- Os negros, os mestiços e os indianos têm de pagar duas libras por cada membro da família, o que representa mais de um mês de salário.
Kate lembrou-se de Banda e acudiu-lhe uma onda de apreensão. Todavia, não tardaram a abordar outros tópicos.
A nova vida agradava-lhe imensamente. Cada decisão envolvia o risco de milhões de libras. Os negócios de alto nível constituíam uma combinação de argúcia, coragem para jogar uma cartada e instinto para saber quando desistir ou ir para a frente.
- Os negócios são um jogo - afirmava David. - Estão envolvidas apostas fantásticas e temos de competir com peritos. Quem quiser ganhar precisa de aprender a ser um mestre do jogo.
180
Era precisamente isso que Kate estava disposta a fazer. Aprender.
Ela vivia só na vasta moradia, apenas com a companhia do pessoal doméstico. O ritual dos jantares das sextas-feiras com David prosseguiu, mas, quando Kate o convidava em qualquer outro dia, ele invocava um pretexto para recusar. Durante as horas de expediente, estavam juntos constantemente, mas mesmo nessas ocasiões ele parecia ter erguido uma barreira entre ambos, uma muralha que ela se sentia incapaz de transpor.
Quando completou vinte e um anos, todas as acções da Kruger-Brent International foram transferidas para Kate, a qual passou assim a dispor do controlo oficial da companhia.
- Jantemos juntos, esta noite, para comemorar o acontecimento - propôs a David.
- Desculpa não aceitar a sugestão, mas tenho muito trabalho para pôr em dia.
Por conseguinte, ela jantou só, sem conseguir determinar o motivo. “A culpa será minha ou dele?” David tinha de ser surdo, cego e mudo para não adivinhar o seu afecto de longa data. Impunha-se que tomasse medidas para rectificar a situação.
A companhia negociava o estabelecimento de uma linha de navegação nos Estados Unidos e David sugeriu:
- Porque não vais com Brad a Nova Iorque ultimar as negociações? Era uma boa experiência para ti.
Embora preferisse que ele a acompanhasse, o amor-próprio impediu-a de o revelar. Ocupar-se-ia de tudo sem a sua ajuda. De resto, nunca visitara a América e ansiava por fazê-lo.
O acordo foi estabelecido sem problemas, e Kate recordou-se da recomendação de David no sentido de que aproveitasse a oportunidade para conhecer o país.
Ela e Brad visitaram companhias subsidiárias em Detroit, Chicago, Pitsburgo e Nova Iorque, e Kate sentia-se abismada com a dimensão e a energia dos Estados Unidos. O ponto alto da digressão consistiu na excursão a Dark Harbor, Maine, numa ilhota encantadora denominada Islesboro, na baía Penobscot. Fora convidada para jantar na residência do artista
181
Charles Dana Gibson, onde compareceram doze pessoas, todas com moradias na ilha.
- Este lugar tem uma história interessante - revelou o dono da casa a Kate. - Há anos, os residentes costumavam fazer-se transportar de Boston em pequenas embarcações costeiras. Aguardava-os uma carruagem que os conduzia às diferentes residências.
- Quantas pessoas vivem actualmente na ilha?
- Cerca de cinquenta famílias. Viu o farol, quando ofer-r y boat acostou?
- Sim.
- É ocupado por um homem e o seu cão. Quando passa um barco, o animal vai lá fora e toca a sineta.
- Está a brincar - disse ela, rindo.
- De modo algum. E, por estranho que pareça, o cão é surdo como uma porta. Por conseguinte, pousa a orelha na sineta, para verificar se vibra.
- Dá a impressão de que se trata de um ambiente fascinante.
- Merece a pena ficar e dar uma volta, pela manhã.
- Porque não? - assentiu, cedendo a um impulso.
Kate pernoitou no único hotel da ilha e, no dia seguinte, alugou uma tipóia, conduzida por um ilhéu. Partiram do centro de Dark Harbor, que consistia num armazém de artigos gerais, uma loja de ferragens e um pequeno restaurante, e, transcorridos poucos minutos, atravessavam uma bela área arborizada.
Entretanto, ela apercebia-se de que nenhuma das pequenas ruas sinuosas tinha nome, e o mesmo acontecia com os receptáculos de correio, o que a levou a perguntar ao cocheiro:
- As pessoas não se perdem, devido à falta de indicações?
- Não. Toda a gente sabe onde as coisas se situam.
- Compreendo - murmurou, lançando-lhe um olhar de través.
Na extremidade inferior da ilha, passaram diante de um cemitério e Kate pediu ao homem que parasse.
Em seguida, apeou-se e percorreu as passagens entre as sepulturas, entretendose a ler algumas lápides.
“JOB PENDLETON, FALECIDO A 25 DE JANEIRO DE 1796, AOS 47 ANOS”. O epitáfio era do seguinte teor:
182
“Debaixo desta pedra, pouso a cabeça imerso no sono eterno. Que Deus abençoe a cama.”
“JANE, MULHER DE THOMAS PENDLETON, FALECIDA A 25 DE FEVEREIRO
DE 1802, AOS 47 ANOS”.
Pairavam espíritos de outro século, de uma era há muito extinta. “CAPITÃO
WILLIAM HATCH, AFOGADO NO SOUND DE LONG ISLAND EM OUTUBRO DE
1866, AOS 30 ANOS”. Seguia-se o epitáfio: “Enfrentou tempestades furiosas e cruzou todos os mares embravecidos.”
Kate conservou-se demoradamente no cemitério, saboreando o silêncio e a paz.
Por fim, regressou à tipóia, que reatou a marcha.
- Como é o Inverno aqui? - perguntou, passados uns minutos.
- Frio. A baía costumava gelar e as pessoas vinham do continente de trenó. Agora, temos oferry, claro.
Contornaram uma curva e surgiu, junto da água, em baixo, uma atraente moradia de dois pisos rodeada por rosas silvestres e papoilas. Os estores das oito janelas da frente estavam pintados de verde e junto da porta dupla havia bancos brancos e seis vasos com gerânios vermelhos. O conjunto assemelhava -se a algo extraído de um conto de fadas.
- A quem pertence aquela casa?
- Ao velho Dreben, que enviuvou há poucos meses.
- Quem mora lá agora?
- Ninguém, suponho.
- Sabe se está à venda?
O homem olhou a passageira por um momento e replicou:
- Se estiver, compra -a de certeza o filho de uma das famílias já instaladas aqui. Os ilhéus não simpatizam com os forasteiros.
Não podia ter pronunciado palavras mais apropriadas para estimular o espírito competitivo de Kate, a qual, menos de uma hora depois, se avistava com um advogado que representava o proprietário.
- É por causa da casa Dreben - explicou ela. - Está à venda?
O interpelado franziu os lábios e declarou:
- Sim e não.
- Que quer dizer com isso?
- Está, mas há várias pessoas interessadas.
183
“As famílias antigas da ilha”, cogitou Kate, que persistiu:
- Apresentaram uma oferta?
- Ainda não, mas…
- Então, apresento eu.
- É uma casa dispendiosa.
- Indique o preço.
- Cinquenta mil dólares.
- Vamos vê-la por dentro.
O interior da casa era ainda mais atraente do que ela previra. O vestíbulo achavase virado ao mar, através de uma parede de vidro. A um lado, havia um amplo salão de baile e, no outro, uma sala de estar com uma vasta lareira. Não faltava a biblioteca de decoração conservadora, a vasta cozinha e, a seguir, a copa e uma arrecadação. No rés-do-chão, situavam-se seis quartos para o pessoal e uma casa de banho e, no piso superior, uma suite e quatro quartos de menores dimensões. O conjunto era muito maior do que Kate calculara. -Mas quando David e eu tivermos filhos, precisaremos de todo este espaço”, reflectiu. O terreno adjacente estendia-se até à baía, onde se localizava uma doca privada.
- Fico com ela - anunciou, sem hesitar. Decidiu chamar-lhe Cedar Hill.
Ansiava por regressar a Klipdrift, para transmitir a nova a David. Durante a viagem, dominava-a uma excitação invulgar. A casa que acabava de adquirir em Dark Harbor constituía um sinal, um símbolo de que eles casariam um com o outro, e sabia que David também adoraria a moradia.
Na tarde em que chegou a Klipdrift com Brad, Kate precipitou-se imediatamente para o gabinete de David. Ao vê -lo, sentado à secretária, com o habitual ar eficiente, sentiu o coração palpitar desordenadamente e só então se apercebeu de como sentira a sua falta.
- Sê bem-vinda! - exclamou ele, levantando-se. E antes que ela tivesse ensejo de proferir palavra, acrescentou: - Quero que sejas a primeira a saber. Vou casar!
Capítulo décimo quinto Tudo principiara com naturalidade, seis semanas antes. A meio de um dia particularmente atarefado, David foi informado de que Tim O'Neil, amigo de um importante comprador de diamantes americano, se encontrava em Klipdrift e lhe solicitava que o recebesse e porventura levasse a jantar. Embora não gostasse de perder tempo com turistas, reconheceu que não devia contrariar o cliente e, dada a impossibilidade de delegar a fastidiosa missão em Kate, ausente na América do Norte com Brad Rogers, telefonou para o hotel onde O'Neil se alojara e convidou-o para jantar naquela noite.
- Vim com minha filha - esclareceu o americano. - Espero que não se importe que me acompanhe.
- De modo algum - replicou David polidamente, conquanto não lhe apetecesse ter de aturar uma criança.
Combinaram encontrar-se na sala de jantar do Grand Hotel e, quando ele chegou, O'Neil e a filha já se achavam sentados à mesa. O pai era um indivíduo bemparecido, de cabelos grisalhos, provavelmente com pouco mais de cinquenta anos, mas a rapariga, Josephine, foi imediatamente considerada a mulher mais bonita que David jamais vira. Aparentava trinta anos, com um corpo deslumbrante, cabelos louros sobre os ombros e olhos azul-claro.
- Desculpem o atraso - balbuciou, perturbado. - Surgiu um assunto inesperado.
- Às vezes, são os mais excitantes - observou ela, divertida com a reacção que provocara. - Meu pai diz que é um homem muito importante, Mister Blackwell.
- Nem por isso… e agradecia que me tratasse por David.
- É um bom nome. Sugere grande voluntariedade. Antes do final da refeição, David já decidira que Josephine era muito mais do que uma mera mulher bonita. Possuía inteligência, espírito e o condão subtil de o pôr à vontade. Na realidade, pressentia que se interessava genuinamente por ele, pois dirigia-lhe perguntas de natureza pessoal que nunca ouvira dos lábios de outra mulher. Por conseguinte, não se surpreendeu quando, no termo do serão, descobriu que já se enamorara parcialmente dela.
- Onde residem? - perguntou a Tim O'Neil.
185
- Em São Francisco.
- Regressam em breve? - desta vez, esforçou-se por envolver a interrogação numa aura de formalidade.
- Para a semana.
- Se Klipdrift é tão interessante como promete, talvez o convença a ficarmos mais algum tempo - interpôs Josep-hine, com um sorriso cativante.
- Nesse caso, tratarei de redobrar os motivos de interesse - prometeu David. - Gostavam de visitar uma mina de diamantes?
- Adorávamos! - afirmou ela.
Outrora, ele acompanhava pessoalmente os visitantes importantes às minas, mas acabara por confiar a tarefa a subordinados. Agora, porém, propôs impulsivamente:
- Amanhã, convém-lhes?
Tinha várias entrevistas marcadas para o dia seguinte, mas, de repente, haviam perdido toda a importância.
David conduziu os O'Neil no elevador que terminava o percurso quatrocentos metros abaixo da superfície.
- Há um pormenor que sempre me intrigou - disse Jo-sephine. - Por que se avaliam os diamantes em carates?
- O termo “carate” foi inspirado na semente da carob1 - explicou David -, devido à sua consistência no peso. Um carate é igual a duzentos miligramas.
- Sinto -me absolutamente fascinada.
Ele não pôde deixar de perguntar a si mesmo se Josephine se referia apenas aos diamantes. A sua proximidade era inebriante. Cada vez que a contemplava, experimentava uma nova sensação excitante.
- Deviam visitar os arredores, o campo - sugeriu. - Se não têm qualquer compromisso para amanhã, acompanhá-los-ei com o maior prazer.
Antes que o pai se pudesse pronunciar, Josephine declarou:
- É uma óptima ideia.
A partir de então, David encontrou-se com ela e o pai todos os dias e, à medida que o tempo passava, o amor que sentia acentuava-se. Nunca conhecera uma mulher tão fascinante.
' Alfarroba. (N. do T.)
186
Uma noite, quando foi buscar os O'Neil para jantar, David ouviu o americano alegar:
- Hoje, sinto-me um pouco em baixo. Importa-se que não os acompanhe?
- De modo algum - e David esforçou-se por dissimular a satisfação. - Compreendo perfeitamente.
- Tentarei evitar que se aborreça - prometeu Josephine, com um sorriso malicioso.
Ele levou-a a um restaurante inaugurado recentemente. A sala encontrava-se repleta, mas o chefe de mesa reconheceu-o e apressou-se a indicar um lugar perto do conjunto musical que amenizava o ambiente.
- Dançamos? - sugeriu David.
- Com todo o gosto - assentiu Josephine.
No momento imediato, achava-se nos braços dele, que se sentiu transportado a uma atmosfera de magia.
- Amo-a, Josephine! - acabou por desabafar.
- Não diga isso, por favor.
- Porquê?
- Porque não poderia casar consigo.
- Ama-me?
- Estou louca por si, querido - sussurrou ela, os olhos azuis emitindo um clarão irresistível. - Não o nota?
- Então, qual o motivo?
- Nunca conseguiria habituar-me a Klipdrift. Terminava por e ndoidecer.
- Podia experimentar.
- Sinto -me tentada, mas sei o que aconteceria. Se casasse consigo e tivesse de viver aqui, convertia-me numa neurasténica e acabávamos por nos odiar. Prefiro que nos separemos assim.
Josephine olhou-o em silêncio por um momento e aventurou:
- Vê alguma possibilidade de se adaptar a São Francisco?
- Que faria lá? - articulou ele, reflectindo que se tratava de uma ideia impraticável.
- Quero que converse com o meu pai. Tomaremos o pequeno-almoço juntos.
- Josephine falou-me do que se passou, ontem à noite - informou Tim O'Neil. - Tudo indica que se lhes depara um problema, mas talvez eu possa apresentar uma solução, se estiver interessado.
- Sem dúvida.
- Sabe alguma coisa acerca de alimentos congelados? - perguntou extraindo um maço de documentos de uma pasta.
- Receio bem que não.
- As primeiras experiências na matéria efectuadas nos Estados Unidos datam de mil oitocentos e sessenta e cinco. A dificuldade consistia em transportar os alimentos a longas distâncias, sem que descongelassem. Dispúnhamos de carruagens frigoríficas, mas ninguém descobria um meio de refrigerar camiões - pousou os dedos nos documentos. - Até agora. Acabo de receber a patente do método que revolucionará toda a indústria alimentar.
- Confesso que não consigo interpretá-los - declarou David, depois de consultar os papéis.
- Isso não interessa, pois não procuro um perito técnico. Tenho-os em abundância.
O que pretendo é o financiamento e alguém que dirija as operações. Não se trata do sonho de um visionário. Troquei impressões com especialistas na matéria, que foram unânimes em reconhecer o valor da descoberta. Preciso de uma pessoa como você.
- A central da companhia será em São Francisco - esclareceu Josephine.
David conservou-se silencioso por um momento, assimilando o que acabava de escutar. Por fim, observou:
- Diz que obteve a patente?
- Exacto. Está tudo a postos para arrancar.
- Importa-se de me emprestar estes documentos, para que os mostre a alguém.
- Nada tenho a objectar.
A primeira coisa que David fez foi inteirar-se da idoneidade do americano, e revelaram-lhe que possuía reputação sólida em São Francisco. Dirigira o departamento científico do Berkeley College e desfrutava d o respeito geral. David ignorava tudo o que se referia a congelação de produtos alimentares, mas tencionava elucidar-se.
- Voltarei dentro de cinco dias, querida. Gostava que tu e teu pai esperassem.
188
- O tempo que quiseres - assentiu Josephine. - Vou ter saudades tuas.
- E eu tuas - admitiu David, com maior sinceridade do que ela supunha.
Ele seguiu de comboio para Joanesburgo e avistou-se com Edward Broderick, proprietário da maior fábrica de carne enlatada da África do Sul.
- Queria ouvir a sua opinião acerca disto - declarou David, mostrando-lhe os documentos. - Preciso de saber se pode resultar.
- Não percebo patavina de alimentos congelados ou camiões frigoríficos, mas conheço quem está familiarizado com o assunto. Se quiser voltar à tarde, terei aqui dois peritos para lhe dissiparem as dúvidas.
David tornou a visitar Edward Broderick às quatro daquela tarde. Ao mesmo tempo, apercebia-se de um certo nervosismo e incerteza, porque não estava bem ciente de como desejava que a reunião se desenrolasse. Duas semanas antes, teria soltado uma gargalhada, se alguém sugerisse que, um dia, abandonaria a Kruger-Brent, Ltd., companhia que fazia parte da sua própria vida. E riria ainda com mais gosto se esse alguém acrescentasse que dirigiria uma pequena empresa de alimentos congelados em São Francisco. A situação poderia considerar-se inconcebível, se não existisse um pormenor decisivo: Josephine O'Neil.
Edward Broderick achava -se acompanhado de dois homens, que se apressou a apresentar:
- O doutor Crawford e Mister Kaufman. Trocaram apertos de mão e David perguntou:
- Tiveram oportunidade de examinar os documentos?
- Sem dúvida - aquiesceu o dr. Crawford. - Não descurámos um pormenor.
- E?…
- Diz Mister Broderick que foi concedida a patente pelo departamento competente dos Estados Unidos.
- É verdade.
- Pois bem, Mister Blackwcll. Quem a obteve acumulará uma fortuna apreciável em pouco tempo. É como todas as grandes invenções. Tão simples que admira que ninguém se lembrasse disso antes.
189
David inclinava a cabeça com lentidão, assolado por emoções em conflito.
No fundo, não sabia como reagir, pois, em parte, desejara que a decisão lhe fosse retirada das mãos. Se o invento de Tim O'Neil carecesse de valor, subsistiria uma possibilidade de convencer Josephine a ficar na África do Sul. Todavia, o que o pai dela afirmara correspondia à verdade. Assim, a decisão competia unicamente a David.
Não pensou noutra coisa durante a viagem de regresso a Klipdrift. Se aceitasse a oferta, teria de abandonar a companhia e iniciar vida nova. Por outro lado, apesar de americano por nascimento, os Estados Unidos constituíam um país estranho para ele. Desempenhava um cargo importante numa das firmas mais poderosas do mundo, gostava do trabalho que executava, Jamie e Margaret haviam-no tratado como pais e, além disso, não podia esquecer Kate. Preocupara-se com ela desde que nascera. Vira-a desenvolver-se de uma garota arra-pazada até uma jovem atraente. Na realidade, a vida da rapariga era um álbum fotográfico no seu espírito. Voltando as páginas, evocara -a aos quatro anos, aos oito, aos dez, aos catorze, aos vinte e um, vulnerável e imprevisível.
Quando o comboio se imobilizou na estação de Klipdrift, David tomara uma resolução. Abandonaria a Kruger-Brent, Ltd.
Seguiu directamente para o Grand Hotel e subiu à suite dos O'Neil, cuja porta foi aberta por Josephine.
- David!
Ele tomou-a nos braços e beijou-a com voracidade, sentindo a pressão do seu corpo ávido.
- Tive tantas saudades tuas! - murmurou ela. - Não quero voltar a separar-me de ti.
- Não haverá mais separações - afirmou David, pausadamente. - Vou para São Francisco.
Aguardou com ansiedade crescente que Kate regressasse dos Estados Unidos.
Agora que tomara a decisão, estava impaciente por enveredar pela nova vida e casar com Josephine.
Por fim, a rapariga surgira e ele anunciara-lhe:
- Vou casar.
Kate ouviu as palavras através de um rugido surdo.
190
Parecia-lhe subitamente que desmaiaria, e pousou a mão no tampo da secretária para se apoiar. “Quero morrer. Deixa -me morrer já, meu Deus!”
Não obstante, reunindo energias que julgava dissipadas, conseguiu esboçar um sorriso e dizer:
- Fala-me dela - orgulhava-se da firmeza da voz. - Quem é?
- Chama-se Josephine O'Neil e encontra-se de visita ao país, com o pai. Tenho a certeza de que serão boas amigas. É uma mulher extraordinária.
- Deve ser, para que a ames.
- Há outra coisa - e David hesitou. - Vou sair da companhia.
- O facto de casares nã o significa… - começou ela, sentindo o mundo desmoronarse à sua volta.
- Não se trata disso. O pai de Josephine vai iniciar uma nova actividade em São Francisco e necessita de mim.
- Ah… vais viver para São Francisco.
- Exacto. Brad Rogers pode ocupar o meu lugar sem dificuldade e formaremos um grupo de gestão para o auxiliar. Não tenho palavras para exprimir o pesar que esta decisão me provoca.
- Compreendo perfeitamente. Deves… deves amá-la muito. Quando ma apresentas?
Ele sorriu ao verificar que a notícia era aceite sem problemas.
- Esta noite, se estiveres disponível para jantar connosco. Kate conseguiu conter as lágrimas até que se encontrou só.
Jantaram os quatro na mansão McGregor. No instante em que viu Josephine, Kate empalideceu de desolação: “Não admira que ele a ame o suficiente para a desposar!” Na verdade, a americana era positivamente deslumbrante. O simples facto de se achar na sua presença fazia que ela se sentisse embaraçada e hedionda. E, para agravar a situação, Josephine mostrava-se graciosa e cordial, além de que amava obviamente David. “Raios para tudo isto!”
Durante a refeição, Tim O'Neil elucidou Kate sobre a nova firma, e, no final, ela admitiu:
- Parece um projecto interessante.
- Sem, todavia, atingir a envergadura da Kruger-Brent, Limited, Miss McGregor.
Principiaremos do zero, mas, com
191
David à testa das operações, havemos de prosperar rapidamente.
- Sim, estando ele à frente de tudo, o êxito é garantido. O serão desenrolou-se numa atmosfera angustiante para Kate. No mesmo momento cataclísmico, perdia o homem que amava e a única pessoa indispensável para Kruger-Brent, Ltd. Apesar disso, conversava com normalidade, embora mais tarde não conseguisse recordar o que fizera ou dissera. Só sabia que cada vez que David e Josephíne olhavam um para o outro ou se tocavam tinha vontade de pôr termo à vida.
Quando regressavam ao hotel, a americana afirmou sem azedume:
- Ela ama-te, David.
- Kate? - ele exibiu um sorriso de incredulidade. - Somos apenas amigos de longa data. Além disso, estou convencido de que gostou de ti.
“Os homens são tão ingénuos”, reflectiu ela, sorrindo igualmente.
Tim O'Neil e David reuniram-se no gabinete deste último, na manhã seguinte, a fim de trocarem impressões sobre o futuro.
- Preciso de cerca de dois meses para arrumar os meus assuntos aqui - declarou David. - Estive a pensar no financiamento indispensável para arrancarmos. Se recorrermos a uma companhia de grande envergadura, somos devorados depois de nos concederem uma pequena parcela. Acho que nós próprios devíamos financiar o empreendimento. Calculo que necessitaremos de oitenta mil dólares para as operações iniciais. Como economizei o equivalente a quarenta mil, temos de arranjar outro tanto.
- Disponho de dez mil - informou Tim O'Neil. - E tenho um irmão que me emprestará mais cinco mil.
- Nesse caso, faltam-me vinte e cinco mil dólares. Tentaremos obtê-los de um banco.
- Vamos partir para São Francisco imediatamente, a fim de prepararmos as coisas para quando você chegar.
Josephine e o pai seguiram para os Estados Unidos dois dias mais tarde e Kate sugeriu:
- Oferece-lhes a carruagem da companhia até à Cidade do Cabo, David.
192
- É uma ideia generosa da tua parte.
Na manhã em que a americana partiu, ele experimentou a sensação de que lhe arrancavam uma parte da sua vida e ansiou pelo dia em que se lhe reuniria.
As semanas seguintes foram consagradas a diligências para constituir uma equipa de gestão para coadjuvar Brad Rogers. Este, Kate e David elaboraram uma lista de possíveis candidatos e passaram longas horas analisando o currículo de cada um. -…Taylor é um técnico, mas não possui experiência de gestão.
- E Simmons?
- Tem qualidades prometedoras, mas ainda não está suficientemente maduro.
- Babcock?
- Não parece mau. Discutamo-lo a fundo.
- E quanto a Peterson?
- Carece de espírito de sacrifício. Preocupa-se demasiado consigo próprio.
Ao pronunciar estas palavras, David não pôde evitar uma ponta de remorso, pois preparava-se para abandonar Kate.
O estudo da relação de candidatos prosseguiu e, no final de um mês, achava -se reduzida a quatro homens. Todos eles desempenhavam cargos em delegações situadas no estrangeiro, pelo que foram convocados a fim de serem entrevistados.
As trocas de impressões com os dois primeiros desenrolaram-se satisfatoriamente e Kate assegurou a David e a Brad:
- Qualquer deles me satisfaz.
Na manhã em que se deveria realizar a terceira entrevista, David surgiu no gabinete dela, profundamente pálido.
- O meu lugar ainda está vago?
- Que se passa? - perguntou ela, alarmada.
- Uma coisa inesperada - articulou ele, afundando-se numa cadeira.
- O quê?
- Acabo de receber uma carta de Tim O'Neil. Vendeu o negócio.
- Que queres dizer?
- Exactamente o que ouviste. Aceitou uma oferta de duzentos mil dólares pelos direitos de exploração do seu invento
193
da Three Star Meat Packing Company de Chicago - o tom de David achava-se impregnado de amargura. - A companhia gostava de assegurar os meus serviços para dirigir as operações. O'Neil afirma que lamenta o contratempo que me provoca, mas não podia recusar uma soma tão elevada.
- E Josephine? - perguntou Kate, olhando-o com intensidade. - Que diz? Deve estar furiosa com o pai.
- Também recebi carta dela. Casará comigo, assim que chegar a São Francisco.
- E não tencionas ir?
- Claro que não! - explodiu ele. - Até aqui, tinha alguma coisa para oferecer. Podia transformar a firma numa companhia de grande envergadura. Infelizmente, eles estavam muito ansiosos por arrecadar uma quantia avultada.
- Não és justo ao d izer “eles”.
- O'Neil nunca aceitaria a oferta sem a aprovação de Josephine.
- Confesso que não sei o que dizer.
- Basta que digas que ia cometendo o maior erro da minha vida.
Kate pegou na lista de candidatos e principiou a rasgá-la com lentidão.
Nas semanas subsequentes, David mergulhou profundamente no trabalho, numa tentativa para esquecer a amargura e a mágoa. Entretanto, recebeu várias cartas de Josephine O'Neil, que depositou no cesto de papéis sem as abrir. Contudo, não conseguia esquecê-la, e Kate, consciente da desolação do amigo, não perdia a oportunidade de lhe fazer sentir que se achava presente, se necessitasse dela.
Tinham-se escoado seis meses desde que David recebera a carta de Tim O'Neil e, entretanto, aquele e Kate continuavam a trabalhar juntos. Ela esforçava-se por agradar ao companheiro de todas as maneiras possíveis. Trajava em conformidade com o que julgava representar as suas preferências, projectava viagens em comum e, numa palavra, diligenciava tornar-lhe a existência o mais feliz possível. No entanto, não obtinha o mínimo resultado e, por último, perdeu a paciência.
Encontravam-se no Rio de Janeiro para investigar as possibilidades da descoberta de um novo mineral, e, uma noite,
194
após o jantar, reuniram-se no quarto de Kate para examinar uns relatórios. Ela enfiara um quimono e chinelos para se sentir mais confortável e, quando terminaram, David espreguiçou-se e anunciou:
- Estou derreado. Acho que me vou deitar.
- Não te parece chegado o momento de tirares o luto? - observou Kate, em voz átona.
- Qual luto? - inquiriu ele, surpreendido.
- Por Josephine O'Neil!
- Há muito que desapareceu da minha vida.
- Então, procede em conformidade.
- Que queres que faça?
Kate acabou por se enfurecer, em virtude da cegueira de que ele dava pro vas, assim como por todo o tempo perdido.
- Beija-me, por exemplo!
- O quê?
- Não sou a tua patroa? - rugiu, acercando-se. - Ordeno-te que me beijes.
E, rodeando-lhe o pescoço com os braços, colou os lábios aos dele. Ao princípio, sentiu-o resistir e tentar retrair-se, porém, a reacção não tardou e passou a colaborar.
- Kate…
- Estava a ver que nunca mais me propunhas isso - sussurrou ela, começando a soltar o cinto do quimono.
Casaram seis semanas depois, na cerimó nia de maior pomba a que Klipdrift jamais assistira. Celebrou-se na igreja mais importante da cidade, após o que se realizou uma recepção no recinto do Município. Havia montanhas de comida e inúmeras grades de cerveja, juntamente com uísque e champanhe, enquanto uma orquestra abrilhantava a festa, que se prolongou até de madrugada. Quando o Sol despontou, Kate e David afastaram-se discretamente.
- Vou a casa acabar de fazer as malas - informou ela. - Passa por lá dentro de uma hora.
Por entre a claridade pálida da alvorada, Kate entrou na vasta mansão e dirigiu-se ao seu quarto, no primeiro andar, onde se aproximou de um quadro pendurado na parede e exerceu pressão em determinado ponto da moldura. Acto contínuo, a tela começou a deslizar para o lado e expôs um cofre
195
embutido. Após uma pausa, ela abriu-o e extraiu um documento. Era o contrato da compra da Three Star Meat Packing Company de Chicago, por Kate McGregor.
Junto dele, encontrava-se outro referente à aquisição, por aquela firma, dos direitos de exploração do invento de Tim O'Neil por duzentos mil dólares. Hesitou por um momento e voltou a guardá-los no cofre. Agora, David pertencia-lhe.
Sempre lhe pertencera. E à Kruger-Brent, Ltd. Juntos, torná -la-iam a companhia mais poderosa do mundo.
Exactamente como Jamie e Margaret McGregor teriam desejado.
TERCEIRA PARTE
Kruger-Brent, Ltd. 1914-1945
Capítulo décimo sexto Encontravam-se na biblioteca, onde outrora Jamie gostava de se sentar com um cálice de brande na sua frente, e David argumentava que não havia tempo para uma verdadeira lua -de-mel.
- Alguém tem de olhar pela loja.
- De acordo, Mister Blackwell. Mas quem olhará por mim?
Kate enroscou-se sobre os joelhos do marido, que sentiu o calor do seu corpo através do vestido, enquanto os documentos que examinava deslizavam para o chão. Em seguida, ela levantou-se e despiu-se com estudada lentidão, após o que estendeu as mãos e principiou a desabotoar-lhe a camisa.
- Possui-me, David! - gemeu, entregando-se-lhe.
A espessa carpeta afigurou-se-lhes apropriada para o que pretendiam. Kate estremeceu levemente no momento em que ele a penetrou e assolou-a uma vaga de sensações inebriantes que culminaram num êxtase indefinível. “Morri e fui para o Céu…”, reflectiu no instante da explosão final.
Percorreram praticamente todo o mundo, visitando, entre outras cidades, Paris, Zurique, Sydney e Nova Iorque, ao serviço da companhia, mas aproveitando igualmente alguns momentos para si próprios. Conversavam até altas horas da noite, faziam amor e exploravam -se mutuamente os corpos e os espíritos. Kate constituía um prazer inesgotável para David. Acordava -o de madrugada para o obrigar a actividades sexuais pagãs e, poucas horas depois, participava numa conferência de negócios, mais lúcida e eficiente do que qualquer dos outros presentes. Possuía uma propensão especial para os negócios, tão rara como inesperada. Ao princípio, tratavam-na com condescendência tolerante, que não tardava a converter-se em respeito. Ela experimentava uma satisfação especial em se dedicar às manobras e maquinações do jogo, e David via-a empregar argumentos que venciam indivíduos mais experientes. Na verdade, Kate dispunha de todos os instintos de uma vencedora. Sabia o que queria e como obtê -lo.
Poder.
199
Culminaram a lua-de-mel com uma semana gloriosa na casa de Cedar Hill, em Dark Harbor.
Foi a 28 de Junho de 1914 que começou a admitir-se a possibilidade de uma guerra, quando eles haviam sido convidados para uma residência de campo em Sussex. Decorria a época em que as pessoas endinheiradas preferiam residir fora das cidades, e os hóspedes de fim-de-semana deviam obedecer a um ritual. Os homens trajavam formalmente para o pequeno-almoço, mudavam de indumentária para o período que medeava até ao almoço e a operação voltava a repetir-se ao longo do dia, sendo exigido o smoking ou sobrecasaca para o jantar.
- Safa! - protestou David. - Sinto -me como um pavão.
- Um pavão muito atraente, querido. Quando chegarmos a casa, podes andar nu.
- Não quero esperar tanto tempo - declarou ele, apertando-a nos braços.
Ao jantar, surgiu a notícia de que Francisco Ferdinando, herdeiro do trono austrohúngaro, e a esposa, Sofia, tinham sido assassinados.
O anfitrião, Lord Maney, comentou:
- É sempre deplorável ouvir que mataram uma mulher. Em todo o caso, ninguém vai envolver-se numa guerra por causa de um pequeno país balcânico.
E passaram a trocar impressões acerca do críquete. Mais tarde, na cama, Kate perguntou:
- Achas que vai haver guerra?
- Devido à morte de um arquiduque qualquer? Claro que não.
A previsão de David revelou-se errada. O Império Austro-Húngaro, suspeitando de que a sua vizinha Sérvia instigara o conluio para assassinar Ferdinando, declaroulhe guerra, e, em Outubro, a maior parte das potências mundiais estavam envolvidas no conflito. Era uma contenda de uma espécie nova. Empregavam -se pela primeira vez veículos mecanizados, como aeroplanos, porta-aviões e submarinos.
No dia em que a Alemanha declarou guerra, Kate observou:
- Pode ser uma oportunidade excelente.
200
- Porquê? - perguntou David, enrugando a fronte.
- As nações vão precisar de armas e munições…
- Não as obterão de nós - interrompeu com firmeza. - O negócio que temos chega perfeitamente. Não vamos arrecadar lucros à custa do sangue dos outros.
- Estás a dramatizar a situação. Alguém tem de fabricar armamento.
- Enquanto eu pertencer à companhia, não seremos nós. Não quero discutir mais o assunto. Está encerrado! “Isso é o que tu pensas!…” reflectiu ela. “Porque será um idealista tão ingénuo?”
Por seu turno, David pensava: “Está mudada. Dantes, não revelava essa indiferença pela sorte dos outros.”
Os dias que se seguiram foram difíceis para ambos. Ele deplorava o vazio emocional criado entre ambos, mas não sabia como transpô-lo. Kate era demasiado orgulhosa e obstinada para ceder, porque sabia que tinha razão.
O presidente Wilson prometera manter os Estados Unidos fora do conflito, mas quando os submarinos alemães começaram a torpedear navios de passageiros desarmados e as atrocidades cometidas pelos germânicos se difundiram, acentuou-se a pressão para que a América abandonasse a neutralidade.
“Tornemos o mundo seguro para a democracia”, era o slogan.
David aprendera a voar na África do Sul e quando se constituiu a Esquadrilha Lafayette, em França, com pilotos americanos, anunciou a Kate:
- Tenho de me alistar.
- Não é a tua guerra! - bradou ela, apavorada.
- Em breve será. Os Estados Unidos não se podem manter afastados por muito tempo. Sou americano e quero participar já.
- Mas tens quarenta e seis anos!
- Ainda me considero capaz de pilotar um avião. E eles precisam da ajuda de todos.
Kate não encontrou qualquer meio de o dissuadir e passaram os últimos dias juntos em perfeita comunhão, esquecendo as divergências. Amavam -se e só isso importava.
Na véspera da partida para a França, David declarou:
201
- Tu e Brad Rogers podem dirigir os negócios tão bem como eu. Talvez até melhor.
- Se te acontecer alguma coisa, não resisto.
- Não me há-de acontecer nada - e abraçou-a com ternura. - Voltarei coberto de condecorações!
A ausência de David constituiu um martírio para Kate. Tardara muito tempo a conquistá-lo e, agora, em cada segundo pairava o pavoroso receio de o perder.
Conservava-o sempre a seu lado. Reconhecia-o na cadência da voz de um desconhecido, numa risada repentina na rua, numa frase, num perfume, até numa canção. Encontrava-se em toda a parte. Escrevia-lhe longas cartas todos os dias e, quando recebia uma dele, lia-a e relia-a até se achar quase irreconhecível. Ele afirmava que tudo corria bem. Os Alemães desfrutavam de superioridade no ar, mas a situação não tardaria a inverter-se. Circulavam rumores de que a América em breve interviria.
“Não permitas que te suceda nada, meu amor, de contrário odiar-te-ei eternamente.”
Kate tentava olvidar a solidão e a amargura imergindo profundamente no trabalho.
No início da guerra, a França e a Alemanha possuíam as forças armadas mais bem equipadas da Europa, mas os Aliados dispunham de maiores efectivos humanos, recursos e material. Quanto à Rússia, com o exército mais numeroso, achava-se mal guarnecida de armamento e pior comandada.
- Precisam todos de auxílio - afirmou ela a Brad Rogers. - Há que fornecer-lhes tanques, armas e munições.
- David é da opinião… - começou ele, com desconforto.
- Na sua ausência, somos nós que tomamos as decisões. No entanto, Brad sabia perfeitamente o que isto significava na realidade. “Quem decide sou eu.”
Kate não compreendia a atitude do marido quanto ao fabrico de armamento. Os Aliados necessitavam dele e ela considerava seu dever patriótico fornecer-lho.
Conferenciou com os dirigentes de meia dúzia de nações amigas e, transcorrido um ano, a Kruger-Brent, Ltd., iniciava o fabrico de armas, tanques, bombas e munições. A companhia transformava-se rapidamente num dos maiores impérios industriais do mundo e, quando se inteirou dos números relativos às receitas, ela disse a Brad Rogers:
- Já viu isto? David terá de reconhecer que se enganava.
202
Entretanto, a África do Sul atravessava um período agitado. Os chefes dos partidos tinham manifestado o seu apoio aos Aliados e aceitado a responsabilidade de defender o país da Alemanha, mas a maioria dos Africânderes opunha-se ao auxílio à Grã-Bretanha. Não podiam esquecer o passado tão rapidamente.
Por outro lado, na Europa, a guerra corria mal para os Aliados e a luta na frente ocidental atingira um ponto morto. Ambos os lados se fixavam nas suas posições, protegidos por trincheiras que atravessavam a França e a Bélgica, e os soldados conheciam privações. A chuva enchia as escavações de água e lama e os ratos abundavam. Ciente disto, Kate congratulava-se por o marido combater no ar.
A 6 de Abril de 1917, o presidente Wilson declarou guerra à Alemanha e a predição de David tornou-se realidade. A América começou a mobilizar.
O primeiro corpo expedicionário americano, chefiado pelo general John J.
Pershing, iniciou o desembarque em França a 26 de Junho daquele ano. Os nomes de novos lugares passaram a fazer parte do vocabulário de toda a gente:
Saint-Mi-hiel… Château-Thierry… Meuse-Argonne… Belleau Wood… Verdun… Os Aliados tinham-se tornado uma força irresistível e, a 11 de Novembro de 1918, o conflito conheceu finalmente o seu termo. O mundo encontrava-se seguro para a democracia.
David pôde empreender o regresso a casa.
Quando desembarcou do transporte de tropas em Nova Iorque, Kate esperava-o.
Olharam-se em silêncio por um momento eterno, ignorando o ruído da multidão à sua volta, e, por último, caíram nos braços um do outro. Vendo-o mais magro e de expressão fatigada, ela reflectiu: “Como senti a sua falta!” Tinha uma infinidade de perguntas para lhe fazer, mas podiam ficar para mais tarde.
- Vou levar-te para Cedar Hill - anunciou. - É o lugar perfeito para repousares.
Conduziu o marido através da casa, que remodelara especialmente para o receber, falando-lhe quase sem interrupção, o que não a impedia de observar que se mostrava invulgarmente reservado. Quando completaram a visita, ela perguntou:
- Gostas das modificações que introduzi?
203
- Sem dúvida. Agora, sentemo-nos, porque quero conversar contigo.
- Tens algum reparo a fazer? inquiriu, dominada por um pressentimento ominoso.
- Segundo apurei, tornámo-nos fornecedores de munições de metade do mundo.
- Espera até veres os livros - Kate começou. - Os lucros…
- Não me refiro a isso. Se a memória não me atraiçoa, eram excelentes, antes de eu partir. Assentámos em que não nos envolveríamos no fabrico de material de guerra.
- Tu é que assentaste. Eu não. - Kate esforçava-se por dominar a irritação. - Os tempos mudam e temos de nos adaptar.
Ele olhou-a em silêncio por um momento e volveu:
- Tu mudaste?
Deitada na cama, naquela noite, Kate perguntava a si própria se fora ela quem mudara ou o marido. Tornara -se mais forte ou ele mais fraco. Recordou a argumentação de David contra a fabricação de armamento e considerou-a frágil.
No fundo, alguém necessitava de fornecer a mercadoria aos Aliados, além do que a operação envolvia lucros fabulosos. Que acontecera ao sentido dele dos negócios? Sempre o encarara como um dos homens mais argutos que conhecera, mas agora pensava que se achava mais capacitada para dirigir a companhia.
Passou a noite quase totalmente em claro e, de manhã, após o pequeno -almoço, ela e David percorreram as imediações da casa.
- Agrada-me estar aqui - confessou ele. - É realmente encantador.
- Quanto à nossa conversa de ontem…
Os factos estão consumados. Procedeste como te pareceu melhor, na minha ausência.
“Teria feito o mesmo, se estivesses presente!“ Kate absteve -se de concretizar a dúvida em voz alta. Agira daquela maneira em obediência aos interesses da companhia. “A Kruger-Hrent terá maior significado para mim que o meu casamento?“ O temor impediu-a de procurar a resposta.
Capítulo XVIII Os cinco anos imediatos assistiram a um período de expansão mundial incrível. A Kruger-Brent, Ltd. fora fundada com base em diamantes e ouro, mas enveredara pela diversificação e estendera as raízes por todo o Globo, pelo que o seu centro nervoso deixara de se situar na África do Sul. A companhia adquirira recentemente um império editorial, uma empresa de seguros e um milhão de hectares de terrenos arborizados para a obtenção de madeira.
Uma noite, Kate desferiu uma cotovelada em David, que acordou sobressaltado.
- Temos de transferir a sede da companhia.
- Hem? - articulou ele, estremunhado.
- O fulcro mundial dos negócios situa -se actualmente em Nova Iorque. É aí que a nossa sede se deve encontrar. A África do Sul fica muito longe de tudo. De resto, agora que dispomos do telefone e do cabo submarino, podemos comunicar com qualquer das sucursais em poucos minutos.
- Porque não pensaria eu nisso? - grunhiu, e voltou a adormecer.
Nova Iorque era um mundo e xcitante. Nas visitas anteriores à cidade, Kate sentira o seu palpitar acelerado, mas viver lá equivalia a estar no centro de um vértice gigantesco. A terra parecia girar mais rapidamente e tudo se movia a um ritmo mais veloz.
Ela e David escolheram um local em Wall Street para sede da companhia e os arquitectos iniciaram os trabalhos. Por seu turno, Kate recorreu a outro para restaurar uma mansão estilo Renascença francesa do século XVI, na Quinta Avenida.
- A cidade é muito ruidosa - queixou-se David.
E não exagerava. O som das máquinas de rebitar atroava os ares em todas as áreas de Nova Iorque, à medida que os arranha-céus se erguiam em sucessão ininterrupta. Na verdade, a cidade tornara -se a Meca dos negócios de todo o mundo, quartel-general da marinha mercante, seguros, comunicações e transportes. Irradiava uma vitalidade ímpar. Kate adorava tudo aquilo, mas pressentia a amargura do marido.
205
- Isto é o futuro, querido. Nova Iorque desenvolve-se e nós com ela.
- Até onde pretendes chegar?
- Até onde for possível.
No fundo, ela não compreendia a razão pela qual ele formulara a pergunta. A finalidade do jogo consistia em ganhar, o que só se conseguia vencendo todos os outros jogadores. Esta realidade afigurava-se-lhe óbvia. Como se explicava que David não a descortinasse? Apesar de ser um excelente homem de negócios, faltava-lhe alguma coisa: o apetite, a compulsão para conquistar, para ser o maior e o melhor. Jamie McGregor possuía esse espírito e Kate também. Conquanto não compreendesse exactamente o que acontecera, num determinado ponto da sua vida a companhia convertera-se no amo e ela na escrava.
Quando tentou explicar a David o que sentia, este soltou uma gargalhada e afirmou:
- Trabalhas em excesso.
Ao mesmo tempo, porém, reflectia: “Cada vez se parece mais com o pai!” E, sem entender bem o motivo, o facto apresentava-se-lhe vagamente preocupante.
Como podia uma pessoa trabalhar em excesso? Kate achava-se convencida de que não existia "maior prazer no mundo. Era nessas ocasiões que se sentia mais viva. Cada dia que surgia trazia um novo conjunto de problemas, cada um dos quais constituía um desafio, um puzzle para resolver, um novo jogo para ganhar. E ela actuava maravilhosamente. Era arrastada por algo fora de toda a capacidade de imaginação. Não tinha nada de comum com o dinheiro ou a satisfação de um acto cumprido, mas com o poder. Um poder que dominava as vidas de milhares de pessoas de todos os recantos da Terra, tal como a sua existência fora outrora dominada. Enquanto dispusesse de poder, nunca necessitaria verdadeiramente de ninguém. Tratava-se de uma arma temível para além de tudo o concebível.
Era convidada para jantar com reis, rainhas e presidentes, todos interessados no seu auxílio, na sua boa vontade. Uma nova fábrica Kruger-Brent podia representar a diferença entre a pobreza e a riqueza. Poder. A companhia tinha vida própria, como um gigante em crescimento que exigia alimento, e por vezes tornavam-se necessários sacrifícios, pois não existia
206
possibilidade de agrilhoar esse gigante. Kate compreendia tudo, agora, perfeitamente. Possuía um ritmo, um palpitar, que lhe comunicara para sempre.
Em Março, um ano depois de se terem instalado em Nova Iorque, sentiu-se indisposta e deixou-se convencer por David a consultar o médico.
- Chama-se John Harley - acrescentou. - Apesar de jovem, já conquistou reputação excelente.
Harley era um indivíduo magro, de semblante carregado, que aparentava vinte e seis anos, menos cinco que Kate, a qual começou por advertir:
- Não tenho tempo para estar doente!
- Tomarei a informação em consideração, Mistress Blackwell - replicou o médico, secamente. - Para já, deixe-me examiná-la - e, em seguida, recolheu sangue para alguns testes e declarou: - Não creio que seja algo de cuidado. Espero ter os resultados dentro de dois ou três dias. Telefone-me quarta-feira.
Kate tratou de ligar para o consultório logo de manhã, e o Dr. Harley anunciou jovialmente:
- Tenho notícias excelentes para lhe transmitir, Mistress Blackwell. Está grávida.
Foi um dos momentos mais e xcitantes da vida dela, e apressou-se a informar o marido.
Este mostrou-se invulgarmente excitado e, apertando-a nos braços com ternura, profetizou:
- Há-de ser uma rapariga e parecer-se exactamente contigo.
Entretanto, reflectia: “É precisamente o que lhe convém. Agora, ficará mais em casa. Tornar-se-á mais uma esposa.”
Kate, por seu turno, cismava: “Há-de ser um rapaz, que um dia assumirá a direcção da Kruger-Brent.”
A medida que a data do parto se aproximava, ela conservava-se mais tempo em casa, embora continuasse a comparecer no seu gabinete todos os dias.
- Deixai os negócios a meu cargo e repousa - aconselhava David.1 Todavia, não conseguia compreender que os negócios representavam a melhor forma de repouso para Kate.
207
- Vou fazer o possível para que seja a vinte e cinco - prometeu ela, pois o nascimento achava-se previsto para a segunda metade de Dezembro. - Não podemos desejar melhor prenda de Natal.
“Será um Natal perfeito”, cogitava. Era dirigente de uma grande empresa, casara com o homem que amava e teria um filho dele. Se havia alguma ironia na ordem de prioridades, não se apercebia disso.
O corpo avolumara -se, dificultando-lhe os movimentos, pelo que cada vez lhe era mais penoso deslocar-se ao escritório, mas, quando David ou Brad Rogers sugeriam que ficasse em casa, replicava que o cérebro continuava a funcionar normalmente. Dois meses antes da data calculada para o parto, o marido visitou a África do Sul em viagem de inspecção à mina de Pniel, devendo regressar a Nova Iorque na semana segui nte.
Kate encontrava-se sentada à secretária do seu gabinete, quando Brad Rogers entrou sem se fazer anunciar.
- Perdemos o negócio Shannon! - aventurou ela, ao observar-lhe a expressão grave.
- Não. Acabo de receber a notícia… Registou-se um acidente… uma explosão numa mina.
- Onde? - acudiu-lhe um pressentimento alarmante. - Teve consequências graves?
Há vítimas?
Brad encheu os pulmões de ar antes de revelar:
- Meia dúzia de mortos. David é um deles.
As palavras pareceram encher a sala e ricochetear nas paredes, aumentando de intensidade, até que se converteram em sons ensurdecedores nos ouvidos de Kate, numa espécie de cataratas do Niágara que a sufocavam, absorvendo-o para o seu centro devorador.
Por fim, tudo se tornou obscuro e silencioso.
O bebé nasceu uma hora mais tarde, com dois meses de antecedência, e Kate chamou-lhe Anthony James Blackwell, em homenagem ao pai de David. “Amo-te, meu filho, por ti, e amar-te-ei por teu pai.”
Um mês depois, a mansão na Quinta Avenida achava-se pronta para ser habitada, e ela e o filho, juntamente com o pessoal doméstico, instalaram-se. Dois castelos de Itália haviam sido despojados do recheio para a decorar.
208
Em 1928, quando Tony completara quatro anos, Kate enviou-o para um colégio infantil. Era um garoto bem-parecido, de ar solene, com os olhos cinzentos e o queixo voluntarioso da mãe. Recebeu lições de música e, aos cinco anos, frequentou aulas de bailado. Alguns dos melhores momentos que passaram juntos desenrolaram-se na casa de Cedar Hill, em Dark Harbor. Kate adquiriu um iate ao qual chamou Corsair e levava Tony a passear ao longo da costa do Maine. No entanto, era o trabalho que lhe proporcionava maior prazer.
Existia algo de místico na companhia que Jamie McGregor fundara. Tinha vida própria, era absorvente. Kate considerava -a o seu amante, que nunca morreria num dia de Inverno, para a deixar só no mundo. Viveria eternamente. Ela providenciaria nesse sentido e, um dia, transmiti-la-ia ao filho.
O único factor de perturbação na vida de Kate era a sua terra natal. Na verdade, preocupava-se profundamente com a África do Sul, onde os problemas raciais se acentuavam, o que a inquietava cada vez mais. Havia dois campos políticos: os verkramptes - de vistas estreitas, pró -segregacionistas - e os verligtes - os iluminados, que queriam melhorar a situação dos negros. O primeiro -ministro, James Hertzog, e Jan Smuts tinham formado uma coligação e combinado o seu poder para obter a promulgação de uma nova lei, segundo a qual os indivíduo s de cor deixavam de poder votar e possuir terras. Milhões de pessoas pertencentes a diferentes grupos minoritários eram afectadas pelo novo diploma. As áreas que não continham materiais, centros industriais ou portos destinavam-se a negros, mestiços e ind ianos.
Kate combinou um encontro com várias entidades governamentais sul-africanas e declarou:
- Esta lei é uma bomba de relógio. Pretendem manter oito milhões de pessoas escravizadas.
- Não se trata de escravatura, Mistress Blackwell. Fazemo-lo para bem d elas.
- Sim? Como explicam isso?
- Cada raça tem alguma coisa para contribuir. Se os pretos se misturarem com os brancos, perderão a individualidade. Queremos protegê-los.
- Que disparate! A África do Sul tornou-se um inferno racista.
209
- Não é verdade. Pretos de outros países percorrem milhares de quilómetros para se fixarem no nosso. Chegam a pagar seis libras por documentos de admissão falsos. Encontram-se muito melhor aqui do que em qualquer outra parte do mundo.
- Nesse caso, compadeço-me deles.
- São crianças primitivas, Mistress Blackwell. Creia que é para o seu bem.
Kate retirou-se frustrada e profundamente apreensiva pelo futuro do seu país.
Mas também se preocupava com Banda, cujo nome figurava constantemente nos jornais. A Imprensa sul-africana chamava-lhe morrião escarlate e havia um tom de admiração na descrição das suas proezas. Escapara várias vezes à Polícia disfarçando-se de operário, motorista e porteiro, organizara um exército de guerrilha e encabeçava a lista de indivíduos mais procurados pelas autoridades.
Um artigo incerto no Cape Times revelava que fora levado em triunfo através de uma aldeia habitada por negros aos ombros de manifestantes. Deslocava -se de localidade em localidade para falar a multidões de estudantes, mas, sempre que a Polícia se apercebia da presença de Banda, este desaparecia. Constava que dispunha de um grupo de guarda-costas de centenas de amigos e seguidores e dormia numa casa diferente cada noite. Kate sabia que só a morte o impediria de prosseguir a sua cruzada.
Impunha-se que contactasse com ele. Nessa conformidade, mandou chamar um dos seus capatazes negros mais antigos na firma, merecedor da sua inteira confiança, e perguntou-Lhe:
- Parece-te que podes localizar Banda” William?
- Só se quiser ser localizado.
- Tenta. Preciso falar com ele.
- Verei o que consigo.
Na manhã seguinte, o capataz comunicou:
- Se estiver livre, logo à noite, um carro levá -la-á a determinado ponto, fora da cidade.
' Scarlet Pimpernel, pseudónimo de um aristocrata inglês que salvou numerosas pessoas da guilhotina, durante a Revolução Francesa. (N. do T.)
210
Kate foi conduzida a uma pequena povoação cento e vinte quilómetros ao norte de Joanesburgo, onde o motorista deteve o veículo diante de uma casa de madeira, na qual ela entrou. Banda aguardava -a e tinha exactamente o mesmo aspecto da última vez que o vira. “E já conta sessenta anos”, pensou Kate. Apesar de permanecer em fuga constante às autoridades desde longa data, apresentava-se sereno e despreocupado.
- Cada vez que a vejo está mais bonita - observou, com um sorriso.
- Mas estou a envelhecer - redarguiu ela, rindo, - Faltam-me poucos anos para completar quarenta.
- O tempo continua a não lhe provocar marcas da sua passagem.
Foram para a cozinha e, enquanto Banda preparava café, Kate disse:
- Não me agrada o que está a acontecer. Onde irá tudo isto parar?
- Será cada vez pior - articulou ele com simplicidade. - O Governo nega-se a estabelecer diálogo connosco. Os brancos destruíram as pontes entre eles e nós e um dia descobrirão que necessitam delas para que comuniquemos. Já temos alguns heróis: Nehemiah, Tile, Mokone, Richard Msimang. Tratam-nos como gado destinado ao matadouro.
- Nem todos os brancos pensam assim - afirmou Kate. - Vocês têm amigos que lutam para mudar este estado de coisas. Acabarão por triunfar, mas é necessário tempo.
- O tempo é como a areia numa ampulheta. Escoa-se.
- Que aconteceu a Ntame e a Magena?
- Minha mulher e o meu filho estão escondidos - explicou Banda, com uma ponta de amargura. - A Polícia concentra os seus esforços em diligências para me encontrar.
- Que devo fazer para os ajudar? Não posso ficar inactiva. Precisas de dinheiro?
- Faz sempre jeito.
- Providenciarei nesse sentido. Que mais?
- Reze por todos nós.
Ela regressou a Nova Iorque na manhã seguinte.
Quando Tony atingiu idade suficiente para viajar, Kate passou a levá -lo nas viagens de negócios, durante as férias escolares. O garoto adorava visitar museus e podia passar
211
horas consecutivas diante de telas e estátuas dos grandes mestres. Em casa, desenhava reproduções do que vira, mas o acanhamento impedia-o de as mostrar à mãe.
Possuía um temperamento agradável e uma leve timidez que agradava às pessoas. Kate orgulhava -se do filho, que obtinha sempre as melhores notas nos estudos e aceitava as suas felicitações como um estímulo para fazer cada vez melhor.
Em 1936, no décimo segundo aniversário de Tony, ela regressou de uma viagem ao Médio Oriente precisamente a tempo de participar na festa. Assim que o viu, abraçou-o com fervor e perguntou:
- Tens passado um dia agradável?
- Sim, mamã. M-aravilhoso.
Estremeceu de admiração e olhou-o com estranheza, pois nunca o ouvira gaguejar.
- Sentes-te bem?
- M-muito b-bem, o-obrigado.
- Evita gaguejar. Fala mais devagar.
- Po-pois sim, ma-mamã.
A deficiência agravou-se nas semanas subsequentes e Kate decidiu levá -lo ao Dr.
Harley, o qual, após um exame minucioso, declarou:
- Fisicamente, não lhe encontro nada. Estará sob alguma pressão?
- Que ideia! Porque pergunta?
- É um garoto muito sensível. A gaguez constitui com frequência uma manifestação física de frustração, de incapacidade para enfrentar a vida.
- Engana-se, doutor. Tony figura sempre no topo do quadro de honra do colégio.
No último período, obteve três prémios: melhor atleta, melhor aluno na matéria geral e primeiro classificado no domínio das artes.
- Hum… - o médico fez uma pausa, olhando a interlocutora pensativamente. - Que costuma fazer quando ele gagueja?
- Corrijo-o, c laro.
- Sugiro que não o faça. Isso só serve para lhe aumentar a tensão.
- Se tem algum problema psicológico, garanto-lhe que não é por causa da mãe! - asseverou ela, irritada. - Adoro-o e ele sabe que o considero a criança mais fantástica do mundo.
212
Era precisamente esse o fulcro do problema. Nenhuma criança resistiria a semelhante situação sem denunciar algum efeito. O Dr. Harley baixou os olhos para a ficha na sua frente e murmurou:
- Ele tem doze anos, não é?
- Exacto.
- Talvez não fosse má ideia que abandonasse o ambiente familiar, por uma temporada. Um colégio interno algures era o lugar ideal. Há estabelecimentos excelentes, na Suíça.
Na Suíça! A hipótese de o filho se achar tão longe dela era assustadora. Uma criança tão pequena, ainda sem preparação para se desembaraçar sem ajuda!
Não obstante, articulou a meia voz:
- Vou pensar nisso.
Naquela tarde, cancelou uma reunião e seguiu para casa mais cedo. Tony, que se encontrava na sala de estudo, entretido com o trabalho de casa, anunciou:
- Ti-tive ho-je um vinte, mamã!
- Gostavas de estudar na Suíça?
- Po-posso? - balbuciou, o olhar iluminado por um clarão de entusiasmo.
Seis semanas mais tarde, Kate acompanhava o filho ao navio que cruzaria o oceano, depois de o matricular no Instituto Lê Rosey, em Rolle, pequena localidade nas margens do lago de Genebra. Conservou-se no cais de Nova Iorque até que o enorme paquete desapareceu no horizonte, reflectindo: “Raios para isto! Vou ter muitas saudades dele.” Por fim, rodou nos calcanhares e regressou à li musina que a conduziria ao escritório.
Kate gostava de trabalhar com Brad Rogers, que tinha quarenta e seis anos, mais dois do que ela. Haviam-se tornado amigos ao longo dos anos e estimava-o pela devoção que sempre manifestara pela Kruger-Brent, Ltd. Era solteiro e costumava acompanhar uma variedade de amigas, mas Kate apercebeu-se gradualmente de que a amava. Em mais de uma ocasião, ouvira-o proferir observações ambíguas, mas fingia não se dar conta, para manter as suas relações num nível impessoal de negócios, atitude que infringiu uma única vez.
Brad passara a encontrar-se com alguém regularmente,
213
comparecendo ao trabalho todas as manhãs fatigado e distraído, o que resultava prejudicial para a companhia. Transcorrido um mês sem que a situação desse mostras de se alterar, ela decidiu que se impunham medidas drásticas, sobretudo ao recordar-se de que David estivera prestes a abandonar a firma por causa de uma mulher. Não permitiria que Brad chegasse a esse extremo.
Kate planeara deslocar-se, só, a Paris, a fim de adquirir uma companhia de importações-exportações importante, mas à última hora pediu-lhe que a acompanhasse. Passaram o dia da chegada em reuniões e, à noite, jantaram num restaurante de luxo, após o que ela sugeriu que a seguisse à sua suite no Hotel George V, a fim de analisarem os relatórios da nova companhia.
Uma vez sós, Brad declarou:
- Há uns pontos que me parecem merecer estudo mais profundo.
- Deixemos isso, agora - murmurou Kate, deslizando para os seus braços. - Podemos começar por tratar de assuntos mais agradáveis.
- Meu Deus! Há tanto tempo que a desejava…
- Eu também ansiava por este momento.
Não perderam tempo em transferir-se para o quarto contíguo. Kate era uma mulher sensual, mas há muito que toda a sua energia sexual fora aproveitada noutras actividades. O trabalho absorvia-a e satisfazia-a por completo.
Necessitava de Brad por outras razões.
Ele colocou-se-lhe em cima e ela abriu as pernas, sentindo o órgão erecto penetrá-la, o que não se lhe afigurou agradável nem desagradável.
Principiou a executar o ritmo clássico de semelhantes momentos, enquanto Kate pensava: “Pedem muito pela companhia e não reduzem um cêntimo, porque estão ao corrente do meu interesse.”
Brad acompanhava os movimentos rítmicos de palavras ternas e as reflexões dela prosseguiam. “Eu podia suspender as negociações e aguardar que me procurassem. Mas suponhamos que não voltavam a dar notícias? Devo arriscarme a perder a oportunidade?”
Apercebendo-se de que o ritmo aumentara de intensidade, passou a colaborar mais abertamente, sem todavia interromper
214
o raciocínio íntimo. “Não. Eles encontravam outro comprador com facilidade. É melhor pagar o que pedem. Compensarei o excesso vendendo uma das suas subsidiárias.” Registou-se uma exclamação abafada e ele proferiu:
- Foi maravilhoso. Não lhe agradou?
- Não encontro palavras para o descrever.
Kate conservou-se nos braços de Brad toda a noite, reflectindo e planeando, enquanto ele dormia. De manhã, quando acordou, disse-lhe:
- Essa mulher com quem tem andado ultimamente…
- Está com ciúmes! - exclamou ele, encantado. - Não pense mais nela. Prometo que não a voltarei a ver.
Kate não tornou a ir para a cama com Brad, e quando ele não compreendia por que se esquivava, limitava-se a alegar:
- Eu desejava imenso, mas receio que depois deixássemos de poder trabalhar juntos. Temos de nos sacrificar ambos pela firma.
E Brad viu-se forçado a aceitar esta explicação.
À medida que a companhia se expandia, Kate estabelecia fundações de beneficência que contribuíam para liceus, igrejas e colégios. Ao mesmo tempo, ia enriquecendo a sua colecção de arte, adquirindo obras de artistas da Renascença e pós-Renascença, como Rafael, Ticiano, Tintoretto e El Grego, e da escola barroca, como Rubens, Caravaggio e Van Dyck.
A colecção Blackwell era reputada como a mais valiosa das particulares de todo o mundo. Reputada, porque nenhum estranho, à parte convidados especiais, tivera ensejo de a admirar. Além disso, Kate não permitia que a fotografassem, nem a discutia com a Impre nsa. A vida pessoal da família Blackwell achava -se vedada ao público. Os próprios empregados domésticos ou da companhia estavam proibidos de ventilar o assunto. No entanto, tornava -se impossível evitar os rumores e a especulação, pois Kate Blackwell era um enigma intrigante - uma das mulheres mais ricas e poderosas do mundo. Circulavam milhares de interrogações a seu respeito, mas poucas respostas.
Um dia, ela telefonou à directora do Instituto Lê Rosey e disse:
215
- Gostava de saber como está meu filho.
- O melhor possível, Mistress Blackwell. É um aluno excelente e…
- Não me refiro a isso - hesitou, relutante em admitir a possibilidade de um ponto fraco na família. - Tem gaguejado?
- De modo algum. Fala normalmente.
Exalou um profundo suspiro de alívio. Nunca duvidara de que se tratava de uma deficiência temporária. O dr. Harley equivocara-se redondamente.
Tony regressou a casa quatro semanas mais tarde, e Kate esperava -o no aeroporto. O garoto apresentava bom aspecto, e, ao vê -lo, invadiu-a uma onda de orgulho maternal.
- Olá, querido. Como estás?
- Be-bem, mãe. E t-tu?
Nas férias que passava em casa, Tony conservava-se longas horas diante das telas que a mãe adquirira na sua ausência. Sentia-se abismado com os trabalhos dos mestres e encantado com os impressionistas franceses: Monet, Renoir, Manet e Morisot, que lhe evocavam um mundo mágico. Comprou um conjunto de tintas e pincéis e um cavalete e principiou a pintar. Todavia, continuava a julgar horrível tudo o que produzia e recusava-se a mostrá-lo a quem quer que fosse. De modo algum se podia comparar com as obras-primas dos artistas.
- Um dia, tudo isto será teu, querido - declarou Kate. A perspectiva de tal vir a acontecer infundiu uma sensação de desconforto ao garoto de treze anos. A mãe não compreendia. As telas nunca lhe pertenceriam verdadeiramente, porque nada fizera para as merecer. Animavao o desejo firme de abrir caminho na vida pelos seus próprios meios. Acudiam-Lhe emoções ambivalentes relacionadas com o afastamento dela, pois tudo o que lhe dizia respeito era sempre excitante. Encontrava-se no centro de um vértice, transmitindo ordens, concluindo negócios incríveis, levando-o a lugares exóticos ou apresentando-o a pessoas interessantes. Constituía uma figura impressionante, de que se orgulhava imensamente. Considerava-a a mulher mais fascinante do mundo e assolava -o uma impressão de culpa por só gaguejar na sua presença. Kate não fazia a menor ideia do respeito que infundia ao
216
filho, até que, um dia, numa das visitas a casa, durante as férias, o ouviu perguntar:
- Go-governas o m-mundo, mãe?
- Que ideia! - ela soltou uma risada. - O que te levou a fazer uma pergunta tão disparatada?
- To-todos os meus a -amigos falam de ti. És re-realmente algo de especial.
- Sou apenas a tua mãe, querido!
Tony desejava agradar a Kate mais do que tudo no mundo. Sabia o que a companhia representava para ela e que tencionava ceder-lhe o lugar um dia, o que o enchia de pesar, por estar convencido de que nunca a conseguiria substituir. Não era esse o futuro que tinha em mente.
No entanto, quando tentava explicar-lho, a mãe limitava-se a rir.
- Ainda és muito novo para decidires o teu futuro. E ele passava a gaguejar mais do que nunca.
A ideia de vir a ser um pintor excitava-o. Poder reproduzir os belos segredos da Natureza e conservá-los para a posteridade representava uma esperança que lhe incutia alento suplementar. Queria ir estudar para Paris, mas reconhecia que devia abordar o assunto com a maior prudência.
Passavam momentos maravilhosos juntos. Kate era a castelã de vastas propriedades, tendo adquirido vivendas em Palm Beach e na Carolina do Sul e uma coudelaria no Kentucky, que visitavam durante as férias de Tony. Nos dias em que um dos seus cavalos participava numa corrida, compareciam no hipódromo e entusiasmavam-se com o desenrolar das operações.
- Vencemos, querido! - exclamou Kate uma ocasião, no final de uma prova. - Lembra-te disto. O importante na vida é vencer - e, quase sem se deter: - A Kruger-Brent, Limited, será tua, mais tarde. Dirigi-la-ás e…
- Não a quero di-dirigir, mãe. Os negócios e o poder não me in-interessam.
- Pateta! - explodiu. - Que sabes tu dos negócios ou do poder? Julgas que percorro o mundo para espalhar o mal ou prejudicar o próximo? Consideras a Kruger-Brent uma máquina de fazer dinheiro impiedosa que esmaga tudo o que se lhe atravessa no caminho? Fica sabendo de uma coisa, meu rapaz. É o que existe de melhor, depois de Jesus Cristo.
217
Somos a ressurreição. Salvamos vidas às centenas de milhares. Quando abrimos uma fábrica num país ou numa comunidade em apuros, os habitantes obtêm meios para construir escolas, bibliotecas e igrejas e proporcionar aos filhos todo o bem-estar possível - respirava com dificuldade, dominada pela indignação. - Abrimos fábricas onde as pessoas passam fome e estão desempregadas e, graças a nós, podem ter vidas decentes e conservar a cabeça erguida. Tornamonos os seus salvadores. Que não te torne ouvir desdenhar os negócios e o poder!
E o rapaz apenas encontrou coragem para articular:
- Es-está bem, m-mãe.
Ao mesmo tempo, porém, pensava com obstinação: “Hei-de ser um artista.”
Quando o filho completou quinze anos, Kate sugeriu que passasse as férias grandes na África do Sul, onde nunca estivera.
- Não me posso ausentar daqui neste momento, mas hás-de achá-lo um país fascinante. Tratarei dos preparativos imediatamente.
- Esperava pa-passar as férias em D-Dark Harbor.
- Fica para o ano - insistiu com firmeza. - Este Verão, prefiro que visites Joanesburgo.
Pôs-se em contacto com o superintendente da companhia naquela cidade e elaboraram um itinerário meticuloso para Tony. Cada dia foi planeado com um objectivo em vista: tornar a viagem tão excitante quanto possível para o rapaz, para que compreendesse que o seu futuro se situava à testa da firma.
Mais tarde, Kate recebia relatórios diários dos movimentos do filho: descera a uma das minas de ouro, passara dois dias nos campos de diamantes, efectuara uma digressão guiada às fábricas da Kruger-Brent, participara num safari no Quénia…
Poucos dias antes do termo das férias, telefonou ao gerente da companhia em Joanesburgo e inquiriu:
- Que tal se dá ele?
- Tem-se divertido muito. Na verdade, esta manhã até perguntou se podia ficar mais algum tempo.
- É uma notícia maravilhosa! - exclamou, encantada.
218
No final das férias, Tony dirigiu-se a Southampton, Inglaterra, onde tomou um avião da Pan American Airways System com destino aos Estados Unidos.
Kate interrompeu uma reunião importante para o ir esperar e sentiu-se satisfeita com a expressão de entusiasmo que lhe observou:
- As férias foram boas, querido?
- A África do Sul é um pa-país fantástico, m-mãe. Sabias que me levaram de avião ao deserto da Namíbia, onde o avô roubou os diamantes ao bisavô V-Van der Merwe?
- Não os roubou - corrigiu ela. - Apoderou-se simplesmente daquilo a que tinha direito.
- Pois foi - disse Tony, com um sorriso malicioso. - Não havia mis do m-mar, mas ainda têm guardas e cães. Ne-negaram-se a dar-me um diamante.
- Não precisas que te dêem coisa alguma. Um dia, pertencer-te-ão todos.
Gostaste de tudo, hem? - Kate sentia-se plenamente satisfeita com o entusiasmo do filho acerca da sua herança. - Que te agradou mais?
- As cores. Pin-pintei uma paisagem do local. Custou-me ter de pa-partir. Quero voltar lá para pin-pintar com mais vagar.
- Pintar? - tentou mostrar-se interessada. - É um passatempo estupendo.
- Não é isso, m-mãe. Quero ser pintor. Pensei a fu-fundo no assunto. Irei estudar para Paris. Creio que te-tenho algum talento.
- Não acredito que pretendas passar o resto da vida a pintar - articulou em voz tensa.
- Sem dúvida, m-mãe. É a única coisa que me interessa. E Kate compreendeu que perdera a partida.
“Tem o direito de viver a sua vida”, admitia ela. “Mas como posso permitir que cometa um erro tão horrível?” Em Setembro, a decisão foi arrebatada das mãos de ambos. A Europa voltou a estar em guerra.
- Quero que te matricules na Escola de Finanças e Comércio Wharton - anunciou Kate. - Dentro de dois anos, se ainda te apetecer ser artista, terás a minha bênção.
Estava convencida de que entretanto o filho mudaria de ideias. Afigurava -se-lhe inconcebível que desejasse passar a
219
vida com um pincel na mão diante de um cavalete, quando podia dirigir a empresa mais excitante do mundo. No fundo, pertencia à família Blackwell.
Para ela, a Segunda Guerra Mundial constituiu mais uma grande oportunidade.
Havia falta de equipamento militar e materiais em todo o mundo e a Kruger-Brent podia satisfazer todas as necessidades. As fábricas da companhia entraram em laboração permanente.
Tinha a certeza de que os Estados Unidos não conseguiriam manter a neutralidade. O presidente Franklin D. Roosevelt apelou para o sentido patriótico da nação no sentido de que se tornasse um grande baluarte da democracia e, a 11 de Março de 1941, o Congresso aprovou a Lei do Arrendamento e Empréstimo.
Entretanto, as remessas destinadas aos Aliados através do Atlântico achavam-se ameaçadas pelo bloqueio alemão, cujos submarinos atacavam e afundavam dezenas de navios mercantes.
A Alemanha parecia um aríete demolidor imparável. Desafiando o Tratado de Versalhes, Adolf Hitler construíra uma das máquinas de guerra mais temíveis da História. Recorrendo a uma nova técnica - a Blitzkrieg -, os nazis atacaram a Polónia, a Bélgica e a Holanda em rápida sucessão, após o que esmagaram a Dinamarca, a Noruega, o Luxemburgo e a França.
Kate entrou em acção, quando foi informada de que os judeus que trabalhavam nas fábricas da Kruger-Brent confiscadas pelos Alemães eram presos e deportados para campos de concentração. Efectuou dois telefonemas e, na semana seguinte, partia a caminho da Suíça. À sua chegada ao Hotel Baur au Lac de Zurique, aguardava-a a mensagem de que o coronel Brinkmann pretendia falarlhe.
Na realidade, tratava-se de um antigo gerente da sucursal da companhia em Berlim, que, quando a fábrica fora ocupada pelos nazis, recebera a patente de coronel e tornara a ocupar o cargo de outrora.
Pouco depois, apresentou-se no hotel um homem magro, de expressão incisiva e cabelos louros curtos.
- Tenho muito gosto em voltar a vê -la, Frau Blackwell. O meu governo incumbiume de lhe transmitir um recado. Estou autorizado a assegurar-lhe a restituição das fábricas, assim que ganharmos a guerra. A Alemanha será a maior potência industrial do mundo, e convém-nos a colaboração de pessoas como a senhora.
220
- E se a perderem?
O coronel Brinkmann permitiu-se um sorriso condescendente.
- Sabe tão bem como eu que isso não pode acontecer. Os Estados Unidos mostram-se suficientemente prudentes para não se imiscuírem nos assuntos da Europa e espero que mantenham essa atitude.
- Acredito - Kate fez uma pausa. - Constou-me que os judeus são enviados para campos de concentração e exterminados. É verdade?
- Mera propaganda britânica, pode crer. Não nego que die Juden são internados em campos de trabalho, mas dou-lhe a minha palavra de oficial de que os tratamos como merecem.
Ela cismou sobre o significado destas palavras e prometeu a si própria averiguálo.
No dia seguinte, Kate avistou-se com um comerciante alemão chamado Otto Bueller, de cinquenta e cinco anos, ar distinto e semblante amargurado. O encontro verificou-se num pequeno café perto da banhof, onde o alemão escolheu uma mesa discreta ao canto.
- Ouvi dizer que estabeleceu uma rede clandestina para ajudar judeus a transferirem-se para países neutrais - começou ela, a meia voz. - É verdade?
- De modo algum, Mistress Blackwell. Um acto dessa natureza representaria uma traição ao Terceiro Reich.
- Também me chegou aos ouvidos que necessita de fundos para que funcione com eficiência.
- Uma vez que essa rede não existe - declarou Otto Bueller, com um encolher de ombros -, não necessito de fundos.
Ao mesmo tempo, os olhos esquadrinhavam a sala à sua volta com visível nervosismo. Tratava-se de um homem que respirava e dormia com o perigo todos os momentos da sua vida.
- Tinha a esperança de o poder ajudar - persistiu Kate. - A Kruger Brent, Limited, possui fábricas em muitos países neutrais e aliados. Se alguém conseguisse fazer chegar refugiados até lá, eu providenciaria para que lhes dessem trabalho.
O outro levou a xícara aos lábios com lentidão e quando a pousou disse em inflexão átona:
221
- Desconheço tudo isso a que se refere. A política é um foco de perigo, nos tempos que correm. No entanto, se está interessada em auxiliar alguém em situação difícil, tenho um tio na Inglaterra que sofre de uma doença incurável.
Todos os meses paga contas de farmácia elevadíssimas, e é um homem de poucas posses.
- Mais ou menos quanto?
- Cinquenta mil dólares. Haveria necessidade de tomar providências para que o dinheiro para essas contas fosse depositado em Londres e transferido para depósitos num banco suíço.
- Não é impossível.
- Meu tio ficar-lhe-á muito grato.
Cerca de oito semanas mais tarde, uma corrente pouco numerosa mas constante de refugiados judeus principiou a afluir a países aliados, para ingressar em fábricas da Kruger-Brent.
Tony abandonou os estudos no final do primeiro semestre e dirigiu-se ao gabinete da mãe para a informar.
- Es-esforcei-me ao máximo, mas to-tomei uma decisão inabalável. Quero estudar pintura. Quando a guerra terminar, seguirei para Paris. Sei que contrario os teus pro-projectos, mas preciso de viver a minha vida. Penso que me posso tornar um bom pin-pintor. Até agora, fiz o que determinaste. Portanto, deves conceder-me uma oportunidade. Fui admitido no Instituto de Arte de Chi -chicago.
O espírito dela achava-se imerso num turbilhão avassalador. O que Tony pretendia fazer representava uma pura perda de tempo.
- Quando tencionas partir? - conseguiu apenas articular.
- As aulas começam no dia quinze de Dezembro.
- Quantos são hoje?
- Se-seis.
No domingo, 7 de Setembro de 1941, esquadrilhas de bombardeiros Nakajima e caças Zero da Armada Imperial japonesa atacaram Pearl Harbour e, no dia seguinte, os Estados Unidos encontravam-se em guerra. Naquela tarde, Tony alistou-se no Corpo de Fuzileiros e foi enviado para Quântico, Virgínia, onde frequentou o curso de oficiais, antes de embarcar com destino ao Pacífico Sul.
222
Kate tinha a impressão de que vivia à beira de um abismo. Durante todo dia, assolavam-na as pressões próprias da direcção da companhia, mas pairava-lhe permanentemente na mente o receio de receber a informação de que o filho fora ferido ou morto.
A guerra com o Japão desenrolava-se de forma pouco satisfatória. Bombardeiros nipónicos atacaram bases americanas em Guam, Midway e Wake. Em Fevereiro de 1942, tomaram Singapura e não tardaram a esmagar a Nova Bretanha, a Nova Irlanda e as ilhas Salomão. O general Douglas MacArthur foi obrigado a retirar das Filipinas. Por seu turno, as poderosas forças do Eixo conquistavam gradualmente o mundo e despontavam sombras tenebrosas em toda a parte. Kate temia que Tony fosse feito prisioneiro e torturado. Apesar de todo o seu poder e influência, nada podia fazer além de orar. Cada carta que recebia dele constituía um farol de esperança, um sinal de que poucas semanas antes ainda vivia. “Aqui, ninguém nos diz nada”, escrevia. “Os Russos ainda resistem? O soldado japonês é brutal, mas temos de o respeitar. Não receia a morte…
“Que se passa nos Estados Unidos? Os operários das fábricas entraram realmente em greve, para que lhes elevem os salários? “As nossas tropas executam um trabalho excelente, nestas paragens. Os rapazes são todos heróis…
“Utiliza a tua influência para que nos enviem algumas centenas de F4U, os novos caças da Marinha. Tenho saudades tuas…”
A 7 de Agosto de 1942, os Aliados desencadearam a sua primeira acção ofensiva no Pacífico. Os fuzileiros desembarcaram em Guadalcanal, nas ilhas Salomão, e avançaram ininterruptamente para reconquistar as outras ilhas tomadas pelos japoneses.
Na Europa, os Aliados saboreavam uma sequência quase permanente de vitórias.
A 6 de Junho de 1944, foi iniciada a invasão da Europa Ocidental, com desembarques de tropas americanas, inglesas e canadianas nas praias da Normandia e, um ano depois, a 7 de Maio de 1945, a Alemanha rendia-se incondicionalmente.
A 6 de Agosto do mesmo ano, foi lançada em Hiroxima
223
uma bomba atómica possuidora de força destrutiva superior a vinte mil toneladas de TNT. Três dias mais tarde, outro engenho nuclear destruía a cidade de Nagasáqui. A 14 de Agosto, verificou-se a rendição dos japoneses. A longa e sangrenta guerra chegara finalmente ao fim.
Três meses depois, Tony regressava a casa. Ele e Kate encontravam-se em Dark Harbor, sentados no terraço sobranceiro à baía sulcada de graciosas velas brancas, e ela reflectia que a guerra o modificara. O filho apresentava uma maturidade nova. Deixara crescer um pequeno bigode e tinha um aspecto másculo. Em torno dos olhos, exibia pequenas rugas que outrora não possuía.
Estava persuadida de que aqueles anos no mar lhe haviam proporcionado tempo para reconsiderar a decisão de não ingressar na companhia.
- Quais são os teus planos? - aventurou-se por fim a perguntar.
- Como estava a dizer, quando fomos interrompidos grosseiramente pela guerra - redarguiu ele, com um sorriso -, vou pa-para Paris.
QUARTA PARTE
Tony 1946-1950
Capítulo décimo oitavo Não era a primeira vez que Tony visitava Paris, mas agora as circunstâncias diferiam. A Cidade da Luz fora ofuscada pela ocupação alemã, mas evitara a destruição ao considerarem-na cidade aberta. Os habitantes haviam sofrido profundamente, e conquanto os nazis tivessem saqueado o Louvre, Tony encontrou Paris relativamente intacta. De resto, agora viveria lá, faria parte da cidade, em vez de ser um mero turista. Podia instalar-se no apartamento de Kate na Avenida Foch, poupado pela ocupação, mas preferiu alugar outro numa casa antiga restaurada, perto de Montparnasse, que consistia numa saleta com lareira, um pequeno quarto e uma cozinha minúscula sem frigorífico. Entre o quarto e esta última, situava -se a casa de banho, com uma banheira para chuveiro, um bidé rachado e uma sanita temperamental, com uma tampa revolucionária difícil de conservar na posição apropriada.
Quando a dona da casa principiou a apresentar desculpas pelo aspecto geral, ele interrompeu-a, assegurando que considerava tudo perfeito.
Passou todo o sábado no Mercado das Pulgas '. Segunda e terça-feira, percorreu as lojas de artigos em segunda mão, na margem esquerda, e na quarta dispunha de todo o mobiliário básico de que necessitava: um sofá-cama, uma mesa que conhecera melhores dias, duas poltronas, um guarda-fato de estilo indefinido e uma mesa oscilante e duas cadeiras para a cozinha. “A mãe ficava horrorizada se visse isto”, pensou. Podia ter o apartamento repleto de antiguidades inapreciáveis, mas isso equivaleria a armar em artista americano excêntrico em Paris.
A diligência seguinte consistia em frequentar uma boa escola de arte, e a mais prestigiada de toda a França era a École dês Beaux-Arts, particularmente exigente no tocante a quem admitia, e Tony acalentava reduzidas esperanças nesse capítulo.
' Equivalente à nossa Feira da Ladra.
227
Não obstante, necessitava de provar à mãe que tomara a decisão certa. Levou lá três das suas telas e teve de aguardar quatro semanas para saber se fora aceite.
No final desse período, a concierge entregou-lhe uma carta da escola, na qual o convocavam para a segunda-feira seguinte.
A École dês Beaux-Arts situava-se num amplo edifício de pedra de dois pisos, com uma dezena de salas de aula cheias de a lunos. Tony apresentou-se ao director, Maítre Gessand, um homem de estatura elevada e olhar amargurado, praticamente sem pescoço e os lábios mais finos que ele jamais vira.
- As suas telas são de amador - declarou em tom formal. - No entanto, prometem.
A nossa comissão seleccionou-o mais pelo que não figura nelas. Compreende?
- Não muito bem, maítre.
- Acabará por compreender, com o tempo. Vou destiná -lo a Maítre Cantai, que será seu professor nos próximos cinco anos… se você aguentar tanto tempo.
“Hei-de aguentar”, prometeu Tony a si mesmo.
Maítre Cantai era um homem de pequena estatura, com cabeça totalmente calva, que cobria com uma boina roxa, olhos castanhos, nariz bolboso e lábios grossos como salsichas.
- Os americanos são diletantes, bárbaros - proferiu à guisa de saudação. - Para que veio?
- Para aprender.
Emitiu um grunhido de dúvida como única resposta.
Havia vinte e cinco alunos na aula, na sua maioria franceses. Tony lançou uma olhadela aos vários cavaletes dispostos em torno da sala e escolheu um perto da janela sobranceira a um bistro. Em seguida, procurou o modelo, mas não conseguiu descortiná -lo.
- Podem começar - indicou Maítre Chantal.
- Não trouxe as minhas tintas - informou Tony.
- Não precisa delas. O primeiro ano destina-se a aprender a desenhar convenientemente. - O maìtre apontou para diversas peças de gesso da anatomia humana, obtidas de estátuas gregas dispersas pela sala. - Desenharão isto. Se porventura lhes parece muito fácil, prestem atenção ao seguinte. Mais de metade de vocês serão eliminados antes do final do ano. No primeiro aprenderão anatomia. No segundo, os poucos que passarem trabalharão com modelos vivos e óleos. No
228
terceiro, em que a frequência já será muito reduzida, pintarão comigo, segundo o meu estilo, aperfeiçoando-o largamente, bem entendido. No quarto e no quinto anos, procurarão o estilo próprio. E, agora, toca a trabalhar.
Não necessitou de repetir a ordem, pois todos se debruçaram sobre os cavaletes.
De vez em quando, ele descrevia um circuito pela sala, a fim de emitir comentários críticos. Quando chegou ao lugar de Tony, exclamou:
- Isto não serve! O que vejo é o exterior de um braço. Interessa-me o interior. Os músculos, os ossos e os ligamentos. Quero ver que há sangue a circular lá dentro.
Sabe como deve proceder?
- Sim, maítre. Pensa-se, vê-se, sente -se, e depois desenha -se.
Quando não estava na aula, Tony costumava ficar no apartamento, entretido a fazer esboços. Podia manter-se a desenhar de manhã à noite. O facto incutia-lhe uma sensação de liberdade que nunca conhecera. O simples acto de se sentar diante de um cavalete com um pincel na mão fazia-o julgar-se um deus. Tinha possibilidade de criar mundos completos com uma das mãos. Formava uma árvore, uma flor, um ser humano, um universo. Era uma experiência arrebatadora.
Nascera para aquilo. Quando não pintava, achava -se nas ruas em exploração da fabulosa cidade. Agora, era a sua, o lugar onde nascia a sua arte. Havia duas Paris, divididas, pelo Sena, em margem esquerda e margem direita, que constituíam mundos separados. Esta última destinava-se às pessoas abastadas, estabelecidas na vida. A outra pertencia aos estudantes, aos artistas. Era Montparnasse, o Boulevard Raspail e Saint-Ger-main-des-Prés. O Café Flore, Henry Miller e Elliot Paul. Para Tony, tratava-se do lar. Sentava-se durante horas no Boule Blanche ou em La Coupole com outros estudantes e discutiam o seu mundo arcano.
- Ouvi dizer que o director de arte do Museu Guggenheim está em Paris e compra tudo o que lhe aparece.
- Manda-o esperar por mim!
Liam todos as mesmas revistas, que compartilhavam, em virtude do seu preço elevado: Studio e Cahiers d'Art, Formes et Couleurs e Gazette dês Beaux-Arts.
Tony aprendera francês no Instituto Lê Rosey e resultava-lhe
229
fácil criar amizade com outros estudantes da sua classe, pois todos partilhavam uma paixão comum. Não faziam a mínima ideia de quem era a família dele e aceitavam-no como pertencente ao mesmo nível. Artistas pobres que lutavam pela vida reuniam-se no Café Flore e no Lês Deus Magots, no Boulevard Saint- Germain, e comiam em Lê Pot d'Etian, na Rue dês Canettes ou na Rue de 1'Université. Nenhum dos outros vira jamais o interior do Lassere ou do Maxim's.
Em 1946, gigantes praticavam a sua arte em Paris. Uma vez por outra, Tony vislumbrava Pablo Picasso, e, um dia, ele e um amigo avistaram Marc Chagall, um homem corpulento de cinquenta e poucos anos e cabelos revoltos que começavam a tornar-se grisalhos. Encontrava -se sentado à mesa de uma esplanada, imerso em animada conversa com um pequeno grupo.
- Tivemos sorte em o ver - murmurou o amigo de Tony. - É muito raro vir a Paris.
Vive em Vence, perto da costa do Mediterrâneo.
Havia também Max Ernst, saboreando um aperitivo noutra esplanada, e o insigne Alberto Giacometti, que percorria a Rue de Rivoli, parecido com uma das suas esculturas, alto, magro e ossudo. Tony conheceu Hans Belmer, que começava a tornar-se popular com as suas pinturas eróticas de raparigas que se convertiam em bonecas desmembradas. No entanto, o seu momento mais excitante foi porventura aquele em que lhe apresentaram Braque. O artista mostrou-se cordial, mas a emoção quase privou Tony do uso da fala.
Os futuros génios invadiam as novas galerias de arte, estudando a sua competição. A Galeria Drousand -David exibia trabalhos de um jovem artista desconhecido chamado Bernard Buffet, que estudara na École dês Beaux-Arts, Soutine, Utril-lo e Dufy. Os estudantes afluíam ao Salão de Outono e à Galeria Charpentier, onde trocavam impressões sobre os seus rivais bem sucedidos.
A primeira vez que visitou o apartamento do filho, Kate ficou abismada, e, embora tivesse a prudência de não emitir comentários reflectiu: “Raios para isto! Como pode um membro da minha família viver num antro destes?” Em voz alta, todavia, declarou:
230
- Tem um aspecto utilitário. Mas vejo que não há frigorífico. Onde conservas a comida?
- No pa-parapeito da janela.
Aproximou-se da janela, abriu-a e estendeu a mão para uma maçã.
- Espero não te desfalcar de um dos teus assuntos.
- Claro que não, m-mãe - replicou Tony, rindo.
- Agora - sugeriu ela, cravando os dentes no fruto -, fala-me dos teus estudos.
- Por enquanto, pouco tenho para dizer. Este ano, só fa -fazemos desenhos.
- Gostas de Maitre Cantai?
- É ma-maravilhoso. Mas parece -me mais importante saber se ele gosta de mim.
Só cerca da terça parte dos alunos passará ao ano seguinte.
E continuaram a conversar sem que Kate aludisse uma única vez à possibilidade de ele ingressar na companhia.
Maitre Cantai não era um homem que costumasse proferir encómios com facilidade. Assim, o melhor elogio com que Tony podia contar não ia além de “Já vi pior” ou “Quase começo a ver por baixo”.
No final do período escolar, Tony figurava entre os oito aprovados para frequentar o segundo ano. Para comemorar o facto, ele e os outros sete visitaram um cabaré de Montmar-tre, embriagaram-se e passaram a noite com umas jovens inglesas que efectuavam uma digressão turís tica em França.
Quando as aulas recomeçaram, Tony passou a trabalhar com óleos e modelos vivos, o que lhe fez parecer que se libertara da escola pré-primária. Depois de um ano de desenhos de partes da anatomia humana, afigurava -se-lhe que conhecia todos os músculos, nervos e glândulas do corpo. Aquilo não era desenhar, mas copiar. Agora, com um pincel na mão e um modelo vivo na sua frente, principiava a criar, e o próprio Maitre Cantai se revelava impressionado.
- Tem o sentir - admitiu com relutância. - Agora, precisamos aperfeiçoar a técnica.
Havia cerca de uma dúzia de modelos que posavam nas aulas e os que Maitre Cantai utilizava com mais frequência
231
eram Carlos, um rapaz que estudava medicina, Annette, uma morena de busto generoso e uma camada de acne nas costas, e Dominique Masson, uma loura de contornos harmoniosos, a qual também servia de modelo a vários pintores conhecidos, sendo a favorita de todos. Invariavelmente, após as aulas, os alunos assediavam-na numa tentativa para que aceitasse o convite para os acompanhar.
- Nunca misturo o prazer com o trabalho - declarava ela. - De resto, não seria justo que saísse com algum de vocês - acrescentava., com um sorriso malicioso. - Viram o que tenho para oferecer, mas estou a zero quanto aos vossos atributos.
Uma tarde, quando os outros já se haviam retirado e Tony terminava um retrato de Dominique, esta aproximou-se por detrás inesperadamente e comentou:
- Tenho o nariz muito comprido.
- Achas? Vou modificá-lo.
- Não lhe mexas. Esse está óptimo. O comprido é o meu.
- Esse é que não posso alterar - observou ele, com um sorriso.
- Um francês teria dito: “O teu nariz é perfeito, chérie”.
- Gosto dele, e não sou francês.
- Vê-se. Nunca me convidaste para sair. Confesso que não compreendo porquê.
- Não… não sei. Talvez porque todos os outros o fazem e nunca aceitas.
- Toda a gente sai com alguém - concluiu ela, sorrindo, e afastou-se.
Tony notou que, sempre que ficava até mais tarde, Dominique ia vestir-se e depois se colocava atrás dele para o observar.
- És muito bom - anunciou, um dia. - Hás-de ser um pintor importante.
- Obrigado. Oxalá não te enganes.
- A pintura reveste -se de muita importância para ti, oui?
- Oui.
- Achas que alguém que se tornará um pintor importante me convidaria para jantar? - e apercebendo-se da expressão de surpresa no rosto dele, a rapariga advertiu: - Como pouco, para conservar a linha.
- Com o maior prazer - declarou Tony, rindo.
232
Jantaram num bistro próximo do Sacré-Coeur e discutiram pintores e a pintura em geral. Ele sentia-se fascinado com as histórias que Dominique lhe contava acerca de artistas conhecidos e, quando tomavam café au lait, ela afirmou:
- Considero-te tão bom como qualquer deles.
Embora extraordinariamente satisfeito, Tony apenas conseguiu articular:
- Ainda tenho um longo caminho a percorrer. Quando abandonavam o bistro, ela perguntou:
- Não me levas a ver o teu apartamento?
- Se quiseres. Mas olha que não é grande coisa.
Uma vez chegados, contemplou a desarrumação que imperava e admitiu:
- Tens razão. Não é grande coisa. Quem se ocupa disto?
- Vem uma mulher fazer a limpeza, uma vez por semana.
- Despede-a. Está tudo num verdadeiro caos. Não tens uma amiga?
- Não.
Observou Tony pensativamente por um momento e inquiriu:
- És invertido, por acaso?
- De modo algum.
- Ainda bem, porque era uma pena. Arranja-me um balde com água e sabão.
Dominique iniciou a limpeza e a arrumação do apartamento, até que lhe imprimiu um aspecto quase irreconhecível. Quando se considerou satisfeita, voltou-se para Tony e anunciou:
- Por hoje, chega. Agora, preciso de me lavar - esclareceu, após o que entrou na casa de banho e abriu a torneira da minúscula banheira. - Como te ajeitas nisto?
- Dobro as pernas.
- Gostava de assistir.
Quinze minutos depois, reapareceu apenas com uma toalha em torno da cintura, e Tony reflectiu que nunca tivera oportunidade de a admirar devidamente. Por estranho que parecesse, a presença da toalha tornava -a mais apetitosa.
- Gostavas de fazer amor comigo? - sugeriu ela, adivinhando-lhe a reacção.
- Muito.
- Então, vamos a isso - condescendeu, libertando-se da toalha.
Tony nunca conhecera uma mulher como Dominique, que dava tudo e não exigia nada em troca. Aparecia quase todas as noites, a fim de cozinhar para ele, e quando comiam fora insistia em frequentar bistros pouco dispendiosos ou snackbars.
- Tens de economizar - recomendava. - Até os bons artistas sentem dificuldades nos primeiros tempos. E tu és bom, chéri.
Visitavam Lês Halles a altas horas da noite e saboreavam sopa de cebola no Pied de Cochon. Iam ao Musée Carnavalet e a locais que os turistas não frequentavam, como o Cimetière Père -Lachaise, onde repousavam Oscar Wilde, Chopin, Ho -noré de Balzac e Marcel Proust. Desciam às catacumbas e aproveitaram um fim-desemana para percorrer o Sena numa barcaça pertencente a um amigo de Dominique.
Esta constituía uma companhia encantadora. Possuidora de notável sentido do humor, animava Tony com as suas observações jocosas, quando o via deprimido.
Parecia conhecer toda a gente em Paris e levava-o a reuniões interessantes, onde lhe apresentava as figuras mais proeminentes do momento, como o poeta Paul Éluard e André Breton, responsável da prestigiosa Galeria Maeght.
Se Tony manifestava disposição para pintar à noite, ela apressava-se a posar para ele, embora tivesse trabalhado todo o dia. Era a primeira vez que podia estar certo de que alguém o estimava por si próprio, sem a mínima relação com os seus antecedentes familiares. Receava dizer à rapariga que era herdeiro de uma das maiores fortunas do mundo, pois poderia perder aquilo que obtivera com ela. Não obstante, no dia do seu aniversário, não resistiu à tentação de lhe oferecer um casaco de pele de lince.
- É a melhor prenda de anos de toda a minha vida! - exclamou Dominique, vestindo-o e rodopiando na sala. De súbito, porém, imobilizou-se e perguntou: - Onde arranjaste o dinheiro para o comprar?
No entanto, ele achava -se preparado e explicou:
- Foi roubado. Não por mim, acredita. Comprei-o a um receptador, perto do Museu Rodin. Não me custou muito mais que um bom casaco de algodão em Au Printemps.
A rapariga olhou-o em silêncio por uns instantes e rompeu numa gargalhada.
234
- Hei-de usá-lo, ainda que vamos ambos parar à cadeia! - rodeou-lhe o pescoço com os braços e bradou: - Grande pateta! Meu querido e fantástico pateta!
Tony decidiu para consigo que merecera a pena mentir.
Uma noite, Dominique sugeriu que fosse viver com ela. Devido ao facto de trabalhar na École dês Beaux-Arts e servir de modelo a alguns dos artistas mais conhecidos de Paris, podia manter um apartamento moderno e espaçoso na Rua Prêtres-Saint Severin.
- Não deves continuar num lugar destes - acrescentou. - É horrível. Instala-te comigo e não terás de pagar aluguer. Posso lavar-te a roupa, cozinhar para ti e…
- Nem pensar. Obrigado.
- Porquê? “Como poderia ele explicar-lhe?” Ao princípio, não haveria inconveniente de maior em lhe revelar que era rico, mas agora era demasiado tarde. Dominique suporia que se divertira à sua custa. Por conseguinte, declarou:
- Era como se vivesse à tua custa. Já te devo muitos favores.
- Nesse caso, mudo-me eu para aqui. Quero viver a teu lado.
E fê-lo no dia seguinte.
Existia uma intimidade simples e maravilhosa entre ambos. Passavam fins -desemana no campo e alojavam-se em pequenas pousadas, onde Tony instalava o cavalete e pintava paisagens. Nunca se haviam sentido tão felizes.
Entretanto, o trabalho dele progredia admiravelmente. Uma manhã, Maitre Cantai pegou numa das telas de Tony e mostrou-a aos alunos.
- Vejam este corpo. Apercebemo-nos da sua respiração. Tony aguardou com mal contida ansiedade o momento de poder informar Dominique, quando chegou ao apartamento.
- Sabes como consegui finalmente captar a respiração? Tendo o modelo nos braços, todas as noites.
- Não acredito que precises de mais três anos de aulas - redarguiu ela, depois de soltar uma gargalhada. - Toda a gente vê isso, na escola, incluindo Cantai.
O receio de Tony residia em que não fosse suficientemente bom, limitando-se a ser mais um pintor cujo trabalho se perderia na torrente de pinturas apresentadas por milhares de
235
artistas de todo o mundo, diariamente. A perspectiva afigurava-se-lhe intolerável.
Ao mesmo tempo, acudia-lhe ao espírito a recomendação da mãe, segundo a qual o importante era vencer.
Por vezes, quando concluía um trabalho, invadia-o uma sensação de euforia e pensava: “Tenho talento. Tenho realmente talento!” Noutras ocasiões, contemplava o que acabava de executar e decidia: “Não passo de um amador.”
Com o encorajamento de Dominique, adquiria confiança crescente naquilo que efectuava. Entretanto, completara cerca de duas dúzias de pinturas, em que predominavam as paisagens e as naturezas-mortas. Havia também uma de Dominique, estendida, desnuda, debaixo de uma árvore, o corpo acariciado pelo sol. Viam-se um casaco e uma camisa de homem em segundo plano, e o observador compreendia que ela aguardava o amante.
Quando contemplou o resultado, ela exclamou:
- Tens de promover uma exposição!