aí que foi avistada uma ave de nova espécie, lá para os lados do rio Vaal. É uma cegonha!

O holandês deu meia volta e tornou a entrar na loja, cuja porta fechou com violência atrás dele.

No sallon Sundowner, Jamie saboreava um uísque, ao mesmo tempo que prestava atenção às conversas e aos comentários à sua volta. Tratava-se do maior escândalo da história de Klipdrift, e os habitantes mostravam-se dispostos a saboreá-lo até à última gota. “É pena Banda não estar presente, para apreciar o espectáculo comigo”, ponderava ele. Aquilo constituía a recompensa pelo que Salomon van der Merwe fizera à irmã de Banda e só Deus sabia a quantas outras.

No entanto, não passava de parte do que o holandês tinha de expiar, o começo. A vingança de Jamie não ficaria completa até que Van der Merwe se achasse totalmente destruído. Quanto a Margaret, não lhe inspirava a mínima compaixão, pois participara no conluio. Que dissera no primeiro dia em que a vira? Que o pai o ajudaria, pois conhecia tudo sobre o assunto. Era igualmente uma Van der Merwe, e ele destruiria ambos.

Smit aproximou-se da mesa que ocupava e proferiu:

- Pode conceder-me um minuto, Mister McGregor?

- De que se trata?

O bartender aclarou a voz com uma ponta de embaraço e confidenciou:

- Conheço dois pesquisadores que possuem dez lotes perto de Pniel. Contêm diamantes, mas eles não dispõem de fundos para adquirir o equipamento apropriado. Procuram um sócio e pensei que lhe poderia interessar.

Jamie olhou-o em silêncio por um momento, antes de redarguir:

- São os homens que mencionou a Van der Merwe, hem?

- Exacto - confirmou o outro, surpreendido. - Mas estive a pensar na sua proposta e prefiro negociar consigo.

Jamie puxou de uma longa cigarrilha e Smit apressou-se a acendê-la.

- Sou todo ouvidos.

101

Ao princípio, a prostituição em Klipdrift funcionava de uma forma fortuita. As prostitutas eram, na sua maioria, negras, que actuavam em sórdidos bordéis em ruas estreitas. As primeiras profissionais brancas que chegaram à cidade acumulavam essa actividade com a de barmaid. No entanto, à medida que as descobertas de campos de diamantes aumentavam e Klipdrift prosperava, o seu número alargou-se em conformidade.

Assim, havia agora meia dúzia de casas do género nos subúrbios, as quais não passavam de barracas de madeira com telhados de zinco.

A única excepção era a de Madame Agnes, uma estrutura de dois pisos de aspecto respeitável em Bree Street, perto de Loop Street, artéria principal, onde as esposas dos habitantes da cidade não se ofenderiam por terem de passar em frente dela. Frequentavam-na os maridos dessas esposas e os forasteiros com recursos materiais para o fazer. As tarifas eram elevadas, mas as animadoras, jovens e desinibidas, compensavam bem o preço. Eram servidas bebidas numa sala razoavelmente decorada e uma das principais regras da casa impunha que os clientes não fossem forçados a tomar decisões, no tocante ao consumo.

Madame Agnes, uma ruiva de trinta e cinco anos, trabalhara num bordel londrino e sentira-se atraída pela África do Sul ao inteirar-se da aparente facilidade com que se construíam (e, portanto, despendiam) fortunas na cidade mineira de Klipdrift. E como economizara dinheiro suficiente para se estabelecer por conta própria, não hesitara em tentar a sorte, com o resultado de que o negócio prosperara desde o primeiro dia.

Ela sempre se orgulhara de compreender os homens, todavia Jamie McGregor constituía um autêntico enigma. Visitava a casa com frequência, gastava dinheiro liberalmente e mostrava-se sempre atencioso para com as mulheres, mas parecia alheio ao que o rodeava. Eram os seus olhos o que mais fascinava Madame Agnes: pálidos e frios, como lagos sem fundo. Ao contrário dos outros frequentadores, nunca falava de si ou do seu passado. Ela soubera, poucas horas antes, que Jamie McGregor engravidara propositadamente a filha de Salomon van der Merwe e recusava desposá-la. “O bastardo!” Não obstante, via-se forçada

102

a reconhecer que se tratava de um bastardo atraente. Naquele momento, descia a escada com passadeira vermelha, e, depois de se despedir polidamente, transpôs a saída.

Quando Jamie regressou ao hotel, Margaret encontrava-se no seu quarto, olhando pensativamente pela janela, e voltou-se com prontidão ao ouvi-lo entrar.

- Olá, Jamie - articulou em voz trémula.

- Que fazes aqui?

- Preciso falar contigo.

- Não temos nada a dizer um ao outro.

- Sei porque procedes assim. Odeias meu pai - a rapariga acercou-se um passo. - Quero que saibas que não tive a mínima participação no que ele te fez. Por favor… suplico-te… acredita. Não me detestes. Amo-te muito.

- O problema é teu! - retrucou ele, friamente.

- Não me olhes assim. Também me amas…

Todavia, Jamie não a escutava. Voltava a efectuar o percurso até Paardspan, onde quase perdera a vida… Desviava as rochas nas margens do rio, ao ponto de quase cair, extenuado… Até que, finalmente, descobria os diamantes… Entregava - os a Van der Merwe e ouvia a voz deste: “Compreendeu mal. Não preciso de sócios para nada. Limitou-se a trabalhar para mim, segundo o nosso acordo…

Pegue no seu dinheiro e desapareça…” Depois, o espancamento selvagem..

Voltou a acudir-lhe às narinas o cheiro dos abutres e a sentir os bicos cravaremse- lhe na carne…

De súbito, ouviu a voz de Margaret, como se proviesse de uma distância enorme:

- Não te lembras? Pertenço-te… Amo-te.

Sacudiu a cabeça para desanuviar o espírito e olhou-a com estranheza. Já nem sequer fazia uma ideia do s ignificado da palavra amor. Van der Merwe sugara -lhe todas as emoções, à excepção do ódio. Agora, continuava a viver alimentado por essa força. Era o seu elixir, a sua seiva. Fora isso que o mantivera vivo, quando lutara com os tubarões, transpusera os recifes e rastejara sobre as minas, no campo de diamantes do deserto da Namíbia. Os poetas enalteciam o amor e os cantores interpretavam melodias baseadas nesse tema, e talvez fosse real, talvez existisse. Mas só para os outros. Nunca mais para Jamie McGregor.

103

- És a filha de Salomon van der Merwe. Tens o neto dele no ventre. Sai.

Margaret não tinha para onde ir. Estimava o pai e necessitava do seu perdão, mas sabia que jamais o obteria. Ele transformar-lhe-ia a vida num autêntico inferno. No entanto, não lhe restava qualquer alternativa. Necessitava de recorrer a alguém.

Assim, quando abandonou o hotel dirigiu-se à loja. Entretanto, tinha a impressão de que todos a olhavam com curiosidade e julgou mesmo detectar sorrisos maliciosos nos lábios de alguns homens.

Quando entrou, encontrou a sala deserta, mas Salomon van der Merwe não tardou a surgir das traseiras.

- Pai…

- Tu, aqui! - o desdém na voz dele atingiu-a como um impacte físico. Quando se aproximou, notou o hálito de uísque e compreendeu que tentara afogar as mágoas na bebida. - Quero que saias da cidade, imediatamente, e não voltes a pôr cá os pés. Ouviste? Nunca mais! - puxou de algumas notas de banco da algibeira e lançou-as aos pés da filha. - Recolhe esse dinheiro e desaparece!

- Trago no ventre o teu neto.

- É o filho do demónio! - adiantou-se mais um passo, os punhos cerrados ameaçadoramente. - Cada vez que te vissem arrastando-te por aí como uma prostituta, pensavam na minha vergonha. Se desapareceres, acabarão por esquecer tudo.

Margaret olhou-o demoradamente em silêncio, voltou-se e afastou-se com lentidão.

- O dinheiro, prostituta! - rugiu Van der Merwe. - Esqueceste-te dele!

Havia uma pensão pouco dispendiosa na periferia da cidade, e ela encaminhou-se para lá, o espírito assolado por confusão absoluta. Quando a alcançou, procurou a proprietária, Mrs. Owens, uma mulher nutrida que aparentava cinquenta anos, de expressão benevolente, cujo marido a levara para Klipdrift e abandonara mais tarde. Outra teria sucumbido ao revés do destino, mas ela não viera ao mundo para se curvar ao infortúnio e acabara por se recompor.

104

Vira muitas pessoas em apuros naquela cidade, mas nenhuma tão acabrunhada como a rapariga de dezassete anos de momento na sua frente.

- Querias falar comigo?

- Sim. Desejava… pensei que podia ter trabalho para mim.

- Trabalho? De que género?

- O que houver. Sou boa cozinheira. Posso servir às mesas. Também sei arrumar quartos… - Margaret interrompeu-se, dominada pelo desespero. - Faço seja o que for… Por favor!

Mrs. Owens contemplou-a com curiosidade e não pôde evitar uma sensação de amargura.

- Bem, mais uma funcionária não calhava mal, para o trabalho que há… - admitiu, apercebendo-se da expressão de alívio da interlocutora. - Quando podes começar?

- Imediatamente.

- Só te posso pagar… - pensou numa quantia e aumentou-a ligeiramente. - Uma libra, dois xelins e onze pences, por mês, com alimentação e alojamento.

- É óptimo - articulou Margaret, reconhecida.

Salomon van der Merwe passara a evitar as ruas de Klip-drift e os clientes encontravam a loja fechada cada vez com maior frequência, pelo que começaram gradualmente a recorrer a outros comerciantes.

Não obstante, o holandês continuava a visitar a igreja todos os domingos. Não para rezar, mas para rogar a Deus que rectificasse a iniquidade que caíra sobre os ombros do seu obediente servidor. Os outros paroquianos sempre o haviam encarado com o respeito devido a um homem abastado e poderoso, mas agora Van der Merwe apercebia-se dos olhares de reprovação e dos murmúrios nas suas costas. A família que costumava ocupar o lugar ao lado do seu mudou-se para outro. Consideravam-no um pária. Todavia, o que o abalou por completo foi o sermão tonitruante do sacerdote, que combinava habilmente palavras do Êxodo, de Ezequiel e do Leví-tico:

- Eu, o Senhor teu Deus, sou um Deus zeloso, que visita a iniquidade dos pais nos filhos. Portanto, ó meretriz, escuta a voz do Senhor, pois a imoralidade extravasou e a tua nudez

105

ficou descoberta na devassidão com os teus amantes… E o Senhor dirigiu-se a Moisés e disse: “Não prostituas a tua filha, obrigando-a a ser uma rameira, sob pena de a Terra se afundar na prostituição e se encher de maldade”…

Depois daquele domingo, Salomon van der Merwe não voltou a entrar na igreja.

Enquanto os negócios do holandês se deterioravam, os de Jamie McGregor prosperavam. As despesas envolvidas nas pesquisas aumentavam à medida que os diamantes se encontravam a maior profundidade e os mineiros possuidores de lotes para explorar reconheciam que não dispunham de recursos para adquirir o equipamento necessário. Não tardou a propagar-se a nova de que Jamie McGregor os financiaria em troca de uma percentagem nos lucros, e, mais tarde, comprava -lhes as quotas. Por seu turno, investia em propriedade horizontal e ouro, revelando-se meticulosamente honesto nas operações, pelo que a sua reputação se difundiu e as propostas de negócios afluíam em número crescente.

Havia dois bancos na cidade, e quando um deles faliu, por má administração, Jamie comprou-o, colocando à testa pessoas da sua confiança e evitando que o seu nome figurasse na transacção.

Tudo em que ele tocava parecia prosperar. Era bem sucedido e rico para além dos seus sonhos mais arrojados, mas isso carecia de significado especial na sua vida.

Media os seus êxitos apenas pelos falhanços de Salomon van der Merwe, pois a vingança achava-se ainda no princípio.

De vez em quando, Jamie cruzava-se com Margaret na rua, mas não lhe prestava a mínima atenção.

Não podia, portanto, aperceber-se do que esses encontros ocasionais representavam para a rapariga. O simples facto de o ver cortava -lhe o alento, pois ainda o amava completa e profundamente. Nada poderia alterar essa maneira de sentir. Embora Jamie tivesse utilizado o seu corpo para se vingar do pai, Margaret sabia que isso poderia constituir uma faca de dois gumes. Em breve teria um filho dele e, quando visse a criança em cujas veias corria o seu sangue, casaria com ela, que era a única coisa que ambicionava no mundo. À noite, antes de adormecer, acariciava o ventre volumoso e murmurava: “O nosso filho!” Talvez não passasse de uma insensatez

106

supor que poderia influenciar o seu sexo, mas não queria descurar qualquer possibilidade. Todos os homens desejavam um rapaz.

À medida que as dimensões do ventre aumentavam, Margaret sentia a apreensão acentuar-se. Deplorava não poder confiar em alguém, mas as mulheres da cidade não lhe falavam. A sua religião ensinava-as a castigar e não a perdoar. Por conseguinte, encontrava-se só, rodeada de estranhos, e passava grande parte das noites chorando por ela e pelo filho prestes a nascer.

Entretanto, Jamie McGregor adquirira uma casa de dois pisos no centro de Klipdrift, onde instalara o quartel-general dos seus negócios, em expansão permanente. Um dia, Harry McMillan, chefe dos contabilistas, procurou-o e anunciou:

- Como vamos combinar as suas firmas, precisamos de um nome que as englobe.

Tem alguma sugestão a esse respeito?

- Vou pensar nisso.

E, na verdade, ponderou o assunto. No espírito, persistia o som de ecos de um passado remoto que perfuravam o mis do mar no campo de diamantes do deserto da Namíbia, e acabou por chegar à conclusão de que só havia um nome possível.

Nessa conformidade, chamou McMillan e comunicou-lhe:.

- A nova companhia chamar-se-á “Kruger-Brent, Limited”.

O gerente do banco de Jamie, Alvin Cory, revelou-lhe:

- Queria falar-lhe dos empréstimos de Mister Van der Merwe. O prazo do pagamento já expirou e ainda não o satisfez. Outrora, ele constituía um risco corrente, mas a sua situação alterou-se drasticamente. Penso que devíamos pressioná-lo.

- Não.

- Mas, esta manhã, tentou obter mais dinheiro… - começou Cory arqueando as sobrancelhas.

- Não importa. Satisfaça-lhe todos os pedidos.

- Como queira, Mister McGregor. Dir-lhe-ei que o senhor…

- Não diga nada. Limite -se a dar-lhe o dinheiro.

Margaret levantava -se todas as manhãs às cinco horas, a fim de amassar pão, e quando os hóspedes se apresentavam

107

na sala de jantar, para o pequeno-almoço, servia-lhes caldo, presunto e ovos, biscoitos de aveia, croissants, café fume-gante e naartje. Na sua maioria, tratavase de pesquisadores de passagem em direcção ou no regresso dos seus lotes.

Efectuavam uma paragem na cidade apenas o tempo suficiente para mandarem avaliar os seus diamantes, tomar banho, apanhar uma bebedeira e visitar um dos bordéis da cidade, em geral por esta ordem. Eram quase todos aventureiros analfabetos e rudes.

Segundo uma lei não escrita que vigorava em Klipdrift, as mulheres de porte irrepreensível não deviam ser molestadas. Qua ndo um homem desejava ter relações sexuais, procurava uma prostituta. No entanto, Margaret van der Merwe representava um desafio, pois não se adaptava a qualquer das categorias. As raparigas bem-comportadas solteiras não engravidavam, e circulava a teoria de que, como cometera um deslize uma vez, subsistem fortes probabilidades de ansiar por ir para a cama com qualquer homem. Bastava sugerir-lho. E faziam -no.

Alguns pesquisadores abordavam-na abertamente, enquanto outros preferiam as tentativas dissimuladas. Margaret repelia-os sempre com serena dignidade, até que, uma noite, Mrs. Owens, quando se preparava para dormir, ouviu gritos agudos provenientes do quarto da rapariga. Acto contínuo, correu para lá e abriu a porta. Um dos hóspedes, um pesquisador embriagado, arrancara-lhe o roupão e imobilizava -a na cama.

Mrs. Owens agiu como uma pantera enfurecida. Pegou numa barra de ferro e principiou a flagelar o homem até que lhe fez perder os sentidos, arrastando-o depois para a rua. Em seguida, regressou ao quarto de Margaret, que limpava o sangue dos lábios mordidos pelo assaltante.

- Estás bem, Maggie?

- Sim, Mistress Owens - articulou a rapariga, em voz trémula. - Muito obrigada…

E as lágrimas irromperam com abundância. Numa cidade onde ninguém lhe falava, uma pessoa manifestara bondade.

Por seu turno, Mrs. Owens contemplava-lhe o ventre inchado e reflectia: “Pobre sonhadora. Jamie McGregor nunca casará com ela.”

108

A data do parto aproximava -se. Margaret cansava -se com facilidade, e o facto de se inclinar e voltar a endireitar representava um esforço quase excruciante. O único prazer consistia em sentir a criança mover-se nas suas entranhas. Ela e o filho achavam-se completamente sós no mundo, e falava-lhe constantemente, referindo todas as coisas maravilhosas que a vida lhe reservava.

Uma noite, pouco depois do jantar, um rapaz negro apresentou-se na pensão, a fim de entregar uma carta a Margaret e esclarecer:

- Mandaram-me aguardar a resposta.

A rapariga leu-a duas vezes, a segunda com lentidão, e anunciou:

- Sim. A resposta é afirmativa.

Na sexta-feira seguinte, ao meio-dia em ponto, bateu à porta do bordel de Madame Agnes, na qual fora afixada a indicação: “Encerrado”. Fê-lo em breves pancadas discretas, indiferente aos olhares surpreendidos de quem passava. Ao mesmo tempo, perguntava a si própria se teria cometido um erro ao comparecer.

Na realidade, tratara-se de uma decisão difícil e tomara-a impelida apenas pela terrível solidão que a envolvia. O conteúdo da missiva era o seguinte:

Cara Miss Van der Merwe Embora o assunto não nos diga respeito, eu e as minhas pequenas discutimos a sua situação, infeliz e injusta, que muito nos revolta. Gostávamos de a ajudar e ao seu bebé. Portanto, se o facto não a embaraçar, teremos o maior prazer em que almoce connosco. Convém-lhe na sexta-feira?

Atenciosamente Madame Agnes P.S. Seremos muito discretas.

Margaret começava a admitir a possibilidade de se retirar, quando a porta foi finalmente aberta pela própria Madame Agnes, que lhe pegou no braço e sugeriu:

- Entre. Saia desse maldito calor.

Conduziu-a à sala, mobilada com sofás, cadeiras e mesas vitorianas e decorada de forma algo espectacular, com fitas

109

coloridas e balões. Em tiras de cartão suspensas do tecto, lia-se: “Felicidades para o bebé… será um rapaz… feliz aniversário.”

Achavam-se presentes oito das “pequenas” de Madame Agnes, numa variedade de tipos, idades e cores, todas devidamente trajadas para o momento, em obediência às instruções da patroa. Por outras palavras, usavam vestidos conservadores e nem vestígios de pintura. “Têm um aspecto mais respeitável do que a maioria das mulheres casadas da cidade”, pensou Margaret.

Ao mesmo tempo, contemplava as prostitutas à sua volta, sem saber o que fazer ou dizer. Algumas eram conhecidas, pois a tendera -as na loja do pai. De qualquer modo, possuíam um factor comum: preocupavam-se com ela. Mostravam-se atenciosas e cordiais e empenhavam -se em animá-la.

Moviam-se em torno da rapariga, com certo embaraço, como se receassem dizer ou fazer algo de errado. Independentemente do que as más -línguas propalavam, sabiam que se tratava de uma senhora e estavam conscientes da diferença entre elas e Margaret. Consideravam-se honradas por ela ter aceitado o convite e desejavam desenvolver todos os esforços para evitar que algum acto ou gesto irreflectido perturbasse a reunião.

- Preparámos um almoço excelente - anunciou Madame Agnes. - Espero que tenha apetite.

Seguiram para a sala de jantar, onde fora posta uma mesa de aspecto festivo, com uma garrafa de champanhe no lugar que lhe era destinado. Quando atravessavam o átrio, ela lançou uma olhadela à escada de acesso aos quartos no primeiro andar. Sabia que Jamie frequentava a casa e perguntava a si própria qual das raparigas costumava escolher. Talvez todas. O facto levou-a a observá-las discretamente, numa tentativa para determinar o que possuiriam que lhe faltasse.

O almoço revelou-se um autêntico banquete. Principiou com uma sopa e salada deliciosas, seguidas de carpa grelhada, que antecedeu por seu turno cabrito assado com batatas e legumes. Culminavam o repasto queijo, fruta, um bolo decorativo e café. Margaret sentava-se à cabeceira da mesa, com Madame Agnes à sua direita, e Maggie, uma loura atraente que não aparentava mais de dezasseis anos, à sua esquerda. Ao princípio, a conversação foi um pouco afectada. As

110

raparigas conheciam numerosas historietas divertidas, mas afiguravam-se-lhes pouco apropriadas para os ouvidos da convidada. Por conseguinte, referiam-se ao tempo, ao desenvolvimento de Klipdrift e ao futuro da África do Sul. Achavam-se familiarizadas com a política, a economia e os diamantes, porque obtinham informações em primeira mão de peritos na matéria seus clientes.

A dada altura, a loura atraente, Maggie, anunciou:

- Jamie descobriu um novo campo de diamantes em… - apercebendo-se do silêncio estabelecido repentinamente, compreendeu o lapso que cometera e acrescentou com um sorriso nervoso: - Refiro-me a meu tio Jamie.

Margaret sentiu-se surpreendida com a súbita vaga de ciúme que a invadiu e Madame Agnes apressou-se a mudar de assunto.

No final da refeição, esta última levantou-se e indicou:

- Por aqui, minha amiga.

Seguiram-na todas a uma segunda sala, cheia de presentes envoltos em papel de fantasia e fitas.

- Não encontro palavras… - balbuciou Margaret, comovida.

- Nem são necessárias - atalhou Madame Agnes. - Desembrulhe-os.

Havia um berço de balouço, pequenas botas de lã, gorros, uma capa de caxemira.

Numa palavra, todos os artigos indispensáveis a um bebé.

Era como no Natal e excedia tudo o que ela poderia jamais conceber. De súbito, toda a solidão e infelicidade reprimidas nos últimos meses explodiram nela e rompeu em soluços.

Madame Agnes rodeou-lhe a cintura com o braço e indicou às outras que se retirassem, enquanto Margaret se esforçava por dominar a emoção.

- Peço… peço desculpa - gaguejou. - Não sei o que me aconteceu.

- Não se preocupe, querida. Esta sala assistiu à passagem de muitos problemas.

E sabe o que a experiência me ensinou? No fim, tudo se soluciona. Você e o seu filho hão-de conhecer a felicidade.

- Obrigada - murmurou. Apontando na direcção dos presentes, acrescentou: - Nunca poderei agradecer-lhes tudo isto.

111

- Nem é preciso. Não faz uma ideia de como nos divertimos quando procurávamos aquilo que nos parecia conveniente. Garanto-lhe que não se nos deparam oportunidades destas com frequência. Se uma de nós fica grávida, é uma autêntica tragédia - Madame Agnes cobriu a boca com a mão. - Oh, desculpe!

- Quero que saiba que este é um dos dias mais felizes da minha vida - afirmou Margaret, sorrindo.

- Sentimo-nos lisonjeadas com a sua visita. Quanto a mim, vale mais que todas as mulheres desta cidade juntas. Malditas cadelas! Era capaz de as matar pela maneira como a tratam. E, se me permite que lhe diga, Jamie McGregor não passa de um imbecil - Madame Agnes sacudiu a cabeça. - Homens! O mundo era maravilhoso se pudéssemos viver sem eles. Ou talvez não fosse. Quem sabe?

Entretanto, Margaret recompusera-se da emoção e segurou a mão da interlocutora entre as suas.

- Nunca esquecerei isto. Um dia, quando meu filho tiver idade suficiente, hei-de dizer-lhe.

- Parece-lhe conveniente? - articulou Madame Agnes, enrrugando a fronte.

- Sem a mínima dúvida.

- Mandarei levar os p resentes à pensão - prometeu, acompanhando a rapariga à porta. - Felicidades.

- Obrigada. Muitíssimo obrigada.

Conservou-se imóvel por uns minutos, enquanto Margaret se afastava. Por fim, exalou um suspiro de resignação e chamou:

- Ao trabalho, meninas! Vamos reabrir ao público. Uma hora mais tarde, a casa registava a afluência habitual.

Capítulo oitavo Chegara o momento de preparar a ratoeira. Durante os últimos seis meses, Jamie McGregor dedicara-se à compra discreta das quotas dos associados de Van der Merwe nas suas várias empresas, pelo que podia agora dominar as operações.

No entanto, a sua obsessão consistia em possuir os campos de

112

diamantes do holandês na Namíbia. Considerava que os pagara centenas de vezes com o seu sangue e coragem, quase perdendo a vida ante as vicissitudes que sofrera. Utilizara os diamantes que ele e Banda tinham retirado de lá para construir um império destinado a esmagar Salomon van der Mer-we, tarefa que ainda não fora completada. Agora, achavam-se reunidas as condições para o fazer.

Van der Merwe afundava-se cada vez mais em dívidas. Agora, ninguém da cidade estava disposto a emprestar-lhe dinheiro, à excepção do banco que Jamie dirigia em segredo. Com efeito, o gerente deste último recebera instruções bem definidas:

- Dê a Salomon van der Merwe todo o dinheiro que ele pedir.

Entretanto, a loja do holandês raramente estava aberta. Ele habituara-se a beber desde manhã cedo e, à tarde, dirigia-se ao bordel de Madame Agnes, onde pernoitava com frequência.

Certa manhã, Margaret encontrava-se no talho à espera que a atendessem, quando lançou uma olhadela através da montra e viu o pai abandonar a casa de toleradas. Quase incapaz de reconhecer o homem acabrunhado que se arrastava pela rua, reflectiu com amargura: “Fui eu quem o reduziu a este estado. Perdoame, meu Deus!”

Salomon Van der Merwe não fazia a mínima ideia do que lhe sucedia. Apenas sabia que a sua vida se desmoronava irremediavelmente, sem que contribuísse para tal. O Criador escolhera-o, como outrora a Job, para p ôr à prova o fervor da sua fé. Não obstante, estava persuadido de que triunfaria dos inimigos.

Necessitava apenas de um pouco de tempo… tempo e mais dinheiro. Arriscara como penhor o estabelecimento, as acções de seis pequenos campos de diamantes que possuía e até o seu cavalo e carruagem. Por último, restara apenas o campo de diamantes na Namíbia, e no dia em que o apresentou como garantia adicional Jamie não descurou a oportunidade.

- Reúna todas as suas promissórias - indicou ao gerente do banco. - Conceda-lhe vinte e quatro horas para as satisfazer, sob pena de executar a hipoteca.

- Mas ele não pode arranjar uma quantia tão elevada nesse lapso de tempo…

113

- Vinte e quatro horas.

Às quatro da tarde exactas do dia seguinte, o gerente do banco apresentou-se na loja, acompanhado de um representante da autoridade e de uma ordem judicial, para confiscar todos os bens de Salomon van der Merwe. Da janela do escritório, do outro lado da rua, Jamie assistiu à expulsão do holandês do seu estabelecimento. O velho imobilizou-se no passeio, pestanejando ante os raios solares intensos, sem saber o que fazer ou a quem recorrer. Fora despojado de tudo. A vingança de Jamie completara -se. “Porque será que não tenho a mínima sensação de triunfo?”, perguntava-se este último. Na realidade, sentia um vazio no seu íntimo. O homem que acabava de aniquilar destruíra-o primeiro.

Naquela noite, quando entrou no bordel de Madame Agnes, esta perguntou-lhe:

- Sabe a última? Salomon van der Merwe fez saltar os miolos, há uma hora.

O funeral realizou-se no cemitério desolador e varrido pelo vento na periferia da cidade. Além do pessoal da agência e os coveiros, a cerimónia contava apenas com dois assistentes: Margaret e Jamie McGregor. A rapariga usava um vestido preto folgado para dissimular o ventre e apresentava-se pálida e pouco saudável, enquanto ele, elegante e empertigado, exibia uma atitude distante e indiferente.

Encontravam-se em lados opostos da sepultura, observando a descida da urna de pinho para as entranhas da terra. Os torrões embatiam nas paredes de madeira, e Margaret tinha a impressão de que o faziam ao ritmo de: “Rameira!.. Rameira!…”

Dirigiu a vista para o outro lado da cova e o olhar cruzou-se com o de Jamie, frio e impessoal, como perante uma desconhecida. “Estás aí, impávido, e és tão culpado como eu. Matámo-lo ambos. Sou tua mulher, aos olhos de Deus, mas isso não impede que sejamos comparsas no mal.” Tornou a baixar os olhos para a sepultura descoberta e não os desviou até que a derradeira pazada de terra cobriu a urna de pinho.

- Repousa - murmurou. - Repousa…

Quando voltou a erguer a cabeça, Jamie desaparecera.

Havia duas construções de madeira em Klipdrift que funcionavam como hospital, mas as condições sanitárias eram de

114

tal ordem que o número de enfermos que morriam excedia de longe o dos que recuperavam a saúde. Quando se aproximou a data prevista para o parto, Mrs.

Owens mandou chamar uma parteira de cor, que recomendou:

- Procure não se descontrolar, que a Natureza exercerá a sua acção.

A primeira contracção de dor fez acudir um sorriso aos lábios de Margaret.

Preparava-se para trazer um filho ao mundo e teria um nome. Envidaria todos os esforços para que Jamie McGregor o reconhecesse. Não sofreria pelos erros dos pais.

O parto prolongou-se por várias horas e, quando alguma hóspede da pensão se aproximava do quarto, Hannah, a parteira, apressava-se a afastá-la.

- É um acontecimento pessoal - explicou a Margaret. - Entre você, Deus e o demónio que a envolveu nestes apuros.

- Vai ser um rapaz? - sussurrou a rapariga, entre exclamações abafadas.

- Digo-lhe depois de examinar a “canalização” do rebento - redarguiu a negra, limpando-lhe a transpiração da fronte. - Agora, faça força para o expelir… Mais!

As contracções começaram a tornar-se mais frequentes e a dor parecia empenhada em dilacerar o corpo da parturiente, que pensava, alarmada: “Alguma coisa está a correr mal!” - Não pare! - gritou Hannah. De repente, deixou transparecer uma ponta de alarme. - Está torcido! Não consigo fazê-lo sair!

Por entre uma espécie de neblina avermelhada, Margaret viu-a inclinar-se para a frente e aproximar as mãos do útero, até que a dor se extinguiu e surgiu a sensação de que flutuava no espaço, onde se via, à distância, Jamie, que lhe acenava. “Estou aqui, querida. Vais dar-me um filho estupendo”. Voltava para ela, pelo que já não o odiava. No fundo, o ódio nunca fora real. Bruscamente, alguém disse “Está quase”, registou-se uma espécie de rasgão no seu íntimo e a dor obrigou-a a soltar um grito.

- Pronto! - exclamou Hannah. - Já está a sair bem. No segundo imediato, Margaret notou o deslizar de um objecto húmido entre as pernas e um grito de triunfo da parteira.

- Bem-vindo a Klipdrift - proferiu esta última, erguendo o pequeno corpo nas mãos.

- É um rapaz.

Recebeu o nome de Jamie.

115

Ela sabia que a notícia do nascimento da criança não tardaria a chegar aos ouvidos de Jamie, e aguardava com ansiedade que este a procurasse ou mandasse chamar. No entanto, após várias semanas sem que tal acontecesse, decidiu mandá-lo prevenir.

Quando o mensageiro regressou, interrogou-o impacientemente:

- Viste Mister McGregor?

- Sim.

- E transmitiste-lhe o recado?

- Sim.

- Que respondeu?

O rapaz hesitou, embaraçado, antes de informar:

- Disse que não tinha nenhum filho.

Ela fechou-se no quarto todo aquele dia e aquela noite, recusando-se a sair.

- Teu pai está confuso neste momento, Jamie. Pensa que a tua mãe lhe armou uma cilada. Mas és filho dele, e quando te vir, há-de levar-nos para vivermos em sua casa e amar-nos muito. Verás, meu querido. Tudo se comporá.

De manhã, quando Mrs. Owens bateu à porta, Margaret abriu-a, parecendo singularmente calma.

- Como estás, Maggie?

- Bem, obrigada - murmurou, enquanto vestia o bebé. - Vou levar Jamie a passear no seu carrinho.

Este, oferecido por Madame Agnes e as suas pequenas, era, sem dúvida, confortável, e nem faltava o pára-sol de protecção contra os implacáveis raios solares.

Quando o impelia ao longo dos estreitos passeios de Loop Street, um ou outro homem detinha-se para sorrir à criança, mas as mulheres evitavam-na, chegando a cruzar a rua para não encararem com Margaret.

Todavia, ela não se preocupava com isso, pois só lhe interessava uma pessoa.

Sempre que fazia bom tempo, saía com o filho. Transcorrida uma semana sem que avistasse Jamie, concluiu que ele se lhe esquivava deliberadamente. “Pois bem. Já que não vem ver o filho, procurá-lo-emos”, acabou por decidir.

Na manhã seguinte, anunciou a Mrs. Owens:

- Vou efectuar uma pequena viagem. Espero regressar dentro de uma semana.

116

- O bebé ainda é muito pequeno para viajar, Maggie.

- Ele fica na cidade.

- Aqui connosco?

- Não.

Jamie McGregor mandara construir a sua moradia numa pequena elevação sobranceira a Klipdrift. Tratava-se de um bangaló com duas alas espaçosas anexas ao corpo principal, com o qual comunicavam por meio de amplas varandas. O conjunto era rodeado por relvados verdejantes sulcados de árvores e um jardim em que predominavam as rosas. Nas traseiras, havia o alpendre da carruagem e alojamentos separados para o pessoal. As actividades domésticas achavam-se a cargo de Eugenia Talley, uma impressionante viúva de meia-idade, cujos seis filhos estudavam em Inglaterra.

Margaret apresentou-se na moradia, com o filho nos braços, às dez horas da manhã, altura do dia em que sabia que Jamie se encontrava no escritório. A governanta abriu a porta e arregalou os olhos de surpresa, incrementada pelo facto de estar ao corrente de quem se tratava, como acontecia com toda a gente num raio de uma centena de quilómetros.

- Lamento, mas Mister McGregor não está - declarou, fazendo menção de fechar.

- Não vim para o ver - replicou Margaret, opondo-se. - Trago-lhe o filho.

- Desconheço tudo o que se refere ao assunto. Aconselho-a…

- Vou ausentar-me por uma semana. Nessa altura, levá-lo-ei - estendeu o bebé à mulher. - Chama-se Jamie.

- Não o pode deixar aqui! - o rosto da governanta assumiu uma expressão horrorizada. - Mister McGregor despedia-me…

- Pode optar - interrompeu Margaret. - Ou o aceita o u deixo-o junto da porta.

Duvido que ele gostasse da segunda alternativa.

E, sem mais uma palavra, depositou o pequeno fardo nos braços da outra e afastou-se.

- Espere! Não pode!… Venha cá!…

Todavia, nem sequer se voltou, enquanto a governanta começava a traçar conjecturas crescentemente alarmantes acerca da reacção de Jamie McGregor quando chegasse.

117

Na realidade, nunca o vira em semelhante estado.

- Como pôde ser tão estúpida? - vociferou ele, ao inteirar-se da situação. - Bastava bater-lhe com a porta na cara!

- Ela não me deu oportunidade de o fazer, Mister McGregor.

- Não quero o seu filho em minha casa! - Jamie começou a percorrer a sala em agitado vaivém. Por fim, estacou diante da apavorada mulher e advertiu: - Merecia que a despedisse.

- Prometeu vir buscá-lo dentro de uma semana.

- Nem que fosse dentro de cinco minutos! Livre-se dessa criança imediatamente!

- Como sugere que o faça? - inquiriu ela, com um assomo de dignidade.

- Há-de haver algum lugar em que o possa deixar, na cidade.

- Onde?

- Sei lá!

Baixou os olhos para o bebé que segurava nos braços e principiara a chorar em resultado dos gritos de Jamie.

- Não há orfanatos em Klipdrift - anunciou, embalando-o, sem contudo lograr pôr termo ao choro. - Alguém tem de tomar conta dele.

- Maldição! Está bem. Já que o aceitou tão generosamente, confio-lho.

- Perfeitamente.

- E faça-o calar. Entendamo -nos bem numa coisa, Mis-tress Talley. Não o quero ver nem ouvir. E quando a mãe o vier buscar, não a receberei.

A governanta aquiesceu com uma inclinação de cabeça e retirou-se, enquanto ele se refugiava na biblioteca, para saborear um charuto e um cálice de brande. “Que estúpida! Pensa que o facto de ver o bebé me enternece o coração e obriga a procurá-la para lhe confessar o meu amor e propor casamento”. Na realidade, nem se preocupara em o contemplar. Não queria nada de comum com a criança.

Não a concebera por amor ou mesmo desejo. Tratava-se do produto de uma das armas que empregara na sua vingança. Jamais esqueceria a expressão de Salomon van der Merwe, quando lhe anunciara que Margaret esta grávida. Fora o início de uma série de acontecimentos que terminara com a descida da urna de pinho

118

na sepultura. Tinha de procurar Banda para lhe comunicar que a sua missão chegara ao fim.

Assolava-o, porém, uma sensação de vazio. “Tenho de fixar novos objectivos.” Já se podia considerar abastado para além das aspirações mais ambiciosas.

Adquirira milhares de hectares de terreno mineral, esperançado em encontrar novas jazidas de diamantes, e acabara por possuir ouro, platina e meia dúzia de outros metais raros. O seu banco detinha hipotecas de grande parte das propriedades de Klipdrift e as terras que lhe pertenciam estendiam-se da Namíbia à Cidade do Cabo. Isso infundia-lhe satisfação, mas não bastava. Convidara os pais a reunirem -se-lhe, mas eles não desejavam abandonar a Escócia. Os irmãos e a irmã tinham casado. Enviava quantidades substanciais à família, o que lhe proporcionava prazer; contudo, a sua vida constituía uma sucessão de dias monótonos e insípidos. Alguns anos antes, consistira em altos e baixos excitantes.

Sentira-se vivo. Vivia plenamente, quando ele e Banda se aventuravam na jangada através dos recifes do Sperrgebiet ou rastejavam sobre as minas disseminadas no areal do deserto. Agora, afigurava-se-lhe que não experimentava as emoções da vida desde longa data, embora se recusasse a admitir a si próprio que se sentia só.

Voltou a estender a mão para a garrafa e descobriu que estava vazia. Ou bebia mais do que pensava ou a governanta negligenciava as suas obrigações. Por fim, levantou-se e diri-giu-se à copa, onde se guardavam as bebidas. No momento em que se preparava para pegar numa garrafa, detectou o choro do recém-nascido.

“Mrs. Talley devia conservá -lo no seu quarto, perto da cozi nha.” Tudo indicava que cumprira as suas instruções à letra, pois ele não vira nem ouvira a criança nos dois dias transcorridos desde que se lhe introduzira em casa. Naquele instante, detectou a voz da governanta no tom característico das mulheres para se dirigirem aos bebés.

- És muito bonitinho, sabias - articulava ela. - Podes mesmo considerar-te um anjo.

Jamie aproximou-se da porta aberta do quarto e espreitou. A mulher conseguira obter um berço algures, no qual a criança se achava deitada, rodeando um dos dedos dela com a pequena mão.

- Tens muita força, Jamie. Hás-de ser um… - Mrs. Talley

119

interrompeu-se, surpreendida, ao aperceber-se da presença do patrão à entrada. - Estava… Desejava alguma coisa, Mister McGrcgor?

- Não - ele aproximou-se do berço. - Senti curiosidade em ver o que se passava aqui.

E contemplou o filho pela primeira vez. Era maior do que supusera e bem constituído, além do que, pormenor embaraçoso, dir-se-ia sorrir-lhe.

- Queira desculpar, Mister McGregor, mas é um bebé encantador. E saudável.

Estenda-lhe o dedo e verá que o segura com força.

No entanto, ele rodou nos calcanhares e afastou-se.

Jamie McGregor dispunha de mais de meia centena de empregados dispersos pelas suas várias empresas e não havia um único, independentemente do cargo que desempenhava, que ignorasse como a Kruger-Brent Ltd. adquirira o nome.

Ele admitira recentemente David Blackwell, filho de dezasseis anos de um dos capatazes, um americano do Orégão que partira para a África do Sul à procura de diamantes. Quando o dinheiro se lhe esgotara, Jamie contratara-o para se ocupar de uma das minas. O filho trabalhou na companhia em regime eventual, durante um Verão, e ele considerou-o tão competente que lhe ofereceu um lugar permanente. O jovem David Blackwell era i nteligente e atraente e tinha iniciativa.

Além disso, Jamie sabia que podia guardar um segredo, motivo pelo qual o escolheu para aquela missão especial.

- Precisava que fosse à pensão de Mistress Owens, onde vive uma mulher chamada Margaret van der Merwe.

- Muito bem.

Se o rapaz estava familiarizado com o seu nome ou suas circunstâncias, não o deixou transparecer.

- O recado destina -se-lhe pessoalmente. Portanto, não o transmita a intermediários. Diga-lhe que venha buscar o filho hoje mesmo.

David Blackwell reapareceu meia hora mais tarde, para comunicar.

- Não me foi possível cumprir as suas instruções.

- Porquê? - inquiriu Jamie, pondo-se de pé abruptamente. - Eram de uma simplicidade quase infantil.

- Miss van der Merwe não se encontrava lá.

120

- Então, localize-a.

- Partiu de Klipdrift há dois dias e só deve regressar passada uma semana. Se deseja que efectue diligências mais profundas…

- Não é necessário - era o que menos convinha a Jamie. - Está bem. Pode retirarse.

“Diabos levem a mulher! Quando voltar, terá uma surpresa à sua espera. Há-de ser-lhe devolvido o filho!”

Naquela noite, Jamie jantou só, em casa, e tomava o brande na biblioteca quando a governanta o procurou para discutir um problema doméstico. Todavia, a meio de uma frase, fez uma pausa para escutar e disse.

- Queira desculpar, Mister McGregor, mas Jamie está a chorar - e afastou-se apressadamente.

Ele pousou a garrafa de brande com um gesto brusco. “Raio de bebé! E ela teve o arrojo de lhe chamar Jamie! Não parece um Jamie. Na realidade, não parece coisa nenhuma.”

Mrs. Talley reapareceu transcorridos dez minutos, e tratou de a advertir:

- Julgo conveniente recordar-lhe que trabalha para mim e não para aquele bastardo. Ficamos entendidos?

- Decerto, Mister McGregor.

- Quanto mais depressa o levarem desta casa, melhor para todos.

- Muito bem - articulou ela, comprimindo os lábios. - Deseja mais alguma coisa?

- De momento, não - mas vendo que a mulher se preparava para sair, Jamie acrescentou: - A propósito…

- Sim?

- Disse que ele estava a chorar. Adoeceu?

- Não. Precisava que lhe mudassem as fraldas.

- Ah! - tossiu, com uma ponta de embaraço. - Nada mais, Mistress Talley.

Todavia, o embaraço transformar-se-ia em fúria se soubesse que o pessoal trocava impressões com insistência a respeito dele e do seu filho. Concordavam unanimemente que o patrão não procedia bem, mas reconheciam que a simples alusão ao facto na sua presença representaria o despedimento imediato, pois Jamie McGregor não aceitava com simpatia os conselhos dos outros.

121

Na tarde seguinte, teve uma reunião de negócios que se prolongou pela noite, Efectuara um investimento numa nova via-férrea. Embora de pequena envergadura - das minas do deserto da Namíbia a De Aar, estabelecendo ligação com a linha Cidade do Cabo-Kimbcrley -, passaria a ser muito menos dispendioso transportar os seus diamantes e o ouro para o porto. O primeiro caminho -de-ferro da Cidade do Cabo fora inaugurado em 1860, de Dunbar ao Promontório, e desde então haviam surgido novas linhas da Cidade do Cabo para Wellington. A viaférrea constituiria o sistema circulatório de aço que permitiria o movimento de mercadorias e pessoas através do coração da África do Sul, e Jamie tencionava tomar parte activa no progresso. Isso representava apenas o começo do seu plano. “Depois, navios. A minha frota mercante levará os minerais através do oceano!”

Chegou a casa depois da meia-noite e foi-se deitar imediatamente. Começava a mergulhar no sono, quando julgou ouvir um grito. Soergueu-se de modo abrupto e escutou atentamente, mas o som não se repetiu. Teria sido o bebé? A queda do berço provocaria algo do género. Jamie sabia que a governanta não acordava com facilidade, e seria lamentável que acontecesse alguma coisa à criança durante a permanência em sua casa. Poderiam mesmo responsabilizá-lo. “Diabos levem a mulher!”

Com uma imprecação entre dentes, enfiou o roupão e os chinelos e atravessou a casa em direcção ao quarto de Mrs. Talley. Uma vez junto da porta fechada, apurou os ouvidos, sem resultado. Por último, estendeu a mão para o puxador e fê-lo girar. A governanta dormia profundamente, quase invisível sob os cobertores, roncando, pelo que ele se acercou do berço. O bébé encontrava -se deitado de costas, com os olhos bem abertos. Na verdade, havia certa semelhança! A boca e o queixo eram como os dele. Ao mesmo tempo, agitava as mãos no ar e parecia sorrir a Jamie. “Poucos bebés estariam tão sossegados. Sim, é mesmo um McGregor!”

Загрузка...