XI - VIDA NO CANAVIAL


Seriam cerca de oito horas, pensou Bond. A não ser o coaxar dos sapos, tudo estava mergulhado em silêncio. No canto mais distante da clareira, ele podia vislumbrar o vulto de Quarrel.

Podia-se ouvir o tinir metálico, enquanto ele se ocupava em desmontar e secar a sua “Remington”.

Por entre as árvores podiam-se ver também as luzes distantes, vindas do depósito de guano, riscar caminhos luminosos e festivos sobre a superfície escura do lago. O desagradável vento desaparecera e o abominável cenário estava mergulhado em trevas. Estava bastante fresco. As roupas de Bond tinham secado no corpo. A comida tinha aquecido o seu estômago. Ele experimentou uma agradável sensação de conforto, sonolência e paz. O dia seguinte ainda estava muito longe e não apresentava problemas, a não ser uma boa dose de exercício físico. A vida, subitamente, pareceu-lhe fácil e boa.

A jovem estava a seu lado, metida no saco de dormir. Estava deitada de costas, com a cabeça descansando nas mãos, e olhando para o teto de estrelas. Ele apenas conseguia divisar os pálidos contornos de seu rosto. De repente, ela disse: James, você prometeu dizer-me o que significava tudo isso. Vamos. Eu não dormirei enquanto você não o disser.

Bond riu. — Eu direi se você também disser. Também quero saber o que você pretende.

— Pois não, não tenho segredos: mas você deve falar primeiro.

— Está certo. — Bond puxou os joelhos até a altura do queixo e passou os braços à volta deles. — Eu sou uma espécie de policial. Eles me enviam de Londres quando há alguma coisa de estranho acontecendo em alguma parte do mundo e que não interessa a ninguém. Bem, não faz muito tempo, um dos funcionários do Governador, em Kingston, um homem chamado Strangways, aliás meu amigo, desapareceu. Sua secretária, que era uma linda jovem, também desapareceu sem deixar vestígios. Muitos pensaram que eles tivessem fugido juntos, mas eu não acreditei nisso. Eu...”

Bond contou tudo com simplicidade, falando em homens bons e maus, como numa história de aventuras lida em algum livro. Depois terminou: Como você vê, Honey, temos de voltar a Jamaica, amanhã à noite, todos nós, na canoa, e então o Governador nos dará ouvidos e enviará um destacamento de soldados para apanhar este chinês. Espero que isso terá como conseqüência levá-lo à prisão. Ele com certeza também sabe disso, e essa é a razão pela qual procura aniquilar-nos. Essa é a história. Agora é a sua vez.

A jovem disse: Você parece viver uma vida muita excitante. Sua mulher não deve gostar que você fique fora tanto tempo. Ela não tem medo de que você se fira?

— Não sou casado. A única que se preocupa com a possibilidade de que eu me fira é a minha companhia de seguros.

Ela continuou sondando: Mas suponho que você tenha namoradas.

— Não permanentes.

— Oh!

Fez-se uma pausa. Quarrel se aproximou e disse: “Capitão, farei o primeiro quarto, se for melhor. Estarei na extremidade da restinga e virei chamá-lo à meia-noite. Então talvez o senhor possa ir até as cinco horas, quando nós nos poremos em marcha. Precisamos estar fora daqui antes que clareie o dia.

— Está bem — respondeu Bond. — Acorde-me se você vir alguma coisa. O revólver está em ordem?

— Perfeito — respondeu Quarrel com evidente mostra de contentamento. Depois, dirigindo-se à jovem disse com leve tom de insinuação: — Durma bem, senhorita. Em seguida, desapareceu silenciosamente nas sombras.

— Gosto de Quarrel — disse a jovem. E, após uma pausa: — Você quer realmente saber alguma coisa a meu respeito? A história não é tão excitante quanto a sua.

— É claro que quero. E não omita nada.

— Não há nada a omitir. Você poderia escrever toda a história de minha vida nas costas de um cartão postal. Para começar, nunca saí de Jamaica. Vivi toda a minha vida num lugar chamado Beau Desert, na costa setentrional, nas proximidades do Porto Morgan.

Bond riu. — É estranho: posso dizer o mesmo; pelo menos por enquanto. Não notei você pela região. Você vive em cima de uma árvore?

— Ah, imagino que você tenha ficado na casa da praia. Eu nunca chego até ali. Vivo na Casa Grande.

— Mas nada ficou dela. É uma ruína no meio dos canaviais.

— Eu vivo na adega. Tenho vivido ali desde a idade de cinco anos. Depois a casa se incendiou e meus pais morreram. Nada me lembro deles, por isso você não precisa manifestar pesar. A princípio vivi ali com a minha ama negra, mas depois ela morreu, quando eu tinha apenas quinze anos. Nos últimos cinco anos tenho vivido ali sozinha.

— Nossa Senhora! — Bond estava boquiaberto. — Mas não havia ninguém para tomar conta de você? Os seus pais não deixaram nenhum dinheiro?

— Nem um tostão. — Não havia o mínimo traço de amargura na voz da jovem — talvez orgulho, se houvesse alguma coisa. — Você sabe, os Riders eram uma das mais antigas famílias de Jamaica. O primeiro Rider recebera de Cromwell as terras de Beau Desert, por ter sido um dos que assinaram o veredicto de morte contra o rei Carlos. Ele construiu a Casa Grande e minha família viveu ora nela ora fora dela, desde aquela época. Mas depois veio a decadência do açúcar e eu acho que a propriedade foi pessimamente administrada, e, ao tempo em que meu pai tomou conta da herança, havia somente dívidas — hipotecas e outros ônus. Assim, quando meu pai e minha mãe morreram a propriedade foi vendida. Eu pouco me importei, pois era muito jovem. Minha ama deve ter sido maravilhosa. Quiseram que alguém me adotasse, mas a minha babá reuniu os pedaços de mobília que não tinham sido queimados e com eles nós nos instalamos da melhor forma no meio daquelas ruínas. Depois de algum tempo ninguém mais veio interferir conosco. Ela cosia um pouco e lavava para algumas freguesas da aldeia, ao mesmo tempo que plantava bananas e outras coisas, sem falar do grande pé de fruta-pão que havia diante da casa. Comíamos o que era a ração habitual do povo de Jamaica. E havia os pés de cana-de-açúcar à nossa volta. Ela fizera também uma rede para apanhar peixes, a qual nós recolhíamos todos os dias. Tudo corria bem e nós tínhamos o suficiente para comer. Ela ensinou-me a ler e escrever, como pôde. Tínhamos uma pilha de velhos livros que escapara ao incêndio, inclusive uma enciclopédia. Comecei com o A quando tinha apenas oito anos, e cheguei até o meio do T. — Ela disse um tanto na defensiva: — Aposto que sei mais do que você sobre muitas coisas.

— Estou certo de que sim. — Bond estava perdido na visão daquela jovem de cabelos de linho errando pelas ruínas de uma grande construção, com uma obstinada negra a vigiá-la e a chamá-la para receber as lições que deveriam ter sido um mistério para ela mesma. — Sua ama deve ter sido uma criatura extraordinária.

— Ela era um amor. — Era uma afirmação peremptória. — Pensei que fosse morrer quando ela faleceu. As coisas não foram tão fáceis para mim depois disso. Antes eu levava uma vida de criança, mas subitamente tive que crescer e fazer tudo por mim mesma. E os homens tentaram apanhar-me e atingir-me. Diziam que queriam fazer amor comigo. — Fez uma pausa e acrescentou: — Eu era bonita naquela época. Bond disse muito sério:

— Você é uma das jovens mais belas que já vi.

— Com este nariz? Não seja tolo.

— Você não compreende. — Bond tentou encontrar palavras nas quais ela pudesse crer. — É claro que qualquer pessoa pode ver que o seu nariz está quebrado; mas desde esta manhã dificilmente eu pude notá-lo. Quando se olha para uma pessoa, olha-se para os seus olhos ou para a sua boca. Nesses dois pontos se encontram a expressão. Um nariz quebrado não tem maior significação do que uma orelha torta. Narizes e orelhas são peças do mobiliário facial. Algumas são mais bonitas do que outras, mas não são tão importantes quanto o resto. Se você tivesse um nariz bonito, tão bonito como o resto, você seria a jovem mais bela de Jamaica.

— Você é sincero? — Sua voz era ansiosa. — Você acha que eu poderia ser bela? Sei que muita coisa em mim está bem, mas quando olho no espelho só vejo o meu nariz quebrado. Estou certa de que o mesmo ocorre com outras pessoas que são, que são — bem — mais ou menos aleijadas.

Bond disse com impaciência: — Você não é aleijada! Não diga tolices. E aliás você pode endireitá-lo mediante uma simples operação. Basta que você vá aos Estados Unidos e a coisa levará apenas uma semana.

Ela disse com irritação: — Como é que você quer que eu faça isso? Tenho cerca de quinze libras debaixo de uma pedra, na minha adega. Tenho ainda três saias, três blusas, uma faca e uma panela de peixe. Conheço muito bem essas operações. O médico de Porto Maria já pediu informações para mim. Ele é um homem muito bom e escreveu para os Estados Unidos. Pois para que a operação seja bem feita, eu teria que gastar cerca de quinhentas libras, sem falar da passagem para Nova York, a conta do hospital e tudo o mais.

Sua voz tornou-se desesperançada: — Como é que você espera que eu possa ter todo esse dinheiro?

Bond já decidira sobre o que teria de ser feito, mas no momento apenas disse ternamente: — Bem, espero que se possam encontrar meios; mas, de qualquer maneira, prossiga com a sua história. Ela é muito excitante — muito mais interessante do que a minha. Você tinha chegado ao ponto em que a sua ama morreu. O que aconteceu depois?

A jovem recomeçou com relutância.

— Bem, a culpa é sua por ter interrompido. E você não deve falar de coisas que não compreende. Suponho que as pessoas lhe digam que você é simpático. Você deve também ter todas as namoradas que desejar. Bem, isso não aconteceria se você fosse vesgo ou tivesse um lábio leporino. — Na verdade, ele pôde ouvir o sorriso em sua voz: — Acho que quando voltarmos eu irei ter com o feiticeiro para que lhe faça uma mandinga e lhe dê alguma coisa assim. — E ela acrescentou tristemente: — Dessa forma, nós seremos mais parecidos.

Bond estendeu o braço e sua mão tocou nela: — Eu tenho outros planos. Mas continuemos, quero ouvir o resto da sua história.

— Bem, — disse a jovem com um suspiro. — Eu terei que me atrasar um pouco. Como você sabe, toda a propriedade é representada pela cana-de-açúcar e pela velha casa que está situada no meio da plantação. Bem, umas duas vezes por ano eles cortam a cana e mandam-na para o moinho. E quando eles o fazem, todos os animais e insetos que vivem nos canaviais entram em pânico e a maioria deles têm as suas tocas destruídas e são mortos. Na época da safra, alguns deles começaram a vir para as ruínas da casa, onde se escondiam. No princípio, minha babá ficava aterrorizada, pois lá vinham os mangustos, as cobras e os escorpiões, mas eu preparei dois quartos da adega para recebê-los. Não me assustei com eles, e eles nunca me fizeram mal. Pareciam compreender que eu estava cuidando deles. E devem ter contado aquilo aos seus amigos, ou alguma coisa parecida, pois depois de algum tempo era perfeitamente natural que todos viessem acantonar-se em seus dois quartos, onde ficavam até que os canaviais começassem novamente a crescer, quando então iam saindo e voltando para os campos. Dei-lhes toda a comida que podíamos pôr de lado, quando eles ficavam conosco, e todos se portavam muito bem, a não ser por algum odor e às vezes uma ou outra luta entre si. Mas eram muito mansos comigo. Naturalmente os cortadores de cana perceberam tudo e viam-me andando pelo lugar com cobras à volta do meu pescoço, e assim por diante, a ponto de ficarem aterrorizados comigo e me considerarem uma feiticeira. Por causa disso, eles nos deixaram completamente isoladas. Ela fez uma pausa, e depois recomeçou:

— Foi assim que aprendi tanta coisa sobre animais e insetos. Eu costumava ainda passar muito tempo no mar, aprendendo coisas sobre os animais marinhos, assim como sobre os pássaros. Se se chega a saber o que todas essas criaturas gostam de comer e do que têm medo, pode-se muito bem fazer amizade com elas. — Levantou os olhos para Bond e disse: Você não sabe o que perde ignorando todas essas coisas.

— Receio que perca muito — respondeu Bond com sinceridade. — Suponho que eles sejam muito melhores e mais interessantes que os homens.

Sobre isso nada sei — respondeu a jovem pensativa-mente. — Não conheço muitas pessoas. A maioria das que conheci foram detestáveis, mas acho que deve haver criaturas interessantes também. — Fez uma pausa, e prosseguiu: — Nunca pensei realmente que chegasse a gostar de alguma pessoa como gosto dos animais. Com exceção da babá, naturalmente. Até que... — Ela se interrompeu com um sorriso de timidez. — Bem, de qualquer forma, nós vivemos muito felizes juntas, até que eu fiz quinze anos, quando então a babá morreu e as coisas se tornaram muito difíceis. Havia um homem chamado Mander. Um homem horroroso. Era o capataz branco que servia aos proprietários da plantação. Ele vivia me procurando. Queria que eu fosse viver com ele, em sua casa de Porto Maria.

Eu o odiava, e costumava esconder-me sempre que ouvia o seu cavalo aproximando-se do canavial. Certa noite ele veio a pé e eu não o ouvi. Estava bêbado. Entrou na adega e lutou comigo porque não queria fazer o que ele desejava. Você sabe, as coisas que fazem as pessoas quando estão apaixonadas.

— Sim, já sei.

— Tentei matá-lo com a minha faca, mas ele era muito forte e deu-me um soco tão forte no rosto que me quebrou o nariz. Deixou-me inconsciente e acho que fez alguma coisa comigo. Sei que ele fez mesmo. No dia seguinte eu quis me matar quando vi o meu rosto e verifiquei o que ele me havia feito. Pensei que iria ter um filho. Teria sem dúvida me matado se tivesse tido um filho daquele homem. Em todo caso, não tive, e tudo continuou assim. Fui ao médico e ele fez o que pôde com o meu nariz e não me cobrou nada. Quanto ao resto, eu nada lhe contei, pois estava muito envergonhada. O homem não voltou mais. Eu esperei e nada fiz até a próxima colheita de cana-de-açúcar. Tinha um plano. Estava esperando que as aranhas viúvas-negras viessem procurar abrigo. Um belo dia elas chegaram. Apanhei a maior das fêmeas e á deixei numa caixa sem nada para comer. As fêmeas são terríveis. Então esperei que fizesse uma noite escura, sem luar. Na primeira noite dessas, apanhei a caixa com a aranha e caminhei até chegar à casa do homem. Estava muito escuro e eu me sentia aterrorizada com a possibilidade de encontrar algum assaltante pela estrada, mas não houve nada. Esperei em seu jardim, oculta entre os arbustos, até que ele se recolheu à cama. Então subi por uma árvore e ganhei a sacada; aguardei até que ele começasse a roncar e depois entrei pela janela. Ele estava nu, estendido na cama, sob o mosquiteiro. Levantei uma aba do filó, abri a caixa e sacudi-lhe a aranha sobre o ventre. Depois saí e voltei para casa.

— Deus do céu! — exclamou Bond reverentemente. — O que aconteceu com o homem?

Ela respondeu com satisfação: — Levou uma semana para morrer. Deve ter-lhe doído terrivelmente. Você sabe, a mordida dessa aranha é pavorosa. Os feiticeiros dizem que não há nada que se lhe compare. — Ela fez uma pausa, e como Bond não fizesse nenhum comentário, acrescentou: — Você não acha que eu fiz mal, não é?

— Bem, não faça disso um hábito — respondeu Bond suavemente. — Mas não posso culpá-la, diante do que ele tinha feito. E, depois, o que aconteceu?

— Bem, depois me estabeleci novamente — sua voz era firme. — Tive que me concentrar na tarefa de obter alimento suficiente, e naturalmente. — Acrescentou persuasivamente: — Eu tinha de fato um nariz muito bonito, antes. Você acha que os médicos podem torná-lo igualzinho ao que era antes?

— Eles poderão fazê-lo de qualquer forma que você quiser — disse Bond em tom definitivo. — Como é que você ganhou dinheiro?

— Foi graças à enciclopédia. Li nela que há pessoas que gostam de colecionar conchas marinhas e que as conchas raras podiam ser vendidas. Falei com o mestre-escola local, sem contar-lhe naturalmente o meu segredo, e ele descobriu para mim que havia uma revista norte-americana chamada “Nautilus”, dedicada aos colecionadores de conchas. Eu tinha apenas o dinheiro suficiente para tomar uma assinatura daquela revista e comecei a procurar as conchas que as pessoas pediam em seus anúncios. Escrevi a um comerciante de Miami e ele começou a comprar as minhas conchas. Foi emocionante. Naturalmente que cometi alguns erros, no princípio. Pensei, por exemplo, que as pessoas gostariam das conchas mais bonitas, mas esse não era o caso. Freqüentemente elas preferiam as conchas mais feias. Depois, quando achava conchas raras, punha-me a limpá-las e poli-las a fim de torná-las mais bonitas, mas isso também foi um erro. Os colecionadores querem as conchas exatamente como saem do mar, com o animal em seu interior também. Então consegui algum formol com o médico e o punha entre as conchas vivas, para que elas não tivessem mau cheiro, e depois mandava-as para o tal comerciante de Miami. Só aprendi bem o negócio de um ano para cá e já consegui quinze libras. Consegui esse resultado agora que sei como é que eles querem as conchas e se tivesse sorte, poderia fazer pelo menos cinqüenta libras por ano. Então, em dez anos poderia ir aos Estados Unidos e operar-me. Mas, continuou ela com intenso contentamento, tive uma notável maré de sorte. Fui a Crab Key pelo Natal, onde já tinha estado antes. Mas dessa vez eu encontrei essas conchas purpúreas. Não parecem grande coisa, mas eu enviei uma ou duas para Miami e o comerciante escreveu-me para dizer que compraria tantas dessas conchas quantas eu pudesse encontrar, e ao preço de até cinco dólares pelas perfeitas. Disse-me ainda que eu deveria manter segredo sobre o lugar de onde as tirava, pois de outra forma o “mercado seria estragado”, como disse ele, e os preços cairiam. É como se se tivesse uma mina de ouro particular. Agora serei capaz de juntar o dinheiro em cinco anos. Esse foi o motivo pelo qual tive grandes suspeitas de você, quando o encontrei na praia. Pensei que você tivesse vindo para roubar as minhas conchas.

— Você me deu um susto, pois pensei que você fosse a garota do Dr. No.

— Muito obrigada.

— Mas depois que você tiver feito a operação, o que irá fazer? Você não pode continuar vivendo numa adega durante toda a vida.

— Pensei em me tornar uma prostituta. — Ela o disse como se tivesse dito “enfermeira” ou “secretária”.

— Oh, o que é que você quer dizer com isso? — Talvez ela já tivesse ouvido aquela expressão sem compreendê-la bem.

— Uma dessas jovens que possuem um bonito apartamento e lindas roupas. Você sabe o que quero dizer — acrescentou ela com impaciência. — Os homens telefonam, marcam encontro, chegam, fazem amor e pagam. Elas ganham cem dólares de cada vez, em Nova Iorque, onde pensei começar. Naturalmente — admitiu — terei de fazer por menos, no começo, até que aprenda a trabalhar bem. Quanto é que vocês pagam pelas que não têm experiência?

Bond riu. — Francamente, não me lembro. Há muito tempo que não me encontro com essas mulheres.

Ela suspirou. — Sim, suponho que você possa ter tantas mulheres quantas queira, por nada. Suponho que apenas os homens feios paguem, mas isso é inevitável. Qualquer espécie de trabalho nas grandes cidades deve ser horrível. Pelo menos pode-se ganhar muito mais como prostituta. Depois, poderia voltar para Jamaica e comprar Beau Desert. Seria bastante rica para encontrar um marido bonito e ter alguns filhos. Agora que encontrei essas conchas, penso que poderia estar de volta a Jamaica quando tivesse trinta anos. Não seria formidável?

— Gosto da última parte do plano, mas não tenho muita confiança na primeira. De qualquer forma, como é que você veio a saber dessa história de prostitutas? Encontrou isso na letra P, na enciclopédia?

— Claro que não; não seja tolo. Há uns dois anos houve em Nova Iorque um escândalo sobre elas, envolvendo também um “play-boy” chamado Jelke. Ele tinha toda uma cadeia de prostitutas, e eu li muito sobre o caso no “Gleaner”. O jornal deu inclusive os preços que elas cobravam e tudo o mais. De qualquer forma, há milhares dessas jovens em Kingston, embora não sejam tão boas. Recebem apenas cinco xelins e não têm um lugar apropriado para fazer amor, a não ser no mato. Minha babá chegou a falar-me delas. Disse-me que eu não deveria imitá-las, pois do contrário seria muito infeliz. É claro que seria, recebendo apenas cinco xelins. Mas por cem dólares!...

Bond observou: — Você não conseguiria guardar todo esse dinheiro. Precisaria ter uma espécie de gerente para arranjar os homens, e teria ainda de dar gorjetas à polícia, para deixá-la em paz. Por fim, poderia ir facilmente parar na cadeia se tudo não corresse bem. Na verdade, com tudo o que você sabe sobre animais, bem poderia ter um ótimo emprego, cuidando deles, em algum jardim zoológico norte-americano. E o que me diz do Instituto de Jamaica? Tenho certeza de que você gostaria mais de trabalhar ali. E poderia também facilmente encontrar um bom marido. De qualquer forma, você não deve mais pensar em ser prostituta. Você tem um belo corpo e deve guardá-lo para o homem que amar.

— Isso é o que dizem as pessoas nos livros — disse ela com ar de dúvida. — A dificuldade está em que não há nenhum homem para ser amado em Beau Desert. — Depois acrescentou timidamente: — Você é o único inglês com quem jamais falei. Gostei de você desde o princípio, e não me importo de dizer-lhe essas coisas agora. Penso que há muitas pessoas das quais chegaria a gostar se saísse daqui.

— É claro que há. Centenas. E você é uma garota formidável; o que pensei assim que a vi.

— Assim que viu as minhas nádegas, você quer dizer. — Sua voz estava-se tornando sonolenta, mas cheia de prazer.

Bond riu. — Bem, eram nádegas maravilhosas. E o outro lado também era maravilhoso. — O corpo de Bond começou a se agitar com a lembrança de como a vira pela primeira vez. Depois de um instante, disse com mau humor: — Agora vamos, Honey. Está na hora de dormir. Haverá muito tempo para conversarmos quando voltarmos a Jamaica.

— Haverá? — perguntou ela desconsoladamente. — Você promete?

— Prometo.

Ele a viu agitar-se dentro do saco de dormir. Olhou para baixo e apenas pôde divisar o seu pálido perfil voltado para ele. Ela deixou escapar o profundo suspiro de uma criança, antes de adormecer.

Reinava silêncio na clareira e o tempo estava esfriando. Bond descansou a cabeça sobre os joelhos unidos. Sabia que era inútil procurar dormir, pois sua mente estava cheia dos acontecimentos do dia e dessa extraordinária mulher Tarzan que aparecera em sua vida. Era como se algum animal muito bonito se lhe tivesse dedicado. E não largaria os cordéis enquanto não tivesse resolvido os problemas dela. Estava sentindo isso. Naturalmente que não haveria grandes dificuldades para a maioria de seus problemas. Quanto à operação, seria fácil arranjá-la, e até mesmo encontrar-lhe um emprego, com o auxílio de amigos, e um lar. Tinha dinheiro e haveria de comprar-lhe roupas, mandaria ajeitar os seus cabelos e a lançaria no grande mundo. Seria divertido. Mas quanto ao resto? Quanto ao desejo físico que sentia por ela? Não se podia fazer amor com uma criança. Mas, seria ela uma criança? Não haveria nada de infantil relativamente ao seu corpo ou à sua personalidade. Era perfeitamente adulta e bem inteligente, a seu modo, e muito mais capaz de tomar conta de si mesma do que qualquer outra jovem de vinte anos que Bond conhecera.

Os pensamentos de Bond foram interrompidos por um puxão em sua manga. A vozinha disse: — Por que você não vai dormir? Não está sentindo frio?

— Não; estou bem.

— Aqui no saco de dormir está bom e quente. Você quer vir para cá? Tem bastante lugar.

— Não, obrigado, Honey. Estou bem.

Houve uma pausa, e depois ela disse num sussurro: — Se você está pensando... Quero dizer — você não precisa fazer amor comigo... Eu poderia dormir de costas para o seu peito.

— Honey, querida, vá dormir. Seria maravilhoso dormir assim com você, mas não esta noite. De qualquer maneira, em breve terei de render Quarrel.

— Muito bem, — disse ela com voz mal humorada. — Talvez quando voltarmos a Jamaica.

— Talvez.

— Prometa. Não dormirei enquanto você não prometer.

Bond disse desesperadamente: — Naturalmente que prometo. Agora, vá dormir, Honeychile.

A sua voz se fez ouvir outra vez, triunfante: — Agora você tem uma dívida comigo. Você prometeu. Boa-noite, querido James.

— Boa noite, querida Honey.


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